Revista do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Antecedentes do Modernismo de 22
02 / 2022
DTLLC | FFLCH | USP
36
Universidade de São Paulo
Reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior
Vice-Reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretor Paulo Martins
Vice-Diretora Ana Paula Torres Megiani
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Chefe Ariovaldo Vidal
Vice-chefe Ana Paula de Souza e Sá Pacheco
Apoio:
Edital 2022 do Programa de Apoio às Publicações Científicas Periódicas da USP
Literatura e Sociedade – n. 36 (2022.2) – Semestral
São Paulo: USP /FFLCH /DTLLC
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, sl. 35, 05508-900
ISSN 1413-2982 (do n.1 ao n.14)
eISSN: 2237-1184 (a partir do n.15)
CDD 801.3
Licença:
1. Literatura e sociedade. 2. Teoria literária. 3. Literatura comparada.
I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Projeto gráfico original de Carlito Carvalhosa (n. 1 a 4). Projeto de capa e miolo para os números 5 e 6 de
Cláudio Weber Abramo. Projeto de capa e adaptação de miolo ( de n. 7 a 12) de Maria Augusta Fonseca. A
adaptação de miolo padronizada (n. 7 a 36)
Imagem da capa: FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (BRASIL). BNDIGITAL: O Pirralho. São Paulo: 1911-1918.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (BRASIL). BNDIGITAL: O Pirralho. São Paulo: 19 jul. 1913. Disponível em
https://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=213101&pesq=&pagfis=2343
Uso da capa autorizado por Marília de Andrade: Na qualidade de curadora da obra de meu pai, Oswald de
Andrade, autorizo a reprodução do desenho de O Pirralho na capa do número 36 da Revista Literatura e
Sociedade, considerando a seriedade dos professores envolvidos nesse projeto, a importância dessa revista
para divulgação da obra do Oswald e considerando que não existem quaisquer fins lucrativos no uso dessa
imagem.
Fontes: Famílias Book Antiqua, Cinzel, Futura e ITC Berkeley
A revista segue as diretrizes do Committee on Publications Ethics e garante aos autores dos artigos os
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MÍNIMA MAXIMALIANA
https://dx.doi.org/10.11606/issn.2237-1184.v0i36p22-38
Raul Antelo
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE:
A Revolução Russa de 1917 produziu um discurso de
energias renovadas em muitos países da América latina.
Uma palestra do sociólogo argentino José Ingenieros
imediatamente traduzida pela Revista do Brasil ajuda-nos
a compreender o debate brasileiro sobre a ideia de uma
sociedade em busca de uma nova identidade coletiva, ou
seja, uma revolução proletária mundial.
Democracia;
ABSTRACT
KEYWORDS
The Bolshevik Revolution of 1917 produced a discourse of
renewed energies in most countries from Latin America. A
lecture by Argentine sociologist José Ingenieros inmediately
translated by Revista do Brasil helps us to understand the
Brazilian debate on the idea of a society in search of a new
collective identity, i.e., a worldwide workers Revolution.
Democracy;
nacionalismo;
modernismo.
nationalism;
modernism.
O
século começa com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
guerra que inclui a Revolução de Outubro de 1917, e termina com o
desmoronamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (U.R.S.S.)
e o fim da Guerra Fria. É o pequeno século (65 anos) vigorosamente
unificado. O século soviético, em suma.
Alain Badiou – O século.
Na filosofia russa do período simbolista, o impulso dionisíaco de
Nietzsche se fundiu com a ideia de uma história da salvação eslavófila, que
deveria concretizar a unidade da humanidade na liberdade (sobornost), e,
com isso, trazer a sabedoria (sophia). O dionisíaco transformou-se em um
código que expressava um ideal, uma esperança. Associava-se a essa
concepção a ideia de uma Rússia futura, que superaria a cultura ocidental
e realizaria a reconstrução de todo o mundo.
Boris Groys – Introdução à Antifilosofia.
Toda revolução, imersa no processo histórico, solicita uma estratégia
a longo prazo, ao passo que uma rebelião é apenas um repentino estouro
de insurreição e desacato, uma autêntica suspensão do tempo histórico,
embora seja precisamente na suspensão quando se libera a verdadeira
experiência coletiva. O instante da insurreição determina a fulminante
autorrealização e objetivação de si, como parte de uma comunidade. A luta
entre o bem e o mal, entre a sobrevivência e a morte, identifica-se, portanto,
com a luta de toda a comunidade: todos possuem as mesmas armas, todos
enfrentam os mesmos obstáculos e lutam contra o mesmo inimigo. “Todos
experimentam a epifania dos mesmos símbolos”1. Um desses símbolos, em
1917, foi o maximalismo, tradução portuguesa do termo bolchevismo,
maioria em russo, devido aos maximalistas terem se tornado a fração
majoritária do Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo
(POSDR), em 1903. Como ala mais radical do marxismo russo, os
maximalistas contrapunham-se aos mencheviques, a minoria. A saga
maximalista logo atraiu as atenções na América latina 2. O médico e
JESI, Furio - Spartakus. Simbología de la revuelta. Ed. Andrea Cavalletti. Trad. María
Teresa D ’Meza. Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2014, p. 70-1.
2 Em dezembro de 1918, a Revista Americana estampa um “Elogio de Lenine” de Carlos
Malheiro Dias em que o ensaísta afirma que “é quase absolutamente impraticável
julgarmos equitativamente a Revolução Russa, obsidiados pelas nossas tradicionais e
arcaicas concepções da sociedade e do estado. Tanto valeria submeter ao critério fanático
e intolerante de um tribunal de inquisição, do tempo do cardeal Ximenes, um delito por
abuso de liberdade de imprensa. Estou convencido de que as tenebrosas massas do
proletariado russo, embriagadas de utopias e também de sangue, entontecidas pela
liberdade e também pela fome, devem cuspir com desprezo sobre a logomaquia da
imprensa universal, para elas ininteligível. A civilização ocidental deixou de entender a
Rússia. Mesmo a Rússia maximalista não existe mais no mapa político da Europa. É uma
sociedade tão dessemelhante das suas vizinhas que antes parece localizada em outro
planeta” (DIAS, Carlos Malheiros – “Elogio de Lenine”. Revista Americana. Rio de
Janeiro, ano VIII, nº. 3, dez. 1918, p. 180-1). Um mês depois, a mesma revista divulga (a.8,
nº 4), em tradução de Araújo Jorge, a Constituição da República Soviética dos Soviets
Russos. Ver, ainda, SAMPERIO, José Maria – Maximalismo. La novela del día, a. 1, nº 13.
