17. HEGEL E SARTRE: A QUESTÃO DO SOLIPSISMO EM DEBATE
https://doi.org/10.36592/9786587424064-17
Fabrício Rodrigues Pizelli1
Marcelo Marconato Magalhães 2
Considerações iniciais
A filosofia hegeliana, como se sabe, foi recebida de maneira tardia na França,
no século XX. Tal recepção se estabelece com leituras ousadas que até hoje pautam
polemicas nos debates hegelianos. Desse modo, figuras como Jean Wahl, Jean
Hyppolite, Alexandre Kojève etc., vieram a formar e influenciar uma série de filósofos
franceses, os quais não hesitaram a redigir duras críticas ao viés universal e
enciclopédico de Hegel, como, por exemplo, Foucault, Deleuze e Guattari. Desse modo,
haja vista as condições de uma recepção tardia de um pensamento demasiadamente
complexo, junto com leituras originais e discordantes entre si, acerca da natureza da
filosofia de Hegel, torna-se a análise da compreensão entre filosofia francesa
contemporânea e filosofia hegeliana ainda mais obscura, de modo a requerer uma
compreensão ampla do debate francês, no século XX. De maneira geral, gostaríamos
de afirmar que interpretações muito “pré-maturas” foram realizadas acerca da filosofia
de Hegel, de modo que um mesmo autor, aqui o debate centrado em Jean-Paul Sartre,
apresenta relações diferentes com a filosofia de Hegel ao decorrer do desenvolvimento
de sua obra. Em outras palavras, o Sartre que não concorda tanto com Hegel em 1943,
Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Marília.
Membro do Grupo de Pesquisa Pensamento Francês Contemporâneo, na UNESP – Marília. Bolsista de
Iniciação Científica pela FAPESP, sob o processo 2018/07346-3. Além disso, o presente capítulo resulta
de resultados parciais de nosso estágio na Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, também pela
FAPESP, sob o processo 2019/25007-4. E-mail:
[email protected].
2 Professor Colaborador junto ao Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Norte do Paraná UENP; https://orcid.org/0000-0001-9220-1501
Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista - UNESP; Membro Efetivo Colaborador da
Sociedade Hegel Brasileira (SHB); Membro do Grupo Hegel e o Idealismo Especulativo - Laboratório
Hegel (GHIE-LH); Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista - UNESP; Graduação
em Direito pela Universidade de São Paulo - USP. E-mail:
[email protected]
1
304 | Hegel e a Contemporaneidade
com a publicação de L’être et le néant, faz mais concessões ao autor alemão, em 1960,
com a publicação da Critique de la raison dialetique.
Neste aspecto, abordaremos uma questão fundamental na filosofia de Hegel e
Sartre, a saber: o problema do solipsismo e sua resolução. No que tange a Sartre,
podemos destacar duas grandes respostas ao problema do solipsismo em sua obra; a
primeira está presente em sua primeira obra filosófica La transcendance de l’Ego,
publicada em 19363; a segunda presente em sua obra mais célebre, L’être et le néant,
publicada em 1943. Visto isso, não nos ocuparemos em mostrar as insuficiências da
resposta ao problema do solipsismo presentes em La transcendance de l’Ego, mas
focaremos em L’être et le néant, pois esta apresenta uma novidade: a influência da
filosofia hegeliana. Além disso, ressaltaremos a contribuição de Hegel à resolução
sartriana do problema do solipsismo, pois, de acordo com Vincent de Coorebyter, La
transcendance de l’Ego contém, de maneira condensada, todas as questões
apresentadas em L’être et néant, com exceção de uma: a refutação do solipsismo
(COOREBYTER, 2000, p. 172). Com efeito, para o reconhecimento de Sartre, a
respeito das insuficiências da resposta ao solipsismo, na obra de 1936, o fenomenólogo
francês entra em contato com a filosofia hegeliana de maneira mais tardia que os
demais intelectuais franceses, como Lacan, Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, entre
outros. Um panorama sobre o contato tardio de Sartre com o pensamento de Hegel
nos auxiliará na compreensão dos limites de sua crítica ao filósofo alemão.
