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ANTELO Um perfil de Tele Ancona Lopez

2023, Outra travessia

https://doi.org/10.5007/2176-8552.2023.e97789
v i s d e l e r u r a t r a a v e i a Homenagem a Telê Ancona Lopez r e v t a d i t a t u o u t r a s “Telê e Garoa”, créditos da foto: Márcio Távora s v i s d e l e r u r a t r a a v e i a Um perfil de Telê Ancona Lopez Raul Antelo UFSC https://doi.org/10.5007/2176-8552.2023.e97789 Universidade Federal de Santa Catarina - 1º semestre de 2023 13 r e v t a d Em “L’Amitié”, um texto para Les Lettres nouvelles1, Maurice Blanchot, evocando seu amigo Georges Bataille, diz que é preciso renunciar a conhecer aqueles aos quais algo essencial nos une; isto é, devemos aceitá-los em sua relação com o desconhecido, em que somos aceitos, nós também, no nosso afastamento. A amizade, essa relação sem dependência, sem episódio e onde, mesmo assim, cabe toda a minúcia da vida, passa pelo reconhecimento da estranheza comum, que não nos permite falar de nossos amigos, mas apenas de lhes falar, não fazer deles um tema de conversa, mas torná-los o movimento dessa aliança que, falando de ambos, conserva, mesmo na maior familiaridade, a distância infinita, essa separação fundamental a partir da qual aquilo que nos separa torna-se relação. A discrição não consiste na pura e simples negativa a considerar confidências. Ela é o intervalo, o puro intervalo que, de mim a esse outro que é um amigo, mede tudo o que há entre nós, por exemplo, a interrupção de ser que não me autoriza nunca a dispor dele, nem do meu saber a seu respeito, ainda que mais não seja para louvá-lo e que, longe de impedir toda comunicação, nos relaciona mutuamente na diferença e, às vezes, no silêncio da fala. Isto posto, direi que conheci Telê em agosto de 1973, lá se vai quase meio século. Oscilando entre as jaquetas de gabardine de corte másculo, quase militar, e as túnicas africanas até o chão, Telê ministrava um curso sobre o modernismo cujo cinquentenário acabara de se comemorar. As reuniões, salvo engano, aconteciam às quintas-feiras, 9 da manhã, nas colmeias da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O grupo era animadíssimo e numeroso. Começou aí também minha relação com a turma que vinha sob orientação de Boris Schnaiderman, dentre eles, Maria Augusta Fonseca. Lemos, com deslumbramento desbravador, a 1 BLANCHOT, Maurice. “L’Amitie”. Les Lettres nouvelles, n. 29, 1962, p. 7-12. outra travessia 35 - Programa de Pós-Graduação em Literatura 14 i t a t u o u t r a s s v i s d e l e r u r a t r a a v e i a minuciosa arqueologia dos ramais e caminhos que Telê traçara nas leituras de Mário, livro esse recém saído do forno. Acabado esse curso, retornei a Buenos Aires, onde ainda me faltavam duas ou três disciplinas para completar a graduação em Letras. Imediatamente comecei a dar aulas no Centro de Estudos Brasileiros, naquela época, dependendo da Embaixada brasileira, onde, logo no início de 1974, se expôs, vindo de Paris, o Brasil: Primeiro tempo modernista, cujo catálogo ganhara da Telê, pouco antes, ao retornar para casa. Depois de dois anos conturbados, com inequívocos sinais de uma carnificina sendo montada, retorno, à USP em 1976. Nos seminários quinzenais de orientação, aprofundamos a discussão de certos textos que tangenciavam as pesquisas de colegas como Rita de Cassia Barbosa, Raimunda de Brito, Carmem Lydia Sousa Dias ou Maria Célia Rua de Almeida Paulillo. Lembro particularmente de dois autores, cada um dos quais nos fornecendo um aspecto da personalidade de Telê, que os escolhera. O primeiro é Henri Lefebvre, de quem esmiuçamos sua Introdução à Modernidade. Em artigo pouco anterior ao da amizade, “La Fin de la philosophie”2, o mesmo Blanchot definira Lefebvre como filósofo, mas de modo algum hegeliano, porém, muito mais próximo a Nietzsche, a Pascal, a Schelling, o que sintonizava com nossas leituras de 20 anos, em torno da antropofagia. Lefebvre viveu atormentado com a religião, porém, identificado com o romantismo revolucionário de Marx, que o atraía pela noção, compartilhada por todos nós, de revolução total e o absoluto de acabar com o Estado, bem como com a família e com a filosofia, liberando assim o indivíduo a suas possibilidades ilimitadas; porém Lefebvre traduzia também o esforço de Marx por ultrapassar esse romantismo, ordená-lo e preservá-lo, mantendo dois movimentos, até certo ponto antagônicos, a espontaneidade romântica e a necessidade de firmar a posição individual, 2 Idem. “La Fin de la philosophie”. La Nouvelle Revue française, n.80, ago. 1959, p. 286-298. Universidade Federal de Santa Catarina - 1º semestre de 2023 15 r e v sem por isso corroer a coerência que a organiza. A outra figura, que renovou o marxismo, nos anos 60, com Louis Althusser, Jacques Rancière