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Trabalhadores, Arquivos, Memória, Verdade, Justiça e Reparação

2018, Artigo "Empresários, Estado e acidentes de trabalho dos operários da construção civil durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1988)"

É com grande satisfação que o Arquivo Nacional (AN) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT/Brasil) apresentam a coletânea Trabalhadores, arquivos, memória, verdade, justiça e reparação: reflexões do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos. Essa publicação tem origem na quarta edição desse evento, realizado entre os dias 8 e 10 de junho de 2016, na cidade de São Paulo, com o apoio da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Fundação Rosa Luxemburgo, do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (DSS/PUC-Rio), da Unisoli Turismo e do Sindicato dos Químicos de São Paulo, que também sediou o evento.

setoriais ainda estão em ativida TrAbAlhAdores, Arquivos, guimento e a intensiicação das discussões ligadas à memória, à verdade, à justiça e à reparação. MeMóriA, verdAde, JusTiçA e repArAção sários no apoio e sustentação da ditadura. Arquivos: memória, verdade, jus tiça e reparação foi um espaço ção e a preservação dos arquivos para a discussão desses grandes tina, trazendo à tona a relação en tre arquivos e direitos humanos. vos, irmando-se como espaço de informações e de incentivo à recuperação e preservação dos dores a z i n a g or arques M é s o J Antonio ampa inez st roitiño T a i n o s suas organizações. Em suas edi ções, surgiram outros temas que são sobre o direito à memória e à verdade e a questão da justiça e reparação para os crimes das históricas da região, conferindo a esses tópicos o mesmo peso por Latina. a importância de se lançar um A divulgação do relatório inal da Comissão Nacional da cratização e a sua interface com o universo dos trabalhadores. A riqueza das relexões desenvol em uma publicação, com o objeti vo de difundir essas informações, o que fazemos agora nos textos que compõem esta coletânea. signiicou um marco da luta pela recuperação da memória e da do país, condição indispensável para a plena restituição do poder político ao povo brasileiro. Mais do que isso, o relatório, em que pesem suas insuiciências e importante para se avançar na reparação dos crimes cometidos atingidos pelo regime. inal, os relatórios das diversas cados lançam questionamentos e recomendações que precisam pelo Estado e pela sociedade ci vil. Nesse contexto, e diante do O Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos surgiu com o objetivo de debater questões atinentes aos documentos mantidos nos arquivos operários, rurais, sindicais e populares, e às particularidades que envolvem o tratamento desses acervos, irmando-se como espaço privilegiado para a transferência de informações e de incentivo à recuperação e preservação dos arquivos dos trabalhadores e de suas organizações. Em suas edições, surgiram outros temas que também concernem ao mundo do trabalho e dos trabalhadores, como a necessária discussão sobre o direito à memória e à verdade e a questão da justiça e reparação para os crimes das ditaduras no Brasil e na América Latina. A divulgação do relatório inal da Comissão Nacional da Verdade, em dezembro de 2014, signiicou um marco da luta pela recuperação da memória e da verdade sobre o passado recente do país, condição indispensável para a plena restituição do poder político ao povo brasileiro. Mais do que isso, o relatório, em que pesem suas insuiciências e eventuais omissões, foi passo importante para se avançar na reparação dos crimes cometidos pela ditadura, em especial contra os trabalhadores, um dos grupos mais duramente atingidos pelo regime. pais, universitárias, regionais e setoriais ainda estão em atividade, faz-se fundamental o prosseguimento e a intensiicação das discussões ligadas à memória, à verdade, à justiça e à reparação. Ademais, é preciso discutir o papel das empresas e dos empresários no apoio e sustentação da ditadura. O 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos: memória, verdade, justiça e reparação foi um espaço voltado para debater a recuperação e a preservação dos arquivos dos trabalhadores e, também, para a discussão desses grandes temas, no Brasil e na América Latina, trazendo à tona a relação entre arquivos e direitos humanos. Reconhecendo as similaridades históricas da região, conferindo a esses tópicos o mesmo peso por todo o continente, foi destacada a importância de se lançar um olhar mais aprofundado sobre os múltiplos processos de redemocratização e a sua interface com o universo dos trabalhadores. A riqueza das relexões desenvolvidas durante o seminário evidenciou a necessidade de reuni-las em uma publicação, com o objetivo de difundir essas informações, o que fazemos agora nos textos que compõem esta coletânea. Arquivo Nacional Central Única dos Trabalhadores Longe de representar um ponto inal, os relatórios das diversas comissões da verdade já publicados lançam questionamentos e recomendações que precisam ser discutidos e encaminhados pelo Estado e pela sociedade civil. Nesse contexto, e diante do fato de que inúmeras comissões da verdade estaduais, munici•1 TrAbAlhAdores, Arquivos, MeMóriA, verdAde, JusTiçA e repArAção •1 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Presidente da República Michel Temer Ministro da Justiça e Segurança Pública Torquato Jardim ARQUIVO NACIONAL Diretora-Geral e Coordenadora do Centro de Referência Memórias Reveladas Carolina Chaves de Azevedo Assessora de Coordenação do Centro de Referência Memórias Reveladas Inez Terezinha Stampa Coordenador-Geral de Acesso e Difusão Documental Marcos André Carvalho Coordenador de Pesquisa, Educação e Difusão do Acervo Leonardo Augusto Silva Fontes 2• CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES Presidente Vagner Freitas de Moraes Secretário-Geral Sérgio Nobre Secretária-Geral Adjunta Maria Aparecida Godói de Faria Centro de Documentação e Memória Sindical Antonio José Marques (coordenador) Adalto da Silva Carvalho Aline de Campos Igor Gabriel de Sousa Galindo Ricardo Mendonça Valverde Antonio José Marques - Inez Stampa - Sonia Troitiño Organizadores TrAbAlhAdores, Arquivos, MeMóriA, verdAde, JusTiçA e repArAção REFLExõES DO 4º SEMINáRIO INTERNACIONAL O MUNDO DOS TRABALHADORES E SEUS ARQUIVOS Rio de Janeiro - São Paulo - 2018 •3 Copyright © 2018 Arquivo Nacional e Central Única dos Trabalhadores Arquivo Nacional Central Única dos Trabalhadores Coordenação de Pesquisa, Educação e Difusão do Acervo Editoração e Programação Visual Praça da República, 173, Centro Rio de Janeiro – RJ | 20211-350 [email protected] | www.an.gov.br Rua Caetano Pinto, 575 São Paulo – SP | 03041-000 [email protected] | www.cut.org.br Edição de texto e revisão José Claudio Matar Maria Cristina Martins Raquel Fabio Rosina Iannibelli de Almeida Tássia Hallais Veríssimo Tradução Cristian Marcelo Alarcon Bravo Diagramação Carlos Frederico Bitencourt Tânia Bitencourt Fotograia da capa: Cortejo do funeral de Orlando Corrêa e Sybele Aparecida Manoel. Leme, São Paulo, julho de 1986. Foto: João Bitar. Acervo: Cedoc CUT. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) T758 Trabalhadores, arquivos, memória, verdade, justiça e reparação : relexões do 4º seminário internacional o mundo dos trabalhadores e seus arquivos / organizadores Antonio José Marques, Inez Terezinha Stampa e Sonia Troitiño. – Rio de Janeiro : Arquivo Nacional ; São Paulo : Central Única dos Trabalhadores, 2018. 280 p. ; il. ISBN 978-85-60207-96-1 – ISBN 978-85-89210-64-5 1. Trabalhadores - Memória. 2. Trabalhadores - História. 3. Trabalhadores - Arquivo. 4. Documentos - Preservação. 5. Movimentos sociais. 6. Direitos Humanos. 7. Sindicalismo. I. Marques, Antonio José. II. Stampa, Inez Terezinha. III. Troitiño, Sonia. CDU 323.33.(091) CDD 331.09 (Bibliotecário responsável: Adalto da Silva Carvalho – CRB 08/9152) 4• SUMÁRIO Prólogo Trabalhadores, arquivos, memória, verdade, justiça e reparação Apresentação Arquivos e a luta por verdade, memória, justiça e reparação Antonio José Marques, Inez Stampa e Sonia Troitiño 7 11 Parte I Arquivos, justiça, reparação e direitos humanos na América Latina Arquivos, justiça, reparação e direitos humanos Ramon Alberch i Fugueras 23 Comissões da Verdade e Arquivos no Chile María Luisa Ortiz Rojas 41 Paraguai: Arquivo do Terror. Os Arquivos da polícia da ditadura Rosa M. Palau 51 Verdade, justiça, reparação, memória: o Arquivo Histórico da Polícia Nacional da Guatemala Velia Muralles 59 Memórias Reveladas e a pavimentação da trajetória democrática brasileira Vicente Rodrigues 65 Acordo de paz na Colômbia: perspectiva da Comissão da Verdade Girolamo Domenico Treccani e Edgar Castro Lasso 89 Parte II As Comissões da Verdade e os trabalhadores Comissões da Verdade em suas origens e na atualidade Rosa Maria Cardoso da Cunha 107 Repressão e resistência: o regime militar e os trabalhadores urbanos sob a luz da Comissão da Verdade de Pernambuco Rafael Leite Ferreira 119 O histórico legado da Comissão Estadual da Verdade do Paraná Teresa Urban Márcio Kieller 137 •5 Comissão Camponesa da Verdade do Pará: a violação dos direitos humanos no estado do Pará (1964-1988) Girolamo Domenico Treccani 155 Parte III A aliança empresarial-policial durante as ditaduras Arquivos, fontes e novas aproximações sobre trabalhadores, empresas e ditadura no caso argentino (1976-1983) Victoria Basualdo 177 Empresários, Estado e acidentes de trabalho dos operários da construção civil durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1988) Pedro Henrique Pedreira Campos 191 Parte IV Trabalho, gênero, raça e sociabilidade no mundo dos trabalhadores Às margens da cidade, às margens da história? Pelo direito à memória dos trabalhadores das favelas cariocas Rafael Soares Gonçalves 209 “Generiicando” o mundo do trabalho: invisibilidades, resistências e inclusão social Lidia Maria Vianna Possas 225 Sexo e raça no mercado de trabalho: algumas considerações na história do trabalho no Brasil do século xx Álvaro Pereira do Nascimento 241 Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas (UFPel): seus acervos e pesquisas relacionadas ao trabalho, gênero, raça e sociabilidade Lorena Almeida Gill 259 Programa do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos 6• 271 PRÓLOGO TRABALHADORES, ARQUIVOS, MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA E REPARAÇÃO É com grande satisfação que o Arquivo Nacional (AN) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT/Brasil) apresentam a coletânea Trabalhadores, arquivos, memória, verdade, justiça e reparação: reflexões do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos. Essa publicação tem origem na quarta edição desse evento, realizado entre os dias 8 e 10 de junho de 2016, na cidade de São Paulo, com o apoio da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Fundação Rosa Luxemburgo, do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (DSS/PUC-Rio), da Unisoli Turismo e do Sindicato dos Químicos de São Paulo, que também sediou o evento. A organização do seminário esteve a cargo do Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Amorj/UFRJ), do Centro de Documentação e Memória Sindical da Central Única dos Trabalhadores (Cedoc/CUT), do Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp), do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas do Arquivo Nacional (MR/AN), do grupo de pesquisa “Trabalho e Políticas Públicas” da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Trappus/ PUC-Rio/CNPq), do Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas (NDH/UFPel), do Núcleo de Documentação Histórica do Centro de Humanidades da Universidade Estadual da Paraíba (NDH/ UEPB-Guarabira) e do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referências sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). O seminário promoveu conferências, palestras e reflexões sobre os arquivos dos trabalhadores e dos movimentos sociais da cidade e do campo, discutindo suas ações, histórias e memórias. Essa quarta edição do evento, adotando como temas centrais memória, verdade, justiça e reparação, destacou a relação entre os arquivos e os direitos humanos, os arquivos e os documentos dos trabalhadores e a importância da recuperação, organização e divulgação dessas fontes fundamentais para o direito à verdade, à memória e à justiça, em um momento em que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tinha concluído suas atividades, com a entrega do relatório final há pouco mais de um ano. •7 O evento contou com a participação de conferencistas e especialistas de diferentes nacionalidades que debateram, a partir de múltiplas perspectivas disciplinares, questões relacionadas ao universo dos arquivos, da história e da memória dos trabalhadores da cidade e do campo. Constituiu-se, assim, em um fórum privilegiado para a troca de informações, incentivando a recuperação e a preservação dos arquivos e da memória dos trabalhadores e de suas organizações. Durante o seminário, foi realizado o ato público pelo Dia Internacional de Arquivos, data comemorativa estabelecida pelo Conselho Internacional de Arquivos, órgão da Unesco. Foram proferidas conferências e palestras ministradas por 19 convidados nacionais e internacionais e realizadas quatro sessões de comunicação oral. Nessa coletânea, dividida em quatro partes, estão reunidos os trabalhos apresentados pelos conferencistas. O Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos surgiu com o objetivo de debater sobre os documentos mantidos nos arquivos operários, rurais, sindicais e populares, e as particularidades que envolvem o tratamento desses acervos, firmando-se como espaço privilegiado para a transferência de informações e de incentivo à recuperação e preservação dos arquivos dos trabalhadores e de suas organizações. Para além desse objetivo inicial, surgiram outros temas que também concernem ao mundo do trabalho e dos trabalhadores, como a necessária discussão sobre o direito à memória e à verdade, diante da Comissão Nacional da Verdade, e a questão da justiça e reparação para os crimes das ditaduras no Brasil e nos outros países da América Latina. A divulgação do relatório final da CNV, em dezembro de 2014, foi um importante avanço no processo brasileiro de redemocratização, significando um marco da luta pela recuperação da memória e da verdade sobre o passado recente do país, condição indispensável para a plena restituição do poder político ao povo brasileiro. Mais do que isso, o documento, em que pesem suas insuficiências e eventuais omissões, foi passo importante para avançar na reparação dos crimes cometidos pela ditadura, em especial contra os trabalhadores, um dos grupos mais duramente atingidos pelo regime, como também mostraram os relatórios da Comissão Nacional da Memória, da Verdade e Justiça da CUT e o da Comissão Camponesa da Verdade, aprofundando o conhecimento sobre o funcionamento do sistema repressivo estatal e sobre suas vítimas. Contudo, longe de representar um ponto final, os documentos lançam questionamentos e recomendações que precisam ser discutidos e encaminhados pelo Estado e pela sociedade civil. Ademais, é preciso discutir o papel das empresas e dos empresários no apoio e sustentação da ditadura, situação que vem avançando principalmente na Argentina. 8• Com esse propósito, o 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos, com o tema "memória, verdade, justiça e reparação" foi um espaço voltado para debater a recuperação e a preservação dos arquivos dos trabalhadores e, também, para a discussão desses grandes temas, no Brasil e na América Latina, trazendo à tona a relação entre arquivos e direitos humanos. Reconhecendo as similaridades históricas da região, conferindo a esses tópicos o mesmo peso por todo o continente, foi destacada a importância de se lançar um olhar mais aprofundado sobre os múltiplos processos de redemocratização e a sua interface com o universo dos trabalhadores. Foram realizadas conferências, mesas redondas e sessões de comunicação, girando em torno de questões sobre arquivos e direitos humanos, pertinentes aos trabalhadores, no ambiente laboral ou cotidiano, e aos arquivos produzidos sobre eles ou pelos próprios, buscando aprimorar o entendimento sobre esse universo e recuperar temas e problemáticas, tornados invisíveis durante as ditaduras, que possam contribuir para o avanço da justiça e da recuperação da memória daquele tempo. Além disso, destacou-se a reflexão sobre a organização dos arquivos do mundo dos trabalhadores e dos arquivos relacionados aos direitos humanos produzidos e organizados na atualidade. O público interessado no mundo dos trabalhadores, seus arquivos, sua história e memória, assim como na área dos direitos humanos, justiça e reparação para as vítimas dos crimes da ditadura, era formado por sindicalistas, assessores sindicais, funcionários de arquivos e centros de documentação sindicais, servidores de arquivos públicos que mantêm sob a sua guarda acervos sobre os trabalhadores, arquivistas, historiadores e profissionais das áreas de ciências humanas. Ressalta-se a participação de estudantes e de militantes do campo dos direitos humanos. A riqueza dos trabalhos apresentados logo evidenciou a necessidade de reuni-los em uma publicação, com o objetivo de difundir essas informações e promover o tão necessário debate sobre os arquivos do mundo dos trabalhadores, arquivos e direitos humanos, memória, verdade, justiça e reparação. Nesse sentido, cabe um agradecimento a todos os autores e todas as autoras que se dispuseram a converter suas apresentações orais nos textos que ora compõem a presente coletânea. Por im, registre-se que os artigos apresentam uma pluralidade de visões, interesses e objetos de estudo, o que demonstra a riqueza das pesquisas e dos acervos do mundo dos trabalhadores ou a eles vinculados. Duas características, contudo, unem os textos e garantem coesão a esta obra. Por um lado, a temática do direito à memória, verdade, justiça e reparação e sua relação com os trabalhadores que resistiram e foram vítimas de violações •9 de direitos durante os regimes de exceção, tema ainda candente de relexões e ações mais efetivas por parte dos Estados e da sociedade brasileira e latinoamericana. Por outro lado, ressalta a compreensão de que os trabalhadores são sujeitos essenciais da história recente. E continuarão a sê-lo. Rio de Janeiro/São Paulo, fevereiro de 2018. Arquivo Nacional Central Única dos Trabalhadores 10 • APRESENTAÇÃO ARQUIVOS E A LUTA POR VERDADE, MEMÓRIA, JUSTIÇA E REPARAÇÃO Nos últimos dez anos, houve nítidos avanços no processo de recuperação, organização e disponibilização de arquivos e documentos dos movimentos sindical, social e popular. Mais do que somente tratar da documentação, os trabalhadores e as trabalhadoras querem recuperar a sua memória e construir a sua própria história a partir dos seus acervos, da sua imprensa, das suas vozes e imagens. Quando não se dedicam diretamente a isso, institucionalizando seus arquivos, criando centros de documentação ou, ainda, escrevendo suas histórias por meio de livros comemorativos, buscam parcerias com outras entidades, particularmente junto às universidades, mantenedoras de institutos/órgãos que recolhem, preservam e dão acesso a acervos produzidos nas organizações e movimentos dos trabalhadores ou em organismos que se relacionam e dialogam com aqueles. No âmbito acadêmico e no movimento sindical, têm surgido novos organismos com essas perspectivas. Ademais, arquivos e centros de documentação consolidados, com acervos dos trabalhadores e suas organizações, conseguem dar mais visibilidade para suas ações e atividades. O Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos tem contribuído para esse processo quando promove debates sobre as particularidades que envolvem o tratamento dos acervos operários, rurais, sindicais e populares com entidades que preservam documentação dos trabalhadores, se transformando em um fórum privilegiado para o incentivo à recuperação e à preservação dos arquivos dos trabalhadores e das suas organizações. Em 2008, quando aconteceu a primeira edição do evento, a intenção era conhecer preliminarmente o estado da questão, o que pode ser visto no livro que contém os artigos originários das palestras, lançado no ano seguinte. Nele foram apresentados importantes arquivos e centros de documentação do Brasil, Argentina, Peru, Espanha e Portugal.1 A realização do segundo seminário internacional, no início de 2011, foi uma demanda de pesquisadores, trabalhadores, sindicatos e da comunidade que atuava no âmbito dos arquivos e centros de documentação sindicais e dos movimentos sociais. Novas instituições integraram a comissão organizadora do evento, aumentando sua representatividade territorial e buscando maior diversidade no que diz respeito aos conjuntos documentais que preservam, como, por exemplo, abarcando as discussões sobre a 1 MARQUES, Antonio José; STAMPA, Inez Terezinha (org.). O mundo dos trabalhadores e seus arquivos. Ainda em 2009, foi publicada uma segunda edição devido à grande demanda e interesse. • 11 documentação do judiciário trabalhista. O livro, lançado no ano seguinte, mostra que se ampliava o conhecimento sobre o panorama geral do mundo dos arquivos; assim, mais acervos dos trabalhadores e suas organizações puderam ser conhecidos no Brasil e em outros países.2 Quando o segundo seminário estava sendo organizado, discutiase a questão do direito à memória e à verdade, principalmente durante a ditadura militar no Brasil. Lembramos que foi somente em 1995, com a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, depois de muita pressão de familiares e entidades de defesa dos direitos humanos, que investigações sobre a brutal repressão durante a ditadura militar e a busca pela verdade e memória histórica passaram a ser feitas pelo Estado brasileiro. Todavia foi somente durante a discussão do Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH 3), aprovado em 2009, que essa temática alcançou um nível mais avançado. Um dos seus eixos orientadores era o “direito à memória e à verdade”.3 Naquele ano, também foi criado o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, vinculado ao Arquivo Nacional, que passou a representar a instituição na organização do segundo seminário. Atenta a toda essa discussão e percebendo que poderia contribuir nesse processo a partir da perspectiva dos trabalhadores, a comissão organizadora desse segundo evento adotou “memória e resistência” como tema , considerando que a classe trabalhadora urbana e rural e os movimentos sociais foram uns dos setores mais perseguidos pela ditadura militar, por serem também uns dos mais resistentes. A decisão da comissão organizadora do segundo seminário se mostrou acertada, pois no ano de 2011 as discussões sobre a criação de uma comissão da verdade tiveram grande visibilidade na sociedade brasileira. No final daquele ano, foi sancionada a lei que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com a finalidade de investigar graves violações de direitos humanos e garantir o direito à memória e à verdade histórica. 4 Em maio de 2012, a CNV foi instalada pelo governo brasileiro com o prazo de dois anos para realizar seus trabalhos e investigações, que depois seriam prorrogados por mais seis meses. Nesse período, e também após, surgiram movimentos 2 MARQUES, Antonio José; STAMPA, Inez Terezinha (org.). Arquivos do mundo dos trabalhadores. Coletânea do 2º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos: memória e resistência. No segundo seminário, tiveram início as sessões de comunicação temática, que se repetirão nas edições seguintes. Nelas foram apresentadas mais de uma centena de estudos, pesquisas, acervos sindicais e sociais e vários outros trabalhos, que estão publicados em livros eletrônicos e seguem relacionados no inal desta apresentação. 3 Decreto federal n. 7037/2009. 4 Lei federal n. 12.528/2011. 12 • pela criação de várias comissões estaduais e municipais da verdade, assim como em universidades, entidades sindicais e setoriais. No que diz respeito ao mundo dos arquivos, foi lançada, em julho, a coletânea dos artigos da segunda edição do evento. Pouco depois, no mês de agosto, aconteceu em Recife/PE o Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos: Nordeste, organizado pelo Núcleo de Documentação sobre os Movimentos Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (Nudoc/UFPE), juntamente a outros parceiros.5 Ainda no segundo semestre daquele ano, foi formada a comissão organizadora do 3º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos, mais uma vez com novos integrantes, cujo tema central foi “o direito à memória e à verdade”. O terceiro seminário aconteceu em setembro de 2013 e destacou a importância da recuperação, organização e divulgação dos arquivos dos trabalhadores na medida em que essas fontes também eram, e continuam sendo, fundamentais para o direito à verdade, à memória e à justiça, principalmente naquele momento no qual a CNV intensificava as suas investigações. Outros assuntos abordados disseram respeito às fontes alternativas da memória e à questão digital. O evento também homenageou a Confederação Operária Brasileira (COB), primeira central sindical do país, no centenário da realização do seu segundo congresso. Como resultados, foram lançadas a coletâneas com os artigos dos palestrantes 6 e uma coleção de livros eletrônicos, com quatro volumes, onde estão os textos apresentados nas sessões de comunicação, sistematizados por integrantes da comissão organizadora.7 Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade apresentou o seu relatório final para a sociedade brasileira. A publicação analisa as origens do golpe, relaciona e discute alguns casos emblemáticos de repressão, traz nomes de centenas de pessoas envolvidas com torturas, assassinatos e desaparecimentos políticos, identifica locais de prisão, tortura e morte em vários pontos do Brasil, alguns destes clandestinos, outros em instalações militares, e reconhece a existência de 434 mortos e desaparecidos políticos. No relatório também são apresentadas as recomendações que devem ser 5 DABAT, Christine Ruino; ABREU E LIMA, Maria do Socorro de (org.). O mundo dos trabalhadores e seus arquivos: Nordeste. 6 MARQUES, Antonio José; STAMPA, Inez Terezinha (org.). Arquivos e o direito à memória e à verdade no mundo dos trabalhadores. Coletânea do 3º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos. 7 A relação dos livros eletrônicos está no inal desta apresentação. Eles estão disponíveis nos sites da CUT (<htp:https://cedoc.cut.org.br>) e do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas (<htp:https://www.memoriasreveladas.gov.br>). • 13 seguidas pelo Estado brasileiro para que se acabe com a herança deixada pela ditadura e para a garantia da não repetição. A divulgação desse relatório final foi um importante avanço no processo brasileiro de redemocratização, significando um marco da luta pela recuperação da memória e da verdade sobre o passado recente do país, condição indispensável para a plena restituição do poder político ao povo brasileiro, que ainda se acha tão ameaçado. Mais do que isso, o documento foi passo importante para se avançar na reparação dos crimes cometidos pela ditadura, em especial contra os trabalhadores, um dos grupos mais duramente atingidos pelo regime, como também mostraram os relatórios da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT e da Comissão Camponesa da Verdade, aprofundando o conhecimento sobre o funcionamento do sistema repressivo estatal e sobre suas vítimas. Contudo, longe de representar um ponto final, os relatórios lançaram questionamentos e recomendações que precisavam ser discutidos e encaminhados pelo Estado e pela sociedade civil. Nesse contexto, e considerando que inúmeras comissões da verdade estaduais, municipais, universitárias, regionais e setoriais ainda estavam em atividade e que se fazia fundamental o prosseguimento e a intensificação das discussões ligadas à memória, à verdade, à justiça e à reparação, a comissão organizadora do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos adotou como tema central “memória, verdade, justiça e reparação”. Considerou-se que deveriam ser discutidos esses grandes temas no Brasil e na América Latina, trazendo à tona a relação entre arquivos e direitos humanos. Reconhecendo as similaridades históricas da região, onde a maioria dos países viveu períodos de ditadura, deveria se destacar a importância de lançar um olhar mais aprofundado sobre os múltiplos processos de redemocratização, a sua interface com o universo dos trabalhadores e os arquivos que servem à justiça e à reparação. Ademais, era preciso iniciar a discussão sobre o papel das empresas e dos empresários no apoio e sustentação das ditaduras. Com essa expectativa, e ainda trazendo as questões de trabalho, gênero, raça e sociabilidade, é que o quarto seminário foi realizado em junho de 2016. Os artigos apresentados nesta coletânea seguem o formato definido para o evento. A qualidade dos palestrantes e dos textos nos faz avançar muito nas reflexões sobre a temática em questão, principalmente no que diz respeito às similaridades entre países que viveram regimes repressivos. O livro está estruturado em quatro partes, em um total de 16 capítulos. A primeira parte, “Arquivos, justiça, reparação e direitos humanos na América Latina”, é constituída de seis artigos, sendo que o primeiro deles, 14 • de Ramon Alberch i Fugueras, tem origem na conferência de abertura do seminário e, por isso, nos dá uma visão bastante ampla sobre o tema. Fugueras, renomado arquivista espanhol, reconhecido internacionalmente, contribui, no artigo “Arquivos, justiça, reparação e direitos humanos”, com um conjunto de relexões e informações referente a uma esfera que considera tão diversiicada, como é a vinculação dos arquivos com os direitos humanos. O texto é estruturado a partir de três pontos de discussão centrais, sendo o primeiro dedicado a debater os elementos que devem ser tomados em conta ao se formular políticas arquivísticas para a preservação de conjunto de documentos reveladores de graves violações de direitos humanos; o segundo, a referendar os princípios emanados das Nações Unidas sobre a temática; e o terceiro, a fazer uma aproximação inicial sobre os diversos tipos de arquivos dedicados ao recolhimento, organização, acesso e proteção de conjuntos documentais sobre direitos humanos, além de trazer apontamentos com relação ao tratamento desses acervos. A bibliotecária, documentalista e pesquisadora em direitos humanos Maria Luisa Ortiz Rojas, do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, instituição chilena, no artigo “Comissões da verdade e arquivos no Chile”, faz uma apresentação das comissões criadas em seu país, tratando também da guarda, preservação, acesso e uso dos seus arquivos. Mostra-nos que os arquivos gerados pelas organizações de direitos humanos no Chile tiveram papel relevante nos processos de justiça e reparação impulsionados ao fim da ditadura. Apresenta-nos ainda o museu em que atua, a mais importante ação política do país com relação à memória e aos acervos, concluindo que os tempos atuais são tempos de arquivos. O artigo de Rosa M. Palau, coordenadora do Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos, “Paraguai: Arquivo do Terror. Os Arquivos da polícia da ditadura”, traz um relato sobre o achado desse arquivo policial, em 1992, depois de quase três anos do fim da ditadura de Alfredo Stroessner. Também faz um breve histórico do país, indicando como a documentação foi formada, os tipos documentais produzidos, a importância e os valores dos documentos, principalmente quanto ao valor de