Hegel era praticamente desconhecido na França, no início do século XX, de
modo que Lachelier, professor da École Normale, até impedia que os estudantes
evocassem Hegel nos seus trabalhos (DE COOREBYTER, 1997, p. 84). Contudo, nos
anos 30, a filosofia hegeliana passa a influenciar o debate filosófico francês, através de
figuras como Jean Wahl, que publicou Le malheur de la conscience dans la
philosophie de Hegel; Alexandre Koyré e Kojève, este último responsável pelos cursos
que resultaram em maior influência na intelectualidade francesa, pois filósofos como
Bataille, Lacan, Merleau-Ponty foram frequentadores assíduos de suas aulas a respeito
da Fenomenologia do espírito, que resultaram na compilação e publicação de uma
obra intitulada Introdução à leitura de Hegel.
La transcendance de l’Ego ser publicada em 1936, ela é produto de um estágio realizado por
Sartre, em Berlim, no ano acadêmico de 1933-1934.
3 Apesar de
Fabrício Rodrigues Pizelli & Marcelo Marconato Magalhães | 305
Entretanto, Sartre não estava presente no cerne do debate hegeliano francês.
Em 1933, ano que começam os cursos de Kojève, Sartre viaja a Berlim para estudar
fenomenologia, no Instituto Francês, no qual fica até 1934. Quando retorna, dedica seu
tempo para os escritos em torno da imaginação e, de 1939-1940, participa da Segunda
Guerra Mundial, mas devido aos seus problemas de visão, não serviu como soldado,
mas em um posto fixo na meteorologia. Desse modo, de acordo com Contat e Rybalka,
Sartre entrou em contato com o pensamento hegeliano, em 1939, através do
comentário de Jean-Hyppolite, Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito
(SARTRE, 1991, p. LV). Neste aspecto, Sartre apenas leu Hegel, por ele mesmo, em
1941, quando Simone de Beauvoir envia-lhe um exemplar da Fenomenologia do
Espírito4, porém, Sartre já inicia a redação de O ser e o nada, sem dispor de um
exemplar da Fenomenologia, muito menos de ler Hegel sem a mediação de um
comentador (DE COOREBYTER, 2000, p. 84-85). Ademais, é válido ressaltar que
Simone de Beauvoir foi responsável por estimular Sartre a conhecer a novidade da
filosofia hegeliana, pois, de acordo com a filósofa, Hegel poderia auxiliar Sartre nas
investigações acerca do nada (néant). Portanto, podemos ao menos indicar que, dado
esse percurso histórico do primeiro contato de Sartre com a filosofia de Hegel, as
afirmações de Sartre direcionadas a Hegel são, no mínimo, afirmações de um autor
que acaba de se defrontar com o sistema hegeliano. Dessa maneira, gostaríamos de
ressaltar que por mais que O ser e o nada representa uma consolidação de quase uma
década de investigações de Sartre, a leitura sartriana da filosofia de Hegel ainda é
jovem e o ponto central que liga os escritos de juventude, de Sartre, com O ser e o nada,
é o problema do solipsismo, na medida que uma resolução efetiva só se torna possível
com a influência de Hegel.
1 A crítica de Sartre a Hegel: a barreira do solipsismo
No que tange às investigações de Sartre, a respeito da consciência, atinge-se um
momento em que Husserl e Heidegger não são suficientes para os avanços
fenomenológicos de Sartre, de modo que o contato com o pensamento de Hegel
permite o fenomenólogo francês avançar. Contudo, por mais que Sartre aceite dialogar
De acordo com as datas das cartas de Simone de Beauvoir a Sartre e vice-versa, Sartre perde
rapidamente o exemplar da Fenomenologia do Espírito enviado por Simone (SARTRE, 1983b, p. 307).
4
306 | Hegel e a Contemporaneidade
com o pensamento especulativo absoluto, ele o faz estabelecendo críticas, as quais
iremos evidenciá-las.
Em primeiro lugar, Sartre afirma que a “intuição genial”, de Hegel, é a de fazer
com que o sujeito seja dependente do Outro em seu próprio ser, de modo que “[...] é
em meu coração que o outro me penetra. Não poderia colocá-lo em dúvida sem que eu
duvide de mim mesmo [...]5.” (SARTRE, 2019, p. 332). Com base nesse movimento
argumentativo, de acordo com Sartre, até parece que o solipsismo foi definitivamente
resolvido, se não fosse algumas exacerbações idealistas de Hegel, as quais Sartre é
veemente contra, como por exemplo, o aspecto sintético que iguala a contradição e a
universalidade do “Eu”. Contudo, Sartre concentrará sua primeira crítica a Hegel, no
que tange ao solipsismo, no estatuto epistemológico da proposta.