ou Etienne Balibar foi Pierre Macherey, de quem lemos Por uma teoria da produção literária, em sua tradução portuguesa de 1971. Daquela obra seminal, sempre retive uma definição da literatura. Argumentava Macherey que a autonomia do discurso do escritor se estabelece a partir de sua relação com outras formas de uso da linguagem. O discurso literário imita o enunciado teórico, do qual repete, se não reproduz exatamente, o desenho. Porém, sua evocação imita também a linguagem cotidiana, que é a linguagem da ideologia. Nesse ponto, Macherey propunha uma definição da literatura a partir de sua função paródica. Mesclando os usos reais da linguagem, a literatura, através desse permanente confronto, acabava sempre por mostrar a verdade. Experimentando com a linguagem, se não a inventar, a obra literária é simultaneamente análoga a um conhecimento e a uma caricatura da ideologia corriqueira. À margem do texto, sempre acabamos por encontrar de novo, momentaneamente oculta, porém eloquente, em sua mesma ausência, a linguagem da ideologia. Assim, o caráter paródico da obra literária despoja ela de sua aparente espontaneidade, tornando-a uma segunda obra. São elementos da “vida” que remetem a obra à sua irrealidade (que se verifica junto a um efeito de realidade), ao passo que a obra acabada, uma vez que nada mais pode ser-lhe acrescentado, mostra o próprio inacabamento na ideologia. A literatura, concluía Macherey, é a mitologia de seus próprios mitos: não precisa de nenhum mágico para lhe descobrir seus segredos. Vejam, então, de que modo essa concepção do literário está na base da leitura não só de Macunaíma, mas também de boa parte do modernismo. Um jovem crítico contemporâneo, Maximiliano Crespi, nos relembra que a filologia especulativa desdobra-se como uma arqueologia crítica e outra travessia 35 - Programa de Pós-Graduação em Literatura 16 t a d i t a t u o u t r a s s v i s d e l e r u r a t r a a v e i a materialista da ideologia. Nesse sentido, Macherey continuou ativo, e boa parte de sua reflexão mais recente aborda questões que Telê e eu sentimos, em nossas diversas práticas pedagógicas. Em 20133, por exemplo, Macherey analisa a situação da filosofia na França, apontando que o momento em que a filosofia pôde se chamar de francesa foi também o momento em que ela foi alemã. É o momento pós-revolucionário da ONU, sua organização global, em que a filosofia ganha novo status, de acordo com essa reorganização. Uma primeira consequência é a modificação do intenso engajamento político da disciplina, que já não aborda a realidade sócio-política de forma teórica, senão também prática. O desafio consistia em definir para ela um lugar específico, na forma republicana de organização da vida coletiva. Assim também, em anos recentes, 2009-2010, Macherey tem analisado a posição de Hegel e Heidegger, em relação à Universidade, concluindo que ambos tentaram alimentar un lien très fort entre leurs responsabilités d’universitaires et leurs prises de positions philosophiques : non seulement ils s’engageaient personnellement en philosophes dans l’institution qui donnait son lieu d’accueil à leur activité propre, mais ils avaient conscience de lier ainsi organiquement la philosophie en tant que telle aux pratiques d’inculcation effectuées dans le cadre des établissements d’enseignement supérieur. Leur intention, présentée dans les termes les plus simplifiés, était donc de faire bénéficier l’université des lumières de la philosophie, en exploitant à fond la dimension philosophique du concept d’universitas d’où elle tire son nom : sur ce point précis, Hegel et Heidegger se rejoignent à travers leur effort commun en vue de retirer à ce concept philosophique d’universitas, incorporé à la vie de l’université, son caractère abstrait, indifférent et neutralisé ; et c’est du côté de la philosophie, telle qu’ils la pratiquent euxmêmes à plein titre, qu’ils vont chercher les arguments permettant de donner à la revendication d’autonomie propre, depuis qu’ils existent, aux établissements universitaires, une portée concrètement déterminée, affirmée en situation, revêtant en conséquence l’allure d’un véritable engagement, qui, sur ce point 3 MACHEREY, Pierre. “Faire de la philosophie en France aujourd’hui”. Cités, n. 56, 2013/4, p. 13-33. Universidade Federal de Santa Catarina - 1º semestre de 2023 17 également ils sont d’accord, doit être avant tout un engagement spirituel ; ce que l’université peut attendre de la philosophie, à ce point de vue, c’est un supplément de spiritualité. Mais, leur démarche s’est révélée à terme plus complexe, voire même tordue, que ne le suggérait ce projet initial : car en programmant dans les faits, sinon une mainmise de la philosophie sur l’université, du moins une réforme de l’université conforme à des