Buenos Aires, 21 fev. 1919; ZALONSKY, Pierre – Maximalismo. Buenos Aires, Monreal y
Merédiz, 1918; BARRANTES MOLINA, Luis- El maximalismo em marcha. La novela del día,
a. 1, nº 28, Buenos Aires, 13 jun. 1919. Ingenieros considerava a insurreição de 1917 um
dos acontecimentos que se produzem uma vez em cada século, determinando uma
atitude favorável a toda iniciativa renovadora. “O maximalismo é a aspiração de realizar
o máximo de reformas possíveis dentro de cada sociedade tendo em conta suas
condições particulares. Não pode concretizar-se em uma fórmula única, sendo antes
uma atitude que um programa. Não é legitimo pensar que as nações civilizadas quererão
ensaiar as inovações discutidas desde há meio século? Muitas delas não têm já
experimentado nestes anos de guerra sem que ninguém pense em voltar atrás? Que
melhor oportunidade para efetuar tão generosa experiência? Longe de nos inspirar o
menor receio, o maximalismo deve considerar-se como um desenvolvimento integral do
minimalismo democrático enunciado por Wilson”. INGENIEROS, José – “Significação
1
sociólogo argentino José Ingenieros (nascido Giuseppe Ingegnieros, em
Palermo, Sicília, em 1877, e falecido em Buenos Aires, em 1925), fundador,
com Juan B. Justo, do Partido Socialista daquele país, associou, em seus
escritos, a empatia com a experiência soviética, com a reforma
universitária, em curso na Argentina, a partir de 1918, e um difuso antiimperialismo latino-americano. Como apontado por Oscar Terán, elitismo
e darwinismo social, claros sintomas da crise do liberalismo, marcaram a
imaginação política de Ingenieros, com irresistível confiança no porvir.
Quanto à situação russa, especificamente, ela era, a seu ver, menos um
acontecimento revolucionário do que um processo muito mais amplo de
substituição do antigo regime por uma sociedade secularizada e
progressista, em que a transformação pouco tinha de específica, uma vez
que demonstrava, mais uma vez, que só as elites ilustradas conseguem
realizar as mudanças históricas3. No processo de secularização social, a
histórica do maximalismo”. Revista do Brasil, a. 3, n 36, vol IX. São Paulo, dez 1918, p. 489.
A conferência teve uma edição uruguaia: Significación histórica del maximalismo. La
Constitución de la República Socialista de los soviets rusos comentada por Celestino
Mibelli y Mariano de Vedia y Mitre. Montevideo, M. Garcia, 1918. No Brasil, Astrojildo
Pereira cobre os sucessos em seu jornal O Debate. Ainda em 1918, sob o pseudônimo de
Alex Pavel, Astrojildo lança um panfleto, A Revolução Russa e a Imprensa, e passa a dirigir
os jornais Spartacus e Voz do Povo, participando também em A Vanguarda, O Internacional
e, posteriormente, na revista Movimento Comunista. Um dos colaboradores de Astrojildo
em O Debate era Lima Barreto, quem leu o artigo de Ingenieros na Revista do Brasil. Em
colaboração para a Revista Contemporânea, Lima admite que “o Senhor Ingenieros, muito
mais sábio nessas coisas do que eu, e muito e muito mais experimentado nelas, assim
definiu o maximalismo: ‘a aspiração de realizar o máximo de reformas possíveis dentro
de cada sociedade, tendo em conta as suas condições particulares’” (“Sobre o
maximalismo”, 1 mar. 1919).
3 “Na Rússia tudo era inseguro. O grupo militarista, que havia enganado o próprio czar
e, contribuindo para acender a mecha da guerra, conservava sua liberdade de ação e
manejava milhões; seu influxo era suficiente para intentar a restauração do regime caído,
e procurava descaradamente a cumplicidade dos governos aliados para afogar em seu
berço a democracia nascente. Kerensky começou a comprometer a revolução com suas
vacilações; esqueceu que em certos momentos críticos todo aquele que contemporiza
serve a causa de seus inimigos e não a própria; receou empregar os meios enérgicos que
as circunstâncias impunham assumindo com inteireza as responsabilidades da grande
hora histórica. Está derrubado o despotismo enquanto vivem os déspotas, e seus
partidários conspiram para os restaurar? Não condenamos por isso a Kerensky; foi útil
para a revolução no primeiro momento, mas teria sido funesta a sua permanência no
formação da unidade nacional devia neutralizar, assim, a desagregação
feudal, obedecendo ao conflito entre progresso e reação, elite e massa,
ativismo e indolência. O objetivo era consolidar um Estado-nação
capitalista e liberal, cuja meta fosse historizar a busca de uma
governo. Não esquecemos que vacilações análogas tinha mostrado com a sua dinastia a
revolução francesa; e então, como agora, foi necessário que ela se desligasse de seus
elementos indecisos, para que o antigo regime fosse mortalmente ferido na pessoa de
seus simbólicos representantes. O arranque decisivo ocorreu na Rússia em princípios de
1918. A facção radical dos partidos revolucionários compreendeu que era perigoso
seguir caminhos oblíquos; desalojou do governo o partido que já estorvava, sacrificou a
vã ilusão de combater contra os exércitos teutônicos e se cingiu a reorganizar
democraticamente as diversas populações avassaladas pelo czarismo. Wilson e
Kerensky tinham dado à democracia um programa ‘minimalista’ mais parecido com
uma concessão que com um reclamo: Lenin e Trotsky acreditaram que a oportunidade
impunha formular suas aspirações máximas, o que fez dar-se ao movimento o nome de
"maximalismo". A atitude que diante dele assumiram os governos beligerantes foi lógica.
Os aliados se inclinaram a encará-lo como uma pura e simples defecção militar; os
germanos militarmente beneficiados pelo sucesso, viram-no com discutível agrado,
suspeitando que o espírito revolucionário poderia contagiar-se a suas próprias
populações. Desde esse momento, dia a dia, as agencias telegráficas começaram a
injuriar a revolução que tinha destruído o despotismo dos czares e procurava
dificultosamente um novo estado de equilíbrio, não muito fácil de encontrar em poucos
dias, após brusca sacudida. O cabo se inchava e cada hora com notícias terríficas que os
governos interessados difundiam pelo mundo, apresentando os maximalistas como um
bando de malvados insensatos. Falou-se do terror. Que terror? O dos czares que haviam
assassinado nos cárceres e na Sibéria milhões de cidadãos que amavam a liberdade, ou
o dos maximalistas que fuzilaram umas quantas centenas de cortesãos que conspiravam
para devolvê-los à escravidão? Tivemos em nossas mãos periódicos russos de oposição
ao movimento maximalista, pois são esses os únicos que deixam circular a censura
aliada; só neles nos surpreende a liberdade com que o criticam, realmente inexplicável
se reinasse o terror mentirosos dos cabos. Há uma verdade que é preciso afirmar, porque
calá-la equivaleria a mentir: comparando a revolução russa com suas congêneres, ela se
caracteriza até agora pela doçura de seu procedimento, quase angelical diante da
gloriosa Revolução Francesa, cujos benefícios desfrutamos sem recordar o muito sangue
que custou. Não pretendemos sugerir que a crise maximalista se efetuou com perucas
polvilhadas como uma tertúlia de cortesãos; seria indubitavelmente exagerado; seria,
todavia, surpreendente que suas únicas vítimas, segundo os diários russos que
levantaram a grita ao céu, tenham sido uma família de autocratas, dez ou vinte bispos,
quatro dúzias de chefes militares e vários centos de burocratas, espias e cossacos, em
cifras apenas apreciáveis em um império de tantos milhões de habitantes. São mais
vítimas sem dúvida, do que as dessa incruenta revolução estudantina que acaba de
triunfar em Córdoba; porém convenhamos que não é o mesmo desalojar uma dúzia de
sábios solenes e demolir uma sinistra tirania secular...”. INGENIEROS, José –
“Significação histórica do maximalismo”, op.cit., p. 486-7. Cf. PORTANTIERO, Juan
Carlos - Estudiantes y política en América Latina. El proceso de la reforma universitaria (19181938). México, FCE, 1978.