Sartre parte da perspectiva hegeliana de que a luta de consciência se
fundamenta no esforço que cada consciência faz em transformar a certeza de si em
verdade (SARTRE, 2019, p. 333). Contudo, essa verdade só pode ser alcançada uma
vez que o Algo se torna objeto para o Outro e vice-versa6. Desse modo, em Hegel, o ser
está intimamente relacionado com o conhecer, de modo que a consciência (Algo) se
afirma frente ao Outro, pois reivindica o reconhecimento em seu próprio ser. Em
outras palavras, deparamos com a fórmula “Eu sou eu”, de Hegel. Com efeito, a base
da crítica sartriana ao otimismo epistemológico hegeliano é a impossibilidade da
identidade ao Eu, haja vista todos os progressos alcançados com a intencionalidade da
consciência. Posto que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, o correlato
da consciência é, necessariamente, diferente dela, isto é, o Eu nunca poderá se
identificar ao próprio Eu. Tal identificação está presente no pensamento hegeliano e,
em última análise, configura-se como etapa fundamental de um processo em que o
Algo e o Outro tornam-se um só e o mesmo. Neste aspecto, de acordo com a perspectiva
de Sartre sobre a dialética do senhor e do escravo, Hegel confunde objetividade e vida
no momento da aparição do Outro. A respeito disso, Sartre afirma: “[d]e fato, nossa
experiência apenas nos apresenta indivíduos conscientes e vivos; mas, de direito, é
preciso observar que o outro é objeto para mim, porque ele é outro e não porque ele
“C’est donc en mon coeur que l’autre me pénètre. Il ne saurait être mis en doute sans que je doute de
moi-même […]. » Todas as traduções, aqui apresentadas, são de nossa responsabilidade.
6 Tal movimento argumentativo de Sartre baseia-se na dialética do ser e escravo, presente na
Fenomenologia do Espírito.
5
Fabrício Rodrigues Pizelli & Marcelo Marconato Magalhães | 307
aparece por ocasião de um corpo-objeto7.” (SARTRE, 2019, p. 336-337). Desse modo,
Sartre passa a discutir o obstáculo do solipsismo no âmbito formal, o qual abarca o
maior problema na perspectiva do fenomenólogo francês, uma vez que, em um
primeiro momento o Outro que aparece ao Algo, possui um estatuto de objeto. Com
efeito, na objetividade da aparição do Outro, a consciência não distingue um objeto de
um “objeto-corpo” ou “objeto vivo”, isto é, outra consciência, levantando assim uma
indagação: “[a]parecer como objeto para uma consciência continua a ser uma
consciência?8” (SARTRE, 2019, p. 337).
Neste aspecto, Sartre ao discutir o solipsismo no plano formal, de direito, busca
ressaltar que aquele Outro que aparece à consciência não é, em um primeiro momento,
outra consciência que existe independentemente de mim, mas existe como objeto.
Desse modo, existir para uma consciência como objeto muda totalmente o conteúdo
da consciência, pois em um mero objeto (entenda-se: algo que não seja uma
consciência) impossibilita o reconhecimento. O sujeito não se identifica em um livro
ou numa cadeira, o sujeito se reconhece em outro sujeito que, por sua vez, é ele mesmo.
Posto isso, Sartre atesta:
[...] postular que a consciência de si se exprime pelo “Eu sou Eu”, ou seja, ao
assimilá-la ao conhecimento de si, ele [Hegel] não se atentou às consequências de
tirar essas constatações primeiras, pois ele introduziria na própria consciência algo
como um objeto em potencial, que o Outro teria somente para resgatar sem o
modificar9 (SARTRE, 2019, p. 337).
