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CIDADE E CIDADANIA: UMA PRÁTICA DO ESPAÇO * Marta Mega de Andrade

2003, Phoînix

RESUMO: The aim of this paper is to discuss the relationship of political practices and uses of space. We argue that the consolidation of polis as a political institution produced an abstraction of the social space in arder to assert the perspective of exclusive bonds of citizenship as a privilege and territory as patrís. Territory is not the land for inhabitants of ali kinds but only citizens, and the civic space as a proposition, as an ideology we may say, guided perceptions of urban space as a space of power signs. As a proposition thus the abstract civic space imposed itself over inhabitants' relations and everyday spatial practices.

CIDADE E CIDADANIA: UMA PRÁTICA DO ESPAÇO Marta Mega de Andrade* "[. ..]o homem é por natureza um ser político; e portanto, mesmo quando os homens não necessitam de auxílio mútuo, eles não menos desejam con-viver [ ... }" (Política, IIl,iv,3) Abstract The aim of this paper is to discuss the relationship of political practices and uses of space. We argue that the consolidation of polis as a political institution produced an abstraction of the social space in arder to assert the perspective of exclusive bonds of citizenship as a privilege and territory as patrís. Territory is not the land for inhabitants of ali kinds but only citizens, and the civic space as a proposition, as an ideology we may say, guided perceptions of urban space as a space of power signs. As a proposition thus the abstract civic space imposed itself over inhabitants' relations and everyday spatial practices. I - Teorizando sobre a Prática Política na Atenas Clássica Quando lemos o Livro Ida Política, percebemos uma inquietação a respeito das origens e da finalidade do viver em comum, da constituição de comunidades. A Política não fala propriamente sobre a atividade do cidadão com relação aos negócios do Estado. Procura, antes, dimensionar a vida do homem destinado a viver em comum - e por isso um ser político. Gostaríamos de chamar a atenção sobre o trecho, a seguir: * Profª. Drª . Marta Mega de Andrade - LHINIFCS/UFRJ. E-mail: [email protected] .br 264 PHOINIX, R,o DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003. "O primeiro agrupamento ao qual dá origem a necessidade é aquele entre pessoas que não têm condições de existirem um sem o outro, o que denominamos a união de fêmea e macho para a continuidade das espécies(. .. ) e a união do senhor natural e do súdito natural pelo hem do socorro mútuo(. .. ) A comunidade que surge, portanto, no curso da natureza para as necessidades diárias é a casa (. .. ) Por outro lado, a primeira comunidade feita de várias casas para a satisfação de necessidades não meramente diárias é a aldeia. A aldeia, segundo a forma mais natural, parece ser uma colônia a partir da casa. É por isso que nossas póleis se encontraram no princípio sob o poder de reis( ... ) posto que eram compostas por partes que estavam sob um poder real [poder do chefe da família]( ... ) A comunidade composta finalmente de várias aldeias é a pólis; esta atingiu finalmente o limite da virtualmente completa auto-suficiência, e assim, enquanto ela surge para o bem da vida, ela existe para a boa e bela vida. Então toda pólis existe por natureza, da mesma forma que a primeira comunidade assim existe; pois a pólis é o fim das outras comunidades, e a natureza é uma finalidade ( ... )Ainda, o objeto pelo qual algo existe, seu fim, é o seu maior hem; e a autarquia é um fim e um hem maior. De tudo isso podemos concluir que a pólis é um desenvolvimento natural e que o homem é por natureza um animal político( ... )" (Política, I, 1252a -1253a) A pólis é, então, uma koinonia , uma comunidade fundamentada no interesse comum, sendo este interesse comum a base do convívio. Mas ainda, a pólis é a causa primeira da própria comunidade, é a per-feição do caminho que leva à realização do que há de mais próprio nos homens livres, que é a política. Os homens