fundamentação metafísica da ética, sem por isso perseguir uma dialética
da sociedade, mas antes a intervenção ativa dos ideais. As minorias eram
as mais indicadas para tanto por serem espiritualmente jovens, uma vez
que inconformistas, conforme o paradigma do modernismo arielista, que
correlacionava
juventude,
progressismo,
moralidade
e
cultura 4.
Ingenieros, contudo, antropólogo criminalista5, nem se colocava a
possibilidade de analisar a história como simples testemunha6. Sua posição
era
inequivocamente
meritocrática7,
longe,
além
do
mais,
da
improdutividade celibatária dos contemporâneos dadá 8.
Assim, no início da Grande Guerra, Ingenieros lança uma sorte de
manifesto, “O suicídio dos bárbaros”, em que sustenta que “la civilización
feudal, imperante en las naciones bárbaras de Europa, se prepara a
suicidarse, arrojándose al abismo de la guerra”. Trata-se, a seu ver, da
agonia de um passado carregado de violência e de superstição, conceito
Sérgio Buarque de Holanda resenha o Ariel de Rodó, em 1920, na Revista do Brasil. A
guerra coincide com o fim da hegemonia europeia na América latina, cf. COMPAGNON,
Olivier - O adeus à Europa: a América Latina e a Grande Guerra. Rio de Janeiro, Rocco, 2014.
5 Ingenieros divulgou essas ideias numa publicação próxima do Itamaraty, a Revista
Americana, cfr. INGENIEROS, José – “Evolución de la antropología criminal”. Revista
Americana., a.3, nº1, Rio de Janeiro, jan. 1912, p. 8-16.; IDEM – “Premisas para una
sociologia argentina, ibidem, a.3, nº5-6. Rio de Janeiro, maio-jun. 1912, p.512-32; IDEM –
“Formación económica de la nacionalidad argentina”, ibidem, a.4, nº5-6. Rio de Janeiro,
maio-jun. 1913, p.250-269.
6 SUX, Alejandro- Lo que se ignora de la guerra: crónicas escritas en los campos de batalla de
Francia y Bélgica. Barcelona/Buenos Aires, Maucci, 1915; IDEM - Curiosidades de la guerra.
Paris, Ediciones Literarias, 2017; IDEM - Los voluntarios de la libertad: contribuciones de los
latino-americanos a la causa de los aliados. Paris, Ediciones Literarias, 1918; SOIZA RELLY,
Juan José - La escuela de los pillos. Buenos Aires, Vicente Matera, 1920.
7 INGENIEROS, José – “Servidumbre moral”. La Nota, a.1, nº 1. Buenos Aires, 14
ago.1915, p.7.
8 Cf. LAZZARATO, Maurizio - Marcel Duchamp et le refus du travail. Paris, Les Prairies
ordinaires, 2014; D´ALVIM, Guy [pseud. Alphonsus de Guimarães] - “Club dos
solteirões”. Revista do Brasil, nº 55. São Paulo, jul. 1920, p.277-8; JUDOVITZ, Dalila –
“Duchamp’s Temporal Machinations and Postmodern Returns”. Dada/Surrealism, 23(1),
2020, p.1-24; BURENINA-PETROVA, Olga – “El anarquismo y la vanguardia artística
rusa” in TUPITSYN, Margarita – Dadá ruso. 1914-1924. Madrid, Centro de arte Reina
Sofía, 2018, p.226-257.
4
central de sua filosofia9. Contrapondo-se a ele, o escritor opta por um estilo
nervoso e telegráfico. “Tuvo sus glorias; las admiramos. Tuvo sus héroes;
quedan en la historia. Tuvo sus ideales; se cumplieron”. O diagnóstico era
o de início de uma outra era humana. “Dos grandes orientaciones
pugnaron desde el Renacimiento. Durante cuatro siglos la casta feudal,
sobreviviente en la Europa política, siguió levantando ejércitos y
carcomiendo naciones”, ao passo que “el alma cultural, a duras penas
respetada, sembró escuelas y fundó universidades, esparciendo cimientos
de solidaridad humana. Por cuatro centurias venció la primera. Príncipes,
teólogos, cortesanos, han pesado más que filósofos, sabios y trabajadores.
Las huestes inhumanas domeñaron a las fuerzas humanitarias”. O
insensato oprimiu o sábio; o parasita ao produtor; o funcionário ao homem
livre. O horizonte, portanto, apresentava-se muito auspicioso. “Hasta hoy
fue la Violencia el cartabón de las hegemonías políticas; sobre la carroña
del feudalismo suicida (que, em versão posterior, substituirá por um
conceito mais preciso: imperialismo) se impondrá otra moral y los valores
nacionales se medirán por la Cultura”, pelo simples motivo de que “las
patrias feudales las hicieron soldados y las bautizaron con sangre; las
patrias culturales las harán los maestrescuelas sin más arma que el
abecedario”10. Nesse sentido, só cabia exortar ao mundo americano:
“Saludad el suicidio del mundo feudal, con votos fervientes de que sea
A superstição, que etimologicamente significa testemunho ou sobrevivência, era para
Ingenieros o medo paralisador, que se refugia no passado e acata as crenças pessimistas,
ao passo que renuncia e teme ao desconhecido. Os supersticiosos entram a cada
crepúsculo no mesmo cemitério, dizia, atraídos não pelo vivo, mas pela cinza.
Identificava a superstição ao imaginário autóctone. No entanto, os ideais, modernos,
provinham da Europa.
10 Mariátegui resgata o último capítulo de um livro póstumo, As forças morais, porém, ao
estampá-lo na revista Amauta, torce a orientação de Ingenieros, fazendo ele evoluir da
terrinha ao universal. Cf. INGENIEROS, José – “Terruño, pátria, humanidad”. Amauta,
nº 2. Lima, out. 1926, p.17-9.