Desse modo, se levarmos o argumento Sartriano às últimas consequências,
notaremos que o problema reside no argumento da identidade da consciência com o
seu correlato que, por mais que não ocorra em um primeiro momento da aparição,
propicia ao Eu o caráter de universal. De outro modo, a síntese ocorrida quando o Algo
e o Outro se tornam o mesmo, nos pressupostos fenomenológicos de Sartre, como o a
priori universal da correção e a intencionalidade, Hegel confundirá a questão de fato
e de direito, conferindo o papel de objeto à uma consciência. De modo a tornar as
« En fait, notre expérience ne nous présente que des individus conscients et vivants ; mais en droit, il
faut remarquer qu’autrui est objet moi parce qu’il est autrui et non parce qu’il apparaît à l’occasion d’un
corps-objet. »
8 “Apparaître comme objet pour une conscience, est-ce encore être conscience ? »
9 « [...] en posant que la conscience de soi s’exprime par le « Je suis je », c’est-à-dire en l’assimilant á la
connaissance de soi, il manquait les conséquences à tirer de ces constatations premières, puisqu’il
introduisant dans la conscience même quelque chose comme un objet en puissance, qu’autrui aura
seulement á dégager sans le modifier. »
7
308 | Hegel e a Contemporaneidade
coisas mais claras, segundo Bornheim (2011), quando Sartre afirma, conta Hegel, que
quando formulado corretamente o problema do outro, torna-se impossível uma
passagem universal, pois isso só se justifica “[...] porque se tornou impossível pensar
o para-si em função do seu fundamento; de fato, o para-si mantém-se, ôntica e
ontologicamente, separado do em-si.” (BORNHEIM, 2011, p. 161). Portanto, a fórmula
hegeliana do “Eu sou Eu”, de modo a conectar o ser e o conhecer na relação com o
Outro, haja vista que só me conheço, na medida em que me deparo com o Outro, para
Sartre, denota um otimismo que o obriga a não concordar totalmente a proposta
hegeliana ao problema do solipsismo.
Por conseguinte, o segundo, e último, aspecto da crítica de Sartre a Hegel, diz
respeito não mais a um otimismo epistemológico, mas ontológico. Esse segundo
otimismo, é mais fundamental que o segundo, pois vai direção às bases filosóficas que
fundamentam o conhecimento de si pela relação com o Outro. De acordo com Sartre,
Hegel acredita que a verdade é a verdade do Todo, de modo que o filósofo alemão “[...]
se coloca do ponto de vista da verdade, ou seja, do Todo, para encarar o problema do
outro.10” (SARTRE, 2019, p. 339). Desse modo, a perspectiva de Hegel torna-se a
perspectiva do Todo, pois é o próprio autor idealista que estabelece isso, de modo que
é de se explicar que ele, nas palavras de Sartre, resolva tão facilmente o problema das
consciências (SARTRE, 2019, p. 339). De maneira mais simples, afirma Sartre: “[p]ois
as consciências são momentos do todo, momentos que são, por eles mesmos,
‘unselbstständig’, e o todo é mediador das consciências 11.” (SARTRE, 2019, p. 339,
grifo do autor). Portanto, estabelece-se, em Hegel, de acordo com a perspectiva
sartriana, de O ser e o nada, que a pluralidade das consciências podem e devem ser
transcendidas ruma a totalidade, de modo, porém Hegel só pode afirmar essa
realidade e uma resolução ao conflito das consciências, uma vez que já estabeleceu o
rumo do movimento desde o começo (SARTRE, 2019, p. 339). Em uma só frase: não é
porque o processo de reconhecimento de si pelo Outro, de modo a se identificarem,
termina no próprio Eu, que se refuta o problema do solipsismo, esse deve garantir a
existência do Outro independente da minha consciência, sem uma resolução sintética
que iguale a relação da consciência e objeto.
[...] se place du point de vue de la vérité, c’est-à-dire du Tout, pour envisager le problème de l’autre. »
« Car les consciences sont des moments du tout, des moments qui sont, par eux-mêmes,
‘unselbstständig’, et le tout est médiateur entre les consciences. »
10 «
11
Fabrício Rodrigues Pizelli & Marcelo Marconato Magalhães | 309
2 O Hipersolipsismo de Hegel
A razão é espírito quando a certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade, e
[quando] é consciente de si mesma como de seu mundo e do mundo como de si
mesma. (...) O espírito é a vida ética de um povo, enquanto é a verdade imediata:
o indivíduo que é um mundo (HEGEL, 1807/2014, §§ 438, 441, pp. 298-300).