organizam comunidades que, no tempo e no espaço, formam círculos concêntricos em torno da idéia de sumphéreiinteresse comum 1: a família, a aldeia e a pólis, fases na busca da autarquia. Somente a autarquia garante a prevalência da liberdade, compreendida como a não submissão a outrem (pois o poder político nasce na cidade e é antítese do poder real que se encontra no mestre da família e no nível da aldeia), mas também como a entrega de si ao ócio. Nem trabalho , nem obediência a ninguém mais senão a si mesmo, sendo esse si mesmo aquele cujo governo de si se prolonga no governo da família (economia) e no governo da cidade. PHOINIX, Rro DE J ANEIRO, 9: 264-275, 2003. 265 Ora, essa concepção de autarquia e da natureza política do homem livre não nos leva em direção a um regime político em especial, mesmo que a Política venha a discutir em uma etapa posterior alguns exemplos de politéia (o que chamamos de "constituição"). Mas está impregnada da idéia de que a pólis não existe para organizar a vida de uma população, mas antes ela existe para ser uma boa pólis, e isto quer dizer, para proporcionar aos cidadãos um espelho de sua areté e um instrumento de hegemonia. Daí o grande problema da democracia para os filósofos: como garantir a perfeição quando homens de tão baixa índole (kakoi) participam nesse exercício de soberania? O que podemos dizer disso? Que uma filosofia pró-oligarquias do final do século V e do IV século a.e. elaborava uma teoria política avessa às práticas da democracia? Que se buscava uma justificativa à tomada dopoder na cidade por minorias aristocráticas? Que o estatuto dos trabalhadores na cidade era muito baixo, diante de uma elite preconceituosa e ociosa? Que só podemos escutar, infelizmente, as vozes dessa elite? A coisa é um pouco mais complicada. Para compreender a natureza desta complicação, basta prestar atenção ao fato de que ao longo de um século mais ou menos de democracia em Atenas, não veremos nenhum homem do povo liderando as assembléias (embora vejamos os tetas acederem às magistraturas, mas esta é a parte formal da história). E se nos deparamos com o jogo do livre debate e deliberação, as vozes que convencem e comandam são todas aristocráticas e, no fim das contas, endinheiradas. Teremos o povo no exercício dos instrumentos de governo, mas não teremos o povo no poder. Tanto que a palavra democracia chega a ser usada por todas as facções políticas e de modo ambíguo, jogando com a ambiguidade da situação contida na própria definição de democracia: a soberania do demos (Canfora, 1994). Segundo a análise de Luciano Canfora, o problema residiria em considerar quem faz parte do demos, ou melhor, quem faz a maioria no demos. O demos é o povo, mas de que povo falamos? Certamente não da população de Atenas ou da Ática. O demos era formado por um corpo restrito de cidadãos que em Atenas englobava os não possidentes, os tetas, classe de não proprietários de bens de raiz. Mesmo assim, esse corpo de cidadãos não chegava a constituir trinta por cento da população do território ateniense no período clássico. Um corpo de homens livres chefes de família, cujas esposas e filhos legítimos faziam parte do universo dos cidadãos. Para além disso, restavam centenas de milhares de habitantes de Atenas e da Ática, proibidos de possuir aí bens de raiz, mas chamados a trabalhar como comerciantes, a1tesãos, pedagogos, etc. 266 PHOINIX, Rm DE J ANEIRO, 9: 264-275, 2003. Nunca se cogitou que a cidadania pudesse ser estendida ou mesmo reivindicada por esses grupos, pelo simples fato de sua moradia ou nascimento em território ático. E nunca se cogitou que o governo da cidade devesse organizar a vida desses habitantes. A cidadania, portanto, não era o fato de uma cidade-nação, mas o privilégio de um grupo que se abria para incluir não possidentes, ou se fechava entre os proprietários de terras, cujas raízes no território definiam esse território como a terra dos pais (patr'is), e não o contrário (e não o território e suas fronteiras como sendo por ele mesmo uma pátria, como um container