prova. O revelar dessa documentação foi fundamental para os trabalhos da Comisión de la Verdad y Justicia do Paraguai e para comprovar a existência da Operação Condor. A arquivista guatemalteca Velia Muralles colabora com o artigo “O arquivo histórico da Polícia Nacional da Guatemala”. Realiza uma interessante reflexão sobre a relação entre situações vividas em momentos passados e no atual, quando os trabalhadores têm seus direitos ameaçados. Em seguida trata da comissão da verdade da Guatemala, trazendo números sobre a repressão à qual a população daquele país foi submetida e sobre • 15 como se deu o achado do arquivo policial, refletindo acerca da contribuição dessa descoberta para a aplicação da justiça e a luta contra a impunidade. Vicente Rodrigues, pesquisador do Arquivo Nacional/Memórias Reveladas, no artigo “Memórias Reveladas e a pavimentação da trajetória democrática brasileira”, discute a experiência do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, iniciativa criada pelo governo federal, em 2009, com o objetivo de promover a difusão de informações contidas em conjuntos documentais do período da ditadura no Brasil. Para isso, caracteriza esse que era inicialmente um projeto e se tornou um centro de referência, analisando criticamente seus desafios e situando-o como parte de um quadro mais amplo de iniciativas recentes da justiça de transição no Brasil e na América do Sul. A primeira parte deste livro é concluída com o artigo de Girolamo Domenico Treccani e Edgar Castro Lasso, do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), “Acordo de paz na Colômbia: perspectiva da Comissão da Verdade”, no qual os autores realizam uma análise sobre o longo conflito armado interno naquele país e as discussões sobre um acordo de paz, que inclui a questão da memória histórica. Também discutem a agenda da verdade, memória, justiça, reparação, não repetição de um passado traumático e mudanças institucionais à luz da justiça de transição. A segunda parte, intitulada “As comissões da verdade e os trabalhadores”, contém quatro artigos. A advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha, que integrou a CNV, criada pelo governo brasileiro, e coordenou o grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical, no seu artigo “Comissões da verdade em suas origens e na atualidade”, faz uma breve introdução sobre o tema para apresentar a CNV e suas principais conclusões. Destaca o Grupo de Trabalho dos Trabalhadores da CNV, mostrando que os trabalhadores brasileiros foram as principais vítimas da ditadura no Brasil. O historiador Rafael Leite Ferreira, assessor da Comissão da Verdade de Pernambuco, em “Repressão e resistência: o regime militar e os trabalhadores urbanos sob a luz da Comissão da Verdade de Pernambuco”, conta como se deu a criação da comissão naquele estado, seus objetivos e suas pesquisas. Dá ênfase à relatoria temática responsável pelos trabalhadores e pelo meio sindical, que investigou as graves violações de direitos humanos impostas à classe trabalhadora pernambucana. Marcio Kieller, sindicalista da CUT e sociólogo que integrou a Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban, faz um relato sobre a criação dessa comissão e o papel desempenhado pelo Fórum Paranaense de Resgate da Memória, Verdade e Justiça. No artigo “O histórico legado da 16 • Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban”, o autor discorre sobre a composição da comissão, seus grupos de trabalho, as atividades desenvolvidas em todo o estado do Paraná, com ênfase nas audiências públicas com os trabalhadores. Conclui que toda a tarefa, registrada no relatório final, também deixará um importantíssimo legado para a história política paranaense, representado principalmente pelo acervo constituído durante aquele processo. O artigo do professor Girolamo Domenico Treccani, “Comissão Camponesa da Verdade do Pará: a violação dos direitos humanos no estado do Pará (1964-1988)”, nos conta sobre o nascimento nacional da Comissão Camponesa da Verdade e o seu desdobramento nesse estado. Nele mostra os trabalhos desenvolvidos pela comissão, discute a questão fundiária, os conflitos pelas terras, a violência contra os camponeses, que levaram a centenas de assassinatos, e o papel do Estado em suas várias esferas. Conclui relatando a dificuldade dos trabalhadores em preservar seus registros e cita o rico acervo constituído pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e mantido no Centro de Documentação Dom Tomás Balduino. A terceira parte, “A aliança empresarial-policial durante as ditaduras”, é formada por somente dois artigos, o que é sintomático, pois sabidamente essa é uma discussão ainda incipiente, sobre a qual pesquisas precisam ser incentivadas e aprofundadas. A pesquisadora e historiadora argentina Victoria Basualdo contribui com o artigo “Arquivos, fontes e novas aproximações sobre trabalhadores, empresas e ditadura no caso argentino (1976-1983)”. Primeiramente, sintetiza informações sobre arquivos consultados em uma pesquisa cujo objetivo foi analisar as transformações das formas de organização e militância da classe trabalhadora industrial em seus lugares de trabalho, entre os anos de 1950 e 1980. Em segundo lugar, faz referências a arquivos e fontes consultados para a realização de pesquisas sobre as diversas formas de responsabilidade empresarial na repressão aos trabalhadores durante a ditadura argentina. A partir dessas pesquisas, busca contribuir para a reflexão e ampliação do trabalho com arquivos e mais investigações sobre esses temas na Argentina e na América Latina. Pedro Henrique Pedreira Campos, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), no artigo “Empresários, Estado e acidentes de trabalho dos operários da construção civil durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1988)”, analisa o crescimento do setor de obras públicas e empreendimentos na construção civil, o papel do Estado brasileiro, principalmente quanto à falta de fiscalização e a imposição de normas e aparatos de segurança no trabalho, e a pouca atenção que as empresas deram às condições de trabalho nos canteiros de obras, bem como à vida • 17 dos seus funcionários. Com isso, o Brasil se tornou campeão mundial em acidentes e mortes no trabalho ao longo da ditadura, com a culpabilização recaindo sobre os trabalhadores. O autor mostra que os acidentes continuam ocorrendo no Brasil devido a reminiscências da ditadura e que essa situação só pode ser quebrada com a organização e ação coletiva dos trabalhadores. A quarta e última parte do livro, “Trabalho, gênero, raça e sociabilidade no mundo dos trabalhadores”, é constituída por quatro artigos. A contribuição de Rafael Soares Gonçalves, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), “Às margens da cidade, às margens da história? Pelo direito à memória dos trabalhadores das favelas cariocas”, constata que é extremamente precária a sobrevivência de fundos de arquivo sobre as lutas e o cotidiano dos moradores dos bairros informais e periféricos do Rio de Janeiro. Também há muita dificuldade em encontrar fontes administrativas sobre essas áreas, mas, por outro lado, os seus moradores possuem a prática da guarda de documentos, principalmente como ato político. No artigo, ele questiona as representações negativas associadas às favelas e suas repercussões sobre a formação e consolidação desses espaços. Também busca compreender como a informalidade nas cidades se tornou uma forma de planificação urbana e como, ainda no presente, as favelas cariocas são consideradas o principal problema do Rio de Janeiro. A professora Lidia Maria Vianna Possas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Marília, no seu artigo “‘Generificando’ o mundo do trabalho: invisibilidade, resistências e inclusão social”, discute a questão de gênero a partir da sua pesquisa de doutorado sobre a mulher no espaço ferroviário. Tendo como fontes os arquivos remanescentes da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) e entrevistas, ela discorre sobre a atuação das mulheres para deixar o espaço doméstico e ocupar funções no espaço público e no mercado de trabalho ferroviário. Álvaro Pereira do Nascimento, professor na UFRRJ, no artigo “Sexo e raça no mercado de trabalho: considerações na história do trabalho no Brasil do século XX”, analisa, à luz de pesquisas historiográficas, as desigualdades no mercado de trabalho provocadas por formas de discriminação de raça e gênero vigentes na sociedade brasileira do século xx. O autor apresenta um conjunto sumário da trajetória dessas discriminações a fim de compreender o longo processo histórico de construção dos direitos de cidadania para trabalhadores e trabalhadoras no país. O artigo de Lorena Almeida Gill, professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), apresenta o Núcleo de Documentação Histórica daquela instituição, seus conjuntos e séries de documentos, relacionandoos a pesquisas atuais que têm como temáticas questões de gênero, raça 18 • e sociabilidade. Primeiramente faz análise de um processo da Justiça do Trabalho relacionado a discussões de gênero, etnia e saúde. Em seguida, discute a população negra em Pelotas e algumas de suas sociedades recreativas. Por fim, discorre sobre a Fábrica Laneira, daquela localidade, e seus espaços de sociabilidade. As contribuições, para este livro, dos artigos escritos por pesquisadores e pesquisadoras, trabalhadores e trabalhadoras de arquivos, centros de documentação e museus, ampliam o conhecimento sobre a temática e mostram como é relevante e necessária, cada vez mais, a realização de pesquisas, trabalhos e ações que possibilitem avançar na luta pela verdade, memória, justiça e reparação, em prol da história e da cidadania, mas, principalmente, em uma perspectiva maior, em prol da sociedade. A todos e todas, o nosso muito obrigado! Antonio José Marques Inez Stampa Sonia Troitiño Livros eletrônicos com artigos apresentados nas sessões de comunicação nas edições do Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos, todos disponíveis nos sites da CUT (<https://cedoc.cut.org.br>) e do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas (<https://www.memoriasreveladas.gov.br>): MARQUES, Antonio José; STAMPA, Inez Terezinha (org.). Arquivo, memória e resistência dos trabalhadores no campo e na cidade. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, 2012. (Comunicações do 2º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). GARCIA, Dayane; PEREIRA, Rita De Cássia Mendes (org.). Arquivo e memória dos trabalhadores da cidade e do campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 1, 2014. (Coleção Arquivos e o direito à memória e à verdade. Comunicações do 3º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). LOPES, Carla Machado; REGOS, Tatiani Carmona (org.). Arquivo e memória dos trabalhadores da cidade e do campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 2, 2015. (Coleção Arquivos e o direito à • 19 memória e à verdade. Comunicações do 3º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). PESSANHA, Elina; MEDEIROS, Leonilde Servolo de (org.). Resistência dos trabalhadores na cidade e no campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 3, 2015. (Coleção Arquivos e o direito à memória e à verdade. Comunicações do 3º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). SANTANA, Marco Aurélio; RODRIGUES, Vicente Arruda Câmara (org.). Direito à memória e à verdade. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 4, 2015. (Coleção Arquivos e o direito à memória e à verdade. Comunicações do 3º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). MARQUES, Antonio José; TROITIÑO, Sonia (org.). Arquivos do mundo dos trabalhadores da cidade e do campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 1, 2016. (Coleção Arquivos, memória, verdade, justiça e reparação. Comunicações do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). GILL, Lorena Almeida; SANTOS NETO, Martinho Guedes dos (org.). Trabalho, gênero, raça e sociabilidade no mundo dos trabalhadores da cidade e do campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 2, 2016. (Coleção Arquivos, memória, verdade, justiça e reparação. Comunicações do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). MEDEIROS, Leonilde Servolo de; TEIxEIRA, Marco Antonio dos Santos (org.). Repressão, resistência e memória dos trabalhadores da cidade e do campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Arquivo Nacional; Central Única dos Trabalhadores, v. 3, 2016. (Coleção Arquivos, memória, verdade, justiça e reparação. Comunicações do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos). 20 • PARTE I ARQUIVOS, JUSTIÇA, REPARAÇÃO E DIREITOS HUMANOS NA AMÉRICA LATINA • 21 22 • ARQUIVOS, JUSTIÇA, REPARAÇÃO E DIREITOS HUMANOS Ramon Alberch i Fugueras* Este texto pretende contribuir com um conjunto de reflexões e informações referentes a uma esfera tão diversificada como é a vinculação dos arquivos com os direitos humanos. Longe de apresentar uma visão compiladora e eminentemente descritiva, optamos por analisar uma série de aspectos que entendemos muito relevantes; em primeiro lugar apresentar uma consideração sobre os elementos que devem ser tomados em conta ao formular as políticas arquivísticas referentes aos documentos, fundos e arquivos relacionados com as graves violações dos direitos humanos; em segundo lugar fazemos referência, como informação de contexto, ao conjunto de princípios emanados das Nações Unidas; em terceiro lugar apresentar uma primeira aproximação sobre os diversos tipos de arquivos dedicados ao recolhimento, organização, acesso e proteção de documentos e fundos sobre direitos humanos e, finalmente, uns breves apontamentos com relação ao tratamento dos arquivos que contêm informações sobre direitos humanos. 1 - Os arquivos em direitos humanos 1.1 - As políticas arquivísticas e a formação de arquivos relacionados a graves violações dos direitos humanos em períodos de ditaduras No marco das políticas públicas, é necessário considerar dois níveis de políticas que se relacionam: sequencialidade e complementaridade. Em um primeiro nível, encontramos aqueles elementos de “contexto” político, social e cultural geral em que devem incorporar-se as ações que se realizem no âmbito que ocupa nossa atenção. As ações que se empreendem devem ter como referência geral os movimentos de caráter estrutural, as políticas governamentais e as reivindicações da sociedade civil para que sua ação seja socialmente útil e plenamente democrática. Por sua vez, existe um segundo nível de políticas que se relaciona às condições requeridas para o recolhimento, organização, tratamento, proteção, difusão e acesso aos arquivos dos direitos humanos e à memória histórica e que se assentam no fato de assumir os postulados publicizados por especialistas como Antonio * Presidente do Archiveros sin Fronteras Internacional. Consultor e docente internacional em gestão de documentos e arquivos. • 23 González Quintana, Louis Joinet e Diane Orentlicher, fundamentalmente.1 Este compêndio – que se converteu em uma referência internacional na matéria – permite “pousar” as políticas e convertê-las em ações e planos de trabalho plenamente consolidados e de notória utilidade para a cidadania à qual diz respeito. O contexto político, social e cultural influencia decisivamente a conformação dessas políticas que devem ser consideradas e que denominamos de primeiro nível e se concretizam nas seguintes considerações e princípios em forma de decálogo: • O inequívoco equilíbrio entre transparência e proteção de dados pessoais A informação presente nos documentos contem dados de interesse público, mas também dizem respeito à vida privada, de maneira que as políticas deverão manter um compromisso público de caráter ético no bom uso dos documentos preservados. • A memória como instrumento pedagógico A conformação da memória pública deve ter como objetivo prioritário conscientizar os cidadãos, e muito especialmente os jovens, da importância de aprender as lições do passado, como um instrumento carregado de futuro para que tenhamos uma convivência em paz. • A identidade das nações e dos povos que as conformam Em sintonia com as legislações nacionais nessa matéria, as políticas públicas supõem um reforço da identidade nacional sem menosprezo de respeito e aceitação da diferença étnica e cultural dos povos que as integram. • O patrimônio como legado aos cidadãos A consolidação de documentos, fundos e arquivos configuram um extraordinário legado cultural que deve ser protegido e preservado para o futuro como parte da história comum do país. • A participação de organismos e entidades privadas As políticas públicas devem facilitar a participação de entidades públicas e privadas, cujas formulações venham de encontro com a finalidade de gerar políticas integradas e de amplo consenso. 1 24 • Especialmente o trabalho de GONZáLEZ QUINTANA, Antonio. Políticas archivísticas para la defensa de los derechos humanos, e os relatórios elaborados por estes dois reconhecidos juristas no marco da atuação da Organização das Nações Unidas. • O acesso à informação, um direito universal O direito dos cidadãos de acesso aos documentos públicos é um requisito que deve ser cumprido obrigatoriamente, na medida em que incide diretamente na viabilidade das políticas de memória e reparação. • A prestação de contas, uma exigência democrática A ação do Estado nas políticas públicas está submetida à deliberação dos cidadãos e à obrigação de prestar conta de maneira periódica e exaustiva. • As alianças interdisciplinares, uma estratégia chave As políticas públicas proporcionarão a geração de alianças transversais com setores do âmbito da história, do direito, dos arquivos, da antropologia, do jornalismo, dos direitos humanos e das tecnologias, entre outros, com a finalidade de facilitar a coordenação e o enriquecimento mútuo. • A luta contra a corrupção, a impunidade e o esquecimento As políticas devem ter em conta a gestão dos documentos e arquivos como espaços privilegiados de tratamento de documentos autênticos, íntegros e confiáveis para garantir um compromisso público contra as práticas que favoreçam a impunidade e a falta de memória. • Pela verdade e a justiça De qualquer maneira, o objetivo mais relevante das políticas públicas deve tender a uma utilização neutra e apartidária das informações para colaborar na consecução dos princípios da verdade e justiça. 2 - O conjunto de princípios emanados da Organização das Nações Unidas: Louis Joinet e Diane Orentlicher A leitura integrada dos preceitos emanados de ambos os juristas consolida uma doutrina internacional que constitui uma obrigação e um chamado à responsabilidade dos estados. • O direito de saber: direito individual das vítimas e da sociedade de conhecer a verdade do acontecido e de entender as circunstâncias sociais, políticas, culturais e econômicas que facilitaram as graves violações dos direitos humanos. Papel fundamental dos arquivos, dos testemunhos e das comissões da verdade e especial ênfase no dever de “memória” dos estados. • O direito à justiça: implica a obrigação do Estado de investigar, julgar e punir os autores e perpetradores em um julgamento justo • 25 e imparcial. Nos processos de transição para a paz se podem criar mecanismos jurídicos transitórios de caráter excepcional às normas vigentes na justiça ordinária. • O direito à reparação: envolve todas as políticas, os programas e os projetos orientados a reparar o dano às vítimas e facilitar a recuperação da sua dignidade no aspecto individual por meio de medidas de restituição, indenização e reabilitação. Na atualização da denominada doutrina Joinet, a especialista Diane Orentlicher reforça o vínculo existente entre os documentos de arquivo e os direitos das vítimas. Enfatiza a necessidade da preservação e acesso aos arquivos, impedindo sua subtração, destruição ou falsificação, assim como de entender os arquivos como instrumentos de luta contra a impunidade dos que cometeram violações dos direitos humanos (DH) e do direito internacional humanitário (DIH). Estes mesmos arquivos devem ser valorizados como fornecedores de informação íntegra e fidedigna para enfrentar o revisionismo e a negação. 3 - Modelos de instituições dedicadas aos direitos humanos Normalmente, quando se procede a analisar os “modelos” de instituições dedicadas ao recolhimento, organização, preservação, difusão e acesso aos documentos e arquivos relacionados com os direitos humanos e a memória histórica se resolve a questão apelando a duas únicas possibilidades: a criação de instituições específicas para a organização, preservação e acesso a esses fundos documentais ou a integração destes fundos nas instituições de arquivos próprias do Estado (Arquivo Nacional ou Arquivo Geral da Nação).2 A partir destas duas opções, que simplificam excessivamente uma realidade que é muito mais complexa, se pode construir um quadro de vantagens e desvantagens. Assim, a opção de situar os arquivos dos direitos humanos (DH) e memória histórica (MH) em instituições arquivísticas do Estado, apresenta as seguintes vantagens e inconvenientes: 2 26 • • Integra-se com normalidade no patrimônio documental e no sistema de arquivos do Estado, sem superposições, ocultamentos ou casos de bicefalia com os órgãos dirigentes da política de arquivos; • Garante-se um tratamento de arquivo adequado com profissionais preparados (identificação dos fundos, organização e descrição, preservação e integridade); ALBERCH I FUGUERAS, Ramon. Archivos y derechos humanos, p. 51-52. • Ao contar com instalações específicas (segurança, climatização) de modo geral se pode garantir uma preservação e proteção mais adequada; • Inquestionável necessidade de formar especialistas no tratamento deste tipo de acervos; • Possibilidade de que o governo do Estado interfira na imprescindível transparência e acesso a estes documentos e arquivos. Por outra parte, a integração dos arquivos de DH e MH em organismos especializados criados como novas instituições, resulta também em vantagens e desvantagens: • Gera uma enorme visibilidade da problemática dos direitos humanos e da memória histórica; • É possível conseguir com certa rapidez os recursos humanos e financeiros adequados; • Maior eficácia temporal em atender os afetados ao ter muito claramente focalizado seu objetivo prioritário; • Possibilidade de instalar esses arquivos em edifícios emblemáticos da época da ditadura ou do conflito; • Frequentemente se percebe como um tema essencialmente de defesa dos direitos humanos e de difusão da história recente, de maneira que se prescinde de uma visão arquivística do tema e se recorre escassamente aos profissionais da área específica de arquivos; • Tendência a misturar de maneira indiscriminada os conceitos de arquivo e centro de documentação, assim como as tipologias documentais e os materiais informativos de apoio, os dossiês e as coleções. Se bem é certo que os dois modelos apresentados de maneira sucinta se percebem, com certa nitidez na maioria dos casos, objeto de estudo, da nossa parte propomos uma análise que não só leve em conta a vinculação orgânica e o tipo de institucionalidade, mas também avalie sua implicação com a sociedade civil, seu “discurso” político e seus objetivos fundacionais, de maneira que nos permita formular até cinco modelos diferentes: 3.1 - O Arquivo Nacional/Geral da Nação assume as competências em arquivos de direitos humanos e memória histórica O fato de assumir os fundos documentais relacionados com as violações dos direitos humanos e a recuperação da memória histórica, por parte dos Arquivos Nacionais ou Gerais da Nação, é uma prática normal quando se apresentam duas condições não necessariamente excludentes: em primeiro • 27 lugar que uma parte substancial dos fundos tivesse sido transferida para esta instituição com normalidade, inclusive durante o período repressivo, e em segundo lugar o fato de que o volume documental resultante da ação repressiva do Estado fosse tão pouco relevante que não seria necessária, à luz dos governos, a criação de uma instituição específica para garantir sua organização, proteção e uso. Este seria o caso do Archivo General de la Nación de la República Dominicana e do Archivo Nacional de Chile,3 para relatar os casos de dois países que viveram sob a pressão de execráveis ditaduras. No primeiro caso, os fundos documentais do regime de Leónidas Trujillo se encontram perfeitamente organizados e acessíveis no Archivo General de la Nación com a aplicação de uma política de transparência certamente modelo. O usuário interessado pode consultar o fundo relacionado à presidência de Leónidas Trujillo (1935-1961) e ao Partido Dominicano (1935-1960). No Chile, pelo contrário, a existência de fundos no Archivo Nacional da ditadura de Pinochet é muito limitada, pelo terrível efeito das destruições acontecidas no período de “transição” democrática. Para pesquisar os crimes da ditadura e o drama dos desaparecidos, deve-se recorrer obrigatoriamente à compilação de documentos e testemunhos feitas por parte da Comisión Nacional de Verdade y Reconciliación (1990-1991), conhecida também como Comissão Rettig, posteriormente pela Comisión Nacional sobre la Prisión Política y la Tortura (Comissão Valech, 2004), aos fundos recolhidos pelo Museo de la Memoria e, muito especialmente, ao notável fundo reunido pela Fundación de Documentación y Archivo de la Vicaría de la Solidaridad (1973-1992). Com relação a Portugal e Brasil, países que participam de maneira ativa neste processo de recuperação da memória, vemos o seguinte. No caso português, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo adquire um papel protagonista e preserva os documentos da ditadura (19241974) e da Polícia Internacional e de Defesa do Estado, convertida mais tarde na Direção Geral de Segurança (1914-1974). Com referência ao Brasil, a recuperação nos arquivos estaduais da documentação do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) tem sido desigual e produto da atuação dos seus responsáveis, mais que da existência de uma legislação que a impulsionasse, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Ceará, Paraná, Maranhão e Rio Grande do Sul. Neste contexto, o Arquivo Nacional impulsionou o projeto Memórias Reveladas com base 3 28 • KORNBLUH, Peter. Pinochet: los archivos secretos. Por sua vez, o Archivo General de la Nación de la República Dominicana conta com um plano de publicações sobre a história do país, de grande interesse, com especial ênfase na época da ditadura trujillista. numa notável digitalização de acervos privados. Também a organização não governamental Arquivistas sem Fronteiras do Brasil tem promovido um conjunto de estudos muito relevantes sobre as ditaduras do Cone Sul.4 3.2 - A criação de um organismo como nova instituição, com ou sem data de validade O objetivo de empreender a revisão do passado, sobretudo quando este tem, sem dúvida, uma forte carga simbólica, mediante a criação de um organismo com grandes recursos e uma potente visibilidade pública requer uma clara vontade política e, especialmente, a conformação de um serviço com suas funções perfeitamente definidas. Neste sentido, parece fora de dúvida que o caso mais emblemático e prestigioso deste modelo é o Comissionado Federal para os Arquivos da Stasi, na Alemanha. A necessidade desta nova organização surgiu no outono de 1989, quando o antigo regime comunista dava seus últimos suspiros e a pressão cidadã na Alemanha do Leste se torna quase insustentável. No marco de uma acentuada paralisia do governo comunista que se debatia entre uma política de tímidas reformas e a opção da simples repressão, grupos de cidadãos começam a ocupar os escritórios locais da Stasi – até aquele momento a onipresente polícia política – e coniscam os arquivos. Este movimento se inicia na cidade de Erfurt e em poucos dias os diversos escritórios locais caem como pedras de dominó. Este processo culmina no dia 15 de janeiro de 1990 com a ocupação pacíica do Ministério para a Segurança do Estado, em Berlim. Como indica Günter Bormann, chefe do Departamento Jurídico do Comissionado Federal para os Arquivos da Stasi,5 um dos aspectos que mais surpreendem na revolução alemã do outono de 1989 é que não se tomaram nem aeroportos, nem emissoras de rádio, nem estações ferroviárias, senão unicamente as dependências do Serviço de Segurança do Estado, que foram literalmente assaltadas pelos civis para coniscar e se apropriar dos arquivos. Os arquivos foram percebidos como o instrumento probatório das reiteradas violações aos direitos humanos. Em um breve espaço de tempo, o governo da Alemanha reunificada encontrou 180 quilômetros de documentos que haviam sido gerados por 91 mil funcionários da polícia 4 SERRA PADRÓS, Enrique; ENRÍQUEZ VIVAR, Jorge Eduardo. Memórias da resistência e da solidaridade: o movimento de justiça e direitos humanos contra as ditaduras do Cone Sul e sua conexão repressiva. 5 BORMANN, Günter. El acceso y la desclasiicación de documentos: los archivos de la Stasi, p. 81-113. In: ARCAS, M. Asumpció Colomer. El acceso y la desclasiicación de documentos: actas del Congreso Internacional de Archivos y Derechos Humanos. • 29 política e 173 mil colaboradores no espectro de uma população de 16 milhões de habitantes. Esta onipresença da polícia política fica mais evidente se colocamos o número de empregados per capita no ano 1989 em alguns dos países da denominada "cortina de ferro": • A Securitate romena contava com um espião por 1.553 habitantes. • A KGB russa com um espião por 595 habitantes. • A Stasi alemã com um espião por 180 habitantes.6 A razão deste elevado índice reside na percepção dos mandatários da Alemanha do Leste que se sentiam em situação de grande perigo ao se localizar geograficamente na primeira linha do conflito Leste-Oeste. E daí este grande volume de documentos produzidos e perfeitamente preservados. Para dar resposta à organização e acesso a este fenomenal volume de documentos, o novo governo quis formalizar a criação de uma autoridade arquivística de elevado status e com plena capacidade operativa. Assim se instituiu o Comissionado Federal, que deveria ser eleito pelo Bundestag (Parlamento alemão) com mais da metade dos votos dos seus membros, conferindo-lhe assim uma autoridade plenamente democrática. Seu primeiro comissário foi o pastor protestante Joaquim Gauck, que, depois de deixar o cargo, ocupa atualmente (2017) o posto de presidente do Parlamento alemão. Desde a criação dos arquivos do Ministério para a Segurança do Estado, em Berlim, surgiu, a partir do ano 1990, uma sede central, catorze filiais e mais de dois mil funcionários com o objetivo prioritário de organizar os fundos documentais, preserválos e, sobretudo, propiciar seu acesso. Cabe considerar que o conjunto do arquivo contém fundamentalmente expedientes pessoais relacionados a mais de quatro milhões de cidadãos da Alemanha do Leste e de dois milhões de pessoas da vizinha, naquela época, República Federal da Alemanha. Com grande celeridade, se procedeu a dotar este novo organismo de uma forte solidez legal, de maneira que no mês de setembro de 1991 se formulou a “Lei sobre os documentos do Serviço de Segurança do Estado na antiga República Democrática Alemã”, que institui uma estrutura formada pelo Comissionado Federal, o Comissionado Regional, com os conselhos consultivos e de assessoria científica regulando o uso e acesso aos documentos. Dado que uma parte essencial dos documentos são expedientes pessoais, se planejou um processo de tratamento que consiste em sua indexação, a elaboração de minuciosas normas de acesso aos 6 30 • GONZáLEZ QUINTANA, Antonio. Les archives des services de sécurité des anciens régimes répressifs, p. 13-31. fichários por parte dos interessados, das autoridades estatais, jornalistas e pesquisadores. Existem normas de verificação dos expedientes para a geração de materiais para a educação e a pesquisa. Em todo caso, é importante assinalar que a opção do Comissionado alemão decorre de uma relação inevitável no âmbito das políticas de direitos humanos e memória histórica, mas também é fundamental salientar que se trata de um modelo complexo e para seu bom funcionamento requer uma série de elementos difícil de contornar e que não são todos os países que estão em condições de cumprir: • Uma forte vontade política de empreender a revisão do passado; • O investimento contínuo de importantes recursos econômicos; • A contratação de um contingente importante de profissionais de arquivo, história, antropologia, informática, direitos humanos e psicologia; • A aprovação de uma legislação específica que possa ser submetida a frequentes mudanças e emendas (Na Alemanha, ocorreram sete emendas entre 1991 e 2006); • A formação de uma nova instituição – no caso da Alemanha o Comissionado Federal – com absoluta independência dos poderes políticos e com o amparo do Parlamento alemão. 