A proposta da presente seção é sustentar, aos moldes do que aqui temos
discutido, uma visão possível acerca da filosofia hegeliana que a caracterize, como
marca essencial do Idealismo Absoluto, como Hipersolipsismo, ou um Eu que é Nós e
um Nós que é Eu.
Sartre, em verdade, não estava tão enganado assim ao criticar a filosofia
hegeliana e indicar a impossibilidade de uma síntese última que abarcasse o em si e o
para si, ou o Eu que compreendesse tanto a si mesmo quanto ao Outro em si mesmo.
De fato, permanecer em si e aí demorar-se, com a paciência do conceito necessária, é
característica da consciência que toma para si a tarefa de conhecer a si mesma – e que
não avança rapidamente rumo ao nada, que pouco pode propor – mas reconhece que
as cisões com as quais se depara podem – e, efetivamente, o fazem – lhe dizer muito a
respeito de sua própria autoconstituição, seja esta lucidamente consciente ou não.
Nesse sentido, no entanto, é importante que se frise, Sartre não compreendeu que o
pensamento de Hegel pode, em última análise, ser compreendido como um
Hipersolipsismo, um solipsismo que propriamente contém em si toda a idealidade da
totalidade dos Eus como momentos seus12.
É importante, para tanto, preliminarmente, que relembremo-nos acerca da
estrutura do pensamento maduro de Hegel, sintetizado na Enciclopédia das Ciências
Filosóficas, e exposto, com a dilação que é necessária, ao longo das obras
A própria Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hyppolite já antecipa a possibilidade
da visão hipersolipsista, como por exemplo: “A consciência, no sentido estrito do termo, considera o
objeto um outro distinto do eu, o ser-em-si. O desenvolvimento da consciência, porém, conduz à
consciência de si, para a qual o objeto é somente o próprio eu. De início, a consciência de si é singular
sendo somente para si de modo imediato; ela exclui o objeto da consciência para poder colocar-se a si
mesma em sua independência de liberdade. A educação da consciência de si é o movimento pelo qual
ela se eleva dessa singularidade exclusiva até a universalidade. A consciência de si singular se torna
consciência de si universal. O eu desejante se torna o eu pensante. É então queo conteúdo da consciência
é tanto em si quanto para a consciência. O saber de um objeto é saber de si e o saber de si é saber do serem-si. Tal identidade do Pensamento e do Ser se chama Razão (Vernunft), é a síntese dialética da
consciência e da consciência de si; a síntese, porém, só é possível se a consciência de si tiver se tornado
verdadeiramente, em si mesma, consciência de si universal. O eu é em si mesmo universal, mas deve
passar a sê-lo para si, de modo que suas determinações se manifestem como as próprias determinações
das coisas, que seu pensamento de si mesmo seja, ao mesmo tempo, pensamento do objeto”
(HYPPOLITE, 1946/2003, p. 233).
12
310 | Hegel e a Contemporaneidade
Fenomenologia do Espírito, Ciência da Lógica, Filosofia do Direito, e nos textos
utilizados como material de aula, posteriormente compilados, enquanto Lições sobre
a Filosofia da História, Lições sobre a Filosofia da Arte, Lições sobre a Filosofia da
Religião e Lições sobre a História da Filosofia. Anteriormente à realização da
Enciclopédia, tal estrutura encontrava na Fenomenologia do Espírito a sua
introdução. Conforme Bourgeois:
A Fenomenologia do Espírito [...] representa a primeira parte do Sistema da
Ciência. A segunda parte do Sistema devia desdobrar-se no elemento do
pensamento, desembaraçado das cisões da consciência; seria o processo mesmo
do ser como saber enciclopédico. Hegel anunciava que a segunda parte se articula
em Lógica, Filosofia da Natureza, e Filosofia do Espírito (BOURGEOIS, 1995, p.
400).
Consideraremos, aqui, portanto, enquanto principal fonte para as críticas
sartrianas, a Fenomenologia do Espírito como obra central para a contraargumentação, utilizando-nos da Enciclopédia para atestar a auto exposição científica
do conceito que se segue em curso.