de pessoas que nele nascem, crescem e m01Tem, e com ele mantêm uma relação de exterioridade: o espaço é o solo em que piso e não a te1rn em que meu pai e o pai de meu pai enraizaram minha casa). E a atividade política e de governo era a atividade, a contenda e o campo de batalha dos cidadãos autóctones 2 . II. Teorizando sobre Espaço e Política: pólis e politéia Daí podemos fazer uma tentativa de compreender a vital importância da conceituação e da intervenção no espaço que nasce com a organização de uma politéia. Pois o poder que não é real, o poder político, exige uma outra relação com o espaço, que não aquela que se funda na contiguidade da família e da aldeia. A política exige, antes de tudo, a abstração e a positivação dos marcos espaciais. Exige um saber e uma intervenção teórica no espaço habitado. Penso aqui nos estudos de Jean-Pierre Vernant publicados conjuntamente em Mito e Pensamento entre os Gregos: Espaço e Organização Política na Grécia Antiga e Réstia Hermes (1990a e b). Trata-se aí do que ele chama de nascimento do pensamento racional, do logos grego, que vem à luz justamente em estreita vinculação com a cidade, a prática política e a laicização de espaço, tempo e número. A cartografia, a agrimensura, são atividades que surgem ligadas ao sentido de investigação próprio da formação de uma opinião no debate político'. Sobretudo, a necessidade de isonomia, de igualar cada cidadão ao seu semelhante, de modo a garantir que nenhum homem livre pudesse apoderar-se do kratós, do poder do mando, leva a estruturas positivas e abstratas de representação de espaço (geometria, agrimensura, meteorologia, física), tempo (instrumentos matemáti cos de medição do tempo transcorrido, como por exemplo a clepsidra) e número (adoção do padrão decimal). O estabelecimento não tanto de uma pólis, mas de uma politéia , demandará o recurso a esses mecanismos abstratos que permitem a cada cidadão conviver em um espaço político cujas estruturas são iguais e intercambiáveis, em relação a todos os outros cidadãos. PHOINIX, RIO DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003 . 267 Ora, isto leva em certos casos à necessidade de abstrair as relações que a cidade mantém com o espaço cotidiano dos habitantes. As reformas políticas atribuídas a Clístenes, entre o final do século VI e o início do V século a.C. em Atenas, dividiram o território da Ática em três linhas imaginárias definindo o litoral (paralia) , a cidade (asty), e o "interior" (mesogeia). Dentro dessas linhas, o corpo cívico foi dividido em dez tribos , que compunham a assembléia dos 500 à razão de cinquenta membros por tribo. A forma de recrutamento das tribos foi totalmente mudada: em lugar da anterior contigüidade espacial, os membros das tribos eram recrutados por sorteio no litoral, na cidade e no interior. Assim, uma tribo, que antes de Clístenes era formada por vizinhos e pessoas que tinham algum tipo de relação de sangue ou de solidariedade, passaram a ser formadas por pessoas que virtualmente não se conheciam (ou se conheciam, mas não mantinham nenhum relacionamento específico) . Isto de certo modo enfraquece a solidariedade interna das tribos na ação política; e fortalece o voto por cabeça, o voto unitário nas assembléias (Levêcque & VidalNaquet, 1983). No caso das reformas de Clístenes em Atenas o investimento na produção de um espaço político abstrato que garantisse a isonomia entre os participantes da coletividade dos cidadãos representou, também, uma tentativa de enfraquecer o vínculo entre a participação nas decisões da coletividade e os laços de vizinhança. Tentava-se enfraquecer uma certa organização espacial das relações políticas, substituindo-a por modelos geométricos de espaço, poder, equivalência, etc, gerando o que Vernant denomina espaço político. Isto certamente não quer dizer que as relações espaciais concretas se dissolveram como que por mágica. Mas significa que toda prática e toda teoria da prática política na cidade grega, ou até mais, o discurso sobre a cidade grega a partir dos próprios gregos, tendeu