3.3 - A criação de um organismo como nova instituição, com recursos reduzidos e forte concorrência com organizações especializadas da sociedade civil Neste quadro de análise dos possíveis modelos que os Estados têm adotado para dar resposta às violações dos direitos humanos e à recuperação da memória histórica, se coloca a possibilidade que o organismo criado sobre nova estrutura pelo governo concorra, ou inclusive entre em conlito aberto, com outras organizações da sociedade civil dedicadas a reunir os testemunhos dos regimes repressivos. Seguramente, o caso argentino é o que melhor evidencia este choque de “legitimidades” e o surgimento público de um debate que até o momento tem sido muito pouco considerado.7 Em síntese, existem duas posições que têm uma percepção claramente diferenciada do papel do Estado na geração de uma memória “oicial” do conlito. De uma parte, as organizações integradas em Memoria Abierta, no Centro de Estudios Legales e Sociales (CELS) e no Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas en Argentina (CeDInCI), coincidem na necessidade de priorizar a ação da sociedade civil nas políticas de direitos humanos e memória histórica pelas seguintes razões: 7 JELIN, Elisabeth; SILVA CATELA, Ludmila da. Los archivos de la represión: documentos, memoria y verdad. • 31 • Dificilmente um Estado que promoveu a perseguição contra um suposto inimigo interno pode ser bom custodiador desta memória popular; • Uma parte substancial dos documentos e arquivos referentes ao período 1976-1983 está nas mãos de pessoas e entidades afetadas pela violência institucional que só têm confiança em organizações civis não submetidas à tutela do Estado; • A adequada preservação e acesso aos testemunhos orais e documentos textuais estar mais resguardada nas mãos de entidades independentes e comprometidas com a defesa dos direitos humanos. Em todo caso, e além da valorização da solidez destes argumentos, existem dois elementos que devem ser considerados. Em primeiro lugar, a obrigação do Estado de adotar políticas de reparação e restituição dos valores de memória, verdade e justiça – existam ou não existam organizações civis nessa área – e, em segundo lugar, constatar que a escassez de recursos econômicos e humanos, assim como o limitado volume de documentos custodiados no Archivo Nacional de la Memoria, propicia certa fragilidade social e institucional deste ente de referência. Criado em uma data tão tardia, no mês de dezembro de 2003, no âmbito da Secretaria de Derechos Humanos del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de Argentina, foi alocado em um prédio emblemático da ditadura militar e seu principal acervo é constituído pelo fundo reunido pela Comisión Nacional de Desaparecidos (Conadep) em 1984 e bastante utilizado nos processos contra os repressores. Deparamo-nos assim com um modelo caracterizado pela coexistência de diversos níveis de organizações, públicas e privadas, que trabalham no mesmo âmbito, mas com o grave inconveniente de fazê-lo sem nenhum tipo de coordenação ou programa comum: 32 • • Prestigiadas organizações com fundos documentais de grande volume e fortemente consolidadas e com inluência cidadã: Memoria Abierta, CELS, CeDInCI, Abuelas de Plaza de Mayo, Madres de Plaza de Mayo (linha fundadora), Servicio Paz y Justicia; • O Archivo Nacional de la Memoria, como referência institucional, porém com falta de recursos e pouco volume documental; • As comissões provinciais pela memória, muito centradas em focalizar sua ação em uma determinada região administrativa; • O impulso para espaços da memória – como as magníicas instalações na antiga Escuela de Mecanica de la Armada (Esma) – que proporcionam um lugar de conluência e lembrança, mas que também trabalham com independência das instituições arquivísticas. Contudo, é necessário destacar o fato de que, apesar destas dificuldades, o Estado argentino – especialmente no período de governo do presidente Néstor Kirchner – trouxe grandes avanços com a extinção das leis que impediam a ação reparadora da justiça e propiciou o julgamento de inúmeros militares e civis responsáveis pela repressão.8 3.4. A recuperação de um arquivo relevante da repressão se converte no núcleo fundacional de um organismo como nova instituição Apesar das numerosas destruições intencionais de importantes acervos documentais relacionados à repressão institucional, com a inalidade de se evitar prestar contas à sociedade, fatores como o esquecimento ou a prepotência permitiram a sobrevivência de arquivos policiais e militares cuja existência se supunha, mas cuja localização era desconhecida. Entre os numerosos casos que poderíamos relatar, porém com uma relevância desigual, estão os referentes à descoberta do Archivo de la Policía Nacional de Guatemala e o achado tão longamente perseguido pelos grupos de direitos humanos do arquivo da Operação Condor, que deu origem ao Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos do Paraguai.9 Em ambos os casos, o notável volume de documentos preservados e, especialmente, seu grande interesse informativo e testemunhal, propiciou que se utilizassem os acervos como base para instituições de memória e de caráter especializado. Tanto no caso da Guatemala como no do Paraguai, este núcleo fundacional se transforma em uma aposta institucional para sua recuperação e uso. Vejamos brevemente a gênese e desenvolvimento de cada um deles. No caso do denominado Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos no Paraguai, seu achado responde a uma série de hipóteses que se consolidavam e respondiam a uma lógica que não apresentava dúvida: o conhecimento de que os governos da Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile, Bolívia e Brasil haviam criado a denominada Operação Condor como instrumento de intercâmbio de informação e de execução clandestina de pessoas opositoras dos respectivos regimes políticos. Esta intuição se tornou realidade no dia 22 de dezembro de 1992, quando uma pessoa anônima colocou uma pista sobre a localização do arquivo conhecido como o Arquivo do Terror ou o Arquivo do Horror. A rápida reação das autoridades de direitos humanos e, especialmente, 8 BUENOS AIRES. Secretaria de Educación; Memoria Abierta. De memoria: testimonios, textos y otras fuentes para el terrorismo de Estado en Argentina. 9 GUATEMALA. Archivo de la Policía Nacional. Del silencio a la memoria: revelaciones del Archivo de la Policía Nacional; BOCCIA PAZ, Alfredo; GONZáLEZ, Myrian Angélica; PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi informe: los archivos secretos de la Policía de Stroessner. • 33 a espetacular cobertura ao vivo de sua abertura pelos meios de comunicação, resultou impossível o esforço do governo para impedir sua divulgação pública. Ficando sob o controle do poder judicial em atendimento ao objetivo de priorizar seu uso nos tribunais, no mês de março de 1993 se criava o Centro de Documentación y Archivo, “por resolução da Corte Suprema de Justicia com a finalidade de preservar os documentos e seu conteúdo – em vista do valor jurídico, processual e histórico dos mesmos – por meio da aplicação de procedimentos modernos de controle e de manuseio automatizado”. O caráter de prova testemunhal e jurídica de primeira ordem vem ratificado pelo fato de que a primeira condenação judicial à Operação Condor, por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos (22 de setembro de 2006), significava a admissão da responsabilidade internacional do Estado paraguaio por violação dos direitos consagrados em vários artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Da mesma forma, condenações de destacados políticos da época ditatorial avalizam a importância das informações preservadas neste Arquivo. Igualmente relevante e com uma repercussão midiática notável é o caso do denominado Archivo General de Centro-América, Projeto para la Recuperación de Archivo Histórico de la Policía Nacional de Guatemala. Como no caso anterior, sua descoberta foi por acaso, e propiciada pelo fato da mudança de sede da Polícia Nacional que deixou nas suas antigas instalações um fundo documental próximo dos oito quilômetros de documentos. Também aqui houve uma tentativa por parte das autoridades policiais de “recuperar” este acervo, mas a rápida intervenção da Procuradoria de Direitos Humanos frustrou a tentativa e facilitou o início de um prestigioso projeto de organização, digitalização e acesso público a esse fundo. Seguramente, um dos acertos deste projeto deve relacionar-se com a capacidade dos responsáveis em dar continuidade aos trabalhos de organização depois do impacto público inicial da sua descoberta. Também a formalização de um Conselho Consultivo Internacional que lhe conferiu uma grande visibilidade e a consequente ajuda de países europeus para pôr em condições de acesso – com um forte apoio para a digitalização – um volume extraordinário de expedientes policiais. A transferência destes documentos, em 2009, para o Archivo General de Centro-América, na cidade de Guatemala, consolidava a continuidade do projeto e, por sua vez, por determinação do presidente Colom, se produzia a mudança de titularidade dos documentos, do Ministério do Interior para o Ministério da Cultura. Neste sentido, cabe enfatizar um fato quase recorrente na maioria dos casos de arquivos de direitos humanos e memória histórica: sua indiscutível subordinação aos ministérios do Interior ou da Justiça, em uma clara vinculação do seu conteúdo para usos jurídicos e processuais; só no 34 • caso do Centro Documental de la Memoria Histórica de Espanha, o Projeto da Guatemala e algum caso esporádico de países da Europa do Leste, se vincularam estas instituições ao Ministério da Cultura, dando assim certa preferência para o uso histórico-cultural dos fundos. 3.5. A criação de centros e institutos que reunem fundos com uma clara inalidade política e como instrumento de represália Por último, entendemos que existe um quinto modelo, com certos matizes e diferenças entre eles, configurado pela solução adotada de maneira majoritária pelos países do Leste da Europa que pertenciam à denominada Cortina de Ferro até a queda do muro de Berlim e a desagregação do império soviético, consistente na criação de institutos de história ou de memória que se erguem como garantidores da depuração dos “crimes” do comunismo. A adoção de um modelo homologável na maioria destes países deve correlacionar-se diretamente com uma série de fatores coincidentes: • Todos os países foram governados por um regime comunista e sob o controle das diversas polícias políticas (Securitate, na Romênia, Stasi, na Alemanhã do Leste, KGB, na União Soviética); • A transição da ditadura para a democracia foi rápida, sem tempo de planejar uma ação de transmissão de poderes; • Exceto no caso da Romênia, a transição se deu em um quadro de negociação, sem grandes violências ou destruições; • A maioria dos países seguiu o modelo alemão, porém com o inconveniente de que não tinham nem a maturidade democrática, nem os recursos necessários, e nem um contingente de profissionais com experiência; • Apelar a denominações de matriz retrospectiva – institutos de história, de memória –, sua finalidade de revisão do passado recente, não isento de rivalidades políticas, tem-se manifestado com bastante clareza. Em consequência, assistimos à criação de uma série de organismos específicos, com a finalidade de evidenciar, de maneira notória, seu empenho em refletir sobre o passado comunista e dotando-se também de competências arquivísticas, como o recolhimento, organização e acesso aos arquivos das polícias secretas ou dos órgãos de repressão dos direitos do cidadão, já que na maioria dos casos preservam documentos do período de 1944 a 1990. Sem intenção de exaurir podemos nos referir a: • O Instituto da Memória Nacional – Comissão para a Perseguição dos Crimes contra a Nação Polonesa (1998); • 35 • O Conselho Nacional para o Estudo dos Arquivos da Securitate Romena (1999), e posteriormente o Instituto para a Investigação dos Crimes do Comunismo (2005); • O Instituto da Memória da Nação Eslovaca (2002); • O Escritório da História da Hungria, mais tarde denominado Arquivos Históricos da Segurança do Estado Húngaro (2003); • O Arquivo dos Serviços de Segurança – Instituto da Memória do Povo Checo (1995). Contudo, este modelo aplicado nos países do Leste da Europa não é hegemônico, se bem que certamente majoritário. A exceção mais evidente está no caso das três repúblicas bálticas, sempre críticas com a ocupação soviética e uma elevada rejeição ao regime comunista. Por esta razão, a partir de 1990, Estônia, Letônia e Lituânia adotam a mesma solução, distante da vigente no resto dos países de influência soviética: a criação dos Arquivos Estatais (1990-1991) que têm a missão de preservar, entre outros, os fundos da Divisão da KGB, os expedientes pessoais de deportados e das forças repressivas entre os anos 1940 e 1991. Um sexto modelo? O caso do Centro Nacional de Memoria Histórica da Colômbia Tem-se assinalado de maneira reiterada a peculiaridade do caso colombiano, na medida em que o processo de transição para a paz e de superação do conflito armado entre o governo, as guerrilhas e outros grupos armados se resolve no âmbito de um governo plenamente democrático e que tem seu corolário exitoso com a assinatura do Acordo de Paz ratificado pelo Congresso colombiano depois do malfadado e surpreendente resultado do referendo de outubro-dezembro de 2016. Provavelmente, um dos organismos que mais tem trabalhado para produzir estudos bem documentados sobre as causas do conflito, propiciar a recuperação da memória histórica e criar um estado de opinião favorável ao acordo tem sido o Centro Nacional de Memoria Histórica (CNMH). Seu papel protagonista foi reconhecido em nível internacional e mais concretamente na menção explícita da sua contribuição ao processo de paz, no discurso que pronunciou o vice-presidente do governo da Noruega, ao entregar o prêmio Nobel da Paz ao presidente colombiano Manuel Santos. No âmbito de uma equipe de caráter interdisciplinar, o CNMH conta com uma Dirección de Archivos de Derechos Humanos que formulou, possivelmente, o corpus teórico mais sólido e diverso em nível internacional para o tratamento dos arquivos do conflito, tanto na sua vertente pública 36 • como privada, com base na produção de numerosos protocolos, 10 em algum caso em colaboração com o Archivo General de la Nación. Cabe destacar que essa contenda colombiana propiciou por sua vez a elaboração de uma rigorosa legislação e a consolidação do conceito de justiça de transição. Significa, em consequência, que a excepcionalidade da situação colombiana e a formulação de um modelo de metodologia de arquivos de grande porte, o coloca sem dúvida como um caso relevante digno de estudo. 4 - Breve apontamento sobre o tratamento arquivístico dos documentos relacionados às graves violações dos direitos humanos Para que os arquivos possam proporcionar seu valor testemunhal e informativo no âmbito da defesa dos direitos humanos é necessário que cumpram uma série de condições imprescindíveis: que estejam organizados e descritos corretamente, que se conservem nas condições adequadas e, sobretudo, sejam acessíveis. A princípio o tratamento deveria ser feito em sintonia com as diretrizes internacionais na matéria e muito especialmente nas famílias das normas ISO 15489, 30300 e 16175. O sistema de gestão de documentos para os arquivos de direitos humanos e memória histórica se baseia em uma integração efetiva dos procedimentos e processos e sua materialização mediante diferentes ferramentas tecnológicas em sintonia com um modelo que deve fundamentar-se no ciclo de vida dos documentos em um entorno altamente automatizado. Deveria conformar-se com base na: a) incorporação dos documentos ao sistema: captação, registro, digitalização segura/certificada, inserção de assinatura eletrônica e impressão segura/certificada; b) classificação de documentos e o uso do repertório de tipos documentais para a identificação de documentos; c) descrição normatizada e a aplicação do modelo de metadados; d) avaliação, classificação, guarda e tabela de temporalidade; e) classificação de segurança e acesso; f) interoperabilidade de dados e a aplicação de formatos reconhecidos; g) armazenamento e a preservação de longo prazo; h) manutenção das evidências eletrônicas e a rastreabilidade da cadeia de custódia; i) políticas e os termos de transferência de documentos. 10 COLÔMBIA. Centro Nacional de Memoria Histórica. Archivos de graves violaciones a los DD.HH., infracciones al DIH, memoria histórica y conlicto armado: elementos para una política pública (documento de trabajo); COLÔMBIA. Centro Nacional de Memoria Histórica. Basta yá! Colombia: memorias de guerra y dignidad. • 37 Contudo, a ênfase específica no caso de arquivos de direitos humanos deve centrar-se nos seguintes aspectos: • Recolhimento, com especial atenção aos documentos originais e cópias autênticas; • Acesso e uso: estabelecer normas claras para fazer compatível o acesso com a defesa da privacidade dos afetados; • Avaliação documental: entender que a ação de seleção e descarte de documentos, inerente à metodologia arquivística, deve ter uma atenção específica e prudente para os documentos e arquivos de direitos humanos e memória histórica; • Preservação: garantir a preservação de longo prazo de documentos em suporte papel e, especialmente, em suportes digitais, com especial atenção às questões tão transcendentes como a obsolescência tecnológica, a migração, a conversão de formatos e o valor probatório. Em todo caso e, como corolário inal, reiterar que a organização e o acesso aos arquivos mostram sua dimensão social e democrática na medida em que: • Contribuem para promover a recuperação da memória histórica; • Proporcionam documentos originais, autênticos e confiáveis para o exercício dos direitos cidadãos; • Fomentam o exercício dos valores da verdade e justiça; • Colaboram na luta contra a impunidade, o esquecimento e a amnésia coletiva. Do mesmo modo, o acesso e uso dos documentos pertinentes deve permitir exigir as seguintes responsabilidades: • Anistia para os delitos de opinião; • Indenizações às vítimas; • Apuração de responsabilidades (torturas, desaparecimentos, assassinatos); • Restituição dos bens confiscados. Referências ALBERCH I FUGUERAS, Ramon. Archivos y derechos humanos. Gijón: Ediciones Trea, 2008. (Colección Archivos Siglo xxI). BLIxEN, Samuel. El vientre del Cóndor: del archivo del terror al caso Berrios. 3. ed. Montevidéu: Edit. Brecha, 2000. BOCCIA PAZ, Alfredo; LÓPEZ, Miguel H.; PECCI, Antonio; GIMÉNEZ, Gloria. En los sótanos de los generales: los documentos ocultos del operativo Cóndor. Prólogo de Augusto Roa Bastos. Montevidéu: Expolibro, 2001. 38 • BOCCIA PAZ, Alfredo; GONZáLEZ, Myrian Angélica; PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi informe: los archivos secretos de la Policía de Stroessner. Asunción: CDE y Servilibro, 2006. BORMANN, Günter. El acceso y la desclasiicación de documentos: los archivos de la Stasi. In: ARCAS, M. Asumpció Colomer. El acceso y la desclasiicación de documentos: actas del Congreso Internacional de Archivos y Derechos Humanos. Girona: Sarrià de Ter, 2008. BUENOS AIRES. Secretaria de Educação; Memoria Abierta. De memoria: testimonios, textos y otras fuentes para el terrorismo de Estado en Argentina. Buenos Aires, 2004. CD, 3 volumes. CHILE. Comisión Nacional para la Verdad y la Reconciliación. Informe de la Comisión Nacional Chilena para la Verdad y la Reconciliación. Santiago, 1991. COLÔMBIA. Centro Nacional de Memoria Histórica. Archivos de graves violaciones a los DD.HH., infracciones al DIH, memoria histórica y conflicto armado: elementos para una política pública (documento de trabajo). Bogotá, 2014. ______. Centro Nacional de Memoria Histórica. ¡Basta ya!. Colombia: memorias de guerra y dignidad. Bogotá: Imprenta Nacional, 2013. ______. Centro Nacional de Memoria Histórica. Justicia y paz: ¿verdad judicial o verdad histórica? Bogotá: Edit. Taurus, 2012. ______. Centro Nacional de Memoria Histórica. Memoria histórica en el ámbito territorial: orientaciones para autoridades territoriales. Bogotá, 2014. CUT (Central Única dos Trabalhadores). Relatório da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT. São Paulo, 2015. DINGES, John. Operación Cóndor: una década de terrorismo internacional en el Cono Sur. Santiago de Chile: Ediciones B., 2004. GARTON ASH, Timothy. El expediente: una historia personal. Barcelona: Tusquets, 1999. GAUCK, Joachim. 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Barcelona: RBA, 2010. 40 • COMISSÕES DA VERDADE E ARQUIVOS NO CHILE María Luisa Ortiz Rojas* Em 1990, nos primeiros meses após o fim da ditadura, constituiu-se a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, criada com o objetivo de esclarecer “a verdade sobre as graves violações aos direitos humanos cometidas no país entre 11 de setembro de 1973 e 11 de março de 1990”. 1 Logo se promulga a lei que cria a Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación,2 que se instalou para dar sequência às medidas de reparação e resolver casos que ficaram pendentes no processo anterior. Em 2003, foi criada a Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura3 (CNPPT) para identificar e reconhecer as vítimas de prisão política e tortura. Finalmente, no ano de 2010, a lei que criou o Instituto Nacional de Derechos Humanos contemplou a reabertura de uma comissão, de maneira extraordinária e por um período de nove meses, para a recepção de novas denúncias de detidos desaparecidos, executados políticos, prisão política e tortura, entre 1973 e 1990. Em 2011, o grupo divulgou seu relatório final com as novas vítimas relacionadas. Os arquivos dessas comissões se formaram essencialmente com os antecedentes, documentos e testemunhos frutos das contribuições das vítimas e seus familiares e dos organismos de direitos humanos. O Chile destacou-se por haver documentado, desde os primeiros dias do golpe de Estado, as violações dos direitos humanos, seja com a denúncia nacional ou internacional, seja pelos recursos judiciais que se interpuseram nos tribunais de Justiça. A maioria das denúncias foi parar no Judiciário e, por isso mesmo, a sua história foi preservada tanto nos tribunais como nas organizações de direitos humanos que as interpuseram.4 * Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, Santiago, Chile. 1 Criada pelo decreto supremo n. 355/1990, investigou os casos de desaparecimentos forçados e de execuções de pessoas. 2 Criada pela lei n. 19.123/1992 para colocar em prática as medidas de reparação e qualiicar os casos que suscitaram dúvida (por não ter sido reunida informação suiciente), assim como qualiicar novos casos que se apresentaram (qualiicaram-se 3.195 no total). 3 Criada pelo decreto supremo n. 1.040/2003, do Ministério do Interior, qualiicou cerca de 28.500 casos. Chamada também de “Comissão Valech”. 4 Comité para la Paz en Chile; Vicaría de la Solidaridad; Fundación de Ayuda Social de las Iglesias Cristianas (Fasic); Corporación de Promoción y Defensa de los Derechos Humanos (Codepu); Fundación para la Protección de la Infancia Dañada por los Estados de Emergencia (Pidee); e Comisión Chilena de Derechos Humanos. Esses foram os principais organismos de direitos humanos que reuniram e preservaram essa documentação. • 41 Na comissão que investigou a prisão política e a tortura, foram muito relevantes os testemunhos das próprias vítimas e a documentação apresentada por elas para comprovar as suas detenções. Essa documentação, que as pessoas mantiveram durante muitos anos como prova das suas prisões, dava conta do lugar de reclusão, das restrições de circulação, das permissões de visita, da correspondência com a família e com organizações humanitárias, como a Cruz Vermelha internacional, da lista de pertences pessoais, entre outros documentos. A maioria foi escrita em formulários padrão, e passando por censura, como mostram os riscos, anotações e até partes do papel recortadas, especialmente na correspondência pessoal. Evidente que esse tipo de documentação se relaciona com lugares de detenção reconhecidos e públicos, não com os recintos secretos de prisão e tortura. Em ambos os casos, os arquivos incluem também a documentação produzida pela gestão administrativa efetuada no curso do seu trabalho: correspondência, ofícios, atas de reunião, entre outros. Não foram os arquivos que vinham de organismos repressivos – das Forças Armadas e das instituições do Estado – os que trouxeram informação relevante para a investigação dessas comissões. Em geral, a resposta era que esses antecedentes não existiam, foram eliminados, queimados ou não encontrados. Assim se afirma cada vez que se demandam outros esforços impulsionados pelo Estado para avançar no caminho da verdade, especialmente no que diz respeito ao desaparecimento forçado de pessoas, às circunstâncias do seu destino final e à localização dos restos mortais. Sobre guarda e preservação dos arquivos e o acesso a eles As comissões fizeram menção especial aos arquivos, tanto em relação ao seu uso quanto ao acesso. As disposições e seus alcances foram diferentes em cada caso. A Comisión de Verdad y Reconciliación, em seu decreto de criação, assinalou que se, no exercício das suas funções, recebesse antecedentes sobre fatos que revestem características de delito, os colocaria imediatamente, sem maiores trâmites, à disposição do tribunal correspondente. Com base nisso, remeteu aos tribunais de Justiça 221 casos, assim que concluíram o trabalho. 5 5 42 • Na maioria dos casos apresentados, o processo judicial não prosperou, já que os tribunais aplicaram a lei de anistia imposta pela ditadura em 1978, ainda vigente (DL 2191); essa lei só excluiu os que foram implicados no assassinato de Orlando Letelier ocorrido em Washington/Estados Unidos no dia 21 de setembro de 1976, por ordem da Dirección de Inteligencia Nacional (Dina). Sobre a importância de preservar esses arquivos, em suas recomendações, a comissão manifestou a necessidade de contar com uma entidade que centralize a informação acumulada e uma biblioteca especializada, dado o interesse futuro em conhecer os fatos relativos a violações dos direitos humanos por parte de pesquisadores e do público em geral, além de mecanismos que garantam o acesso à documentação nas condições que regule a lei.6 Finalmente, a lei que criou a Corporación Nacional de Reparación y Reconciliación determinou que os antecedentes reunidos devam ser guardados em depósito, estabelecendo que o acesso à informação deva garantir sua absoluta confidencialidade,7 como consta no artigo 2º, item 3: “O acesso à informação deverá assegurar a absoluta confidencialidade desta, sem prejuízo que os tribunais de Justiça possam acessar a dita informação, nos processos submetidos ao seu conhecimento”. Atualmente, os arquivos relacionados às vítimas não sobreviventes em processos de investigação judicial, cujo destino final e as circunstâncias do seu desaparecimento não foram determinados, encontram-se no Programa de Derechos Humanos del Ministerio del Interior, que toma conta do prosseguimento dessas ações judiciais. Os tribunais são os únicos usuários dessa informação; pesquisadores e advogados que não pertençam a esse programa não têm acesso, tampouco os familiares das vítimas. A CNPPT assinalou, nas suas recomendações,8 que a informação reunida faz parte do patrimônio cultural da nação e deve estar submetida a medidas de resguardo; para tanto, recomenda que, ao finalizar sua atividade, entregue o acervo documental reunido no seu conjunto ao Instituto Nacional de Derechos Humanos, que é o órgão encarregado, pela lei da preservação do patrimônio documental da nação chilena, de protegêlo contra toda subtração e destruição. Esse arquivo compreende todos os documentos em formato físico e digital, expedientes pessoais constituídos com os antecedentes das vítimas e os documentos gerados pela comissão no âmbito da sua atividade. Sobre o acesso aos expedientes pessoais, a comissão recomendou aplicar um prazo especial – trinta anos – para a comunicação ao público, com a 6 Capítulo III: “Outras Recomendações”, sob o subtítulo “Centralização da Informação Acumulada pela Comissão” (relatório CNVR). 7 Lei n. 19.123/1992. 8 Capítulo IX: “Propostas de Reparação”, bases para deinir as propostas de reparação. Nas “Medidas Recomendadas”, se assinala como uma das medidas de reparação institucional o resguardo e a conidencialidade da informação recebida (relatório CNPPT). • 43 finalidade de proteger a vida privada e a honra das pessoas, 9 acrescentando que aqueles que foram qualificados ou, em caso de falecimento, seus descendentes, poderão solicitar cópia dos documentos adjuntos a suas apresentações. 10 Posteriormente, a lei 11 aprovada para conceder benefícios de reparação determinou o sigilo de todos os documentos, testemunhos e antecedentes, frutos das contribuições das vítimas, durante um prazo de cinquenta anos, explicitando que nenhuma pessoa, grupo de pessoas, autoridade ou magistrado terá acesso a esses arquivos, embora reconheça o direito pessoal dos titulares dos documentos, relatórios, declarações e testemunhos incluídos neles de dar-lhes publicidade.12 O artigo 15 da lei n. 19.992/2004 dispõe que são sigilosos os documentos, testemunhos e antecedentes trazidos pelas vítimas diante da referida Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura no desenvolvimento de suas ações, acrescentando que o referido caráter não se estende a relatórios elaborados por esse organismo baseados naquele material. A última instância de qualificação de vítimas de prisão política e tortura e casos de violação do direito à vida assumiu o estipulado na comissão anterior (lei n. 19.992/2004). Em consequência, reconhecendo que em ambas as comissões da verdade, tanto em seus relatórios quanto em suas recomendações, concedeuse um valor explícito aos arquivos reunidos, expôs-se a necessidade da sua preservação e fez-se menção ao tema do acesso, constatando nisso um processo inédito de valorização do seu impacto para a sociedade e para o país. Há que se considerar que as leis ditadas posteriormente chegaram a resultados diferentes, principalmente no tema do acesso público. Assim, a CNPPT excedeu quase o dobro do prazo para o acesso público com relação ao recomendado no relatório. 9 Assumindo o nível de tempo que segue a prática de arquivo no mundo nesse tipo de matérias. A Comissão Europeia recomenda um prazo máximo de trinta anos para a manutenção do caráter conidencial dos registros. Tal recomendação, no entanto, não se aplica em todos os países, já que os processos de transição exigem acesso rápido à documentação para a pesquisa e a documentação de qualquer tipo de violação aos direitos humanos. 