9
definitiva la catástrofe”11, porque “frente a los escombros del continente
suicida levantaremos ideales nuevos que nos habiliten para ser una gran
patria, fuerte para las nuevas luchas humanas, en el Trabajo y en la Cultura,
propicios a toda fecunda emulación creadora”12.
Em resposta a uma enquete que lhe foi encaminhada por Henri Bergson, Ingenieros
opinava que a única saída era esperar a morte da geração que protagonizou a guerra de
1914-8, fundamentando sua decisão no argumento de que “la guerra ha producido una
regresión del espíritu científico en todo el mundo, con la explicable excepción de
ruidosos progresos en las ciencias aplicables por los estados beligerantes a las industrias
de la guerra, como la química, la aviación o la cirugía. En todo lo que antes era
investigación desinteresada se advierte la escasez de producción científica y filosófica,
sin que prueben mucho en contra ciertos casos aislados, como el de Einstein, cuyas
doctrinas son un resultado natural y legítimo de estudios e investigaciones iniciados
antes de la guerra. No es solamente regresión del espíritu científico lo que se advierte en
todas partes, sino perturbación de la moral científica por la filtración en los dominios del
saber de un malsano particularismo localista. El fenómeno, aunque anterior a la guerra,
ha sido concomitante con su período preparatorio. Alemania y Francia fueron las
primeras culpables de la corrupción del espíritu científico por el patrioterismo; desde
principios del siglo los alemanes y los franceses creían que su intelectualidad respectiva
era superior a la de todo el resto del mundo, y no parecía buen alemán ni buen francés
el que no ponía por encima de todas las verdades la preeminencia de sus genios
connacionales. Esta mentalidad absurda fue desenvolviéndose paralelamente a la
política europea en vísperas de la guerra, haciendo crisis durante la misma, a tiempo que
en los demás países del mundo se perturbaba en igual sentido el juicio de los valores
intelectuales. Cada minúsculo Estado se apresuró a buscar sus ‘genios domésticos’, en el
pasado y en el presente, olvidando que la investigación de la verdad y la creación de la
belleza no suelen ser asuntos de familia. La posguerra ha acentuado esa beligerancia de
los intelectuales que tuvieron la desgracia de vivir y tomar partido durante la guerra.
Los problemas sociales y políticos engendrados por la guerra misma han agravado la
crisis del espíritu científico y filosófico, especialmente en los dominios de las llamadas
ciencias morales; cada "hombre de ciencia", cada "filósofo", cada economista, jurista o
político, se ocupa de buscar argumentos contra los que fueron sus enemigos durante la
guerra, no preocupándose mucho de la verdad cuando necesite torcerla para servir a sus
pasiones’. INGENIEROS, José – “Encuesta sobre cooperación intelectual”. Nosotros, a. 17,
nº 170, jul. 1923, p.421.
12 INGENIEROS, José – “El suicídio de los bárbaros”. Caras y caretas, nº 829. Buenos Aires,
22 ago. 1914; IDEM – “Los sillares de la raza”. Caras y Caretas, nº 837, 17 out. 1914; IDEM
– “La religión de la raza”. Caras y Caretas, nº 839, 31 out.1914; IDEM – “Patria y cultura”.
Caras y Caretas, nº 840 7 nov. 1914; IDEM –“El nuevo nacionalismo argentino”. Caras y
Caretas, nº 841, 14 nov. 1914; IDEM – “Filosofía de la argentinidad”. Caras y Caretas, nº
842, 21 nov. 1914; “Cultura y energía”. Caras y Caretas, nº 843, 28 nov.1914; IDEM – “La
justicia de la raza”. Caras y Caretas, nº 849, 9 jan. 1915; IDEM – “La tradición argentina”.
Caras y Caretas, nº 856, 27 fev. 1915; IDEM – “O que é o socialismo?” In Echo Operario. Rio
Grande, a. 2, nº 76, 13 fev. 1898, p. 1-2; IDEM - O patriotismo. São Paulo, Typ.
Internacional, 1898; AGOSTI, Héctor - José Ingenieros: cidadão da juventude. São Paulo,
Brasiliense, 1947(o IEB-USP conserva a correspondência, 1944-5, em que Agosti,
impossibilitado de editar o livro no Uruguai, solicita a publicação a Caio Prado Jr.);
11
Em um comentário a “Nuvem de Calças”, o poema de Maiacóvski,
Vitor Chklóvski, sob idêntica perspectiva humanística, também falava, em
1917, de um suicídio da cultura europeia, cujo objetivo era dar a sensação
das coisas, enquanto visão, e não como reconhecimento, ideia que
podemos encontrar também em Georg Simmel, quando, em “A crise na
cultura” (1917), menciona, em função da guerra, o retardo no
aperfeiçoamento das pessoas em relação ao das coisas; mas também em
Paul Valéry, e seu desafio de que “nous autres, civilisations, nous savons
maintenant que nous sommes mortelles”, de La Crise de l’Esprit (1919), ou
mesmo na diferença entre cultura e civilização de Monteiro Lobato 13. A
conclusão era instigantemente paradoxal: as nações conflagradas e,
notadamente,
os
impérios
hegemônicos
eram
responsáveis
pela
persistência do feudalismo. Mas, considerando que todos os países
implicados eram claramente capitalistas, Ingenieros era incapaz, contudo,
de concluir que a autêntica barbárie residisse no próprio capitalismo, razão
pela qual preferia atribui-la a uma exterioridade de atraso. Sob o ponto de
vista da civilização como progresso, era impossível, à maneira de Walter
Benjamin, ver a barbárie no cerne da cultura. Coincidentemente, a partir
de sua permanência na Europa, entre 1911 e 1914, Ingenieros estava
entregue a duas grandes tarefas para organizar a cultura nacional, a criação
da Revista de Filosofía, Cultura, Ciencias y Educación (1915-1929) e a edição de
uma biblioteca, “La Cultura Argentina”, projeto que deveria ter
PONCE, Aníbal - José Ingenieros: su vida y su obra. Buenos Aires, Matera, 1957; TERÁN,
Oscar - José Ingenieros: antimperialismo y nación. Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 1979;
IDEM - José Ingenieros: pensar la nación. Buenos Aires, Alianza, 1986; IDEM - En busca de
una ideología argentina. Buenos Aires, Catálogos, 1986; IDEM - Positivismo y nación en la
Argentina. Buenos Aires, Puntosur, 1987; DEGIOVANNI, Fernando – “Nacionalismo de
mercado y disidencia cultural: La cultura argentina de Ingenieros”. Los textos de la patria.
Nacionalismo, políticas culturales y canon en Argentina. Rosario, Beatriz Viterbo, 2007,
p.215-320.
13 LOBATO, J. Monteiro - “Cultura e civilização”. Revista do Brasil, a.4, nº 48. São Paulo,
dez. 1919, p.289-290; MESQUITA, Júlio - A Guerra. São Paulo, Terceiro Nome, 2002.