a omitir a prática cotidiana do espaço como instância política e de cidadania. De fato, devemos destacar aqui a própria ambiguidade que o espaço político traz para a noção de pólis. A "cidade" já existia, antes do estabelecimento de politeiai pela Grécia afora. Entretanto, pólis significava um espaço amuralhado, uma fortificação ou núcleo fortificado, frequentemente imbuído de conotações religiosas, aos quais se dirigiam os habitantes de um território (Lévy, 1983). Em quatro séculos, este sentido mudou de tal forma que permitiu a Péricles, Platão ou Aristóteles us ar a expressão pólis de forma abstrata, para tratar de uma comunidade, ou, se preferirmos, de um Esta- 268 PHOINIX, RIO DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003 . do 4 . Nisto reside que a noção de cidade vincula-se menos a qualquer definição de urbanidade do que ao jogo simbólico entre um centro (do poder) e um território (de produção, de habitação) 5 . Dito isto, devemos lidar com a hipótese de que essa investida sobre o espaço urbano que o abstrai como espaço de encontros cotidianos e paisagens age demarcando essa comunidade - a politéia - de forma prescritiva e excludente. III. Cidadania e Espaço Habitado Vamos definir agora os dois pontos básicos dessa discussão: 1) a pólis é concebida na teoria política grega como comunidade cuja finalidade é garantir a autarquia a um corpo de cidadãos, e não governar uma população de habitantes de um determinado território; portanto, o governo não deve concernir a todos os habitantes , não deve se ocupar deles senão para garantir a reprodução mais perfeita de um corpo de cidadãos mais ou menos fechado; 2) por isso, o espaço é apropriado na prática política corno modelo , medido, contado e organizado geometricamente. O espaço político é um espaço abstrato de correlações necessárias entre cidadãos iguais e intercambiáveis. A pergunta é: por quê? Estou propondo a conjugação de duas questões: a prática política que não se ocupa da gestão de urna população em um território, mas das deliberações de um corpo excludente de cidadãos , é aquela que precisa abstrair o espaço habitado corno instância e vetor das práticas políticas. É aq uela para a qual o espaço habitado se traduz em urna série de padrões geornetrizáveis (e que tenta intervir no espaço empírico através desses padrões). Mas isto certamente não significa que essa força política da apropriação do espaço deixe de existir, ou que se possa desconsiderá-la. Aqui recorrerei a um exemplo, que estudei e publiquei no livro A Vida Comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. Em sua História da Guerra do Peloponeso, Tucídides descreve uma ocasião em que, no inverno de 431 a.C., Péricles teria pronunciado no cemitério do Cerâmico uma oração fúnebre, corno era de costume nos funerais públicos pelos soldados mortos em guerra. Tratava-se de um elogio de Atenas, através do qual a cidade era praticamente transformada em sujeito, como um modelo a ser seguido pelos homens. Durante este "elogio", Péricles menciona a "multidão" ali reunida para ouvi-lo, constituída pelas mulheres PHOINIX, Rro DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003. 269 familiares dos mortos, pais, filhos, parentes, cidadãos em geral, e ainda estrangeiros. O evento eminentemente cívico era uma oportunidade não apenas para uma demonstração de força retórica e nem somente para fazer passar valores ou fazer incidir uma ideologia. Tratava-se de uma ocasião para reforçar os laços, simbólicos e concretos, da identidade de uma sociedade, em um espaço vivido por todos ali de modo diferente: as mulheres, com suas lamentações, fazendo-se notar como nunca, a ponto de receberem menção especial por Tucídides; os pais que perderam seus filhos, os irmãos e os parentes, a multidão, enfim, dos habitantes, podendo mesmo receber, livremente, os estrangeiros de passagem. A "eficácia" pretendida pelo discurso se dirige a uma menção do espaço vivido, "todos os dias": "Não considerai somente em palavras as vantagens, sobre as quais nada se compreenderia