orientations fixées par la philosophie, ils ont du même coup exposé la philosophie, telle qu’ils la concevaient, à épouser les aléas de la vie universitaire, ce dont, sur un plan purement intellectuel, elle a dû subir les contrecoups. De là des conséquences qui ont varié selon les conjonctures : au temps où Hegel a prononcé ses discours inauguraux, on peut admettre que philosophie et université, en se rencontrant et en s’alliant étroitement, ont été également gagnantes ; mais au temps où Heidegger a prononcé le sien, elles ont été également perdantes. Il faut en conclure qu’il ne va pas de soi d’associer de manière inconditionnée la réflexion philosophique et la pratique de l’enseignement universitaire, comme si ce qui sert l’une devait automatiquement servir l’autre, et réciproquement : car en cette affaire, tout dépend en dernière instance des circonstances et de la manière dont celles-ci sont gérées politiquement, sur des bases qui n’offrent qu’une très faible prise, tant à la philosophie qu’à l’université en tant que corps prétendant à l’indépendance. Faut-il en conclure que le modèle de l’universitas est un leurre, et que l’université devrait se tourner d’un autre côté, mais lequel ?, pour continuer à exister et à assurer ses fonctions, mais lesquelles ? Peut-être pas, mais il faut s’efforcer d’ôter à cette universitas la dimension d’un idéal, qui risque de se retourner en vœu pieux, ou, pire encore, de recouvrir et de légitimer la transformation l’institution en appareil de propagande au service de forces qui n’ont que faire de la philosophie, comme Heidegger, entraînant derrière lui tout ceux que sa pensée intéresse, en a fait la pénible expérience. Livrée à la parole des philosophes, l’université expose une inquiétante face cachée. Dans l’intérêt de l’université, comme dans celui de la philosophie, il est souhaitable qu’elles desserrent quelque peu leurs liens, et que, déposant la tentation d’une illusoire connivence, elles prennent une mesure un peu plus exacte de ce qui les sépare sans les opposer. Em suma, que essas pioneiras leituras marcaram muito, não só da atividade de Telê, como pesquisadora e formadora de novas gerações de universitários, como modelaram também, naqueles que gozamos de seu convívio, um conjunto de valores que nortearam nossas vidas, de forma indelével. outra travessia 35 - Programa de Pós-Graduação em Literatura 18 r e v t a d i t a t u o u t r a s s v i s d e l e r u r a t r a a v e i a O diretor de cinema Paolo Cherchi Usai, que se desempenha como especialista em história cinematográfica na George Eastman House e no International Museum of Photography and Film, de Rochester, NY, é autor de alguns textos, como Silent cinema e “La cineteca di Babele”4, textos todos em que defende a hipótese de que a história do cinema é a história de sua destruição. “O cinema é a arte da destruição da imagem em movimento”. Essa ideia, por paradoxal que possa parecer, ilumina o trabalho de críticos como Telê Ancona López. Tudo quanto é referido ao cinema (e por extensão, às letras) é histórico e, portanto, mutável, e consequentemente, passível de apagamento na memória. Usai condensou suas ideias em “The Lindgren Manifesto”(2010)5, texto em que estipula que preservar tudo é uma maldição para a posteridade. A posteridade não ficará grata por uma acumulação desmedida. A posteridade quer que nós façamos escolhas. Logo, é imoral preservar tudo; selecionar é uma virtude. Um bom curador nunca reivindica ser um curador. Curadoria não é sobre o curador. É sobre os outros. E, em última instância, nós estamos fazendo imagens constantemente; nós estamos perdendo imagens constantemente, como qualquer corpo humano gerando e destruindo células no curso de sua vida biológica. Nós não somos conscientes disso, o que é bom e inevitável. Usai aborda, assim, os paradoxos do crítico cujo trabalho lida com arquivos. Ele não pode ser onicurador porque tudo preservar é nada criar. E o desafio da boa leitura consiste em equilibrar a preservação com o deslocamento e a expansão de horizontes culturais. Só assim a memória cresce e reconfigura. 4 USAI, Paolo Cherchi. Silent cinema. An introduction; The Death of Cinema: History, Cultural Memory and the Digital Dark Age. London: BFI, 2001.; Idem. ‘La cineteca di Babele’. In: Idem. Storia del cinema mondiale: teorie, strumenti, memorie, 5 vols, ed. by Gian Piero Brunetta. Turin: Einaudi, 2001. 5 Idem. “The Lindgren Manifesto”. Journal of Film Preservation. n. 84, abr. 2011. Universidade Federal de Santa Catarina - 1º semestre de 2023 19 r e v t a d i t a t u o u t r a s Submissão: 13/04/2023 Aceite: 01/06/2023 https://doi.org/10.5007/2176-8552.2023.e97789 Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional. outra travessia 35 - Programa de Pós-Graduação em Literatura 20 s