4volumes.
cristalizado em 1904, como “Biblioteca Argentina de Ciencias y Letras”,
sob a direção de Ramos Mejía, tendo o jovem Ingenieros como secretário.
Não custa associar esse empreendimento a certo cosmopolitismo para além
da imaginação liberal14, ou mesmo ao conteúdo enciclopedicamente
nacional da Revista do Brasil, fase Monteiro Lobato, e nem mesmo dissociálo, em sua vertente paródica, da “Bibliotequinha antropofágica”15.
Ora, durante a crise de 1917, a Revista de Filosofía de Ingenieros teve uma
posição aliadófila, chegando a reproduzir, em maio, um célebre artigo de
Leopoldo Lugones, “Neutralidad imposible”16. A 8 de maio de 1918,
porém, em sua conferencia “Ideales viejos e ideales nuevos”, em Rosário,
Ingenieros afirma que a revolução maximalista era uma das diversas
formas que tomaria o programa democrático com que Thomas Woodrow
Wilson havia enobrecido a causa dos aliados. Referindo-se à luta secular
entre ideais velhos e novos ideais, julgou a guerra "um momento crítico de
luta entre o mundo moral que nasce e o mundo moral que chega ao seu
ocaso".
Ver TIHANOV, Galin - Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal.
Trad. Camila Caracelli Scherma; Marina Haber de Figueiredo; Mateus Yuri Passos;
Michele Viana Trevisan; Nanci Moreira Branco; Rômulo Augusto Orlandini e Tatiana
Aparecida Moreira. São Carlos, Pedro e João Editores, 2013; RENFREW, Alastair &
TIHANOV, Galin - Critical Theory in Russia and the West. London, Routledge, 2010.
15 Em um artigo na Revista de Filosofia de Ingenieros, “La divertida estética de Freud”
(1923), texto assinado por Luis Campos Aguirre, pseudônimo que muitos, dentre eles
Hugo Vezzetti, atribuem a Aníbal Ponce, mas que a redação de Nosotros identifica como
sendo de Ingenieros, o autor admite que, assim como sua primeira leitura foi o
Gargântua, recebido do pai, ele pretende que seus filhos se iniciem no letramento através
da Introdução à psicanálise de Freud. Curiosa sintonia com Bakhtin, quem começa a refletir
sobre Rabelais a partir de 1919, através das categorias de carnavalização e as imagens do
corpo grotesco.
16 Anteriormente publicado na imprensa (La Nación, 7 abr. 1917), o artigo ainda revela o
momento de sintonia entre ambos os escritores que, em 1897, editaram a revista La
montaña. Ver INGENIEROS, José; LUGONES, Leopoldo - La montaña, periódico socialista
revolucionario. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes, 1996, ed. facsimilar.
Mais adiante, nos anos 20, os vanguardistas de Martín Fierro denunciariam que
Ingenieros estava por trás das campanhas de difamação a Lugones, escritor-guia do
grupo.
14
Considero um dever de lealdade — acrescentava então — repetir
que minhas simpatias na grande contenda não podem ser pelo Kaiser que
toda hora fala em nome do direito divino e invoca para seus exércitos a
proteção de Deus, como na Idade Média; minhas simpatias acompanham
a esse presidente yankee que interveio na guerra em nome da democracia
e do direito, não para estender ao mundo o domínio de seu povo, mas para
semear a todos os povos do mundo os ideais que têm cimentado a
felicidade dele próprio. Minhas simpatias não podem ser pelo governo da
Áustria, símbolo consagrado do obscurantismo e do espírito feudal; não
podem ser pelo governo da Turquia, que por séculos e séculos tem sido a
mancha negra da civilização europeia. Nem podem ser, enfim, por esse
monarca fictício que do Vaticano tece incessantemente sua teia de aranha
sutil ao serviço dos imperadores de direito divino, sem ter encontrado,
todavia, a palavra de excomunhão definitiva contra todos aqueles que
semeiam no mundo a consternação e o extermínio. ‘Minhas simpatias são
pela França, pela Bélgica, pela Itália, pelos Estados Unidos, porque essas
nacionalidades estão mais próximas dos ideais novos e mais divorciadas
dos ideais velhos. Minhas simpatias, enfim, estão com a revolução russa,
com a de Kerensky, com a de Lenin, com a de Trotsky; com eles, apesar de
seus erros; com eles, ainda que suas consequências tenham sido por um
momento favoráveis à causa dos ideais velhos: e creio que a palavra mais
nobre e mais leal, pronunciada desde o princípio da presente guerra, é a
palavra de solidariedade com que o presidente Wilson saudou o triunfo
dos revolucionários russos, vendo em seus atos uma expressão inequívoca
dos ideais que foram a bandeira da humanidade no século XIX e que
esperam uma realização crescente no mundo em que vivemos”17.
A conferência foi, inicialmente, publicada, em Buenos Aires, pela Biblioteca Popular
de la Universidad Libre Israel e, a seguir, incluída em INGENIEROS, José - Ideales viejos
e ideales nuevos: Significación histórica del movimiento maximalista. Dos conferencias
editadas por la revista "Nosotros". Buenos Aires, Luis. J. Rosso, 1918, p.34-5. Em 1920,
17
Já em “A significação histórica do maximalismo”, a conferência proferida,
a 22 de novembro de 1918, em um teatro da avenida Corrientes, o Nuevo
(1912-1933), Ingenieros repisa que esse não era o ponto de vista dos que
encaravam a guerra como um simples problema político ou militar:
dissemos que eles não pensavam em vencer o passado e
favorecer o futuro; dissemos que a outra guerra, a de
princípios, a de ideais, seria independente do resultado a
que se chegara nos campos de batalha; dissemos que em
todas as nações, nas vencidas antes, mas depois
vencedoras, assistiríamos ao florescimento de novos ideais
democráticos; dissemos que ou os governos concediam aos
povos todas as liberdades e franquias que estes haviam
pago com seu sangue, ou os povos se decidiriam a varrer
os últimos restos do imperialismo e do privilégio; criamos,
enfim, e também o dissemos que ao terminar a guerra
feudal dos governos, começará a guerra civilizadora dos
povos! Pronunciamos essas palavras nos momentos em que
parecia mais formidável a capacidade ofensiva dos
Menotti del Picchia publica no Correio Paulistano, e a Revista do Brasil recolhe em seu
número 55 (jul.1920), um artigo sobre “Arte nova”, que utiliza uma oposição usada por
Ingenieros em A simulação da loucura, isto é, a dos filoneístas ou neófilos, que adoram o
novo, e a dos misoneístas, que o abominam. O misoneísmo é rerum novarum odium, ao
passo que o filoneísmo, no entanto, é rerum novarum studium. O conceito de studium é
extremamente relevante para Ingenieros. Nas crônicas de sua viagem à Itália, Ingenieros
diferencia o viajante ingênuo, arquetipicamente representado pelo burguês pacato, sem
outros interesses do que o de um simples turista, do observador estudioso, impregnado
dos valores modernos, capaz de realizar uma arqueologia dos múltiplos sentidos e
temporalidades inscritos nos objetos e espaços visitados, para deles extrapolar futuros
anteriores. “Los países nuevos (…) tienen el privilegio de no estar amarrados por rutinas
y tradiciones seculares; pueden ponerse a la cabeza de la civilización y demostrar que es
posible realizar progresivamente los programas socialistas. (…) Los hombres estudiosos,
cuya imparcialidad de criterio estriba en su alejamiento de la política militante, no
necesitan adular a los electores ni aplaudir a los gobernantes. Por eso pueden advertir a
éstos que el socialismo no se evita con leyes de resistencia o con persecuciones policiales,
y recordar a aquéllos que su advenimiento no se apresura con discursos incendiarios o
con huelgas inopinadas”. INGENIEROS, José – “El socialismo en Italia”. La Nación.