ao se insistir longamente,falando-se sobre todo o interesse que há em rechaçar o inimigo; contemplai antes, a cada dia [kath'heméran], na sua realidade, a potência da cidade, sede tomados, e quando ela vos parecer grande, dizei que os homens que adquiriram tudo isto mostravam audácia, discerniam seu dever, e na ação, observavam a honra" (II,43) A potência da cidade, a qual Péricles se refere, deve ser contemplada nos sinais visíveis de uma hegemonia, a ostentação, cada vez maior e mais grandiosa, de uma forma de prestígio sobre as outras cidades da Liga de Delos (órgão do imperialismo ateniense cujo auge é a época de Pérides). Esses sinais visíveis eram urbanos, e podiam ser contemplados a cada dia, nas instalações luxuosas dos templos, dos prédios públicos, da ágora, dos centros para o "repouso do espírito" (anapáula) como banhos públicos, ginásios, nos teatros. Uma cidade para ser vista de longe. Um centro urbano que é centro de uma prática do "ver", do "contemplar", lembrada na ocasião da oração fúnebre como um dever a todos os presentes, sem distinção entre cidadãos ou não. Os termos desta mensagem incidem sobre o estímulo a uma determinada experiência do espaço na vida cotidiana. A cidade "empírica" que deve ser vista, corresponde àpólis-exemplo. Portanto, a mensagem não se esgota no realce de uma determinada postura ética; para ser eficaz, ela se dirige a uma prática, cotidiana, em relação às "pedras" da cidade. Compreender o 270 PHOINIX, RIO DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003. exemplo por um certo modo de se apropriar do espaço, eis o que deveriam fazer todos aqueles a quem a retórica de Péricles pretendia atingir. Contudo, essa prática do "ver" não corresponde a um tipo de apreciação de paisagem, nem a uma "panorâmica" da cidade. A "contemplação" da cidade de Péricles tem, na oração fúnebre, uma outra conotação: dirige-se não propriamente à paisagem urbana, mas a uma paisagem traduzida em sinais: monumentos, marcas concretas de um poderio e de um legado. "Com tudo isto, para o remédio de nossas fadigas , nós asseguramos ao espírito os desprendimentos [anapáulas] mais numerosos: temos concursos e festas religiosas que se sucedem o ano todo, e ainda, entre nós, instalações luxuosas, cujo agrado cotidiano [kath'heméran] afasta para longe a contrariedade". (II,38,1) Da cidade-exemplo, apropriada em uma prática do ver, passamos a uma espécie de cidade de "repouso" (que obviamente não se trata do entretenimento moderno), um subproduto do exemplo. Um se dirige ao civismo querestringe, lembra a uns e outros de um privilégio que têm ou que simplesmente podem contemplar sem ter; o outro se dirige a uma população, e mais corretamente a uma coletividade que se destaca pela "labuta" (pónos) : os artesãos, os pequenos camponeses, os lojistas e comerciantes, enfim, a todos aqueles para quem fazia sentido uma parada cotidiana em uma rotina de fadigas, e que certamente eram livres para circular por esses "lugares" e nessas ocasiões para o desprendimento. A cidade que se oferece a uma prática de fruição não é um exemplo propriamente cívico, mas um modelo diante de todas aquelas cidades que - no contexto urbano - não oferecem tanta diversidade de lugares e ocasiões de fruição aos seus habitantes e - por que não? - aos seus visitantes. Além de um "sistema de sinais" para ser visto e transfonnado em informações de poderes, prerrogativas, privilégios demarcados no espaço coletivo, a cidade é, no discurso de Péricles, um lugar de fruição. O texto da oração fúnebre de Péricles permanece exemplar no que se referia a um modelo identitário que transmutava a pólis ateniense na "pátria" das famílias cidadãs. E ao mesmo tempo, o texto do epitháphios lógos prevê ou aponta para a presença de "terceiros" nessa relação do cidadão com a pólis; "terceiros" que faziam parte da família, mas não do espaço político - mulheres, filhos, "órfãos" - e "terceiros" que não faziam parte da pólis, mas aos quais ela devia impor sua grandiosidade de exemplo. Aponta ainda para uma PHOINIX, RIO DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003. 