10 É importante advertir que um signiicativo número de pessoas que se aproximaram da comissão para fazer seus testemunhos o fazia pela primeira vez; muitos deles nunca haviam comunicado o vivenciado, nem sequer às suas famílias ou a pessoas mais próximas. Especialmente os setores mais vulneráveis e desprotegidos socialmente, principalmente de áreas rurais, não queriam que seus testemunhos se tornassem públicos nem sequer que seus nomes aparecessem no relatório. 11 Lei n. 19.992/2004. 12 Lei n. 19.992/2004, título IV, artigo 15. 44 • Os arquivos e os processos da verdade, justiça, reparação e memória Os arquivos tiveram um papel essencial nos processos da verdade, justiça e reparação. O mais relevante é que têm sido fundamentais nos processos das comissões da verdade, já que contribuem para documentar os casos de vítimas nessas comissões. Mas de onde provieram essencialmente? É bom distinguir que estamos tratando principalmente de arquivos relacionados com a denúncia e a defesa dos direitos humanos e que geraram produto dessa ação por parte dos organismos de direitos humanos, pela ação das próprias famílias e pela ação judicial dessas denúncias. Desse modo, os arquivos gerados pelas organizações de direitos humanos no Chile cumpriram um papel muito relevante nos processos judiciais e de reparação impulsionados logo ao fim da ditadura. Posteriormente, a qualificação realizada pelas comissões permitiu o acesso aos benefícios de reparação por parte do Estado para as vítimas e seus familiares. Os arquivos também são uma fonte de consulta permanente nas causas judiciais. Constantemente, os tribunais de Justiça recorrem aos organismos depositários de arquivos de direitos humanos requerendo a entrega de antecedentes sobre os fatos. Os antecedentes se encontram nas denúncias judiciais ou extrajudiciais realizadas na época em que ocorreram os fatos, nos relatórios nacionais e internacionais, nas referências em arquivos de imprensa, nas declarações públicas, nos testemunhos e relatos, nas fotografias e audiovisuais, nos relatórios de atendimento social, jurídico ou de saúde fornecidos às vítimas e/ou a suas famílias, entre outros. Esses arquivos foram gerados como denúncia das ações que violaram os direitos humanos por parte do Estado e para a defesa da integridade, a liberdade e a vida das pessoas. Tinham uma finalidade prática e de urgência em tempos nos quais os direitos eram vulneráveis e violados de maneira sistêmica e massiva, e onde não existiam canais nem meios de informação além daqueles que expressavam a versão oficial. Contrastando com essa versão, esses arquivos hoje constituem um registro correlato e único. Além das ações públicas e diante dos tribunais, também as ações privadas de proteção e defesa das pessoas ficavam documentadas nos arquivos dos organismos de direitos humanos ou naqueles privados, de pessoas e famílias. Em mais de uma ocasião, esses arquivos tiveram de ser protegidos para amparar as vítimas e resguardar a ação dos organismos humanitários. Ainda que os arquivos de direitos humanos estejam sendo essenciais em todos os procedimentos praticados pelo Estado desde 1990 para avançar no direito de restabelecer a verdade, é importante destacar que, especialmente nos últimos anos, os maiores avanços com relação à verdade se encontram nas investigações judiciais. Em algumas oportunidades, os antecedentes • 45 trazidos pelas comissões, inclusive pelos próprios organismos de direitos humanos, foram amplamente superados pela investigação judicial.13 Um aspecto essencial de se mencionar sobre os arquivos é que, no Chile, não se recuperaram arquivos policiais nem dos órgãos de segurança, já que a resposta permanente tem sido que eles não existem. Só há alguns achados de peças documentais, como, por exemplo, as fichas encontradas na Colônia Dignidade. 14 Também na esfera da investigação judicial, alguns documentos incluídos como “prova” em uma exposição de motivos relacionados a Manuel Contreras, um organograma da Central Nacional de Informaciones (CNI) 15 e outra documentação encontrada em um prédio em reforma para a instalação da Fundación Salvador Allende são alguns dos poucos exemplos descobertos. Todavia a documentação que se acha em diversas repartições públicas como parte da gestão administrativa e da cultura burocrática deixou as marcas da ação da ditadura no aparelho do Estado. No entanto permanece sem que haja, até agora, alguma medida que obrigue sua proteção e resguardo, bem como a livre do risco de desaparecer. Contudo, esses achados incluídos em processos judiciais ou reproduzidos em publicações dão conta de que as ações repressivas, a perseguição, o controle e registro de detidos, seus interrogatórios, itinerários ou destinos, em definitivo, as inúmeras ações vinculadas aos serviços de segurança e a manutenção de um Estado ditatorial foram registradas, o que gerou incontáveis e diversos arquivos institucionais, dos quais depois se negou a existência ou se afirma que foram destruídos. Nesses arquivos, foram registrados e controlados procedimentos, recursos, pessoal e, na sua elaboração, obteve-se a participação de diversas instituições e sujeitos, que com mais ou menos consciência da relevância das suas ações, foram configurando o ato de arquivar, ordenar, resguardar, reunir, preservar e 13 O avanço da Justiça na investigação desses crimes foi praticamente inexistente nos primeiros anos da transição, pelas condições e o contexto no qual se vivia. Só no começo do ano 2000 se agilizaram os processos judiciais, logo após os acontecimentos provocados pela detenção de Augusto Pinochet em Londres e seu posterior retorno ao Chile, assim como a instalação de juízes especiais e exclusivos para investigar os antecedentes entregues sobre o destino inal dos detidos desaparecidos (200 casos – 180 identiicados e vinte não identiicados) pelas Forças Armadas em janeiro de 2001, em volta de uma mesa de diálogo convocada pelo governo com essa inalidade. No transcurso dos últimos anos, houve um avanço relevante em matéria de verdade e justiça. Nisso têm um papel fundamental os familiares das vítimas e os advogados de direitos humanos. 14 Enclave alemão no sul do Chile vinculado com abusos e escravidão dos seus habitantes, também em uma relação ativa com a ditadura e seus serviços de inteligência. A Colônia Dignidade foi um lugar de detenção, tortura e extermínio de prisioneiros. 15 Central Nacional de Informaciones, órgão de inteligência que sucedeu a Dirección de Inteligencia Nacional (Dina). 46 • gerar critérios para o acesso a toda a informação produzida. Consciente ou inconscientemente, foram deixando algumas provas. Esse é o principal e grande vazio que há no Chile, a maior parte dos arquivos de direitos humanos não vem dos órgãos repressivos e sim daqueles que se geraram por meio da denúncia e da defesa dos direitos humanos. Esses testemunhos têm sido os meios de prova para se avançar no direito à verdade, inclusive diante dos tribunais de Justiça. Com relação ao modo de validação desses arquivos como uma fonte essencial para a reconstrução de nosso passado recente e para a preservação da memória, existem dois fatos marcantes e importantes no processo. O primeiro data do ano de 2003, quando oito fundos de arquivos de direitos humanos no Chile foram declarados patrimônio da humanidade e inscritos no registro de Memória do Mundo da Unesco.16 Esse ato constituiu um importante reconhecimento e um impulso para a geração de iniciativas e preocupação especial por parte do Estado para aqueles arquivos resgatados do esquecimento por muitas instituições e organismos da sociedade civil. Foi também um exemplo para que outros países do Cone Sul e de outras partes do mundo postulassem que seus arquivos de direitos humanos fossem considerados como parte de registro da memória do mundo. Assim ocorreu com vários arquivos na Argentina, no Paraguai, nos arquivos da resistência da República Dominicana, na causa contra Nelson Mandela na áfrica do Sul, entre outros.17 O outro marco relevante foi a criação do Museo Nacional de la Memoria y los Derechos Humanos no ano de 2010; sem dúvida, essa iniciativa é a mais importante política pública com relação à memória e aos arquivos, dando conta do direito que a sociedade tem de conhecer os fatos ocorridos. Esse museu tem como antecedentes todos os aspectos mencionados, assim como a demanda dos organismos de direitos humanos para que o Estado assuma de maneira ativa a proteção, a preservação e a divulgação de seus arquivos. Seu aspecto conceitual se fundamenta nos relatórios das 16 Agrupación de Familiares de Detenidos Desaparecidos (AFDD); Corporación de Promoción y Defensa de los Derechos del Pueblo (Codepu); Fundación de Ayuda Social de las Iglesias Cristianas (Fasic); Fundación para la Protección a la Infancia Dañada por los Estados de Emergencia (Pidee); Archivos Audiovisuales Teleanálisis; Fundación de Documentación y Archivo de la Vicaría de la Solidaridad; Comisión Chilena de Derechos Humanos; Corporación Justicia y Democracia (desta instituição, 35 discos óticos com informação relativa aos casos de vítimas apresentados à Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación). 17 Nota dos organizadores do livro: no Brasil, o fundo de arquivo “Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor)”, mantido no Centro de Documentação e Informação Cientíica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cedic/PUC-SP), também foi reconhecido e registrado no Programa Memória do Mundo da Unesco. • 47 comissões da verdade e, desde essa perspectiva, cumpre a tarefa de recolher, preservar e tornar acessível esse inestimável acervo cultural para o qual, até então, não existia nenhum sistema que permitisse, no longo prazo, garantir sua sobrevivência física e intelectual. Inaugurado no dia 11 de janeiro de 2010, sua missão é dar conhecimento sobre as violações sistemáticas dos direitos humanos por parte do Estado do Chile entre os anos 1973-1990, para que através da relexão ética sobre a memória, a solidariedade e a importância dos direitos humanos, se fortaleça a vontade nacional para que Nunca Más se repitam fatos que afetem a dignidade do ser humano. Um dos seus objetivos estratégicos é pesquisar, recolher, proteger, restaurar, conservar e preservar o patrimônio histórico material e imaterial relacionado com as violações dos direitos humanos e com os atos de solidariedade evidenciados durante o período 1973-1990. Como principal instituição depositária do acervo produzido por diversos setores da sociedade civil que colocaram em prática ações de solidariedade e defesa das vítimas da ditadura militar que governou o Chile desde 1973 até 1990, o museu, desde a sua origem, é único na sua classe, tanto no que se refere a sua política de coleções, como pelos meios que explora para ampliar seus serviços e usuários. Recolhe também documentação e arquivos gerados por entidades públicas e que complementam os relatos para a reconstrução da memória do passado recente. Recuperar essas fontes primárias, preservá-las e pô-las à disposição para o acesso significam uma valiosa contribuição para a memória histórica do nosso país, assim como uma contribuição ao conhecimento, à reflexão e à pesquisa sobre as violações aos direitos humanos no Chile durante o período 1973-1990, seus efeitos e consequências. Os tempos atuais, tempos de arquivos A valorização dos arquivos de direitos humanos e a necessidade da sua preservação e divulgação como fonte de conhecimento, reflexão, pesquisa e valor pedagógico sobre as graves violações dos direitos humanos ocorridas durante a ditadura vêm se manifestando cada vez com maior força em setores mais amplos da sociedade, e não somente nos setores diretamente afetados. A necessidade do seu resguardo e acesso público está sendo entendida cada vez mais como um elemento de consolidação da democracia. Essa maior consciência do valor dos arquivos se manifesta em dois aspectos. Por um lado, existe a demanda pela sua abertura. Campanhas 48 • públicas, desde 2013, para que não haja mais arquivos sigilosos, foram iniciadas pelo site Memória Londres 38,18 expressando que o segredo é antidemocrático e entorpece os processos de verdade e justiça, perpetuando a impunidade dos culpados. Por isso, em casos de graves violações dos direitos humanos, o Estado tem a obrigação de entregar toda a informação disponível, e não pode amparar-se na airmação da inexistência dos documentos solicitados, ou em restrições de acesso, a privacidade das pessoas ou a segurança nacional, causas de justiicativas para negar o acesso. A essas campanhas, vêm se somando diversos setores da sociedade. Um segundo motivo é com relação à lei que estabelece o sigilo por cinquenta anos para os arquivos da CNPPT. Foi apresentada uma moção no parlamento na qual se discute e se estabelece o caráter público desses documentos, argumentando respeito aos antecedentes obtidos no funcionamento da Comisión Valech, pois priorizando o estabelecimento da verdade e da adequada reparação às vítimas, se deixa em segundo plano o estabelecimento da justiça, toda vez que pese que o trabalho dessas comissões pode haver alcançado importantes e esclarecedores antecedentes em relação aos direitos humanos. O estabelecimento desse segredo inalmente consagra em nível institucional a impunidade, enquanto impede que esses antecedentes possam ser conhecidos e qualiicados pelos tribunais de Justiça. Assim mesmo, cabe assinalar que a evidência tem permitido comprovar que entre os militares continuam existindo ‘pactos de silêncio’, toda vez que os membros das Forças Armadas seguem operando lealdades mal entendidas, no sentido de que seus membros seguem optando por reter a informação que possuem, não podendo ser compelidos a apresentá-las à Justiça, às Polícias ou a alguma instituição que possa usá-la. Outra moção parlamentar busca revogar a lei n. 18.771/1989, promulgada pela ditadura, que eximiu as Forças Armadas da obrigação que têm todos os órgãos públicos de depositar sua documentação no Arquivo Nacional e as autoriza a destruir sem consulta às outras instâncias. A norma serviu para evitar a entrega de informação sobre os recursos humanos e materiais que as Forças Armadas destinaram à repressão, por meio dos 18 Recinto de tortura da Dina no qual desapareceu a maioria dos presos políticos que por ali passaram, recuperado pela sociedade civil como lugar de memória. • 49 seus próprios órgãos de inteligência e de outros especialmente criados, como a Dina e a CNI. Por outro lado, há um crescente interesse das comunidades em reunir seus arquivos, reconstruir a história das suas lutas em diversos períodos, mas especialmente aqueles que tiveram como eixo as transformações sociais e políticas no país e, logo, a luta pela liberdade e a democracia e contra a ditadura. Existe um desenvolvimento significativo de linhas de pesquisa histórica por meio da oralidade e uma crescente consciência da urgência em resgatar e registrar as fontes. Assim, vem se desenvolvendo um forte trabalho de arquivos nas federações de estudantes, contextualizando o processo social e político do qual fizeram parte; de resgate de histórias do sindicalismo, da reforma agrária e de diversas comunidades em diferentes partes do país; de formação de arquivos locais e de organizações sociais nos bairros, de modo que existe um movimento cada vez mais amplo para a preservação desses arquivos. Isso sem dúvida dá conta de uma valorização dos arquivos como um patrimônio insubstituível para a reconstrução da nossa memória histórica e o fortalecimento da democracia. 50 • PARAGUAI: ARQUIVO DO TERROR. OS ARQUIVOS DA POLÍCIA DA DITADURA Rosa M. Palau*1 Introdução Os arquivos são importantes para o bom funcionamento das instituições e fundamentais nos processos de justiça e reparação. Contribuem para integrar a memória escrita e o direito de cada pessoa ou comunidade ao conhecimento da verdade do seu passado. As pessoas que sofreram violações dos direitos humanos em regimes ditatoriais se esforçam para fazer valer seus direitos à verdade, à justiça e à reparação e exigem que as instituições façam as reformas necessárias para que as ditas violações não voltem a acontecer. Os Estados, para dar resposta a estas exigências, recorrem a diversos meios: investigações, processos, busca da verdade, estabelecimento de políticas de reparação e outras reformas necessárias baseadas principalmente nos arquivos e que reduzam as possibilidades de repetição. No Paraguai, o inesperado achado dos arquivos policiais, depois de quase três anos do fim da ditadura de Alfredo Stroessner, produziu efeitos imediatos e previsíveis, traduzidos em uma inédita comoção midiática e a retomada dos paralisados processos sobre as violações dos direitos humanos. O ano de 1992 constitui um marco na história paraguaia: i) Em maio acontece a primeira sentença condenatória de cinco torturadores pela morte de Mario Schaerer Prono como consequência de sessões de tortura em dependências policiais, em abril de 1976; ii) Em junho foi promulgada a Constituição democrática; iii) Em setembro, fazendo uso da nova figura incorporada na Constituição, art. 135, foi apresentado o primeiro pedido de habeas data ante o juizado do 3º Turno Criminal; iv) Em novembro foi iniciado o julgamento do diretor da Dirección Nacional de Asuntos Técnicos (DNAT), Antonio Campos Alum; v) Procedimentos judiciais na procura dos arquivos policiais: * Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos, Assunção, Paraguai. • 51 - 22 de dezembro: no Departamento de Producciones de la Polícia foram encontrados os primeiros documentos da polícia da ditadura, pertencentes ao Departamento de Investigaciones; - No dia 24 do mesmo mês foi realizada uma ação de busca e apreensão na Dirección Nacional de Asuntos Técnicos, e, - No começo de janeiro de 1993 ocorreu outro procedimento judicial no Departamento Judicial de la Policia. Estes procedimentos judiciais estiveram encabeçados pelos juízes do 2° e 3° Turno Criminal, doutores Luis María Benítez Riera e José Agustín Fernández, os quais determinaram a transferência de toda a documentação apreendida para o Palácio de Justiça. Os documentos encontrados constituíram i) elementos probatórios nos julgamentos que estavam tramitando nesse momento na justiça e, ii) um acervo de enorme valor histórico, razão pela qual por meio da sua leitura se sentia a expectativa de todo um povo. Durante os quase 35 anos de ditadura foram documentados eventos de repressões i) ao Movimiento 14 de Mayo e ao Fulna; ii) às organizações sociais iii) às Ligas Agrarias Campesinas; iv) aos movimentos estudantis e operários e, v) relacionados às evidências sobre a Operação Condor, que tinha como principal objetivo o intercâmbio de detidos e informações entre os governos militares dos países do Cone Sul. Os “Arquivos do Terror” constituem o instrumento que conduziu a comunidade nacional e internacional a encontrar as evidências e provas contra os repressores e sobre as torturas e rastros de vítimas desaparecidas que foram detidas. Os arquivos são uma fonte inesgotável de testemunhos e vivências de uma longa época de constantes violações dos direitos humanos. A história e o Arquivo Como todos os países da região, o Paraguai atravessou um período de ditadura civil–militar, representado pelo governo do general Alfredo Stroessner. Mesmo que o caso paraguaio compartilhe muitas semelhanças com a experiência vivida nos países vizinhos, tem singularidades próprias que é necessário conhecer para explicar o porquê de certos fenômenos políticos e sociais ocorridos no país. Uma primeira característica é que o golpe militar que leva Stroessner ao poder acontece em maio de 1954, quer dizer, muito tempo antes que nos outros países se produzissem os rompimentos de seus respectivos processos civis e institucionais. Depois, o golpe militar que retirou Stroessner do poder ocorreu em fevereiro de 1989, quando toda a região, exceto o Chile, já avançava em suas respectivas transições democráticas. Trata-se, pois, de uma ditadura de longuíssima duração: 35 anos de governo unipessoal e de 52 • um poder total e completo, o que equivale a sete períodos presidenciais normais. A segunda particularidade é que esse regime não pode ser considerado uma interrupção abrupta da vigência das liberdades públicas e das instituições republicanas, tal como ocorreu no Chile ou Uruguai. A ditadura do Paraguai sucedeu a outros regimes autoritários que a precederam. A história do Paraguai é a relação de uma longa lista de governos autoritários e militaristas, com escassos espaços de períodos democráticos. A falta de treinamento cívico da sociedade paraguaia explica, por sua vez, muitas das dificuldades pelas quais passou a transição após Stroessner e a democracia de baixa qualidade que deixou como legado. Uma terceira característica do governo de Stroessner é que, apesar de se tratar de uma ditadura militar demarcada na doutrina de segurança nacional, manteve um quase obsessivo escrúpulo em aparentar que conservava todas as formalidades de uma democracia. Stroessner transitou em uma época que era adequada para o seu modelo, os anos da Guerra Fria. Durante seu governo milhares de paraguaios foram presos e torturados por motivos políticos e o exílio foi massivo, em especial para a Argentina. A pacificação do país, a estabilidade econômica e a contenção da subversão comunista eram os pilares da propaganda do regime que, reconhecidamente, era apoiado por vários setores da população. A estrutura repressiva estava centrada na polícia da capital e contava com um complexo emaranhado de informantes, delatores e policiais que mantinham completamente vigiadas todas as atividades públicas ou privadas realizadas pela população. Os centros nevrálgicos da repressão política eram o Departamento de Investigaciones e a Dirección Nacional de Asuntos Técnicos, ambas as dependências situadas no micro centro de Assunção e que hoje estão convertidos em lugares históricos. O Paraguai, isolado geograficamente e pequeno economicamente, passou por este período diante da indiferença da consciência internacional, cuja atenção estava voltada para a violência, muito mais notória, que acontecia, por volta dos anos de 1970, nos países vizinhos. Stroessner começou a ficar isolado somente na metade dos anos de 1980, quando começaram os processos de transição democrática na região. O país se converteu, naquele momento, em una isla rodeada de tierra, governada por um “tiranosaurio”, nas palavras do ilustre escritor Augusto Roa Bastos. Não foi, no entanto, só a pressão cidadã ou a opositora que precipitaram seu fim, senão também uma cisão e ruptura em seu próprio partido e os altos índices de corrupção que se instalaram no país. • 53 Finalmente, no dia três de fevereiro de 1989, o general Andrés Rodríguez, um dos homens fortes do regime, cuja filha era casada com o filho mais velho de Stroessner, lidera um golpe de Estado que retira Stroessner do poder e inicia um inédito período de abertura política e liberdades públicas. Mesmo com Strossner exilado em Brasília, a transição paraguaia continuou comandada pelas principais figuras que haviam apoiado o ditador derrotado. A transição esteve marcada por uma situação sem precedentes na história mundial. Uma longa ditadura é derrocada, mas o partido do ditador não cai. O Partido Colorado se modernizou como pôde, enfrentou contradições e incoerências, porém continuou vencendo eleições, desta vez com as supostas “regras da democracia”. Uma democracia que deu respostas aos problemas sociais e, por outro lado, agravou a corrupção, duas sequelas herdadas do “stronismo”. Os governos colorados com figuras que até muito pouco tempo haviam demonstrado lealdade ao derrocado ditador, não demonstravam muito interesse em investigar o passado recente, pois estariam se reencontrando com seus próprios crimes. Na realidade, a transição não havia criado um novo regime e não poderia, portanto, responder às demandas sociais de conhecer a verdade do acontecido. Somente após quase doze anos e várias tentativas, cria-se a Comisión de la Verdad y Justicia (CVJ). Esta realizou os trabalhos de investigação durante quatro anos, entregando seu relatório final em agosto de 2008. Os documentos policiais, disponíveis no Archivo del Terror foram fundamentais para os trabalhos realizados pela CVJ. A transição para a democracia começou com mudanças vertiginosas. Eleições livres, nova Constituição nacional, uma plena vigência das liberdades públicas e a criação de novas figuras jurídicas; tudo parecia indicar que o país iniciava com otimismo uma nova etapa. As vítimas da ditadura ou seus familiares iniciaram contendas judiciais contra os chefes da repressão, mas esses processos ficavam parados diante da falta de provas e o argumento policial de que os supostos desaparecidos nunca haviam estado detidos em dependências policiais. Até dezembro de 1992, a figura de Alfredo Stroessner representava um passado que devia ser esquecido, seus crimes eram negados, se exigiam provas impossíveis de obter e se minimizavam os abusos cometidos. O ditador era só um ancião que não soube ir embora a tempo e que desconhecia tudo o que faziam seus colaboradores. Isto teria continuado igual, não fosse pelo dia 22 de dezembro de 1992, quando a história deu uma guinada a favor dos propulsores da memória e dos defensores dos direitos humanos. 54 • Conteúdo dos arquivos Os arquivos encontrados em 1992 estão formados na sua grande maioria por materiais produzidos pela própria polícia da capital, um importante setor está ocupado por documentos administrativos. A parte mais valiosa dos papéis está centrada nos relatórios, ichas, estudos de inteligência, lista de detidos em diversas dependências policiais, livros de entrada e saída de detentos, livros internos vinculados à repressão social e política, estudos de avaliação arquivados pelos chefes do Departamento de Investigaciones ao longo de quase quarenta anos, ademais de fotograias, cassetes de áudio, livros apreendidos, escritos pessoais, correspondências, recortes de jornais etc. A variedade de temas é imensa. Há relatórios sobre pessoas que compareceram a festas familiares, número de placas de carros, controles detalhados de quem entrava e saia do país pelos pontos de fronteiras, listas de “agentes confidenciais” e listas de convidados a casamentos ou velórios de algum dirigente da oposição. O acervo documental encontrado no dia 22 de dezembro de 1992 e os achados posteriormente em procedimentos judiciais a outras dependências policiais, foram depositados no começo, nos respectivos escritórios dos juízes no Palácio de Justiça. Em janeiro de 1993, foram transferidos para um escritório no oitavo andar. Em março de 1993, a Corte Suprema de Justicia cria o Centro de Documentación y Archivo para la Defesa de los Derechos Humanos, por resolução n. 81/1993. Em 2007, por resolução n. 1.097 impulsiona a criação do Museo de la Justicia. Desta forma dá ao Arquivo um espaço relevante e de fácil acesso para os cidadãos, com o intuito de promover a recuperação da memória histórica e com a finalidade de preservar o presente e o futuro do país de práticas que atentem contra os direitos humanos e a institucionalidade da República. A importância dos arquivos A partir da sua chegada ao Palácio de Justiça, os arquivos adquiriram uma importância relevante. A ansiedade da população por confirmar o que se dizia ou se falava a meia voz durante a ditadura, ficava exposta diante de todos naqueles documentos. Com a aparição dos mesmos, os processos judiciais se destravaram e inúmeros repressores acabaram na cadeia. O exministro do Interior Sabino Augusto Montanaro, pediu asilo em Honduras de onde voltou em maio de 2009 e morreu em setembro de 2011. Todo este tempo esteve em prisão domiciliar devido à idade avançada e ao estado de saúde. Alfredo Stroessner se refugiou em Brasília, nunca prestou contas à justiça e faleceu em 2006. Em um nível internacional, os arquivos serviram como suporte documental para inúmeros processos realizados contra repressores • 55 argentinos, uruguaios e chilenos pela sua participação no desaparecimento de pessoas no âmbito da Operação Condor. Por outra parte, a partir dos arquivos, as vítimas e/ou familiares de desaparecidos puderam documentar a detenção e/ou desaparecimento do familiar, de maneira a ter acesso à reparação econômica (lei n. 838/1996 e suas modificações). A Comisión de la Verdade y Justicia durante sua investigação encontrou nos arquivos uma fonte documental de grande valor para cotejar os testemunhos proporcionados pelas vítimas. Isto permite afirmar que o primeiro valor irrefutável do arquivo é, pois, sua contribuição jurídica. O segundo valor é o histórico. Encontra-se ali quase meio século de história oculta do Paraguai, visões da conjuntura e justificativas ideológicas de um período da história regional pouco estudado ainda. As relações de poder; a sujeição à doutrina de segurança nacional; o nível de conhecimento e influência das administrações norte-americanas; os diversos graus de resistência ou conivência dos partidos opositores e o sufocante controle que sofria a população em geral sobre suas atividades, podem ser compreendidos de uma forma melhor por meio de inúmeros relatórios e análises dos que tomavam conta da segurança do Estado. Em terceiro lugar tem um valor político importante. Depois do aparecimento dos arquivos, a visão da sociedade e, sobretudo das novas gerações, sobre o “stronismo” mudou radicalmente. As violações dos direitos humanos já não podiam ser negadas, não era possível dizer que o ditador desconhecia o que seus colaboradores faziam. O olhar que os paraguaios teriam sobre o regime seria muito mais condescendente se não existissem as provas encontradas nestes arquivos. Desde o ponto de vista documental, os arquivos se constituíram em um acervo indispensável para as pesquisas que se voltaram ao estudo, entre outros temas, da Operação Condor. Nos anos recentes se publicaram inúmeros livros de autores de várias partes do mundo sobre este tema, em maior ou menor grau, todos se valeram destas fontes documentais. Em nenhum outro país da região se achou um material tão compacto e completo sobre os anos da repressão. Por último, e não menos importante, deve se destacar seu valor simbólico, já que eles se converteram em um símbolo em si mesmo. No Paraguai a palavra memória esta indefectivelmente ligada aos arquivos. O reconhecimento da competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, segundo o decreto n. 16.078, do dia 8 de janeiro de 1993, entre outras razões expressa: “o descobrimento dos arquivos, ocultos durante tanto tempo, que dão notícias de fatos aberrantes e singularmente atentatório a dignidade das pessoas no passado, fazem que tal declaração seja imposta”. 