Buenos Aires, 19 jul. 1905, p. 3. “El estudioso no saciará su curiosidad limitándose a
analizar introspectivamente las propias impresiones; y no le faltarán, por cierto, fuentes
en que abrevar sus ansiedades. Encontrará grandes fruiciones de espíritu indagando
cómo se reflejaban esas mismas cosas en otros cerebros observadores y hará una fecunda
crítica comparativa de las emociones estéticas”. IDEM – “Sobre las ruínas II”. La Nación,
2, ago. 1905.
exércitos alemães: porém, ganhassem ou perdessem, o que
viria depois seria o mesmo em toda parte ‘primeiro nas
nações vencidas, depois também nas vencedoras’. Era
lógico pensar assim e os fatos parecem justificar essa
opinião. Constava-nos que uma das grandes tarefas dos
revolucionários russos tinha sido provocar movimentos
análogos em toda a Europa; ainda que os impérios centrais
o ocultassem, tinham-se notícia de agitações graves na
Alemanha, Áustria, Polonia e Hungria; ainda que o calasse
o cabo aliado, sabia-se que fatos semelhantes tinham
ocorrido na França, na Inglaterra e na Itália. E não se
ignorava, enfim, que o movimento florescia em países
neutros, como a Holanda, a Suécia e a Dinamarca, e que na
Suíça se tinha dado nas ruas de Zurich uma verdadeira
batalha de artilharia, com centenas de mortos e feridos,
entre o soviete maximalista e as tropas federais... Não se
tratava pois de meras hipóteses, mas de informações exatas
em seu conjunto, ainda que não pudessem precisar-se em
seus pormenores. Entretanto, de 5 a 10 de julho de 1918, se
reunia em Moscou o V congresso pan-russo dos sovietes e
dava aos povos emancipados um Estatuto Constitucional;
toda a pessoa culta que o tenha lido reconhece que ele, com
toda a sua acidez de fruto primeiriço, abre um capítulo na
filosofia do direito político; imprime caracteres novos ao
sistema republicano federal e põe diretamente em mãos do
povo a soberania do estado; nacionaliza os feudos
territoriais e as grandes fontes da produção; suprime a
divisão da sociedade em classes e converte em produtoras
as ociosas; e, além disso, para sintetizar, consagra quase
todas as reformas que desde há meio século constituíam a
aspiração dos partidos radicais e socialistas. Este regime
dura desde há um ano e a imprensa russa oposicionista não
faz críticas mais graves que as usuais contra qualquer dos
governos precedentes. Quanto à constituição, devemos
encará-la como um primeiro tatear inseguro rumo ao
porvir, experiência que não é lícito julgar em conjunto sem
levar em conta as condições particulares do meio social a
que está destinada18.
Recém nomeado, sob efeito da Reforma, como vice-diretor da
faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires,
Ingenieros leciona, em setembro de 1918, o primeiro curso de Psicologia
18
INGENIEROS, José – “Significação histórica do maximalismo”, op.cit., p.487-8.
daquela casa de estudos e é lógico que, sem filiação partidária à época,
considerasse o acontecimento revolucionário russo como um dado central
na batalha cultural da secularização modernizadora, abstraindo, sem mais,
as consequências colonialistas desse enfoque:
Que interesse têm estas reflexões para os habitantes da
América? Se aqui não houve guerra — dir-se-á — não há
razão para desejar ou temer que nos alcance a revolução
social que é sua consequência. Quem tal diz ignora a
história, carece de consciência histórica, esquece que todos
os movimentos políticos e sociais europeus têm repercutido
na América, em proporção exata desse grau de
europeização que soe chamar-se civilização. É indubitável
que os índios residentes entre os Andes e as nascentes do
Amazonas, não sentirão os resultados da guerra;
provavelmente ignoram que existiu uma guerra europeia,
na improvável suposição de que conheçam a existência da
Europa. Mas em todos os países que nasceram de
colonização europeia, desde o Alaska até o estreito
magalhânico, o que na Europa aconteça terá um eco tanto
maior quanto maior for seu nível de civilização. Nosso
destino, iniludível, como dizia Sarmiento, é ‘nivelar-nos
com a Europa’, e a experiência do último século demonstra
que lá não tem aparecido um invento mecânico, uma lei
política, uma doutrina filosófica, sem que tenha tido
aplicação ou ressonância neste continente. Enquanto na
Europa se desenvolve a atual revolução social já iniciada,
aqui participaremos de suas inquietações primeiro e de
seus benefícios depois. Inquietações enquanto se
subvertem as instituições existentes para provar outras
novas; benefícios quando por simples seleção natural se
enraízem os úteis e desapareçam os nocivos. A experiência
social não pede conselho aos conservadores espantadiços,
nem presta ouvidos aos otimistas iludidos; em cada lugar e
tempo se realiza todo o necessário e fracassa todo o
impossível. Não seria absurdo cortar as asas,
antecipadamente, aos idealistas que pedem o mais? Se só
conseguirão o menos, não seria em bem de todos os que
anelam um aumento de justiça na humanidade? Os
resultados benéficos desta grande crise histórica
dependerão, em cada povo, da intensidade com que se
definam em sua consciência coletiva as aspirações
maximalistas. E essa consciência só pode formar-se em uma
parte da sociedade, nos jovens, nos inovadores, nos
oprimidos, pois são eles a minoria pensante e atualmente
de toda a sociedade, os únicos capazes de compreender e
amar o porvir. Exagerarão os seus ideais ou suas
aspirações? Seguramente; não é indispensável que as
exagerem para compensar o peso morto que representam
os velhos, os rotineiros e os satisfeitos?19
A saída, longe de ser simples, também não seria imediata.