271 enigmática sinalização, que caracterizaria o encontro cotidiano com as pedras da cidade: cidadãos ou não, aqueles que conhecessem a cidade dos atenienses deviam guardar na lembrança cotidiana a grandeza, a glória, e tudo aquilo que Atenas podia oferecer como desprendimento ao espírito. O desprendimento cotidiano, a relação com o espaço da cidade, a referência aos "terceiros", certamente demonstram algo até certo ponto óbvio: apesar da unívocidade que regeu as formas de conceber a pólis como comunidade de cidadãos livres voltados para as práticas políticas e públicas, nunca foi possível eliminar, nem mesmo dos discursos mais confirmadores dessa imagem, a necessidade de falar para os outros, e de falar para uma outra cidade, aquela dos habitantes e das relações cotidianas. De certo modo, Péricles faz dessa cidade o "lugar" de seus interlocutores principais: os cidadãos não precisavam tanto ser convidados a lembrar da grandeza da pátria; mas as mulheres, os velhos "pais", os estrangeiros, é que precisavam ser convidados a participar ou a fruir de algum modo, daquilo que os cidadãos e a pólis diziam oferecer. Oferta seletiva esta que escolhe o espaço-tempo de abrir a cidade à apropriação dos não cidadãos. Ou melhor, a um uso do espaço não demarcado pelo critério da cidadania. Um uso, primeiro, pela captura dos sinais de um poderio; uso pelo olhar que se submete e/ou se rejubila na hegemonia dos atenienses em seu Império. Como espaço de sinalização de um poder sobre outrem, Péricles faz a oferta de Atenas aos habitantes. Depois, um uso pela fruição; um trajeto, um percurso que se cumpre de banquete em banquete, do ginásio à agora, dos banhos à Pnyx. Fruição de trabalhadores, daqueles cidadãos que não são ociosos. Nesses convites ao uso do espaço, é o espaço político que se entrega e se rejubila na reafirmação de sua força identitária. Entrega-se porque pode, pois somente os cidadãos podem conceder aos habitantes a prerrogativa de um uso adequado do espaço, um uso, digamos, que um patrono pode oferecer a um cliente. Eis o que se pode di zer do controle sobre os modos de apropriação do espaço pelos habitantes e visitantes (o que M. de Certeau cert,<tmente poderia chamar de "usuários"), projetado por um determinado grupo político, ou se quisermos compreender assim, pelo grupo político6 . Este dom era necessário. O simbolismo do espaço político não se ajustava às diferenças com as quais os cidadãos de Atenas deviam lidar na vida cotidiana; formava um sistema fechado, não sendo uma prática discursiva capaz de articular um consenso social sobre a pólis na vida cotidiana, por si 272 PHOINIX, Rio oE JANEIRO, 9 : 264-275, 2003. só. Levado ao seu limite, o espaço político abstraía o espaço urban o, abstraía os encontros cotidianos mais banais, negando àqueles que não eram os cidadãos atenienses (em maior ou menor grau, dependendo do seu ei;tatuto) a possibilidade mesma de ver, sentir, caminhar, enfim, traduzir em forma de experiência a empiria (ou a paisagem) de um espaço vivido. Ao se minimizar os efeitos discursivos e imaginários do espaço urbano em suas formas empíricas, aquilo que acabava por se reproduzir em uma proposição de senso comum era a unívocidade da relação do cidadão com o espaço habitado, permitindo assim que a pólis pudesse aparecer como espaço de "sinali zações", relativas quer a uma hegemonia dos atenienses sobre os estrangeiros, quer à confirmação dos privilégios dos cidadãos sobre o espaço habitado. Concluindo Quis explorar aqui uma diferença básica entre a participação política via cidadania no mundo grego antigo e o que compreendemos por política e participação, chamando a atenção aí para as investidas do discurso político sobre representações e práticas de espaço. Prestemos atenção à importância dessa moeda espacial nas negociações políticas, no cotidiano, na reafirmação, por exemplo, da primazia dos cidadãos em relação com a terra habitada. O problema é que a cidadania antiga era uma espécie de privilégio, fundando uma