A Fenomenologia, assim visto, caracteriza-se como o caminho que a consciência
imediata percorre até alcançar a sua verdadeira existência como Saber Absoluto, ponto
em que está pronta para auto expor a si mesma sistematicamente todo o seu conteúdo
ao longo das obras acima elencadas. O que nos salta ao olhos ao traçarmos o percurso
fenomenológico e o compararmos à auto exposição sistemática são, como acima
mencionado, as cisões que a consciência encontra em si mesma ao longo do caminho
da Fenomenologia, cisões estas que, por razão de sua própria autoconstituição, levam
a consciência a níveis cada vez mais profundos de sua verdade.
A crítica sartriana, assim, centrada na impossibilidade do Eu, em seu
reconhecimento a partir de um Outro, atingir um nível de compreensão de si próprio
agora superior, incorre em um problema fenomenológico bem marcado no caminho
da consciência que traça seu percurso: a consciência resiste à suprassunção de sua
cisão e, ao invés de atingir o descobrir-se e reconhecer-se enquanto Espírito,
permanece na oposição não resolvida de um Eu que reconhece-se no Outro mas que
não compreende-se como momento dessa própria configuração da consciência:
subjetivamente opta-se pelo não reconhecimento.
Ora, a verdade da consciência que buscou na certeza sensível imediata o
verdadeiro é a consciência-de-si, após descobrir figuras suas mais abstratas, como a
Fabrício Rodrigues Pizelli & Marcelo Marconato Magalhães | 311
percepção e o entendimento. Ao compreender seu objeto como entendimento, a
consciência já opera neste o que ela é em si mesma, a ponto de descobrir-se como
fundamento do que imediatamente antes considerava e saber-se, assim, então,
consciência-de-si.
A consciência-de-si, portanto, é o que é por conta de sua idealidade, em que a
realidade e todos os momentos que aí se sucedem só o são por conta dessa unidade
para-si da consciência-de-si que, a princípio, reconhece-se apenas como puro desejo.
Um desejo que se quer na Vida e quer-se mais ainda, para reconhecer-se como
consciência-de-si, na relação e no reconhecimento em uma outra consciência-de-si.
No entanto, como é sabido, o reconhecimento é exercido e atingido como luta
de vida e morte, em que Vida e Liberdade surgem como essenciais uma para a outra.
A relação do Senhor e do Escravo é marcada, assim, por cisões e unilateralidades que
atestam a avaliação acima exposta de Sartre: neste ponto, a consciência-de-si
permanece em sua imediatidade e olvida-se de sua universalidade, enquanto o Senhor
realiza-se apenas e por meio do Escravo, e enquanto o Escravo, apesar de abrir
caminho para a consciência-de-si universal, ainda permanece escravo pois não se
liberta das amarras do Senhor.
Entretanto, retomando a ideia anteriormente aventada do Hipersolipsismo,
uma vez descoberta e quista a consciência-de-si, “entramos, pois, na terra pátria da
verdade” (HEGEL, 1807/2014, §167, p. 135). Ou seja, toda e qualquer cisão,
diferenciação, oposição que a consciência venha a experimentar doravante, são cisões,
diferenciações e oposições nela mesma, como marca da idealidade.
Dito de outro modo, se ainda a consciência-de-si experimenta diferenciações
internas a si mesma, tais diferenciações são, necessária e livremente, suprassumidas
na própria consciência-de-si, pois esta revelou-se como verdade da consciência que
lidava com objetos exteriores a si. A consciência-de-si descobre-se, assim, como
consciência-de-si universal.
A consciência-de-si universal é o saber afirmativo de si mesmo no outro Si: cada
um desses Si tem como livre singularidade absoluta autonomia mas devido à
negação de sua imediatez, ou o desejo, é consciência-de-si universal, e é objetivo,
e tem a universalidade real como reciprocidade de modo que se sabe reconhecido
no outro [Si] livre; e isso sabe enquanto reconhece o outro e o sabe livre. (...) O
resultado – aduzido pelo conceito do espírito – da luta pelo reconhecimento é a
consciência-de-si universal, que forma o terceiro grau nessa esfera; isto é, aquela
livre consciência-de-si para quem a outra consciência-de-si, que é para ela
objetiva, não é mais uma consciência-de-si sem liberdade – como no segundo grau
312 | Hegel e a Contemporaneidade
– mas uma consciência-de-si igualmente autônoma. Desse ponto de vista, os
sujeitos conscientes-de-si em relação recíproca elevaram-se assim, pela
suprassunção de sua singularidade particular desigual, à consciência de sua
universalidade real, de sua liberdade que compete a todos e, por isso, à intuição
de sua identidade determinada de um com o outro (HEGEL, 1830/1995, §436, pp.