Uma revolução social é um largo processo histórico, composto de
preparativos, resistências, crises, reações, depois das quais se chega a um
estado de equilíbrio distinto do precedente. A revolução a que assistimos
começou há muitos anos; a guerra a fez entrar no período crítico; seguirse-ão muitos impulsos e restaurações: de tudo isso, dentro de um ou vinte
anos, segundo os países, resultará um novo regime democrático que
oscilará entre os ideais minimalistas enunciados por Wilson e os ideais
maximalistas formulados pelos revolucionários russos. Se os homens
fossem ilustrados e razoáveis, seria muito bonito que se pusessem de
acordo para navegar juntos em favor da corrente, com boa vontade e
coração otimistas, decididos a ir tão longe quanto se pudesse, em bem de
todos. Essa hipótese, com ser tão agradável, parece-nos a mais absurda.
Não o é tanto pensar que alguns governos inteligentes, entre os muitos que
se revezarão com frequência em cada país, poderão dar salutares golpes de
timão e meter proa rumo do porto feliz das aspirações legitimais, pensando
mais em construir o futuro que em defender o passado. Onde tal não
aconteça, a transformação se fará irregularmente, por comoções, como
produto de choques, com violências inevitáveis e repressões cruéis; os
excessos dos revolucionários e dos restauradores determinarão uma
resultante final, que realizará, aproximadamente, o máximo possível das
aspirações que tenha cada povo ao começar a fase crítica de seu ciclo
19
IDEM – ibidem, p.490.
revolucionário. Que fazer, pois, ante as aspirações maximalistas? Depende.
Os que tenham anelos de mais justiça, para si ou para seus filhos, podem
saudá-los com simpatia; os que não creem que podem beneficiá-los, devem
recebê-las sem medo. Isso é essencial: serem otimistas e não temer o
inevitável. Quando chegar, na medida que deva chegar, só causará danos
graves aos que pretenderem torcer o curso da história e aos espantadiços;
a rotina fará vítimas, porque é causa de medo, e o medo tem engendrado
os maiores males de que tem memória a humanidade. O desenvolvimento
desta revolução não incomodará a quem a espere como a coisa mais
natural, antecipando-se-lhe, preparando-a, como atilados navegantes que
ajustam as velas ao ritmo do vento, recordando as palavras de Maximo
Gorky: ‘Só são homens os que se atrevem a encarar de frente o Sol...’ 20.
Após a repressão aos grevistas metalúrgicos, em janeiro de 1919, e
às vésperas do 1º de maio, Ingenieros é convidado a uma reunião reservada
(finalmente não realizada) com o presidente radical Hipólito Yrigoyen. O
escritor propôs então a criação de um conselho formado por dirigentes
sindicais, socialistas e intelectuais para prestarem subsídios ao governo,
quanto à questão operária. Houve, mesmo sem o encontro presidencial,
duas reuniões preparatórias e elaborou-se um plano de reformas sociais.
Em janeiro de 1920, Ingenieros apoia a corrente juvenil que postulava, no
Partido Socialista, a adesão à Terceira Internacional e chega a financiar seu
órgão de imprensa, a revista Claridad!, da qual será frequente
colaborador21. Em março, adere, na Revista de Filosofia, ao apelo de Anatole
IDEM – ibidem, p.490-1. Cf. VERMEREN, Patrice e VILLAVICENCIO, Susana –
“Positivismo y ciudadanía: José Ingenieros y la constitución de la ciudadanía por la
ciencia y la educación en la Argentina” in Cuyo. Anuario de Filosofía Argentina y
Americana, nº 15. Mendoza, Universidad Nacional de Cuyo, 1998.
21 Claridad!. Revista quincenal socialista de crítica, literatura y arte. Buenos Aires, n° 1: 19
jan. 1920 – n° 9: 15 ago. 1920. Nela se transcreveram textos de Karl Liebknecht, Rosa
Luxemburgo, Bernard Shaw, Vladimir Lenin, Maximo Gorki, Juan B. Justo, Anatole
20
France e Henri Barbusse, do Grupo Clarté, para formar a Internacional do
pensamento e, nesse mesmo veículo, em seu número 32, estampa um
ensaio, “Democracia funcional en Rusia”, acolhido, em maio daquele ano,
pela Revista do Brasil. Entremeado com fotografias do projeto de Nicola
Rollo para o Monumento de Ipiranga, em homenagem ao centenário da
independência, o escrito, que discriminava a democracia funcional da
democracia liberal, concluia argumentando que “as nações civilizadas
caminham para uma Democracia Funcional. Educar os espíritos nessa
orientação é obra inteligente de Paz; obstruir o curso da história é obra
louca de Guerra”22. Em outras palavras, Ingenieros renunciava ao
radicalismo em nome do evolucionismo cultural que lhe era tão
característico, já que a intervenção das elites ilustradas, na política
bolchevique, era, sob todos os aspectos, superior a qualquer experiência
das massas sublevadas.
Em novembro de 1919, um estudioso de filosofia e lógica, além de
língua e literatura alemãs, autor de Temperamento e carácter sob o ponto de
vista educativo, o professor Henrique Geenen, estampa um ensaio sobre a
filosofia de Ingenieros, de certo modo restritivo, pela margem por ele
France, Andreas Latzko, Henri Barbusse, Boris Sokoloff, Georges Sorel, León Trotsky,
Karl Marx, George Duhamel e Bertrand Russell, entre outros. O poeta boliviano Ricardo
Jaimes Freyre, que formava com Darío e Lugones a tríade modernista, estampa, no
primeiro número, o poema “Rusia”, que conclui: “¡Enorme y santa Rusia! De tu dolor
sagrado/como de un nuevo Gólgota, fe y esperanza llueve.../La hoguera que consuma
los restos del pasado/saldrá de las entrañas del país de la nieve. / El pueblo con la planta
del déspota en la nuca, /muerde la tierra esclava con sus rabiosos dientes / ¡y tíñese
entretanto la sociedad caduca/con el sangriento rojo de todos los ponientes!”
22 INGENIEROS, José – “A democracia funcional na Rússia”. Revista do Brasil, a. 5, nº 53.
São Paulo, maio 1920, p. 27. Estampado na revista Claridad! (a. 1, n° 4, Buenos Aires, 19
mar. 1920) e publicado, a seguir, como folheto pela editora Adelante!, da Agencia
Sudamericana de Libros (Buenos Aires, 1920), teria também uma edição chilena
(Santiago, Ediciones Juventud. Federación de Estudiantes de Chile, 1921) até ser
recolhido em Los tiempos nuevos. Reflexiones optimistas sobre la guerra y la revolución.