56 • Pela lei n. 561/1995, de dia 22 de dezembro – dia do primeiro achado –, foi declarado o “Dia da Dignidade”. Em julho de 2009, o Arquivo foi reconhecido como patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco através do Programa Memória do Mundo. O Centro-Museu é um lugar de visita para estudantes de todos os níveis, passagem obrigatória para visitantes e pesquisadores estrangeiros, além de ser uma fonte de inspiração para outras iniciativas com relação à memória. Não só se limita às atividades administrativas e de apoio à justiça nacional e regional. Desde seu início cumpre o papel de divulgador de informação e está comprometido com as ações de iniciativa da sociedade civil para a recuperação da memória histórica. Referências ALBERCH I FUGUERAS, Ramon. Archivos y derechos humanos. Gijón: Ediciones Trea, 2008. (Colección Archivos Siglo xxI). BOCCIA PAZ, Alfredo; PALAU AGUILAR, Rosa; SALERNO, Osvaldo. Paraguay: los Archivos del Terror. Los papeles que resigniicaron la memoria del stronismo. Asunção: Servilibro, 2008. BOCCIA PAZ, Alfredo; GONZáLEZ, Myrian Angélica; PALAU AGUILAR, Rosa. Es mi informe. Los archivos secretos de la policía de Stroessner. Assunção: CDE, 1994. ONU. Oicina del Alto Comisionado. Instrumentos del Estado de derecho para sociedades que han salido de un conlicto: programas de reparaciones. Genebra, 2015. • 57 58 • VERDADE, JUSTIÇA, REPARAÇÃO, MEMÓRIA: O ARQUIVO HISTÓRICO DA POLÍCIA NACIONAL DA GUATEMALA Velia Muralles* Parabenizo os organizadores do 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos: memória, verdade, justiça e reparação, tema vigente hoje mais do que nunca, pelos acontecimentos vivenciados há meses na região sul-americana, de acordo com as vozes que alertam sobre um “Novo Plano Condor”. Para os jovens, o Plano Condor foi uma atividade coordenada e repressiva que funcionou desde a metade dos anos de 1970 até o início dos anos de 1980, para perseguir e eliminar militantes políticos, sociais, sindicais e estudantis de nacionalidade argentina, uruguaia, chilena, paraguaia, boliviana, brasileira e que converteu a América Latina em um sanguinário laboratório. Honrando a memória, a verdade e a justiça de milhares de vítimas, no dia 27 de maio de 2016, o Tribunal Federal nº 1 da Argentina ditou sentença condenatória pelos delitos de lesa-humanidade, cometidos no âmbito do Plano Condor, no caso conhecido como Automotores Orletti, baseado em centenas de testemunhos e milhares de documentos probatórios. Isso traz à tona a importância dos arquivos públicos e privados, que documentam não só o terror e as ações dos perpetradores, mas também são o testemunho da resistência, das lutas e das conquistas obtidas pelos povos. O Centro de Documentação e Memória Sindical da Central Única dos Trabalhadores do Brasil é sem dúvida um bom exemplo e seus documentos são testemunho da mobilização social e da continuidade da luta para alcançar a justiça social. Arquivos têm um valioso sentido pedagógico e de memória para as novas gerações. Nunca as conquistas dos povos foram fáceis, pelo contrário, sempre resultaram de décadas de lutas dos trabalhadores, e contra eles se cometeram vários tipos de crimes: sequestros, assassinatos, execuções extrajudiciais, desaparecimento forçado, encarceramento por motivos políticos, tortura e exílio. Novamente se sentem as pegadas do animal grande. Os avanços do intercâmbio sul-sul, da União das Nações Sul-Americanas (Unasur), da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), do Conselho de Defesa Sul-Americano, do Banco Sul são intoleráveis para a * Archivo Histórico de La Policía Nacional, Cidade de Guatemala, Guatemala. • 59 voracidade dos grandes interesses nacionais e transnacionais e por isso ameaçase a estabilidade política e econômica das nações que integram a região Sul. Querem repetir a história, aplicar ajustes estruturais, eliminar o investimento social em educação e saúde, acabar com os direitos alcançados pelos trabalhadores e desmontar a integração regional que ameaça seus vorazes interesses. Continuam criminalizando as lutas sociais, a defesa de nossos territórios, os recursos naturais e a biodiversidade. Os povos exigem e demandam conhecer a verdade, obter justiça, proporcionar reparação, construir memória e garantias de não repetição, cinco grandes realidades e desafios da sociedade e nesse caminho os arquivos cumprem um papel fundamental pela informação que contêm em seus documentos. Nossa experiência na América Latina tem demonstrado que somos capazes de transformar a informação em ações em prol do exercício dos direitos humanos individuais e coletivos. Como ilustração, cito afirmação do doutor Gonzalo Sánchez, diretor do Centro Nacional de Memoria Histórica da Colômbia: “A questão dos arquivos é realmente um assunto político, se tem em conta que a informação e a sua guarda é essencialmente um fator de poder”. A Guatemala e o Arquivo Histórico da Polícia Nacional A tragédia ocorrida na Guatemala durante a segunda metade do século xx está registrada no relatório Guatemala Nunca Más do Projeto Interdiocesano de Recuperação da Memória Histórica (REMHI) e no relatório Guatemala, memoria del silencio da Comisión para el Esclarecimiento Histórico (CEH). Esta Comissão – a Comissão da Verdade da Guatemala – foi estabelecida pelas partes assinantes dos acordos de paz, especificamente no denominado Acordo de Oslo.1 Com certeza podemos dizer que seu trabalho, relatório, conclusões e recomendações têm sido um instrumento inestimável para reconstruir o passado, preservar a memória histórica, dar voz às vítimas e exercer os direitos fundamentais da verdade, justiça e não repetição, além de ter efeito reparador para a sociedade. No dia 25 de fevereiro de 1999, a Comissão entregou seu relatório Guatemala, memoria del silencio no qual suas conclusões são contundentes: 93% das violações cometidas foram responsabilidade das forças de segurança do Estado que aplicou sistematicamente uma estratégia contrainsurgente. O saldo de vítimas de duzentos mil mortos é estarrecedor, incluídos 45 mil detidos-desaparecidos, entre eles cerca de cinco mil crianças que foram arrebatadas dos seus lares. 1 60 • Assinado em Oslo, Noruega, em 23 de junho de 1994. Operações de terra arrasada com 626 massacres documentados; 86% das vítimas pertencentes ao povo maia; estupro sistemático de mulheres como método de tortura e como ritual prévio aos massacres. Grande quantidade de meninos e meninas foram vítimas diretas de execuções arbitrárias, desaparições forçadas, tortura e violências sexuais. O relatório reconheceu que uma de cada quatro das vítimas diretas das violações dos direitos humanos e atos de violência era mulher. O terror sem precedentes, provocado pelos massacres, e a devastação de aldeias inteiras no período compreendido entre 1981 e 1983, desencadeou a fuga massiva de uma população, cuja maioria estava constituída por comunidades maias. A estimativa sobre o número de deslocados é de um milhão e meio de pessoas, incluindo as que se deslocaram internamente e as obrigadas a buscar refúgio em outro país. A mais grave das conclusões estabelece que “agentes do Estado da Guatemala, no marco das operações contrainsurgentes realizadas entre os anos 1981 e 1983, executaram atos de genocídio contra grupos do povo maia”. Afirma-se ainda que haviam evidências de que referidos atos foram cometidos “com a intenção de destruir total ou parcialmente a ditos grupos”. A Comissão se baseou nas evidências obtidas em seu trabalho de campo à luz da Convenção para a Prevenção e Sanção do Delito de Genocídio. Para dimensionar a magnitude destes dados, há que se ressaltar que no começo dos anos de 1980 a Guatemala escassamente superava os oito milhões de habitantes. A luta contra a impunidade e o esquecimento. O acesso à informação oficial não tem sido tarefa fácil O Estado da Guatemala negou sistematicamente o acesso aos acervos documentais que possibilitassem a investigação e apuração dos fatos do passado. Até a presente data, os arquivos do Exército e dos aparelhos de inteligência continuam reservados para o Ministério Público. Apesar de tudo, agora a sociedade conta, entre outros acervos documentais, com o arquivo administrativo da Polícia Nacional, que está a serviço dos direitos humanos e da memória histórica. O fato de contar com fontes documentais oficiais foi transcendental para a história e a justiça na Guatemala. A Polícia Nacional da Guatemala A Polícia Nacional da Guatemala foi uma das forças de segurança que esteve subordinada ao Ministério de Governo e operou sob o comando do Exército durante o conflito armado interno. • 61 O seu arquivo foi descoberto de forma casual pela instituição do procurador dos direitos humanos, no dia 5 de julho de 2005, nas instalações do Complexo de Serviços de Desativação de Explosivos da Polícia Nacional Civil. Nesse lugar, o procurador realizava uma investigação, após uma denúncia que lhe foi formulada de guarda de explosivos que punham em risco a população que residia nas áreas próximas. O acervo documental descoberto corresponde ao arquivo administrativo da Polícia Nacional, contendo aproximadamente cinco mil e trezentos metros lineares de documentos, com uma temporalidade que abrange 115 anos de história da Guatemala e da instituição policial. Os documentos estão intimamente relacionados com a aplicação da política contrainsurgente e são de grande valor administrativo, científico, cultural, histórico, social e judicial. Essa descoberta despertou um sentimento de esperanza e urgencia para obter informações. A demanda provinha de organizações de vítimas, familiares de detidos desaparecidos, organizações de direitos humanos e, por outro lado, do Ministério Público e outros sujeitos processuais, na procura de informações e meios de prova úteis nos casos que julgam graves violações aos direitos humanos acontecidos durante o conflito. As repartições que conformaram a Polícia Nacional documentaram de forma regular as ações que realizaram. A informação registrada nos seus documentos são produto e testemunho da sua atuação e também de outras forças de segurança e inteligência do Estado. Durante seus ciclos de vida e como garantia da sua autenticidade, os documentos permaneceram custodiados em instalações do Estado da Guatemala. No último trimestre de 2005, um contingente de jovens proveniente de organizações de familiares de vítimas e de defensores dos direitos humanos colocou em prática o titânico processo de resgate destes milhares de documentos que se encontravam em estado crítico de conservação. O acervo documental encontrado estava destinado à total destruição, em condições ambientais de exposição a elementos como água, milhares de roedores, morcegos, baratas e pragas conhecidas no mundo dos arquivistas, traças, mariposas e, ainda mais grave, sem pessoal que orientasse seu conteúdo com relação às estruturas de procedência e muito menos com práticas de arquivo. Onze anos depois, afirmamos que organizamos o arquivo da extinta Polícia Nacional da Guatemala sob os princípios da arquivologia, respeito à procedência e à estrutura hierárquica do fundo segundo as funções da unidade produtora. Sua Unidade de Acesso à Informação acompanha o serviço de referência e entrega de cópia, simples ou autenticada, dos documentos de interesse, 62 • e isso de forma gratuita. Garantir este direito ao cidadão modificou significativamente os processos de recuperação da memória histórica e política do país e ampliou de maneira substancial as possibilidades de se conhecer a verdade, além de ter contribuído para a aplicação da justiça e a luta contra a impunidade. Com a descoberta do Arquivo da Polícia Nacional e o acesso à informação que resguardam seus documentos, surgiu uma trilogia constituída pelos inestimáveis testemunhos das vítimas, a evidência científica da antropologia forense e a prova documental que é a contribuição deste arquivo. A longa luta contra a impunidade na Guatemala continua avançando. Nos últimos seis anos se conseguiu avançar o dobro de processos judiciais que nas quatro décadas anteriores. Oficiais, superiores e subalternos foram imputados como culpados e sentenciados por desaparecimento forçado, tortura, execuções extrajudiciais, violência sexual e escravidão sexual contra mulheres indígenas, assassinatos e sequestro de crianças. Na Guatemala, durante o conflito armado, as organizações e movimentos sociais e sindicais foram apontados como parte do inimigo interno, suas lideranças foram perseguidas, assassinadas, sofreram desaparecimentos forçados, exílio, refúgio, deslocamento interno massivo. A repressão destruiu suas sedes de trabalho, lares, pertences e documentos. Alguns arquivos foram levados para o exílio, outros foram resguardados sob as entranhas da terra, outros queimados, diante daquele terror. Posso garantir que passado vinte anos após a assinatura dos Acuerdos de Paz, alguns valiosos fragmentos de arquivos, testemunhos da afronta, continuam na escuridão. As forças de segurança e de inteligência também se apropriaram dos arquivos dos trabalhadores Algumas séries documentais do Arquivo comprovam o controle e a infiltração em manifestações e assembleias de trabalhadores, a perseguição de líderes sindicais e seus familiares, as detenções individuais e coletivas e posterior desaparecimento dos seus dirigentes. Podemos mencionar algumas, como a série Documentación incautada, a Expedientes de secuestro y desaparición, e a série Recursos de exhibición personal que registrou a incansável procura que as famílias fizeram por seus entes queridos. O Arquivo Histórico da Polícia Nacional, com seu trabalho, contribui para a recuperação da memória histórica, o esclarecimento da verdade e a justiça para as vítimas, seus familiares, o povo da Guatemala e suas novas gerações. • 63 64 • MEMÓRIAS REVELADAS E A PAVIMENTAÇÃO DA TRAJETÓRIA DEMOCRÁTICA BRASILEIRA Vicente Rodrigues* Notas introdutórias A junção de políticas públicas e direitos humanos tem se firmado, principalmente a partir dos anos de 1940, nos cenários nacional e internacional, em um conjunto de leis que impõem aos Estados obrigações a respeito de tais políticas, tendo por horizonte a construção de sociedades mais humanas, nas quais fossem seguidos padrões universais mínimos de proteção às pessoas. Contudo, embora seja tentador analisar esse processo como algo “dado”, isto é, consequência “macia” e automática do desenvolvimento histórico das sociedades, na verdade o que se observa é o desenvolvimento de um processo temperado por dificuldades, permeado por avanços e retrocessos, endurecido pela luta dos povos. É nesse contexto que pode ser compreendida, a nosso ver, a pavimentação da trajetória “democrática” brasileira desde a ditadura estabelecida em 1964 até as lutas contemporâneas em busca da preservação (ou recuperação!) da democracia em nosso país. Mas, nesse andar, como falar em democracia, justiça e igualdade para o Brasil de hoje sem que seja quitado o saldo da violência histórica do Estado contra os direitos humanos?1 Em particular, como se furtar a enfrentar a questão das graves violações de direitos humanos perpetradas durante o último e longo período ditatorial brasileiro no século xx? De fato, durante os anos de 2009 a 2014, o debate público sobre essas graves violações experimentou, no Brasil, um momento singular e estimulante, com a crescente pressão da sociedade civil visando ao esclarecimento de casos de graves violações de direitos humanos e por * Mestre em direito pela UFRJ e membro do grupo de pesquisa do CNPq Trabalhadores e Ditadura Civil-Militar no Brasil, da PUC-Rio. Assessor da direção-geral do Arquivo Nacional para o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, Rio de Janeiro, Brasil. 1 A expressão “direitos humanos” é aqui compreendida, de forma geral, como um grupo de direitos historicamente construídos que têm como destinatários todos os seres humanos. Isto é, representa posições jurídicas ativas de direitos comuns a todas as pessoas, pelo simples fato de serem humanas (COMPARATO, F. K. Airmação histórica dos direitos humanos). • 65 maior transparência pública.2 Foi nesse período de cinco anos que se criaram o Centro de Referência Memórias Reveladas e a Comissão Nacional da Verdade e que se promulgou a nova Lei de Acesso à Informação (LAI). Contudo – dura constatação – persiste, ainda, a necessidade de reforçar o entendimento coletivo de que o período da ditadura militar, que vai de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985, foi marcado, na história política e social brasileira, por violações sistemáticas de direitos humanos – inclusive assassinatos, desaparecimentos forçados, prática da tortura por motivos políticos –, bem como pela negação de valores democráticos e pelo arbítrio do Estado. De acordo com pesquisa publicada, em março de 2014, pelo Datafolha, para 16% da população brasileira tanto faz se o governo é democrático ou uma ditadura, 14% defendem que em certas circunstâncias é melhor uma ditadura do que um regime democrático e 8% não souberam responder. 3 Mais recentemente, em 2017, um pré-candidato à presidência da República abertamente favorável aos governos militares, e que por mais de uma vez defendeu publicamente a prática da tortura e o assassinato de inimigos do regime, assumiu o segundo lugar em pesquisa de opinião pública. 4 Esse quadro de desconhecimento ou negação dos valores democráticos, associado à não responsabilização de perpetradores de violações de direitos humanos, traz impactos diretos para a atuação dos órgãos de segurança, como é evidenciado pelo fato de que a polícia brasileira apresenta índices de letalidade “escandalosos”, com em média mil mortos por ano somente no estado de São Paulo, conforme dados apresentados pela Anistia Internacional em 2014. 5 Assim, sem memória e sem justiça, reproduzem-se e multiplicam-se práticas, usos e costumes lastreados na impunidade e no esquecimento. Nesse contexto, a adoção de políticas específicas de memória para enfrentar esse passado está no centro da chamada justiça de transição, cujo 2 Exemplo disso foi a criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, mas cujas atividades se iniciaram apenas em 2012, e a entrada em vigor da nova Lei de Acesso à Informação (LAI). lei n. 12.527/2011, referida também pelo nome de Lei de Acesso às Informações ou, ainda, Lei de Acesso às Informações Públicas. 3 Disponível em: <htp:https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2014/03/1433561-brasileiros-preferem-democracia-mas-sao-criticos-com-seu-funcionamento.shtml>. Acesso em: 12 jun. 2014. 4 Pesquisa CNT/MDA, encomendada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e divulgada em 15 de fevereiro de 2017. 5 ROQUE, Atila. Letalidade da PM é escandalosa, diz diretor da Anistia Internacional. Portal Ponte Jornalismo. Entrevista da André Caramante. Disponível em: <htps:https://ponte.org/ letalidade-da-pm-de-sp-e-escandalosa-diz-diretor-da-anistia-internacional-no-brasil/>. Acesso em: 22 jul. 2015. 66 • conceito será abordado mais adiante. Por ora, cabe lembrar que a justiça de transição tem por função não somente garantir o entendimento do que ocorreu, mas, também, reforçar a compreensão de que não é possível a um povo (re)conhecer a si próprio sem entender o legado de sua história política e social. Nesse processo, as iniciativas voltadas para a recuperação e difusão de informações contidas nos arquivos da repressão e da resistência assumem posição de destaque, em meio a tensões e disputas pela memória. Defender que a memória é um bem público não significa deixar de reconhecer que ela mesma é resultado dos contextos e dos agentes que a constroem.6 Assim, a memória pode ser apropriada e transformada para cumprir diferentes objetivos e agendas. Sobre este aspecto, cabe lembrar a afirmação de Marx & Engels7 de que as “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que tem a força material na sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante”. Extrapolando a acertiva, é possível afirmar que a memória de uma época também é a memória da classe dominante, daí a importância de disputá-la. Da mesma forma, é importante observar que a memória pode ser construída e reconstruída a partir de fontes diversas, como, por exemplo, os documentos recolhidos aos arquivos brasileiros, os livros de uma determinada biblioteca pública, os registros audiovisuais de um colecionador particular ou, ainda, os relatos orais de pessoas que viveram determinadas situações. Isto é, a multiplicidade de fontes encerra desafios e possibilidades. Tendo esse horizonte em vista, buscaremos discutir, neste artigo, a experiência do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (19641985) – Memórias Reveladas, iniciativa criada pelo governo federal, em 2009, com o objetivo de promover a difusão de informações contidas em conjuntos documentais do período da ditadura. Para tanto, buscaremos caracterizar o Memórias Reveladas, o que inclui analisar criticamente seus desafios, e situá-lo como parte de um quadro mais amplo de iniciativas recentes da justiça de transição no Brasil e na América do Sul. O Brasil, assim como outros países sul-americanos, passou pela experiência de um regime ditatorial, com protagonismo das Forças Armadas, na segunda metade do século xx, como a Argentina (1976-1983), o Uruguai (1973-1985) e o Chile (1973-1990). Mas, ao contrário do Brasil, esses países aplicaram, logo após o reestabelecimento de eleições diretas, mecanismos de justiça de transição com o objetivo de averiguar violações de direitos 6 CARBONARI, P. C. PNDH 3: por que mudar? Portal Carta Maior. 7 MARx, K.; ENGELS F. A ideologia alemã, p. 41. • 67 humanos praticadas no período ditatorial, incluindo mecanismos judiciais voltados à punição de torturadores e assassinos. Em sentido contrário, os primeiros mecanismos brasileiros foram estabelecidos apenas na segunda metade da década de 1990, isto é, quase uma década após a transição política, e sem que ocorresse a responsabilização criminal ou mesmo cível de perpetradores de violações, o que pode ser explicado, pelo menos em parte, a partir das diferentes circunstâncias históricas que condicionaram as transições do Brasil e de outros países da América do Sul.8 Portanto, é possível afirmar que a experiência brasileira de justiça de transição é excepcionalmente tardia, 9 ainda que o seu ritmo tenha se acelerado nos últimos anos, com a criação, em 2009, do Centro de Referência Memórias Reveladas e, em 2011, com a promulgação da LAI10 e com o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que encerrou atividades, com a entrega do seu relatório final, em dezembro de 2014. Justiça de transição: conceitos e desenvolvimento No Brasil, a expressão “justiça de transição” vem, em anos recentes,11 popularizando-se na imprensa e na academia, o que deriva, em grande parte, da criação da Comissão Nacional da Verdade e de dezenas de outras comissões da verdade estaduais, municipais, universitárias etc. De forma a esclarecer o que exatamente queremos dizer quando nos referimos à justiça de transição, cabe apontar, inicialmente, que entendemos esse conceito como aquele referente ao: 8 Na Argentina, por exemplo, as eleições diretas foram restabelecidas em 1983, mesmo ano no qual se encerrou o governo militar e foi instalada a comissão da verdade daquele país, denominada de Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep). Tal rapidez derivou, em grade parte, da desmoralização do regime militar argentino em virtude da derrota na Guerra das Malvinas (1982). Sem tempo para organizar a transição, a maior parte dos líderes da ditadura argentina terminou na cadeia, incluindo o último presidente da ditadura, Reynaldo Bignone, condenado, em 2011, aos 83 anos, à prisão perpétua por crime de lesa-humanidade. 9 A experiência internacional no campo da justiça de transição não registra nenhum outro caso no qual uma comissão da verdade foi estabelecida mais de duas décadas depois do im do período de exceção ou conlito. 10 A Comissão Nacional da Verdade foi estabelecida pela lei n. 12.528, de 18 de novembro de 2011, mesma data de promulgação da LAI. 11 Apenas a título de exemplo, cerca de 90% das matérias que trazem a expressão “justiça de transição” no portal de jornal de maior circulação nacional, a Folha de São Paulo, datam de 2008 em diante, ano em que começou a ser discutido o PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos n. 3, aprovado em 2009) que, no âmbito do Estado, trouxe, pela primeira vez, a previsão de criação da Comissão Nacional da Verdade. 68 • Amplo espectro de processos e mecanismos utilizados pela sociedade para que esta chegue a um determinado acordo sobre violações de direitos humanos ocorridas no passado, de forma a garantir a responsabilização dos culpados, promover a justiça e alcançar a reconciliação. Isso pode incluir tanto mecanismos judiciais como extrajudiciais, com diferentes níveis de participação da comunidade internacional.12 Com base nessa definição, consagrada pela Organização das Nações Unidas (ONU), Soares 13 formulou verbete no Dicionário de direitos humanos da Escola Superior do Ministério Público da União,14 no qual define a justiça de transição como o [...] conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias utilizados para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecer as instituições com valores democráticos e para garantir a não repetição das atrocidades. Por seu turno, Teitel,15 ao propor uma “genealogia” da justiça de transição, defende que ela pode ser definida como “a concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito jurídico que têm por objetivo enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado”. Pouco difere esta definição da proposta por Van Zyl,16 segundo a qual a justiça de transição é “o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos”. A partir dessas definições, pode-se extrair que a justiça de transição não é uma justiça especializada,17 ou temática, com competência exclusiva para tratar de casos que envolvam violações maciças de direitos humanos. Antes, trata-se de um conjunto de “mecanismos, abordagens e estratégias” ou de “processos e mecanismos” utilizados em períodos de mudança política 12 ONU. The Rule of Law and Transitional Justice in Conlict and Post-Conlict Societies, p. 4. 13 SOARES, I. V. Justiça de transição. In: Dicionário de direitos humanos. 14 Disponível em: <htp:https://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php>. Acesso em: 2 fev. 2013. 15 TEITEL, R. Genealogia da justiça transicional. In: REáTEGUI, F. (org). Justiça de transição: manual para a América Latina, p. 135. 16 VAN ZYL, P. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conlito. In: REÁTEGUI, F. (org), op. cit., p. 47. 17 Nesse sentido, a justiça de transição não se assemelha, por exemplo, à Justiça Eleitoral ou à Justiça Militar, que são especializadas em determinados temas. • 69 para enfrentar um legado histórico de violações de direitos humanos. Nessa direção, Mezarobba afirma que os “mecanismos, abordagens e estratégias” consistem em iniciativas tais como processar criminosos; estabelecer comissões de verdade e outras formas de investigação a respeito do passado; esforços de reconciliação em sociedades fraturadas; desenvolvimento de programas de reparação para aqueles que foram mais afetados pela violência ou abusos; iniciativas de memória e lembrança em torno das vítimas; e a reforma de um amplo espectro de instituições públicas abusivas (como os serviços de segurança, policial ou militar).18 A s comissões da verdade, bem como as iniciativas voltadas à abertura de arquivos de polícia política, têm vinculação direta com a efetivação do direito à memória e à verdade, 19 no sentido de garantir, em primeiro lugar, que a verdade sobre as violações sistemáticas dos direitos humanos venha à tona e, em sequência, que os fatos relacionados a essas violações não sejam esquecidos para que não se repitam – o que pressupõe a adoção de uma série de iniciativas destinadas a garantir a preservação dessa memória. Contudo, não há receita pronta para a adoção de mecanismos de justiça de transição, ou mesmo um pacote fechado de medidas necessárias, pois cada país tem seu próprio modo de lidar com o passado violento. Conforme aponta Hayner, a doutrina internacional é unânime ao afirmar que o processo de justiça de transição deve ser adaptado à realidade de cada país. 20 Trata-se, assim, de um processo necessariamente peculiar e nacional, no seio do qual cada governo, cada sociedade, deve encontrar seu próprio caminho para lidar com o legado de violência do passado, bem como para criar mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade, dentre outros. Nesse mesmo sentido, aponta a autora norte- 18 MEZAROBBA, G. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um estudo do caso brasileiro, p. 37. 19 É possível conigurar o direito à memória e à verdade como aquele vinculado ao direto de conhecer um passado marcado por violações de direitos humanos. Trata-se, conforme aponta SILVA FILHO, J. C. M. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade, p. 78-79, de um direito transindividual que alcança “os mais diversos grupos da sociedade civil”. Por outro lado, é um direito que representa “as mais diversas formas de reivindicação e concretização, não estando necessariamente preso à legislação estatal”, tendo em vista que “sua formulação e reivindicação continuam a existir mesmo que a legislação imponha políticas de esquecimento” (ibidem, p. 79). 20 HAYNER, P. B. Unspeakable Truths: Facing the Challenge of Truth Commissions, p. 7. 70 • americana que, após décadas de aplicação da justiça de transição em diferentes países do mundo, [...] resta agora muito claro que cada situação transicional vai diferir daquelas que vieram antes dela, e que as necessidades, circunstâncias, cultura política e oportunidades potenciais vão também variar. Cada país que passa a abordar os desafios da justiça de transição o fará de forma única, de acordo com um conjunto de políticas e responsabilidades articuladas ao contexto nacional. 21 Ou seja, não é possível falar de um único modelo “correto” para a justiça de transição, e não será jamais adequado impor modelos estrangeiros, por mais bem-sucedidos que eles tenham sido alhures. De toda forma, cabe referir Van Zyl, 22 ao lembrar que, desde a década de 1990, o desenvolvimento da justiça de transição vem se dando, dentro da área dos direitos humanos, sob dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, porque a justiça de transição deixou de ser uma “aspiração do imaginário”, passando a representar “a expressão de obrigações legais vinculantes” a partir do seu progressivo reconhecimento por parte de tribunais nacionais, bem como de sua positivação na ordem internacional. Em segundo lugar, porque tem sido destacada a sua participação no processo democrático em muitos lugares do mundo, em especial na América Latina, na áfrica e na ásia. Primeiros passos da justiça de transição no Brasil No Brasil, como antecedentes do processo que culminou com a criação do Memórias Reveladas, e que também deu origem à LAI e à Comissão Nacional da Verdade, cite-se que a Lei da Anistia (lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979) determinava, logo em seu artigo 1º, que seria concedida anistia política “a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, tivessem cometido crimes políticos ou conexos com este”, além de crimes eleitorais, e aos que tiveram os seus direitos políticos suspensos, aos servidores públicos e aos dirigentes e representantes sindicais que foram punidos com fundamento em atos institucionais e complementares. Apesar de sua importância histórica, a Lei da Anistia não representou a consagração integral das teses defendidas pelo movimento popular pela anistia, que propugnava por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. 