hierarquia e não um direito universal. Contudo, habitar e interagir espacialmente é prática que escapa às segmentações de uma hierarquia, propondo negociações (retóricas , táticas) inusitadas e de difícil absorção quando se permite ao espaço atuar na organização política das interações. A pó/is teve de lidar com isso, na medida em que era uma instância espacial que se queria uma instância de poder. Como fazer da cidadela, do centro urbario, a imagem da união e relação política de um grupo fechado de cidadãos ? Eliminando a matéria, eliminando o cotidiano, criando um fosso entre público /político e privado/cotidiano. Este foi apenas um pequeno ensaio sobre as dificuldades em lidar com experiências espaciais e encontros cotidianos, testemunhada pelo modelo de cidadania ateniense. O mais curioso é que este modelo será reproduzido em textos posteriormente, textos que transformam pólis em Estado , naturalizando assim o conceito, a abstração da forma política, e facilitando para nós a compreensão isolada de espaço vivido e espaço político, da sociedade e do estado (e curiosamente, do cidadão como membro de uma sociedade PHOINIX, Rio DE JANEIRO, 9: 264-275, 2003. 273 civil). Mas no mundo grego clássico e pós-clássico, nunca se conseguiu realmente separar a pólis de sua natureza espacial, o que obrigou os legisladores e os cidadãos a lidar com as aporias espaciais na re-produção de modelos de cidadania e ação política. Bibliografia ANDRADE, M. A Vida Comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clás sica. Rio de Janeiro: DP & A, 2002. ARISTÓTELES. Politics, Lceb Classical Library. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. CANFORA, L. O Cidadão, IN: VERNANT, J-P. (org.) O Homem Grego. Lisboa: edl Presença, 1994, pp.103- 130. CERTEAU, M . de . L'Invention du Quotidien. I: Arts de Paire. Paris: Gallimard, 1990. GRECO, E ., & TORELLI, M. Storia dell'urbanistica. Roma: Laterza, 1983. LEVÊCQUE, P., & VIDAL-NAQUET, P. Clisthéne, L'Athénien. Paris: Macula, 1983. LÉVY, E. Astu et Polis dans l'Iliade. Ktema, 8, 55-73, 1983. MARTIN, R. Urbanisme dans la Grece Antique. Paris: A&J Picard. 1956 TUCÍDIDES . Histoire de la Guerre du Péloponnese. Livros I e II. 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Cf Política I 2 Para que possamos compreender melhor esta situação, temos que observar que essa cidadania autóctone era um estado, um grau hierárquico e não um direito. A autoctonia não queria dizer nacionalidade ou naturalidade, mas sim um atributo da família, da casa, geralmente aristocrática. Digamos que no período das póleis esse estad0 profundamente aristocrático foi estendido a toda uma politéia, a todo um corpo de cidadãos, definido em um processo de sucessivas reformas (Em Atenas, por exemplo, de Solon a Clístenes passando por Efialtes e por fim Péricles). Uma concessão de origem aristocrática, portanto, e de uma vez por todas. Fora desse corpo, ninguém mais poderia se considerar autóctone. Não é à toa que Hipodamo de Mileto intervém no espaço urbano, planejando as novas póleis oriundas ela colonização grega, em seus planos ortogonais , mas também desenvolve uma filosofia política que é anterior aos filósofos como Platão e Aristóteles. Pensar a pólis ideal sempre envolve, em grego, pensar o planejamento espacial da pólis de forma teórica, ou seja, geométrica. Sobre isso, ver Greco &Torell i, 1983. 1 Ora, isso gerou uma ambigüidade sentida pelos próprios teóricos ela política grega, senão por nós mesmos nos primórdios ela teoria política clássica, ela História e ela Arqueo logia do mundo antigo: ele fato, quando falamos ela pólis, ora falamos ela cidade, ora do estado. Escolhemos então a tradução cidade-estado que nos apetece, mas é de todo uma solução ilusória 4 5 O que de fato já era observado nas análises de R. Martin, 1956. Isto significa que o espaço era vivido através desse projeto de controle. Não, em absoluto. Isto marca a importância da apropriação do espaço para are-produção da identidade de uma coletividade. 6 PHOINIX, RIO DE J ANEIRO, 9: 264-275, 2003. 275