Buenos Aires, Talleres Gráficos Cúneo, 2021.
concedida ao irracionalismo nietzscheano23. Contudo, é fácil constatar que
a luta de Ingenieros contra o kantismo encontrava ecos em outros pontos
da América. Em 1922, acolhe o ministro da Educação Pública mexicana José
Vasconcelos, quem, após as comemorações do centenário, quando
entrega uma estátua do último imperador asteca, Cuauhtémoc, ao povo do
Rio de Janeiro, percorrendo, a seguir, Bahia, Minas e São Paulo (cujos
políticos, observa em suas Memórias, “son impetuosamente progresistas,
como la industria que les da el sustento”), assistiu, na sequência, em
outubro, à cerimônia de transmissão do poder do presidente argentino
Yrigoyen a seu sucessor Marcelo T. de Alvear. Nessa ocasião, Ingenieros
detecta que
Una profunda palingenesia espiritual ha acompañado a esa
regeneración política, que fue obra de dos generaciones y
necesitará el concurso de la que vendrá. Durante el siglo
pasado imperaban en México las orientaciones del
escolasticismo tradicional, heredadas del coloniaje, apenas
interrumpidas por esporádicos influjos de la escuela
fisiocrática, de la ideología y del Kantismo. Alcanzaron a
sufrir un vigoroso sacudimiento por la penetración del
positivismo, que tuvo representantes muy distinguidos en
las ciencias y en las letras; desplazando al escolasticismo,
ya minado
por filtraciones eclécticas, influyó
benéficamente sobre la cultura mexicana, emancipando las
conciencias y preparando el terreno para la nueva ideología
de la generación que llega actualmente a la madurez.
Comprendiendo que las fuerzas morales son palancas
“Fogo-fátuo, frio e fugaz a bruxulear de vez em vez sobre os elementos que se agregam
para formar os seres ínfimos na escala dos viventes, — em nós, luz alternativamente
acesa e apagada, qual a lâmpada de um farol e após a nossa existência terreal, para uns,
braseiro indefinidamente ardente, quer isolado, quer confundindo suas chamas com o
braseiro que constitui a consciência universal, — para outros, destinada a se apagar
tristemente sem deixar rastro, é e será talvez para sempre a nossa consciência individual
o Enigma dos Enigmas”. GEENEN, Henrique – “A philosophia de Ingenieros”. Revista do
Brasil, a.4, nº 47. São Paulo, nov. 1919, p. 255. Ver, do mesmo autor, Compêndio de Lógica.
São Paulo, Typ. do Globo, 1913; IDEM – Compêndio de Psychologia, São Paulo, Monteiro
Lobato, 1925; Compêndio de Filosofia. São Paulo, Teixeira, 1934; IDEM - Aventuras
tragicômicas de uma família de São Paulo durante a revolta de julho de 1924. São Paulo, Seção
de Obras de O Estado de S.Paulo, 1925; IDEM - Palestras philológicas. 1ª série. São Paulo,
Irmãos Ferraz, 1931.
23
poderosas en el devenir social, esa generación ha tenido
ideales y los ha sobrepuesto a los apetitos de la generación
anterior, afirmando un idealismo social al que convergen,
un tanto confusamente, varias corrientes filosóficas y
literarias. Ese noble idealismo, felizmente impreciso, como
toda ideología de transición, compensa con su mucha
unidad militante contra lo que no quiere ser, la aún
incompleta unidad filosófica de sus aspectos afirmativos.
No quiere ser una vuelta al pasado lejano y por eso huye
del neoescolasticismo; pero tampoco quiere atarse al
pasado inmediato y por eso desea superar el ciclo del
positivismo. Movido por ideales de acción, todos
comprendemos sus aspiraciones comunes. Es, en efecto,
idealismo político, en cuanto tiende a perfeccionar
radicalmente las instituciones más avanzadas de la
democracia; es idealismo filosófico, en cuanto niega su
complicidad al viejo escolasticismo y anhela satisfacer
necesidades morales que descuidó el positivismo; es
idealismo social, en cuanto aspira a remover los cimientos
inmorales del parasitismo y del privilegio, difundiendo y
experimentando los más generosos principios de justicia
social. De esas corrientes idealistas, no unificadas en cuerpo
de doctrina, pero sin duda convergentes en el terreno de la
acción, es José Vasconcelos un exponente integral; por eso
acudimos a reunirnos en torno suyo, viva encarnación de
esta generación mexicana que merece la simpatía de
nuestra América Latina”24.
Mário de Andrade desconfiava de um certo bolshevismo, como
escreve em carta a Câmara Cascudo, que tocava os admiradores de
Ingenieros, figura por ele associada a Rui Barbosa25. Mesmo assim,
Andrade aproveitou a leitura de uma tese de Joseph Ingegnieros (sic) sobre
a linguagem musical, Le langage musical et ses troubles hystériques (1907), da
qual retirou elementos para uma teoria do gesto e do movimento. Seriam
os pósteros os cabais herdeiros do resgate heterodoxo de filósofo socialista,
aqueles capazes de ver, nos russos pós-revolucionários, como Alexandre
INGENIEROS, José – “Por la unión latinoamericana”. Nosotros, a.16, nº 161. Buenos
Aires, out.1922, p. 146-7.
25 “Rui Barbosa e Ingenieros são mentalidades grandes porém não sei o que é admiração
grata e mística”. ANDRADE, Mário de – Cartas de Mário de Andrade a Luis da Câmara
Cascudo. Belo Horizonte-Rio de Janeiro, Villa Rica, 1991, p.52.
24
Gorski, Alexei Boulgakov, Ekaterina Helzer ou Margarita Kandourova, os
agentes de transformação de um trabalho subalterno, como a dança,
prenhe, porém, de humanidade e vigor26. É a bailarina Cecília, a filha mais
nova de Ingenieros, quem assim se exprime, a mesma Cecília Ingenieros
que por sinal oferece a Borges a história de uma vingança, deslocada e
histérica, isto é, moderna, a de Emma Zunz. A mesma Cecília a quem
Borges dedica “O imortal” (1947), essa alegoria construída a partir de um
livro que um antiquário, de nome Joseph, oferece a uma princesa, de um
mundo sem memória, sem tempo, porém, com a possibilidade de uma
linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de verbos
impessoais
ou
de
epítetos
indeclináveis,
uma revolucionária
anacronização do tempo, ou uma momentânea suspensão do seu fluxo, em
diferido eco maximalista.
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26
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Rômulo Augusto Orlandini e Tatiana Aparecida Moreira. São Carlos,
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Raúl Antelo lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina. Foi
pequisador do CNPq, Guggenheim Fellow e professor visitante em
Universidades norte-americanas e europeias. Presidiu a Associação
Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e recebeu o doutorado
honoris causa pela Universidad Nacional de Cuyo. É autor de vários livros,
dentre eles, Maria com Marcel. Duchamp nos trópicos; Archifilologías
latinoamericanas; A
máquina
afilológica; En
muerte:
miniaturas
urbanas; Azulejos. Lo transvisual y la arqueología de lo moderno. Editor de
Mário de Andrade, Jorge Amado e João do Rio, preparou, em colaboração,
Lirismo+Crítica+Arte=Poesia. Um século de Pauliceia Desvairada.
ORCID: 0000-0001-9799-6550