206-207).
A consciência-de-si universal, assim, portanto, é unidade da consciência, que
toma seu conteúdo como um oposto, diferenciado e cindido de si mesma, objeto
apenas enquanto objeto, e da consciência-de-si, idealidade que, tomada para si,
compreende as diferenças em si mesma. Atinge-se, assim, tanto fenomenologicamente
quanto cientificamente, a Razão.
A verdade essente em si e para si, que é a razão, é a identidade simples da
subjetividade e universalidade. A universalidade da razão tem, por isso, tanto a
significação do objeto apenas dado à consciência como tal – mas agora ele mesmo
universal, penetrando e abarcando o Eu – quanto a significação do puro Eu, da
forma puta que pervade o objeto e o abarca em si mesma (HEGEL, 1830/1995,
§438, p. 209).
A Razão, portanto, é a unidade sujeito-objeto, subjetividade objetiva e
objetividade subjetiva. Seu mundo, assim, o mundo que ela mesma objetiva, é a vida
da comunidade enquanto realidade espiritual e enquanto substância ética: o famoso
delírio báquico, onde não há membro que não esteja ébrio (HEGEL, 1807/2014, §47,
p. 50). A breve tese desta seção, o Hipersolipsismo anteriormente aventado,
entendemos, assim, que se cumpre aqui enquanto Espírito, relembrando: um Eu que
é um Nós, e um Nós que é um Eu (HEGEL, 1807/2014, §177, p. 142).
Conclusão
Assim, concluímos que a crítica de Sartre conduzida contra o idealismo
hegeliano tem sua plausibilidade, porém, o fenomenólogo francês se apoia em
justificações insuficientes, pois se baseia, majoritariamente, apenas na Gênese e
estrutura da Fenomenologia do Espírito e na Fenomenologia do Espírito, de Hegel.
Desse modo, Sartre, em uma obra de extrema relevância para a totalidade de sua
filosofia, que é O Ser e o Nada, tomando Hegel como um dos principais interlocutores,
apresenta uma leitura jovem, talvez ingênua.
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As duas críticas sartrianas ao otimismo epistemológico e ontológico de Hegel,
desse modo, desconsidera a vasta contribuição da Grande e Pequena Lógica, acerca da
alteridade. Neste aspecto, buscamos apresentar uma perspectiva de certa existência de
solipsismo na filosofia de Hegel, isto é, de um hipersolipsismo, haja vista que o Nós
pode ser compreendido como vários momentos do Eu singular e vice-versa. Com
efeito, Sartre não visualizou que a consciência resiste à suprassunção de sua cisão e
que isso permanece como oposição não resolvida do Eu que se reconhece no Outro.
Como apresentamos, subjetivamente opta-se pelo não reconhecimento, o que
demonstra um não otimismo acerca da alteridade, pois considera-se as dificuldades e
processos no âmbito subjetivo ou, como ataca Sartre, no âmbito formal.
Por fim, é válido ressaltarmos na presente conclusão que Sartre, na Crítica da
razão dialética, irá apresentar uma leitura amadurecida de Hegel, mas fortemente
influenciado pelos cursos de Kojève, com os quais só teve contato após a publicação de
sua obra principal, O Ser e o Nada, em 1943. Contudo, os problemas da Crítica são
distintos de O Ser e o Nada, haja vista a forte presença do marxismo e do diálogo
profundo com a historicidade. Desse modo, supomos que uma nova possiblidade de
pensar a alteridade e o problema do solipsismo, em Sartre, está apresentada nessa obra
de velhice, que é a Crítica da Razão Dialética.
Referências
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SARTRE, J-P. La transcendance de l’Ego. Esquisse d’une description
phénoménologique [introduction, notes et appendices par Sylvie Le Bon]. Paris: Vrin,
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SARTRE, J-P. Œuvres romanesques. Paris: NRF, 1991.