21 Idem. 22 VAN ZYL, P., op. cit., p. 48. • 71 De fato, em seu artigo 2º, o referido diploma legal excluiu da anistia todos aqueles que tivessem tomado a via da ação armada contra o regime ditatorial, ao determinar que fossem excetuados os “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Por outro lado, conforme aponta Sales: A aprovação da lei 6.683, no dia 28 de agosto de 1979, que oficializou a anistia brasileira para os crimes praticados durante o período ditatorial, não significou o final das lutas de setores da sociedade civil pela redemocratização. Aprovada sob forte crítica do principal movimento organizado em prol da anistia, os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs), essa lei nunca conseguiu aplacar as divergências em torno da forma como deveria ser o acerto de contas da sociedade com o seu passado ditatorial. Ao anistiar, ao mesmo tempo, torturadores e torturados, a lei abriu fissuras na sociedade que até hoje não foram fechadas.23 De toda forma, a Constituição Federal de 1988 trouxe inegável avanço para o desenvolvimento da justiça de transição no Brasil. Ainda hoje, o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)24 vem sendo utilizado como fundamento legal para a maior parte das ações de reparação tomadas pelo governo brasileiro. Interessante observar que o referido dispositivo ampliou o leque de destinatários da anistia, principalmente ao deixar de fazer distinção entre aqueles que resistiram dentro da legalidade autoritária do período do regime civil-militar e aqueles que, ao contrário, tomaram o caminho das armas, como os militantes dos diversos grupos clandestinos de oposição ao regime.25 23 SALES, J. R. Ditadura militar, anistia e a construção da memória social. In: SILVA, H. R. K. da. A luta pela anistia, p. 27. 24 Diz o referido dispositivo: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo decreto legislativo n. 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo decreto-lei n. 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos”. 25 Como exemplos desses grupos, cite-se a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Ação Popular (AP), o Comando de Libertação Nacional (Colina), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Nenhum desses grupos sobreviveu aos anos de 1970, desarticulados que foram pela forte repressão do Estado ditatorial. 72 • Da mesma forma, outro marco no processo de construção da justiça de transição “à brasileira” pode ser situado com a promulgação da lei n. 9.140, de 4 de dezembro de 1995, por intermédio da qual o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade no desaparecimento forçado e assassinato de opositores políticos no período abrangido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.26 Nesse sentido, o Estado brasileiro já reconhece, desde 1995, que as pessoas que desapareceram sob a custódia das forças de segurança do regime militar foram, na verdade, assassinadas. Esse reconhecimento possui uma significativa importância moral para os familiares de desaparecidos políticos, no sentido de afirmá-los como vítimas da repressão, e não, conforme apontava o discurso oficial do regime, como “gente que simplesmente resolveu mudar de lado e fugir”. 27 Por outro lado, tem também importância para a sobrevivência financeira das famílias dos desaparecidos políticos, ao viabilizar a obtenção de pensões e indenizações através de processos administrativos ou judiciais. No que se refere à dimensão da reparação, cabe apontar que o art. 8º do ADCT foi regulamentado pela lei n. 10.559, de 13 de novembro de 2002, por intermédio da qual se estabeleceu o “Regime do anistiado político” (art. 1º, caput), o qual implica no reconhecimento aos seguintes direitos: declaração da condição de anistiado político (art. 1º, I); reparação econômica de caráter indenizatório, em virtude de punição ou ameaça de punição sofrida durante o período do regime civil-militar brasileiro (II); contagem de tempo de serviço do profissional que foi compelido a se afastar de suas atividades (III); conclusão de curso para estudantes que foram obrigados a abandonar os estudos (IV); e reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos por motivos políticos (V). Ainda sobre a dimensão da reparação, conforme apontam Abrão e Torelly: É correta a percepção de que é a anistia brasileira – coerente com a luta histórica dos perseguidos políticos que a sustentaram 26 Posteriormente, o termo inal foi alterado pela lei n. 10.536, de 14 de agosto de 2002, passando a vigorar o art. 1º com a atual redação: “São reconhecidas como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias”. 27 Esse discurso continua sendo reproduzido, de forma agressiva, por intermédio de sites e mailing lists de “clubes virtuais” de militares da reserva, tais como “Terrorismo Nunca Mais” (<htp:https://www.ternuma.com.br>), “A Verdade Sufocada” (<htp:https://www.averdadesufocada. com>) e Clube Virtual dos Militares da Reserva e Reformados da Aeronáutica (<htp:https://www. reservaer.com.br>). Daí a importância de detalhar as violações dos direitos humanos ocorridas no período de 1964-1985. • 73 – que levou a Comissão de Anistia a promover uma “virada hermenêutica” nas leituras usualmente dadas à lei n. 10.559/2002: não se trata da simples reparação econômica, mas gesto de reconhecimento das perseguições aos atingidos pelos atos de exceção. Tanto é assim que, a partir de 2007, a Comissão passou a formalmente “pedir desculpas oiciais” pelos erros cometidos pelo Estado consubstanciado no ato declaratório da anistia política.28 Dessa forma, é possível conceituar que a primeira fase do desenvolvimento da justiça de transição, no Brasil, envolveu, principalmente, ações de reparação. Contudo, essa dimensão não se refere apenas ao aspecto financeiro, mas, também, à reparação moral ou simbólica, por meio do pedido de desculpas oficial do Estado brasileiro, além da recuperação de determinadas posições jurídicas, como a retomada de cursos acadêmicos por parte de alunos que foram perseguidos pelo regime militar, ou a reintegração de servidores públicos exonerados por motivos políticos. Memórias Reveladas e um sombrio legado documental No que se refere diretamente à abertura de arquivos da repressão política como meio de promoção do direito à memória e à verdade, o marco inicial desse processo deu-se por ocasião do V Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre (RS), de 26 a 31 de janeiro de 2005, quando foi debatida a importância dos arquivos no Brasil e na América Latina, bem como sobre sua função estratégica na garantia de direitos humanos fundamentais. Durante o evento, levantamentos preliminares, realizados pelo Arquivo Nacional, já apontavam que o Brasil era detentor do maior acervo documental sul-americano sobre a repressão política na segunda metade do século xx, dados que foram posteriormente confirmados, estimando-se, atualmente, que o acervo é composto por aproximadamente 28 milhões de páginas de documentos textuais, além de documentos em outros formatos, como o acervo audiovisual e iconográfico.29 No referido V Fórum Social Mundial, ficou consignada a promessa governamental de se criar um centro de referência capaz de reunir, de forma sistemática, dados e informações sobre o acervo arquivístico referente ao 28 ABRÃO, Paulo.; TORELLY Marcelo D. Justiça de transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS, B. de S. et. al. (org.). Repressão e memória política no contexto ibero-brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal, p. 46. 29 O relatório de cinco anos do Memórias Reveladas estima em 13 milhões da páginas o acervo sob custódia do Arquivo Nacional, além de outras 16 milhões de páginas sob guarda de arquivos públicos em todo o Brasil. 74 • tema da repressão e resistência política e social no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, sob a guarda de diversas entidades públicas e privadas de nosso país. A proposta de constituição de um centro com tais características, formulada pela então Secretaria Especial dos Direitos Humanos, atualmente Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, resultou na criação de um grupo de trabalho com o objetivo de “elaborar projeto para a implantação de um centro de referência que venha a abrigar informações [...] sobre as violações dos direitos humanos durante o período da ditadura militar no Brasil”, conforme portaria da SEDH n. 21, de 21 de fevereiro de 2005. O Centro de Referência Memórias Reveladas somente seria criado, contudo, em 13 de maio de 2009, tendo como objetivos institucionais “contribuir para o aprimoramento da democracia brasileira, possibilitando o acesso a documentos sobre o período do regime militar, inclusive suas imagens digitais”.30 Trata-se, portanto, de uma iniciativa que procura facilitar e popularizar o conhecimento da história recente do Brasil, a exemplo do Archivo Nacional de la Memoria da Argentina, que também tem por objetivo geral articular diversas instituições que têm sob sua guarda acervos do período ditatorial. Antes mesmo da criação do Memórias Reveladas, cabe notar, já eram perceptíveis os primeiros movimentos em direção à abertura e difusão dos arquivos produzidos ou acumulados pela ditadura brasileira. Em decorrência do decreto n. 5.584, de 18 de novembro de 2005, já tinham sido recolhidos ao Arquivo Nacional, em sua Coordenação Regional no Distrito Federal, os documentos arquivísticos públicos produzidos e recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional (CSN), Comissão Geral de Investigações (CGI) e Serviço Nacional de Informações (SNI), o que ampliou em mais de vinte vezes o acervo da Coordenação Regional sobre o regime militar, passando de dois para 43 fundos documentais.31 O Brasil, país cujas dimensões se assemelham a de um continente, possui uma ampla gama de instituições e entidades custodiadoras de acervos, de diversas naturezas e cronologias. Esses repositórios da cultura nacional32 têm grande importância para que seja possível repensar a história contemporânea brasileira, incluindo a história do último período ditatorial. Conforme aponta Silva: 30 Relatório anual do Centro de Referência Memórias Reveladas, p. 3. 31 Conjunto de documentos de uma mesma proveniência (Dicionário brasileiro de terminologia arquivística, p. 97). 32 COIMBRA, M. N. O dever de não esquecer como dever de preservar o legado histórico. In: SANTOS, B. de S. et. al. (org.), op. cit. • 75 Nas sociedades contemporâneas, o direito à memória tem sido compreendido como parte dos direitos do homem. O direito à informação, com a revolução ocorrida nos arquivos a partir da Segunda Guerra Mundial, transcendeu as fronteiras nacionais – não se trata mais de uma questão restrita à cidadania. Diante da magnitude da questão, o Estado tem o dever de zelar pela preservação e pelo compartilhamento, através da divulgação, dos conjuntos documentais que se encontram sob a sua guarda. E, ainda, procurar aquele patrimônio documental que, apesar de produzido por ele, encontra-se desconhecido da sociedade, perdido.33 Nesse sentido, a justiça de transição brasileira, em que pese o fato de ter se desenvolvido com excepcional atraso, conta com a vantagem estratégica na perspectiva dos direitos humanos, em relação a outras experiências sulamericanas, em especial as da Argentina, do Chile e do Uruguai: tem à sua disposição farto material arquivístico. Apenas a título de rápida comparação, o Chile, que experimentou um regime ditatorial particularmente brutal até mesmo para os padrões sulamericanos, tem poucos registros identificados de fontes oficiais sobre o período de exceção (1973-1990). Entretanto, cabe destacar a existência de acervos privados de organizações não governamentais (ONGs) e arquivos da Igreja Católica, liberados para a consulta, com restrições para os documentos que possam vir a ferir a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O pequeno acervo de origem pública, atualmente disponível no Archivo Nacional de Chile, foi acumulado, principalmente, a partir dos trabalhos da Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación do Chile, e tem seu acesso regulado pelo Ministério do Interior, privilegiando os tribunais, os advogados e os familiares de vítimas da repressão.34 No Uruguai, da mesma forma, são poucos os acervos públicos sobre o período da repressão (1973-1985), ainda que exista um número significativo de documentos, como no caso chileno, provenientes de ONGs, com acesso regulado pelas mesmas, levando-se em consideração o resguardo da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Por seu turno, a Argentina criou, em 2003, durante o governo Néstor Kirchner (2003-2007), o Archivo Nacional de la Memoria, instituição ligada à Secretaria de Derechos Humanos e encarregada de reunir, em microilmes 33 SILVA, J. A. O Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas. Acervo, revista do Arquivo Nacional, p. 15. 34 CHILE. Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación; SILVA, J. A. Entrevista a Vicente Rodrigues. 76 • e meios digitais, documentos localizados em diversas instituições do país, públicas e privadas, tanto em nível municipal quanto provincial. Considerados em sua totalidade, esses diferentes acervos compreendem cerca de dois milhões de páginas digitalizadas, além de publicações e registros de imprensa. Estão abertos à consulta, da mesma forma que os arquivos chilenos e uruguaios, isto é, com restrição de acesso a informações que possam ferir a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.35 A criação do Centro de Referência Memórias Reveladas promoveu a articulação em rede de diversas entidades custodiadoras de acervos do período ditatorial, em todas as regiões do país. A rede é composta, majoritariamente, por arquivos públicos e centros de documentação de universidades, públicas e privadas. Como exemplo de atuação em rede, citese que, no âmbito dos acervos estaduais, o Memórias Reveladas desenvolveu ações em 13 estados, com o objetivo principal de garantir a preservação de acervos dos Dops (Departamentos de Ordem Política e Social).36 As ações desse projeto, realizado entre os anos de 2009 e 2011, foram patrocinadas por intermédio da Lei Rouanet (lei n. 8.313, de 23 de dezembro de 1991), permitindo a criação de um banco de dados com informações sobre os acervos documentais da ditadura, disponível pela Internet.37 Um dos principais desafios do Memórias Reveladas foi o estabelecimento de critérios legais para a abertura dos arquivos da ditadura. Anteriormente à aprovação da LAI (lei n. 12.527/2011), o acesso a informações públicas de proveniência federal, no Brasil, encontrava-se regulado por dispositivos constantes na lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991 (derrogada), que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados para o país, e na lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005 (ab-rogada), que regulamentava a parte final do disposto no inciso xxxIII do art. 5º da Constituição, em especial no que tange à classificação de documentos públicos no grau de ultrassecretos. 35 SILVA, J. A. Entrevista a Vicente Rodrigues; ARGENTINA. Relatório anual do Archivo Nacional de la Memoria. 36 Os Dops atuavam como braços estaduais do Sisni (Sistema Nacional de Informações e Contrainformação), que tinha como cabeça de sistema o SNI (Serviço Nacional de Informações). 37 Contudo, cabe apontar que uma limitação do Banco de Dados Memórias Reveladas refere-se ao baixo índice de digitalização de documentos de polícia política, evidenciando a necessidade de novos investimentos em ações que contemplem esse aspecto, que é fundamental para a ampla difusão das informações contidas nos acervos do período ditatorial. Até fevereiro de 2014, pouco mais de trinta mil representantes digitais constavam no Banco de Dados, número modesto levando-se em consideração o gigantesco acervo documental brasileiro. Em sentido contrário, o Banco de Dados traz informações sobre mais de trezentos mil registros documentais do período de 1964-1985, ainda que boa parte dos documentos em questão não tenha sido digitalizada. O Banco de Dados pode ser acessado no endereço <htp:https://www.memoriasreveladas.gov.br>. Da mesma forma, cabe destacar que estão disponibilizados para consulta presencial mais de 10 milhões de documentos digitalizados do período. • 77 Da mesma forma, a legislação anterior trazia a previsão de prorrogação ad aeternum do prazo de sigilo no grau ultrassecreto, embora essa faculdade tenha sido utilizada residualmente, de tal forma que, segundo Silva, 38 a questão do sigilo em razão da segurança da sociedade e do Estado praticamente não se afigurou, após 2005, como um elemento impeditivo para o acesso público à documentação do regime militar, até mesmo pelo decurso de prazo. Contudo, quanto ao estabelecimento de critérios que pudessem nortear o acesso aos documentos do período do regime militar que trouxessem informações pessoais, a regulamentação em questão não era de grande utilidade, uma vez que ambas as leis 8.159/1991 e 11.111/2005 limitaram-se a reproduzir 39 o texto constitucional, ao determinarem que tanto o direito de acesso a informações quanto o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem deveriam ser observados, sem estabelecer qualquer indicativo de como isso deveria, na prática, ser feito. O legislador, aliás, lembrou-se de estabelecer, na lei n. 8.159/1991, em até cem anos o prazo de sigilo para os documentos que versassem sobre a intimidade, esquecendo-se, contudo, de estabelecer quais seriam os critérios para a fixação desse prazo, bem como de que forma se faria a gradação sugerida pela preposição “até”. Some-se a essa dificuldade o fato de que os conceitos de “intimidade”, “vida privada”, “honra” e “imagem”, apesar de razoavelmente bem delimitados pela doutrina jurídica, não estão descritos em lei ou regulamento, e que a lei n. 8.159/1991, ao mesmo tempo em que determinava à administração pública que franqueasse a consulta aos documentos públicos (art. 5º), também ameaçava com a responsabilização “penal, civil e administrativa” quem violasse o sigilo da informação (art. 6º), e não é preciso muito mais40 para caracterizar o quadro de confusão e insegurança que antecedeu a aprovação da LAI. Esse quadro de insegurança jurídica, como é natural, não contribuiu para o estabelecimento, no Brasil, de critérios universais e homogêneos de acesso nos órgãos detentores de acervos de polícia política. No que se 38 SILVA, J. A. Entrevista a Vicente Rodrigues. 39 O artigo 22 da lei n. 8.159/1991 estabelecia que “é assegurado o direito de acesso pleno aos documentos públicos”, ao passo que o § 1º do art. 23 estabelecia que os documentos cuja divulgação pusesse em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, são originariamente sigilosos. A mesma dualidade pode ser encontrada nos artigos 2º e 7º da lei n. 11.111/2005. 40 De toda forma, é possível citar, ainda, que o decreto n. 5584, de 18 de novembro de 2005, determinava, em seu art. 10, restrição de acesso aos documentos que se referissem “à intimidade da vida privada de pessoas”. 78 • refere especialmente aos órgãos federais, foi somente com a nova LAI que se estabeleceu o acesso integral 41 a documentos referentes aos órgãos de repressão política no período de 1964-1985. Antes, esse acesso era restrito aos próprios retratados na documentação, ou, ainda, aos seus familiares, no caso de desaparecidos políticos ou pessoas já falecidas – e somente porque, nessas hipóteses, não era possível configurar qualquer risco de violação ao direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem de pessoas. Atualmente, a partir de sugestões do Memórias Reveladas e do Arquivo Nacional, a LAI determina que qualquer pessoa pode ter acesso aos documentos recolhidos aos arquivos públicos, sem que precise sequer declinar as razões pelas quais deseja ter acesso a determinado documento.42 No Arquivo Nacional, já é possível acessar, presencialmente, cerca de 12 milhões de documentos digitalizados, podendo-se realizar a busca por palavras e expressões de forma automatizada.43 A digitalização foi planejada em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade. No quadro abaixo, estão destacados alguns desses fundos, de acordo com o volume. Os mais volumosos acervos do período de 1964-1985 (Arquivo Nacional) Nome do fundo Nº de páginas Serviço Nacional de Informações 3.499.974 Estado-Maior das Forças Armadas 837.493 Divisão de Segurança e Informações do MRE 634.565 Conselho de Segurança Nacional 561.758 Divisão de Segurança e Informações do Ministério da 300.300 Justiça Divisão de Informações da Petrobras 282.178 Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais 196.000 Fonte: Relatório de digitalização de acervos de interesse da CNV, de 27 de maio de 2014. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2014. Cabe apontar, também, que, apesar dos grandes avanços obtidos com a LAI, permanecem desafios para o acesso à informação produzida ou acumulada pelo Estado brasileiro no período de 1964-1985. De forma geral, podemos resumir esses desafios em relação à questão “desaparecimento” de acervos do Sistema Nacional de Informações e Contrainformação (Sisni), 41 Alternativamente, o art. 7º da lei n. 11.111/2005 permitia o acesso parcial às informações “por meio de certidão ou cópia do documento, que expurgue ou oculte a parte sobre a qual recai o disposto no inciso x do caput do art. 5º da Constituição Federal”. 42 A LAI aplica-se a órgãos e entidades dos três Poderes, em todos os níveis da federação. Em alguns estados, como no Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, a LAI foi regulamenta por decretos estaduais. 43 No jargão arquivístico, foi realizada a “ocerização” (Optical Character Recognition – OCR), isto é, o reconhecimento óptico de caracteres. • 79 bem como ao fato de que diversos acervos de interesse para a reconstrução da memória histórica, tanto públicos como privados, ainda não passaram por tratamento arquivístico adequado, que permita não somente a conservação, mas também a difusão das informações contidas nesses documentos. Conforme indicado por Ishaq e Franco,44 dos 249 órgãos identificados como componentes desse sistema, apenas 15% tiveram seus acervos recolhidos ao Arquivo Nacional. Ainda que inúmeros novos recolhimentos tenham sido registrados após 2008, sobretudo entre os anos de 2011 e 2013, o que elevou o percentual para aproximadamente 20%, 45 a maior parte dos conjuntos documentais do Sisni permanece não localizada, incluindo os acervos do CIE (Centro de Informação do Exército), Cenimar (Centro de Informação da Marinha) e a maior parte do acervo46 do Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) que, em tese, poderiam conter informações importantes sobre desaparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos. Se levarmos ainda em consideração os conjuntos documentais que, apesar de localizados, ainda não foram objeto de tratamento arquivístico que permitisse a ampla difusão de informações, chegaremos à conclusão de que há um rico patrimônio documental sobre o período da ditadura militar a ser prospectado no Brasil. Nesse sentido, o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV) representou uma oportunidade ímpar para a localização de importantes registros da repressão política no Brasil, e foi de fato de se lamentar que pouca ou nenhuma pista sobre o destino da documentação dos centros de inteligência das Forças Armadas tenha sido descoberta até o fim das atividades da Comissão. Ou seja, não obstante a importância do estabelecimento da CNV, foram tímidas suas contribuições para a 44 ISHAQ, V.; FRANCO, P. E. Os acervos dos órgãos federais de segurança e informações do regime militar no Arquivo Nacional. Acervo, revista do Arquivo Nacional. 45 Em grande parte, os novos recolhimentos são uma resposta à iniciativa do Ministério da Justiça, levada a efeito por intermédio do Arquivo Nacional, que solicitou a todos os órgãos do governo federal que realizassem buscas por documentos do período de 19641985, em especial da documentação de órgãos do extinto Sisni. Entre os acervos recolhidos, destaca-se o da Divisão de Informações da Petrobras, tanto pelo grande volume (131.277 microfichas, 426 rolos de microfilmes e 1,32 m de documentos textuais), como por representarem um testemunho da repressão praticada contra a categoria dos trabalhadores petroleiros. 46 Em 2010, foram localizadas, em meio a um lote de documentos de natureza administrativa da Aeronáutica, 189 caixas de documentos do Cisa, contendo, aproximadamente, cinquenta mil documentos referentes ao período de 1964 a 1985, incluindo informações sobre Ernesto Che Guevara, Fidel Castro e Carlos Lamarca. Os documentos foram recolhidos ao Arquivo Nacional e estão acessíveis. Não obstante, trata-se de apenas uma parcela da documentação total do Cisa, e na qual é possível perceber que foi feita uma seleção (SILVA, J. A. Entrevista a Vicente Rodrigues). 80 • localização de acervos desaparecidos, registrando-se o recolhimento de apenas um novo grande conjunto documental ao Arquivo Nacional: a Divisão de Informações da Petrobras. Embora não tenha propiciado o recolhimento de novos acervos, é bem verdade que a CNV foi fundamental para que os acervos já recolhidos ao Arquivo Nacional, e integrados ao Memórias Reveladas, fossem digitalizados. A partir daquele que ainda hoje mantém o título de maior programa de digitalização de acervos da repressão política na América do Sul, mais de 12 milhões de páginas de documentos textuais foram copiados digitalmente e seus representantes estão hoje disponíveis para consulta pública. O relatório final da CNV traz centenas de referências a esses documentos. Casos como o do ex-deputado Rubens Paiva indicam bem a importância desses arquivos como elementos fundamentais para que se possa promover a recuperação da história de um povo, sobretudo quando essa história se refere a um passado no qual ocorreram graves violações de direitos humanos perpetradas por motivos políticos. No referido caso, somente foi possível desmontar a versão dos fatos dada pelo general José Antônio Nogueira Belham, implicado na morte e desaparecimento do corpo do ex-deputado, a partir da utilização de documentos de arquivo, produzidos pelo próprio Estado repressor e, atualmente, recolhidos ao Arquivo Nacional.47 Ainda sobre esse aspecto, cabe apontar que a importância dos acervos da repressão, sobretudo aqueles relacionados à polícia política, não reside no fato de conterem “verdades”. Conforme alertou Marx, no volume VI de O capital, “toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas”. 48 Nesse sentido, os acervos esclarecem menos a respeito da verdade sobre os “fatos” que os agentes da ditadura pretendiam registrar, e mais sobre a forma como se produzia e se controlava a informação durante o regime autoritário. Igual realidade se percebe nos trabalhos desenvolvidos no âmbito da Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça que promove políticas de reparação, e cujos processos são, normalmente, instruídos por depoimentos de vítimas e de testemunhas de graves violações de direitos humanos e, também, por documentos públicos, que funcionam como 47 O relatório do caso Rubens Paiva pode ser encontrado no portal da Comissão Nacional da Verdade, disponível em <htp:https://www.cnv.gov.br>. No relatório constam os documentos de arquivo utilizados pela Comissão. O caso também é referido no relatório inal da Comissão Nacional da Verdade, disponível no mesmo endereço eletrônico. 48 MARx, K. O processo global da produção capitalista. In: O capital: crítica da economia política, p. 939. • 81 elemento de corroboração indireta dos relatos (documentos de polícia política, em regra, não confirmam diretamente a versão da vítima. Mas a partir das omissões e deturpações desses registros, ou do mero descuido do agente da repressão, que registrou “o que não deveria”, ou aquilo que não parecia tão importante na época, é que frequentemente se pode chegar à verdade). O utras vertentes de atuação do Centro de Referência Memórias Reveladas referem-se à promoção de eventos49 e de concurso monográfico que premia trabalhos que utilizam fontes do período da ditadura militar. O concurso denominado “Prêmio Memórias Reveladas de Pesquisa” já se encontra em sua terceira edição, e é aberto para participação de qualquer pessoa, independentemente de titulação acadêmica. Não obstante todas essas iniciativas, e a importância das mesmas para a construção de uma política nacional de arquivos, cabe apontar que o Centro de Referência não conta com orçamento próprio, o que levanta questões a respeito da continuidade de suas atividades no futuro, isto é, de seu reconhecimento enquanto ação de Estado, bem como representa obstáculo para o aperfeiçoamento e atualização de seus recursos tecnológicos, como bancos de dados digitais. Isso é particularmente desafiador em virtude da atual conjuntura, com as “mudanças” de quadros e de orientação em outros mecanismos de justiça de transição, como a Comissão de Anistia e a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos. Considerações finais Neste artigo, buscou-se investigar a criação e o desenvolvimento do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, identificado como um mecanismo de justiça de transição voltado para a questão dos arquivos do período da ditadura militar. Para tanto, foi necessário, ainda que rapidamente, discutir o próprio conceito de justiça de transição e, principalmente, refletir como ela vem se desenvolvendo no Brasil, bem como identificar as peculiaridades que a conformam. A justiça de transição foi compreendida como um conjunto de mecanismos, abordagens e estratégias, utilizados em períodos de mudança política, para enfrentar legados históricos de violações de direitos humanos. 49 Cite-se, como exemplos, o Seminário Acesso a Informações e Direitos Humanos (2010), a oicina Fontes para o Estudo do Regime Militar (2010), o 1º Seminário Internacional Documentar a Ditadura (2013) e o 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos (2016), este feito em parceria com a CUT Brasil, eventos de âmbito nacional ou internacional promovidos pelo Memórias Reveladas, alguns em colaboração com universidades e/ou instituições de pesquisa. 82 • Ou seja, falar em justiça de transição é falar em um determinado rol de ações que devem ser executadas em períodos de pós-conflito, visando à não repetição de atrocidades. Por outro lado, procurou-se compreender as características próprias que a justiça de transição no Brasil pós-1985 assumiu, isto é, após o fim da ditadura militar brasileira, articulando o Memórias Reveladas a dois outros mecanismos de justiça de transição recentemente criados, a Comissão Nacional da Verdade e a nova LAI, que têm vinculação direta com o chamado direito à memória e à verdade, compreendido como um direito transindividual de saber a verdade sobre violações de direitos humanos ocorridas no passado. No que se refere ao acesso a informações públicas, coube apontar que o Brasil é detentor do maior conjunto documental de origem pública sobre a repressão política na região sul-americana. Daí a importância do Memórias Reveladas, que busca articular diferentes instituições custodiadoras de acervos, e da nova Lei de Acesso à Informação, que veio disciplinar adequadamente o acesso a essa gigantesca documentação do período do regime militar. Memórias Reveladas surge a partir de pressões da sociedade brasileira, reforçando-se a compreensão de que a memória é um bem público que se encontra na base do processo de construção da identidade social, política e cultural de um país. Nesse sentido, o Centro é o resultado visível de várias iniciativas em prol da consolidação de uma política pública de valorização do patrimônio documental brasileiro. O contínuo crescimento da rede de instituições parceiras (Rede Memórias Reveladas) que, em 2017, atingiu cerca de cento e trinta integrantes, indica, por um lado, que o Memórias Reveladas é, atualmente, reconhecido como um importante polo difusor de informações sobre o período da ditadura militar e, por outro lado, evidenciou a necessidade de ampliar e aperfeiçoar as ações do Centro de Referência, ainda que em uma conjuntura política difícil. Assim, ao mesmo tempo em que se deve reconhecer os avanços dos últimos anos, faz-se necessário, também, reconhecer o muito que há a ser feito, suplantando o silêncio e o esquecimento por intermédio de ações concretas e permanentes de promoção do direito à memória e à verdade. Referências ABRÃO, Paulo; TORELLY Marcelo D. Justiça de transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS, B. de S. et. al. (org.). Repressão e memória política no contexto ibero-brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça; Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra/Centro de Estudos Sociais, 2010. • 83 ARGENTINA. Secretaria de los Derechos Humanos. Relatório anual do Archivo Nacional de la Memoria. Buenos Aires, 2011. Disponível em: <htp:https:// www.derhuman.jus.gov.ar/anm/index.html>. Acesso em: 11 out. 2012. ARQUIVO NACIONAL. Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) - Memórias Reveladas. Relatório semestre 2013.1. Mimeo. BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L6683.htm>. Acesso em: 18 nov. 2012. ______. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 13 set. 2012. ______. Lei n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Disponível em: <htp:https:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm>. Acesso em: 14 nov. 2012. ______. Lei n. 9.140, de 4 de dezembro de 1995. Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências. Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L9140.htm>. Acesso em: 18 nov. 2012. ______. Decreto n. 4.553, de 27 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da Administração Pública Federal, e dá outras providências. Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/2002/D4553.htm#art69>. Acesso em: 14 nov. 2012. ______. Lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005. Regulamenta a parte inal do disposto no inciso xxxIII do caput do art. 5o da Constituição Federal e dá outras providências. Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2005/lei/l11111.htm>. Acesso em: 14 nov. 2012. ______. Decreto n. 5.584, de 18 de novembro de 2005. Dispõe sobre o recolhimento ao Arquivo Nacional dos documentos arquivísticos públicos produzidos e recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional (CSN), Comissão Geral de Investigações (CGI) e Serviço Nacional de Informações (SNI), que estejam sob a custódia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/ Decreto/D5584.htm>. Acesso em: 14 nov. 2012. ______. Portaria n. 204, de 13 de maio de 2009. Casa Civil da Presidência da República. Cria o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, no âmbito do Arquivo Nacional da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: <htp:https://www. 84 • portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/Portaria%20204. pdf>. Acesso em: 18 nov. 2012. ______. Decreto n. 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) e dá outras providências. 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Regulamenta a lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso xxxIII do caput do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição. Disponível em: <htp:https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Decreto/D7724.htm>. Acesso em: 8 nov. 2012. ______. Lei n. 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: <htps:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em: 18 nov. 2012. ______. Relatório parcial de pesquisa. Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2013. Disponível em: <htp:https://www.cnv.gov.br/images/pdf/cnv_parcial.pdf>. Acesso em: 1 set. 2013. CARBONARI, P. C. PNDH 3: por que mudar? Portal Carta Maior. Disponível em: <htp:https://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_ id=16334>. Acesso em: 17 set.2015. CHILE. 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Brasília: Ministério da Justiça; New York: ICTJ, 2011. 88 • ACORDO DE PAZ NA COLÔMBIA: PERSPECTIVA DA COMISSÃO DA VERDADE Girolamo Domenico Treccani * Edgar Castro Lasso ** Los sueños que se logran son los que se intentan… Edgar Castro Lasso Introdução Em países que saem de períodos intensos de repressão ou de enfrentamentos armados internos, o objetivo da reconciliação nacional apresenta, impreterivelmente, a necessidade de encontrar caminhos para as reivindicações sobre a verdade e a justiça, que incluem exigências de reparação às vítimas e a não repetição. É o caso, por exemplo, de uma ditadura que começa a se abrir para um regime constitucional, ou quando se inalizam negociações com acordos de paz que põem im a uma guerra civil. A violência política nas suas diversas manifestações é uma violação dos direitos humanos e constitui uma ruptura profunda com o sistema democrático e o Estado de direito. Isso acontece em várias regiões do mundo, nas ações de genocídio, no apartheid, nas execuções sumárias, nos falsos enfrentamentos, no desaparecimento forçado, na tortura, nas prisões ilegais, nas restrições ilícitas à liberdade, no exílio massivo, nos banimentos e deslocamentos forçados da população, nos confiscos ilegais, individuais ou coletivos, nas infrações graves às liberdades fundamentais e no desconhecimento dos direitos econômicos e sociais das amplas maiorias. Nessa ordem de ideias, existem violações dos direitos humanos que começaram a se visualizar na década de 1980 e que fazem referência a diversas situações: as da Argentina e Chile, relacionadas a conjunturas pósditatoriais; as de El Salvador e Guatemala, tentativas de buscar soluções políticas negociadas para conflitos armados internos, com a assessoria da Organização das Nações Unidas (ONU); a da África do Sul, que se pensou como ponte para superar um prolongado período de segregação racial institucionalizada, emaranhada ademais em um conflito armado; e a da antiga Iugoslávia, que sofre intervenção da comunidade internacional para superar agudos conflitos entre etnias, carregados de violência. Na história da humanidade, a busca pela verdade e justiça em sociedades marcadas por violações graves dos direitos humanos tem se intentado, em alguns países, por meio da criação de comissões extrajudiciais * ** Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Brasil. Doutorando em Direito do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, Belém, Brasil. • 89 de investigação, com o objetivo de se obter uma solução para os problemas gerados por esses abusos, reestabelecer a veracidade dos fatos, reparar o dano causado e originar um processo de reconciliação nacional que supere as profundas divisões sociais dos seus povos e restaure as normas mínimas do Estado de direito. Embora a comunidade internacional tenha realizado grandes esforços durante as últimas décadas para salvaguardar a paz, muitos povos têm vivido um quadro grave de violações dos direitos humanos, que, além de transgredir as normas do sistema internacional de direitos humanos, vem desafiando as bases institucionais das sociedades modernas e da convivência pacífica. Colômbia em números O regime político colombiano é difícil de analisar. Isso se deve não só a alguns fatores ambíguos e paradoxais que se apresentam há décadas, como também ao fato de que o cenário dos direitos humanos, da violência e do Estado de direito vem mudando durante os últimos anos, nos quais a situação evoluiu de maneira complexa e produziu resultados multicausais. Se fizermos uma análise estrutural, ou de longo alcance, do regime político colombiano, encontraremos não poucos paradoxos. Nos últimos 150 anos, em comparação aos vizinhos latino-americanos, exceto por um breve período, a Colômbia não viveu uma ruptura democrática que tenha levado a uma ditadura militar. Durante mais de cinquenta anos, o conflito armado na Colômbia, que possui múltiplas causas, 1 tem ocasionado sofrimento e danos sem precedentes à população. Colombianos e colombianas são vítimas do deslocamento forçado, há milhares de mortos, dezenas de milhares de desaparecidos de toda índole e um amplo número de coletivos e populações afetados ao longo do território. As comissões da verdade As comissões da verdade surgiram inspiradas na doutrina internacional de direitos humanos, que garante categoricamente às vítimas e seus familiares o direito de conhecimento, justiça e reparação. Elas cumprem 1 90 • PÉCAUT, Daniel. Un conlicto armado al servicio del statu quo social y político. In: C O L ÔM B I A . Comisión Histórica del Conlicto y sus Victimas. Contribución al entendimiento del conlicto armado en Colombia. “Poderíamos acrescentar um fato adicional que impossibilita um relato único. A ausência de uma perspectiva histórica, pois, em grande medida estamos nos referindo a uma ‘história do presente’, dado que ainda persiste a violência política no país. Se ainda continuam vivos os debates em torno à signiicação, por exemplo, das guerras de independência, como pensar que pudesse haver consensos totais sobre processos históricos em curso?”. um dever moral para com essas pessoas, já que definiram como um dos seus principais objetivos o genuíno desejo de que a sociedade reconheça e assuma os fatos que ocorreram em seu seio, concebendo que, desde o conhecimento da verdade sobre o acontecimento, surja a convicção de que a pessoa humana, só pelo fato de ser humana, deve ser considerada e amparada nos seus direitos inalienáveis, e que nenhuma circunstância pode permitir que esses direitos sejam violados. Essas instâncias constituem uma grande contribuição para se recopilar e cautelar, em forma de memória histórica, aquele passado que foi negado e ocultado. Inclusive, há países onde não se pode fazer justiça ou, no mínimo, lutar por justiça em casos de crimes de lesa-humanidade. As comissões pelo menos permitem que se conheça a verdade do ocorrido e, nesse sentido, abrem a possibilidade de reparar, embora limitadamente, o dano causado. Observando o destaque que essas comissões têm ocupado nas negociações políticas, sobre a melhor maneira de se enfrentar um passado caracterizado pelo abuso e pela violência institucional em países que, na atualidade, transitam para uma abertura democrática, as lições que se vislumbram das comissões que já concluíram seu mandato são particularmente urgentes. Como nos casos de Peru, Timor Leste, Costa do Marfim e Bósnia-Herzegovina, entre outros. A luta contra a impunidade e o direito das vítimas de obter reparações pelas violações dos direitos humanos, bem como o direito internacional humanitário, são áreas específicas que se incorporaram recentemente no marco do direito internacional público. Trata-se de dois campos específicos do direito internacional que se desprendem de duas linhas: do reconhecimento do sofrimento das vítimas e da necessidade de enfrentar fatos que ultrajam a consciência da humanidade.2 Tanto a luta contra a impunidade como o direito de serem obtidas reparações derivam da obrigação geral de todos os Estados de respeitar e fazer serem respeitados os direitos humanos, concretamente em relação aos deveres estatais, no âmbito da administração da justiça. 2 Doc. ONU E/CN.4/RES/2005/81: “O conjunto atualizado de princípios para a proteção e a promoção dos direitos humanos por meio da luta contra a impunidade” (princípios internacionais sobre a luta contra a impunidade). Princípios aprovados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, resolução sobre impunidade n. 2005/1981, que toma nota do conjunto atualizado de princípios – como diretrizes que ajudem os Estados a desenvolver medidas eicazes para lutar contra a impunidade –, reconhece a aplicação regional e nacional dos princípios e adota outras disposições a respeito. • 91 Comissão para o esclarecimento da verdade e estabelecimento da justiça, da convivência e da não repetição Signiicados de comissão Segundo a Real Academia Española: Comissão:3 conjunto de pessoas encarregadas pela lei, ou por uma corporação ou autoridade, de exercer determinadas competências permanentes ou de dominar algum assunto específico. Inicialmente, é necessário considerar que as comissões da verdade não são necessariamente o resultado de um processo de paz. Quando se examinam os estudos sobre o tema, percebe-se que a maioria das comissões surgiu em contextos de transição política, particularmente de ditaduras ou regimes repressivos para regimes democráticos. No entanto há uma série de comissões que apareceram durante processos de paz. O acerto de contas com um passado violento pode tomar diversos percursos e a instituição das comissões é só um deles. Nesses caminhos, contribui-se para um equilíbrio diverso entre verdade, justiça e reparação, abrindo em maior ou menor medida as portas para processos de reconciliação nas sociedades. Em alguns casos, há nas comissões um objetivo explícito de se trabalhar pela reconciliação. Conveniente pensar no caso da África do Sul, onde se encontram distintos modelos de anistia e amnésia. O espectro de possibilidades abrange desde o esquecimento do acontecido até modelos que buscam no máximo possível a verdade, a justiça e a reparação, segundo as condições políticas conjunturais. Em termos de definição do que é uma comissão da verdade, os especialistas fazem referência àqueles corpos investigativos que, reconhecidos publicamente por parte do Estado, têm como foco revelar os padrões de abuso que se cometeram no passado; suas atividades se desenvolvem em um período de tempo definido que tende a ser de dois anos, mas houve comissões de menor e de maior vigência. Segundo o que foi colocado por Priscilla Hayner,4 possivelmente uma das investigadoras que mais trabalharam no tema, há cinco objetivos básicos: a) descobrir, esclarecer e, formalmente, reconhecer os abusos que se cometeram; b) responder às necessidades específicas das vítimas; c) contribuir para a justiça e a prestação de contas; d) assinalar a responsabilidade institucional e recomendar as formas; e e) promover a 3 REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua española. 4 HAYNER, Priscilla. Verdades innombrables: el reto de las comisiones de la verdad. 92 • reconciliação e reduzir o conflito sobre o passado. Esses objetivos podem ser encontrados de maneira transversal em diversas comissões, com ênfase em alguns deles. Colômbia: breve história Na Colômbia, depois das ditaduras da metade do século xx, se impôs o silêncio da Frente Nacional, 5 o pacto bipartidário orientado pelo documento elaborado por Laureano Gómez e Alberto Lleras Camargo, que incluiu a ideia de deixar no esquecimento o acontecido entre 1948 e 1958. De maneira tímida, atribuem-se culpas ao governo “tirânico” do general Gustavo Rojas Pinilla, e o resto da história fica encoberta pela tese do “enfrentamento fratricida” ou da “violência sectária”. A Comissão para o Estudo das Causas da Violência, criada pela Junta Militar em 1958, se desfez depois de haver percorrido várias regiões, realizando entrevistas, promovendo pactos de cessar as hostilidades e acumulando documentos. A tarefa de esclarecimento foi assumida, em 1962, pela Universidade Nacional, na Faculdade de Sociologia criada por Orlando Fals Borda e Camilo Torres Restrepo. O grupo conformado teve o apoio de empresa privada e a contribuição fundamental do monsenhor Germán Guzmán, que publicou os livros intitulados La violencia en Colombia – o primeiro volume em 1962 e o segundo em 1964. O primeiro relatório de origem oficial se produziu em 1987, a pedido do governo. Trata-se do documento Colombia: violencia y democracia, da Comissão de Estudos sobre a Violência, publicado pelo Instituto de Estudos Políticos e Relações Internacionais da Universidade Nacional. Convocados por Gonzalo Sánchez, um destacado grupo de acadêmicos projetou o estado de ânimo da sociedade e do governo, logo do fracasso das negociações de paz e do holocausto do Palácio da Justiça, durante o governo de Belisario Betancur. A chamada “apologia da violência” ocupou o primeiro lugar em atenção e foi criticada por haver minimizado a dimensão da crise do Estado, do autoritarismo que se sucedeu à Frente Nacional e das guerras que se impuseram sobre as lógicas da violência comum. O que se destacou foi uma tipologia de muitas violências e a tese de que o importante para o Estado era enfrentar “a violência das ruas”. Esse enfoque fragilizou as recomendações da comissão, que incluíam pontos importantes para a reestruturação democrática do país e, em nome de uma convocatória a desconjurar a violência, se deixou de lado a definição de políticas de paz. O enfoque da academia e das políticas públicas para a dimensão da violência cedeu campo da memória às ações de resistência na defesa dos 5 POSSO, Camilo González. Los nombres de la guerra en la memoria histórica. • 93 direitos humanos, no período mais crítico de guerra e terror da história da Colômbia, entre 1985 e 2005. A síntese dessas memórias de resistência é o relatório Colombia Nunca Más, 6 que responsabiliza o Estado pelo paramilitarismo e pelas graves violações dos direitos humanos, bem como das normas do direito internacional humanitário. Junto a esse relatório, elaborado por 17 organizações de defesa dos direitos humanos, hoje avançam processos de “memória viva”, como os liderados pelos seguintes grupos: ONG Reiniciar, vítimas do genocídio da União Patriótica, Comissão Intereclesial de Justiça e Paz e suas comunidades eclesiais de base, Associação de Familiares de Detidos Desaparecidos (Asfaddes), Comitê Permanente de Defesa dos Direitos Humanos, Centro de Pesquisa e Educação Popular (Cinep), Comissão Colombiana de Juristas, Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo, Associação Minga, Rota Pacíica das Mulheres, Casa da Mulher e coletivos de diversas partes do país. Os acordos de paz entre o governo e as guerrilhas, de 1989 a 1993, não deram importância à memória, nem à verdade histórica. A exceção foi o relatório Paciicar la paz, sob a coordenação de Alejandro Reyes Posada, que veio após a desmobilização do Exército Popular de Libertação (EPL) e do Movimento Armado Quintín Lame (MAQL), e que passou despercebido, apesar da documentação contida e das recomendações que fazem seus autores. Até 2012, a política oficial foi ignorar a memória sobre o conflito armado interno, suas determinantes e consequências. Durante a primeira década do século xxI, se estabeleceu como verdade oficial a negação da existência da guerra civil e de crise humanitária ou violações das normas do direito internacional humanitário. Por lei, definiu-se que na Colômbia só poderia se falar de violência de grupos armados ilegais e, em nenhum caso, de responsabilidades por parte do Estado. Apesar dessa política pública, abriram caminho iniciativas como o Grupo de Memória Histórica (GMH) e o Centro de Memória, Paz e Reconciliação. No percurso que vemos por meio dos relatórios sobre a violência e os conflitos armados na Colômbia, constata-se que a abertura para a memória e a verdade histórica ocorre no país a partir da organização das vítimas e de grupos de defesa dos direitos humanos. Nos últimos anos, e no meio do conflito, registra-se um movimento de consciência em todos os níveis, com centenas de iniciativas regionais, nas quais se destaca o papel das mulheres, dos jovens e dos centros acadêmicos. Essa emergência da memória e da verdade históricas, como força transformadora, está impactando também as políticas públicas, iniciativas institucionais e leis de reconhecimento 6 94 • P R O Y E C T O C O L O M B I A N U N C A M ÁS . Memoria de crímenes de lesa humanidad. dos direitos das vítimas. Assim se demonstra, no relatório da Comissão da Verdade sobre os fatos do Palácio de Justiça, apresentado em 2010, e de maneira especial nos documentos do Centro Nacional de Memoria Histórica, que têm sua primeira grande síntese no relatório Basta yá! Colombia: memorias de guerra y dignidad, publicado em julho de 2013. Até agora na Colômbia, um país formalmente democrático e que sofre com o conflito armado interno mais longo da América Latina, estendido por mais de quatro décadas, não se formou uma comissão da verdade sobre a origem da violência generalizada, das guerras e conflitos armados que estão presentes desde a metade do século xx. Apesar disso, foram colocados em andamento alguns mecanismos parciais do que vem sendo denominado de justiça de transição, para enfrentar as violações massivas de direitos humanos, em um contexto no qual ainda se mantém o conflito armado. No entanto, a partir do governo, foram criadas comissões de investigação das causas da violência ou de temas e casos especiais que têm contribuído para a análise histórica, baseados em exercícios de memória; porém, elas não se inscrevem na modalidade do que hoje se entende como uma comissão da verdade. No relatório geral do Grupo de Memoria Histórica, Basta yá! Colombia: memorias de guerra y dignidad, deixa-se de lado a categoria de violência para organizar a narrativa ou a periodicidade, e se privilegia falar de guerra e conflito armado interno. O objetivo do relatório se define entre a determinação da lei n. 975/2005, de estudar as causas e consequências da ação dos grupos armados ilegais, e a pretensão dos pesquisadores de contribuir para o “esclarecimento histórico e a compreensão das causas da guerra na Colômbia”. 7 As diversas modalidades de violência são analisadas desde a perspectiva de graves violações dos direitos humanos e das normas do direito internacional humanitário, escolhendo como período de pesquisa o compreendido entre 1958 e 2012. Sem dúvida, é o mais importante relatório feito por determinação legal sobre as origens e dinâmicas do conflito armado que se produziu na Colômbia; faz parte de um colossal trabalho de pesquisa recolhido em vinte volumes de estudos proporcionados por mais de duzentos pesquisadores. Marco jurídico dos princípios internacionais no ordenamento interno Como resultado do seu valor no direito internacional, os princípios internacionais sobre impunidade e reparações devem ser observados com 7 COLÔMBIA. Centro Nacional de Memoria Histórica. Basta yá! Colombia: memorias de guerra y dignidad. • 95 estrita obrigatoriedade na Colômbia, por mandado expresso da Constituição Política (CP), artigos 9º, 93 e 94. Os princípios internacionais condensam o conteúdo substantivo de direitos fundamentais reconhecidos por tratados gerais de direitos humanos e pela Constituição colombiana e expressam as obrigações do Estado segundo o direito consuetudinário, além de conterem uma formulação explícita de princípios gerais do direito internacional que estão vinculados com a Colômbia. A incorporação com força vinculante desses princípios no marco normativo nacional é um imperativo constitucional expressado por múltiplas vias, já que fazem parte dos princípios que regem as relações internacionais do país e do bloco de constitucionalidade; por exemplo, princípios como força supralegal, ao determinar o conteúdo dos direitos fundamentais à verdade, à justiça e à reparação. De acordo com o artigo 9º da CP da Colômbia, o comportamento do Estado deve reger-se por esses princípios, e seu compromisso com a comunidade de nações inclui a aplicação do seu conteúdo, tal como expressamente se afirma no seu texto: “As relações exteriores do Estado se fundamentam na soberania nacional, no respeito à autodeterminação dos povos e no reconhecimento dos princípios do direito internacional, preceitos aceitos pela Colômbia”. Efetivamente, a Corte Constitucional declarou que a impunidade em casos de violações dos direitos humanos infringe o artigo 9º da Carta e, em sentença de constitucionalidade, estabeleceu que: A impunidade em […] casos de violações dos direitos humanos implica também o descumprimento dos compromissos internacionais do Estado colombiano em colaborar com a vigência dos direitos humanos e penalizar as condutas que afetam estes valores supremos da ordem internacional, que nosso país reconheceu como elementos essenciais das relações internacionais (CP, art. 9º).8 Ambos os grupos de princípios internacionais foram adotados pela ONU para determinar o comportamento esperado dos Estados membros da comunidade de nações em relação aos atos que atentam contra a consciência da humanidade. Nesse sentido, a Assembleia Geral da ONU se manifestou em resolução que aprovou por consenso, quer dizer, com a aceitação de todos os Estados, incluindo o colombiano, os princípios internacionais sobre o direito das vítimas de obter reparações: 8 96 • COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentença C-004, de 20 de janeiro de 2003. M.P. Eduardo Montealegre Lynet. [...] ao fazer valer o direito das vítimas a interpor recursos e obter reparações, a comunidade internacional honra a sua palavra com relação ao sofrimento das vítimas, dos sobreviventes e das futuras gerações e reairma o direito internacional na matéria.9 Manifestação similar se encontra nos princípios internacionais sobre a luta contra a impunidade, cuja adoção foi proposta à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas pelo Grupo Latino-Americano e do Caribe (Grulac), do qual faz parte o Estado colombiano que, em consequência, não só deu sua aceitação, como também fez parte do grupo de países que promoveu a aprovação desses princípios de direito internacional.10 O inciso segundo do artigo 93 da Carta exige que os direitos fundamentais à verdade, à justiça e à reparação sejam interpretados em conformidade com a doutrina estabelecida pelos órgãos internacionais especializados.11 O caso colombiano não fica imune a essa tendência, especialmente agora que, no marco da lei n. 975/2005, 12 procura-se regular o exercício dos direitos das vítimas de crimes de lesa-humanidade perpetrados pelos grupos paramilitares. Desde 2006, o processo de paz na Colômbia gerou mais informação, porque estavam em curso as seguintes ações: a) reformas jurídicas, b) finalização da etapa do processo de desmobilização para dar início às conversações livres, (c) promulgação da Lei de Justiça e Paz (lei n. 975/2005) pela Corte Constitucional, e d) início das investigações e das primeiras detenções dos grupos de autodefesa formados pelo vínculo entre políticos e paramilitares. Desde 1958 até a organização da Comisión Histórica del Conlicto y sus Victimas (CHCV) e da Mesa de Negociações de Havana, funcionaram na Colômbia numerosas comissões de estudo e pesquisa sobre o fenômeno da violência (12 de caráter nacional e três regionais), assim como algumas comissões extrajudiciais para casos especíicos, criadas por decisão governamental, sem que nenhuma delas tivesse o caráter de uma comissão da verdade.13 9 ONU. AG Res. 60/147, de 16 de dezembro de 2005. 10 ONU. Comissão de Direitos Humanos. Resolução sobre impunidade n. 2005/81, de 21 de abril de 2005. 11 COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentença C-010, de 19 de janeiro de 2000. M.P. Alejandro Martínez Caballero (estabelecendo a relevância da jurisprudência da Corte IDH para a determinação dos direitos fundamentais). No mesmo sentido, ver: COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentença T-1319, de 7 de dezembro de 2001, M.P. Rodrigo Uprimny Yepes. 12 COLÔMBIA. Ley de Justicia y Paz (lei n. 975/2005). 13 JARAMILLO, Jeferson. Pasados y presentes de la violencia en Colombia: estudio sobre las comisiones de investigación (1958-2011), p. 27-28. • 97 Diferentemente das outras, a CHCV tem como origem um acordo entre os representantes do governo nacional e os delegados das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), adotado no dia 5 de agosto de 2014 pela Mesa de Negociações de Havana,14 no marco do acordo e da agenda firmados pelas partes para adiantar as conversações de paz. A comissão foi conformada por doze especialistas e dois relatores, com a missão de produzir um relatório sobre as origens e as diversas causas do conflito, os principais fatores e condições que facilitaram ou contribuíram para a sua persistência, e seus efeitos e impactos mais notórios sobre a população. O relatório final, de acordo com o comunicado n. 40 da Mesa de Negociações de Havana, no qual se anunciava a criação da CHCV, e integrado por ensaios dos especialistas e das relatorias, foi definido como um “insumo fundamental para a compreensão da complexidade do conflito e das responsabilidades daqueles que tenham participado ou tiveram incidência no mesmo, e para o esclarecimento da verdade”, como “um insumo básico para uma futura comissão da verdade”, e como uma contribuição para a discussão do ponto cinco da agenda de negociação sobre vítimas.15 Mas, em caso algum, a CHCV tinha a faculdade de determinar responsabilidades individuais, nem de processar os responsáveis. A grande maioria dos colombianos espera, entretanto, que a comissão agora implementada seja a última com essas características, antes do fechamento simbólico de tão longo conflito armado, e almeja uma comissão da verdade, da qual se poderá lançar mão em algum momento adequado no futuro.16 A CHCV foi instalada em Havana no dia 21 de agosto de 2014, tendo sido criada pela Mesa de Negociações de Havana no marco do “Acordo geral para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura”, firmado pelo governo nacional e as Farc no dia 26 de agosto de 2012. 14 Anexo no inal: COLÔMBIA. Comisión Histórica del Conlicto y sus Víctimas. Contribución al entendimiento del conlicto armado en Colombia. 15 No dia 7 de junho de 2014, as partes apresentaram uma declaração de princípios que incluiu o princípio cinco. “O esclarecimento da verdade: esclarecer o acontecido ao longo do conlito, incluindo suas diversas causas, origens e seus efeitos, é parte fundamental da satisfação dos direitos das vítimas e da sociedade em geral. A reconstrução da coniança depende do pleno esclarecimento e do reconhecimento da verdade.” 16 A CHCV não é nem deve se confundir com uma comissão da verdade. A CHCV não constituiu propriamente um canal de expressão das vítimas. Entretanto esses ensaios, tal como airma o acordo feito entre o governo e as Farc, devem servir para essa futura comissão da verdade como um insumo útil e indispensável. 98 • Justiça de transição ou a agenda da verdade, da justiça e da reparação Nos períodos de transição política, colocaram-se em andamento medidas sobre verdade, justiça e reparação para enfrentar as consequências de um passado traumático de violência contra a população, promover reformas ou mudanças institucionais, atender às necessidades das vítimas e possibilitar a reconstrução do tecido social. Essas medidas vêmse denominando, nos últimos tempos, de justiça de transição, como um conjunto de mecanismos e ações tendentes a enfrentar um passado recente de violações massivas dos direitos humanos, em um cenário de mudança do regime político e de geração de novos consensos sociais. Elster17 afirma que “a justiça de transição se compõe de processos, castigos e reparações que têm lugar logo após a transição de um regime político para outro”. Quer dizer, “a justiça transicional se compõe dos processos penais, de depuração e de reparação”. O autor acrescenta, no que ele mesmo chama “a lei da justiça de transição”, que “a intensidade da demanda de retribuição diminui com o intervalo de tempo entre as atrocidades e a transição, e entre a transição e os processos judiciais”. O pensador estadunidense Michael Walzer, por sua vez, emprega a fórmula latina jus post bellum (o direito ou a justiça, após a guerra) para se referir à mesma questão, a qual considera tributária da doutrina da guerra justa.18 A noção de justiça de transição abrange a variedade de processos e mecanismos associados com as tentativas de uma sociedade em resolver os problemas derivados de um passado de abusos em grande escala, com a finalidade de que os responsáveis prestem contas dos seus atos, sirvam à justiça e alcancem a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais ou extrajudiciais e ter diversos níveis de participação internacional (ou carecer por completo dela), assim como abranger o processo de pessoas, o ressarcimento, a busca da verdade, a reforma institucional, a investigação de antecedentes, a remoção do cargo ou combinações de todos eles. Acordo sobre as vítimas do conflito: Sistema Integral da Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição, incluindo a Jurisdição Especial para a Paz (JEP) e o compromisso sobre direitos humanos Após um ano e meio de discussão, os negociadores apresentaram o Sistema Integral da Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição, que se implantará para ressarcir os direitos das vítimas. “Na Mesa de Negociações de Havana, discutimos e chegamos a acordos sobre o ponto cinco da 17 ELSTER, Jon. Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective, p. 1 e 77. 18 WALZER, M. Relexiones sobre la guerra, p. 18, 169, 170, 172, 174. • 99 agenda que inclui os subpontos: direitos humanos das vítimas e verdade”, anunciaram as partes no comunicado conjunto n. 64.19 Cada um dos pontos acordados se articula dentro desse sistema a ser implementado, e esses pontos também dependem de um que ainda está por ser definido em Cuba: o fim do conflito. Segundo anunciaram os envolvidos, trata-se de um sistema que dá ênfase em medidas restauradoras e reparadoras, e cuja pretensão é alcançar justiça não só com sanções de retribuição. Quer dizer, não só seriam imputados alguns anos de prisão dentro de um regime especial (dependendo da sua colaboração com o sistema integral), mas também se contempla a aplicação de sanções restauradoras. As partes foram enfáticas em advertir que não será objeto de anistia, indulto ou tratamentos equivalentes: os delitos de lesa-humanidade, o genocídio, os graves crimes de guerra, a tomada de reféns ou outra privação grave da liberdade, a tortura, as execuções extrajudiciais, o desaparecimento forçado, o estupro e outras formas de violência sexual, o deslocamento forçado e o recrutamento ou aliciamento de menores. Dentro dos compromissos que apresentaram, estão cinco estratégias chaves para reparação das vítimas: a criação da Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição; a Unidade Especial para a Procura de Pessoas tidas como Desaparecidas, no contexto e em razão do conflito; a Jurisdição Especial para a Paz (JEP); as medidas de reparação integral; e as garantias de não repetição. Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição: é um órgão temporário e de caráter extrajudicial, como os que se criaram historicamente em processos de transição para esclarecer padrões de violência. Não é um mecanismo para administrar justiça, senão para contribuir com a verdade e reconhecer os direitos das vítimas. Unidade para a Procura de Pessoas tidas como Desaparecidas: trata-se de uma unidade especial de alto nível cuja incumbência é dirigir, coordenar e contribuir para a implantação de ações humanitárias e extrajudiciais para a procura e identiicação de pessoas tidas como desaparecidas e que se encontram com vida; nos casos de morte, para sua localização e entrega dos restos mortais. Medidas de reparação integral para a construção da paz: o im do conlito representa uma oportunidade única para fortalecer o programa de reparação integral de vítimas, que vem sendo implantado pelo Estado colombiano, e para garantir que todos aqueles que participaram de maneira direta ou indireta no conlito e causaram danos, contribuam para a reparação das vítimas. 19 Comunicado conjunto n. 64. Havana, 15 de dezembro de 2015. 100 • Jurisdição Especial para a Paz (JEP): é o componente judicial do sistema integral. Procura, antes de tudo, satisfazer o direito das vítimas à justiça, lutar contra a impunidade, cumprir com o dever do Estado de investigar, julgar e penalizar, e adotar decisões que proporcionem plena segurança jurídica àqueles que participem dos mecanismos do sistema. Sem contribuição à verdade e à reparação das vítimas, não haverá tratamento penal especial. Garantias de não repetição: seriam o resultado da implantação dos diversos mecanismos e medidas do sistema integral, as medidas que se acordarão no ponto três do “Fim do Conlito” e dos outros acordos, que contribuirão para reverter os efeitos desse período e para mudar as condições que facilitaram a persistência da violência no território nacional. A esses mecanismos que se colocarão em andamento uma vez que se firme um acordo final, acrescenta-se o trabalho que adiantou a Comisión Histórica del Conflicto y sus Victimas, “a qual lançou importantes conclusões de conteúdo diverso e plural no que se refere às origens e às diversas causas do conflito, os principais fatores e condições que facilitaram ou contribuíram para a sua persistência e os efeitos e impactos mais notórios do conflito sobre a população”, manifestaram o governo e as Farc. Conclusões No contexto da impunidade das violações dos direitos humanos que existe na Colômbia e do desconhecimento dos direitos das vítimas, adquirem particular relevância os princípios internacionais da luta para mudar esse quadro, aprovados em 2005 pela Assembleia Geral da ONU. Colômbia, como Estado parte de tratados internacionais de direitos humanos e do direito internacional humanitário, se viu obrigada a sancionar adequadamente as violações e infrações desses ordenamentos, como vemos, por exemplo, nos artigos 2º e 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; nos artigos 1º, inciso 1, e 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos; no artigo 4º da Convenção contra a Tortura e outros Maus-tratos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, e as disposições pertinentes do Estatuto da Corte Penal Internacional, quer dizer, a obrigação com relação aos direitos à verdade, à justiça e à reparação. Na administração da justiça, deve-se considerar o conteúdo dos princípios e zelar pela sua aplicação em todas as suas atuações, particularmente no âmbito de pôr em execução a lei n. 975/2005. A sentença C-370, de 2006, da Corte Constitucional, estabeleceu de maneira irme a urgência que os funcionários devem dar aos direitos das vítimas no momento de interpretar e aplicar essa lei.20 20 COLÔMBIA. Corte Constitucional. Sentença C-370, de 18 de maio de 2006. • 101 Referências COLÔMBIA. Comisión de Superación de la Violencia. Paciicar la paz: lo que no se ha negociado en los acuerdos de paz. Santa Fé de Bogotá, 1992. ______. Corte Constitucional. Sentença C-010, de 19 de janeiro de 2000. M.P. Alejandro Martínez Caballero. ______. Corte Constitucional. Sentença T-1319, de 7 de dezembro de 2001. M.P. Rodrigo Uprimny Yepes. ______. Corte Constitucional. Sentença C-004, de 20 de janeiro de 2003. M.P. Eduardo Montealegre Lynet. ______. Corte Constitucional. Sentença C-370, de 18 de maio de 2006. M.P. Manuel José Cepeda Espinosa, Jaime Córdoba Triviño, Rodrigo Escobar Gil, Marco Gerardo Monroy Cabra, Álvaro Tafur Galvis y Clara Inés Vargas Hernández. ______. Instituto Interamericano de Derechos Humanos. Contribución de las políticas de verdad, justicia y reparación a las democracias en América Latina. San José, 2011. ______. Centro Nacional de Memoria Histórica. Basta yá! Colombia: memorias de guerra y dignidade. Bogotá: Imprenta Nacional, 2013. ______. Comisión Histórica del Conlicto y sus Víctimas. Contribución al entendimiento del conlicto armado en Colombia. Ediciones Desde Abajo, 2015. ______. Ley de Justicia y Paz (lei n. 975/2005). Disponível em: <htp:https://www. justiciatransicional.gov.co/ABC/Ley-de-Justicia-y-Paz>. Acesso em: nov. 2016. ______. Constitución Política de Colombia de 1991. Disponível em: <htps:https:// www.ramajudicial.gov.co/documents/10228/1547471/constitucion-interiores. pdf/8b580886-d987-4668-a7a8-53f026f0f3a2>. Acesso em: dez. 2016. ELSTER, J. Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. HAYNER, P. Verdades innombrables: el reto de las comisiones de la verdad. S./l.: Fondo de Cultura Económica de España, 2009. JARAMILLO, Jeferson. Pasados y presentes de la violencia en Colombia: estudio sobre las comisiones de investigación (1958-2011). Bogotá: Editorial Pontiicia Universidad Javeriana, 2014. MESA DE CONVERSACIONES DE LA HABANA. Informe conjunto gobierno nacional y las Farc – EP.15/12/2015. 102 • ONU. Secretario General al Consejo de Seguridad de Naciones Unidas. El Estado de Derecho y la justicia de transición en las sociedades que sufren o han sufrido conlictos. Doc. S/2004/616. ______. Oice of the High Commissioner for Human Rights. E/CN.4/ RES/2005/81. Impunity: Human Rights Resolution 2005/1981. Disponível em: <ap.ohchr.org/documents/dpage_s.aspx?si=E/cn.4/RES/2005/81>. Acesso em: dez. 2016. ______. Principios y directrices básicos sobre el derecho de las víctimas de violaciones maniiestas de las normas internacionales de derechos humanos y de violaciones graves del derecho internacional humanitario a interponer recursos y obtener reparaciones. AG Res. 60/147, 16 de dezembro de 2005. Disponível em: <htp:https:// www.ohchr.org/SP/ProfessionalInterest/Pages/RemedyAndReparation. aspx>. Acesso em: dez. 2016. PÉCAUT, DANIEL. Un conlicto armado al servicio del statu quo social y político. In: COLÔMBIA. Comisión Histórica del Conlicto y sus Victimas. Contribución al entendimiento del conlicto armado en Colombia. Ediciones Desde Abajo, 2015. POSSO, Camilo González. Los nombres de la guerra en la memoria histórica. Bogotá, set. 2013. Disponível em: <htp:https://ediciones.indepaz.org.co/wp-content/ uploads/2014/10/revista_PE66-Basta-ya.pdf>. Acesso em: dez. 2016. PROYECTO COLOMBIA NUNCA MÁS. Memoria de crímenes de lesa humanidad. Interservicios S.A.S. Medellín-Colombia, 2013. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua española. Disponível em: <htp:https://dle.rae.es/?w=diccionario>. Acesso em: dez. 2016. RED CULTURAL DEL BANCO DE LA REPÚBLICA EN COLOMBIA. Democracia. Verbete. Enciclopedia de Banrepcultural. Disponível em: <htp:https:// www.banrepcultural.org/blaavirtual/ayudadetareas/politica/democracia_ sistema_politico>. Acesso em: dez. 2016. WALZER, M. Relexiones sobre la guerra. Barcelona: Ediciones Paidós, 2004. • 103 104 • PARTE II AS COMISSÕES DA VERDADE E OS TRABALHADORES • 105 106 • COMISSÕES DA VERDADE EM SUAS ORIGENS E NA ATUALIDADE Rosa Maria Cardoso da Cunha* Comissões da verdade são concreções do exercício do direito à verdade. Quanto ao direito à verdade, sua construção remonta ao direito internacional humanitário, que ganha identidade a partir das Convenções de Genebra de 1949, quando se estabelecem regras para o registro e fornecimento de informações sobre as vítimas de conflitos armados. É, entretanto, como um dos pilares da designada justiça de transição – instituição sob a qual se normatiza e impulsiona o exercício dos direitos à memória, à verdade, à justiça e à reparação, visando tornar possível, ou mais rápido, o trânsito de uma situação de conflitos intensos, guerra ou ditadura para a vigência de um regime democrático – que o direito à verdade ganhou visibilidade e expressão material. Comissões da verdade começam a ser constituídas a partir da década de 1970. A primeira comissão da verdade foi criada em Uganda, na áfrica, em 1974. Nas décadas seguintes foram instaladas várias comissões, inclusive no Cone Sul. Entre estas, em nossa região, destacam-se: Bolívia, em 1982; Argentina, em 1983; Uruguai, em 1985, a primeira, e em 2000, a segunda; Chile, em 1990 e 2003. São também bastante conhecidas as da áfrica do Sul, em especial a de 1995; a do Equador, em 1996; a da Guatemala, em 1997; a do Peru, em 2001; a do Paraguai, em 2004 e a do Canadá, em 2009. Embora no curso da história tenham surgido formas alternativas à comissão da verdade, visando examinar violações específicas de direitos humanos e sugerir políticas públicas adequadas (por exemplo, nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália), em geral elas demandaram uma revisão histórica do passado, em que se gerou o problema investigado. Presentemente, entretanto, está surgindo no Brasil, nos seus dois estados mais destacados – São Paulo e Rio de Janeiro –, outro tipo de comissão da verdade, que pretende denunciar, investigar e propor políticas públicas para graves violações de direitos ocorridas na área da segurança pública. Este é o caso da comissão instalada em fevereiro de 2015 na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), intitulada “Comissão da Democracia Mães de Maio”. Ela deveria elucidar as chacinas e execuções extrajudiciais que vêm ocorrendo no país depois da ditadura de 1964. * Advogada, integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) entre maio de 2012 e dezembro de 2014. Coordenou o Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical da CNV, Rio de Janeiro, Brasil. • 107 Questões que a comissão pretende investigar são o massacre do Carandiru, ocorrido em 1992; os mais de 490 assassinatos praticados na periferia de São Paulo, Santos e Guarulhos, em 2006, designados como Crimes de Maio, e o Massacre da Praça da Sé, em 2004. Pretendendo investigar questões semelhantes, foi constituída na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em dezembro de 2015, a Comissão da Verdade na Democracia, que tem por objetivo investigar as graves violações de direitos humanos praticadas no estado entre 1988 e 2018. O trabalho da Comissão da Verdade na Democracia está organizado em cinco eixos relacionados aos tipos de violações praticadas: 1) extermínio; 2) desaparecimento forçado; 3) tortura; 4) criminalização dos movimentos sociais e 5) repressão no campo. Saliente-se, a propósito desta modalidade de comissão, que elas exercitam o direito à verdade como instrumento de revelação e luta contra a barbárie e os preconceitos que convivem contemporaneamente com o regime democrático, no caso, a democracia brasileira. A Comissão Nacional da Verdade no Brasil (CNV)1 e a perseguição aos trabalhadores A CNV foi instalada em maio de 2012, cinquenta anos depois do golpe de Estado que implantou a ditadura brasileira de 1964. Frente ao decurso do tempo e às comissões existentes na América Latina e no Cone Sul, na áfrica e na ásia, que se sucederam mais rapidamente às atrocidades que as determinaram, a CNV constituiu-se como uma comissão retardatária. Foi a continuada luta das vítimas, dos familiares e dos ativistas de direitos humanos, e sua pressão para que o Estado brasileiro cumprisse as normas do direito internacional dos direitos humanos, relativas à designada justiça de transição, bem como a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros vs Brasil), que impuseram aos poderes do Estado no Brasil a criação de uma comissão da verdade. A Comissão brasileira foi inicialmente integrada por sete membros, com experiência profissional em carreiras públicas ou privadas vinculadas ao sistema de Justiça do país, ou em missões relacionadas à promoção dos direitos humanos. Apenas um membro tinha formação diversa, isto é, era uma psicanalista.2 1 Neste texto designaremos indistintamente a Comissão Nacional da Verdade como CNV ou Comissão. 2 Ver a propósito matéria publicada no n. 91 da revista Piauí, de abril de 2014, "A verdade da Comissão", com retrospectiva sobre o funcionamento da CNV desde o início. 108 • Além de audiências com as vítimas, familiares e ativistas políticos, as investigações da Comissão foram, desde o início, distribuídas em grupos de trabalho que, ao final, totalizaram 13 grupos, assim designados: Ditadura e gênero; Araguaia; Golpe de 1964; Ditadura e sistema de justiça; Estrutura da repressão; Mortos e desaparecidos políticos; Graves violações de direitos humanos no campo e contra indígenas; Operação Condor; Papel das igrejas durante a ditadura; Perseguição a militares; Violação a direitos humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil; O Estado ditatorial militar e Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical. Relativamente ao trabalho de todos os grupos, compreendeu-se que nos termos da lei n. 12.528/2011, que criara a Comissão e determinara o conteúdo do mandato de seus membros, a prioridade a ser perseguida era apurar as “graves violações” de direitos humanos praticadas por agentes do Estado, ou pessoas a seu serviço, entre os anos de 1946 e 1988 e, muito especialmente, entre 1964 e 1985, período ditatorial que teve os militares como testa de ferro do regime. A CNV devia, então, dar prioridade à investigação e ao relato das graves violações de direitos inderrogáveis e não passíveis de anistia e prescrição, utilizando a doutrina e a jurisprudência do direito internacional dos direitos humanos e não a Constituição ou o direito penal nacional. Note-se que as graves violações de direitos humanos atingem o direito à vida e à integridade pessoal, física ou psíquica. Muitas vezes seu conceito superpõe-se aos crimes de guerra, aos crimes contra a humanidade e ao genocídio, porém nem sempre a grave violação corresponde aos crimes mencionados. Inexiste, também, no direito internacional dos direitos humanos uma relação exaustiva dos fatos que constituem graves violações de direitos humanos. Há consenso, contudo, que um conjunto de violações subsumese ao conceito. Consideram-se, assim, graves violações as detenções ilegais e arbitrárias; a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes; as execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, bem como outros tipos de morte atribuíveis ao Estado, os desaparecimentos forçados, acompanhados ou não de ocultação de cadáveres. Quanto à questão da verdade, a CNV deveria trabalhar com um conceito que a conduzisse a investigar a autoria dos fatos, nomear autores, indicar responsabilidades, reivindicar a sua punição. Nesta perspectiva a anistia dos perpetradores de graves violações tornou-se inadmissível. A Comissão deveria levar a sério o que a sentença do Araguaia estabelecera: A racionalidade da Corte Interamericana é clara: leis de autoanistia constituem ilícito internacional; perpetuam a impunidade; e propiciam uma injustiça continuada, impedindo às vítimas e a • 109 seus familiares o acesso à justiça, em direta afronta ao dever do Estado de investigar, processar, julgar e reparar graves violações de direitos humanos. Com relação à indicação da autoria, a CNV não apresentou uma relação de autores exaustiva, tendo em vista que muitos casos foram desconsiderados, porque a Comissão não dispunha das provas estabelecidas para confirmar cada indicação. Mesmo assim, classificados em diferentes tipos de autores, 377 agentes do Estado foram nomeados. A maioria dos agentes pertencia às Forças Armadas. Não houve indicação de empresários da área financeira, bancária, industrial, do comércio, da mídia, das associações de classe, de proprietários de terra das diferentes regiões do país ou empresários da mídia, os quais foram mandantes ou cúmplices dos agentes do Estado. Civis aparecem como autores enquanto foram integrantes da Polícia Civil, do Instituto Médico Legal e do Instituto de Criminalística: são delegados, policiais, médicos legistas, peritos, informantes. Entre os civis incluem-se também alguns diplomatas. Deste modo, após um longo processo de interlocução com as vítimas e ativistas políticos, bem como de discussão interna, a Comissão apresentou um relatório final que atendia às normas e à interpretação contemporâneas do direito internacional dos direitos humanos, indicando um conjunto de perpetradores de graves violações de direitos humanos no período investigado, ali qualificados como autores de crimes de lesa-humanidade. Além disto, demandou aos Poderes respectivos sua punição. Apresentou, também, recomendações adequadas ao contexto político e social que o país vivia, tanto como ajustadas às reivindicações dos seus movimentos sociais. Em suas recomendações a CNV priorizou o enquadramento das Forças Armadas, por entendê-las a face mais visível e violenta da ditadura. Assim, desde logo propôs que as Forças Armadas reconhecessem a sua responsabilidade institucional pela ocorrência das graves violações durante o regime ditatorial. Propôs, também, entre as suas recomendações mais destacadas, que os órgãos competentes responsabilizassem penal, administrativa e/ou civilmente os autores das graves violações, deixando de lhes aplicar os dispositivos concessivos de anistia, previstos na lei n. 6.683/1979, e reivindicando, ainda, a inclusão de cursos sobre direitos humanos e significados contemporâneos da democracia para o ingresso, avaliação, promoção e currículo dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública. Afinal, proibiu comemorações relacionadas à data do golpe militar nos quartéis. As recomendações propuseram, também, medidas em benefício das vítimas e dos próprios ativistas, dos que sofreram abusos na área de segurança e no regime penitenciário, no interesse da sociedade como um 110 • todo, na perspectiva de mudanças legais e institucionais e recomendações para dar seguimento ao trabalho da Comissão. Elas não representaram propostas inéditas, mas se tratam de medidas de justiça e acordes com o que vítimas, familiares e militantes dos direitos humanos têm pleiteado. Por fim, a questão central na investigação da CNV, relacionada com a explicitação do que são as graves violações, é sua narrativa no plano empírico. O relatório apresenta casos muito representativos do que foram as prisões ilegais e arbitrárias, a tortura, a execução sumária, arbitrária ou extrajudicial e outras mortes imputadas ao Estado, o desaparecimento forçado e a ocultação de cadáveres. Dado o caráter massivo das prisões ilegais e da tortura, em um país com a dimensão do Brasil, e passado tanto tempo desde a vigência da ditadura, é impossível determinar o número e a incidência destas práticas. Note-se ainda que a elas se somam os casos de violência no campo e contra as nações indígenas, que não estão rigorosamente registrados. Nestes casos a ausência de registro estende-se às situações de execução e mortes, bem como às dos desaparecimentos forçados. Observe-se, afinal, que ao tempo em que foi redigido seu relatório final a Comissão registrou, sob o título Quadro geral da CNV sobre mortos e desaparecidos políticos, 434 vítimas fatais da ditadura (1964/1985), sendo 191 caracterizadas como mortes e 243 como desaparecimentos forçados. A CNV e o Grupo de Trabalho dos Trabalhadores O grupo de trabalho mais dedicado e interessado na divulgação de seus resultados foi aquele que investigou as perdas, vítimas e algozes dos trabalhadores e do movimento sindical imediatamente antes e durante a ditadura de 1964. Ele se constituiu como o Grupo de Trabalho 13, ou GT 13, sendo designado “Ditadura e repressão aos trabalhadores e trabalhadoras e ao movimento sindical”. O GT 13, formado por representantes de dez centrais sindicais, adotou como bússola as seguintes questões que ele desejava fossem respondidas pelo relatório: 1. Levantamento dos sindicatos que sofreram invasão e intervenção no golpe e após o golpe; 2. Investigação de quantos e quais dirigentes sindicais foram cassados pela ditadura militar; 3. Quais e quantos dirigentes sindicais sofreram prisão imediata ao golpe; 4. Levantamento da destruição do patrimônio documental e físico das entidades sindicais; 5. Investigação sobre prisões, tortura e assassinatos de dirigentes e militantes sindicais urbanos e rurais; • 111 6. Vinculação das empresas com a repressão; 7. Relação do serviço de segurança das empresas estatais e privadas com a repressão e atuação das Forças Armadas; 8. Legislação antissocial e antitrabalhadores (lei de greve, lei do arrocho salarial, lei do fim da estabilidade no emprego, entre outras); 9. Levantamento da repressão às greves; 10. Tratamento dado à mulher trabalhadora durante a repressão; 11. Levantamento dos prejuízos causados aos trabalhadores e suas entidades pelo regime militar para reparação moral, política e material. Apresentou, por fim, um texto intitulado Violações e graves violações de direitos no meio sindical: a classe trabalhadora como vítima. Neste texto o grupo de trabalho expõe e demonstra, mediante documentos e depoimentos, as seguintes afirmações: 1 - Os trabalhadores e seu movimento sindical constituíram o alvo primordial do golpe de Estado de 1964, das ações antecedentes dos golpistas e da ditadura a seguir imposta. Evidencia esta afirmação a violência anterior ao golpe, praticada contra os trabalhadores nos estados em que governadores, forças militares e policiais, articulados com o governo norte-americano, já estavam conspirando contra o governo federal. Também os duros ataques impostos aos trabalhadores e a seus órgãos representativos de classe, na própria oportunidade do golpe. Evidencia-se, especialmente, pela legislação e políticas econômicas, sociais e trabalhistas implantadas pela ditadura e pelo número de vítimas das graves violações sofridas, na comparação com vítimas de outras classes sociais. 2 - O Golpe de 1964 e a ditadura subsequente decorreram de uma aliança civil-militar embasada em um projeto comum e numa ação articulada. Relativamente às motivações que conduziram a 1964, é certo que as elites civis urbanas identificaram no golpe e na ditadura o caminho para implantar um novo regime econômico, que privilegiasse o capital nacional associado ao multinacional. No campo, os senhores da terra visualizaram o golpe e a ditadura como a solução para evitar a reforma agrária e a extensão dos direitos trabalhistas à área rural. Desde os anos de 1950 as elites militares desejavam desenvolver uma hegemonia militar no hemisfério sul, fundada em seu alinhamento ao poderio econômico-militar norte-americano. Estas elites tinham interesse 112 • em engajar-se na designada “guerra revolucionária”, gestada a partir da “guerra fria”. Paralelamente, os militares buscaram expandir seu poder material lutando pela criação de uma potente indústria bélica no país, conforme explicita documento emitido pelo Estado-Maior das Forças Armadas, em 1970. Note-se que o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) estabeleceu como sua principal finalidade a colaboração com as Forças Armadas e Forças Auxiliares “na solução de problemas em tempo de paz e de facilitar o cumprimento das missões atribuídas às fábricas que forem mobilizadas em tempo de guerra”. Sendo assim, a doutrina que pautava as ações do GPMI da Fiesp estava totalmente atrelada à lógica da segurança nacional e buscou estabelecer “um assessoramento às Forças Armadas e uma estreita colaboração no setor técnico e no setor econômico”. 3 - A ditadura de 1964 criou um novo regime fabril. Durante a ditadura de 1964, a aliança empresarial-policial, estabelecida no período anterior, transformou-se em aliança empresarial-policialmilitar e definiu um novo regime fabril. Por um lado, havia a presença de agentes da repressão infiltrados entre os operários, bem como a estreita colaboração entre a nova burocracia sindical e os órgãos de repressão, a instituição das assessorias de segurança e informação (ASI) no interior das empresas estatais e dos setores de recursos humanos (RH) das empresas privadas e o fornecimento de “listas negras” para o Dops e o DOI-Codi.3 De outra parte, o financiamento e o apoio material, logístico e ideológico do empresariado à organização da repressão e de órgãos, como a Operação Bandeirante (Oban) e o DOI-Codi, materializaram a solidariedade política da aliança empresarial-policial-militar, constituindo a sua face operativa e a configuração de um novo poder disciplinador, que rendeu os dividendos do crescimento econômico com segurança e concentração de renda. 4 - A articulação público-privada constituída no âmbito da ditadura de 1964 ampliou signiicativamente as formas de violência e repressão praticadas contra os trabalhadores. A colaboração entre empresas e agentes públicos, militares, policiais ou civis adotou diferentes formas e estruturas mediante as quais se dava uma 3 Delegacia de Ordem Política e Social e Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna. • 113 atuação conjunta no plano político, financeiro e operacional. Ela reprimiu, preventiva ou reativamente, toda forma de organização e manifestação coletiva. Atacou também os mecanismos de resistência à exploração. A filiação ao sindicato, a participação em assembleias, a organização de chapas de oposição visando concorrer em eleições para a diretoria dos sindicatos foram, identicamente, proibidas, dificultando a articulação e a retomada dos sindicatos por setores progressistas. As “listas negras” (listas com nomes de trabalhadores demitidos por razões políticas e cuja admissão em outras empresas se queria evitar), recurso empregado desde sempre pelos patrões, tornaram-se mais eficazes, integrando-se a um sistema maior de repressão. Exemplificando a articulação entre empresas e agentes públicos, recorde-se o caso no Vale do Paraíba, em São Paulo, quando, em 1983, foi organizado um Centro Comunitário de Segurança (Cecose). Este centro era composto por chefes de segurança, normalmente de extração militar, de 25 grandes empresas transnacionais, nacionais e estatais, membros do Exército, Aeronáutica, Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e das Polícias Militar, Civil e Federal. Nos documentos obtidos a respeito do seu funcionamento, localizou-se um, datado de 18 de julho de 1983, no qual se registra, textualmente, que o representante da empresa Volkswagen expôs os assuntos mais importantes da reunião, apresentando anotações, em forma de “lembretes”. Sobre a Volkswagen do Brasil, existe, ainda, uma profusão de documentos que comprovam a cooperação da empresa com órgãos policiais de segurança do Dops, identiicada, por exemplo, a partir de relatório proveniente do setor de Análise, Operações e Informações do mencionado órgão policial. 5 - Na ditadura de 1964 empresas estatais tornaram-se laboratórios de monitoramento e repressão. Na Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, por exemplo, o monitoramento empreendido pela Divisão de Segurança e Informações (DSI), braço do Serviço Nacional de Informações (SNI), demonstrará que grandes empresas estatais tornaram-se verdadeiros “laboratórios” de um sistema de controle e repressão fabril. Na oportunidade, a Petrobrás foi considerada ambiente propício para a implantação de um sistema de monitoramento e repressão exemplar, pensado como peça fundamental para a segurança nacional. A militarização da empresa ocorreria como consequência. A possibilidade de participação direta do SNI, por intermédio do Conselho de Segurança Nacional (CSN), na estruturação de um sofisticado esquema de investigação e perseguição de reais e supostos adversários do regime ditatorial, conferiu à experiência da Petrobrás uma sistematicidade, eficiência e duração que funcionaram como modelo para outras grandes empresas. 114 • É importante ter em vista que as práticas colaborativas mencionadas constituíram caminhos cotidianos para as graves violações. Foi a partir do controle, vigilância e monitoramento, das listas sujas e das delações que trabalhadores foram presos, torturados, assassinados e vítimas de desaparecimentos forçados. 6 - Durante a ditadura de 1964 alterou-se a legislação econômica e trabalhista para viabilizar a superexploração dos trabalhadores e mais rápida concentração de capital. Além das intervenções em sindicatos contemporâneas ao golpe e de outras que o sucederam, recorrendo a dispositivos legais do Estado Novo, ainda em julho de 1964, o direito de greve foi regulado mediante a lei n. 4.330/1964. A nova Lei de Greve praticamente cassou este direito dos trabalhadores: os funcionários públicos federais, estaduais e municipais ou de empresas estatais foram proibidos de deflagrarem greve, bem como aqueles trabalhadores de serviços “essenciais”. Igualmente ilegais tornaramse as greves de solidariedade e aquelas consideradas de “natureza política, social ou religiosa”. Em julho de 1964, o Ministério da Fazenda, por intermédio da circular n. 10, estabeleceu, também, os primeiros critérios de uma nova política de arrocho salarial, inicialmente testada no setor público. Um ano depois, em julho de 1965, estender-se-ia o arrocho salarial a todos os trabalhadores. Esta política salarial subestimava o resíduo inflacionário e os aumentos de produtividade, forçando a queda dos níveis salariais para baixo. O valor do salário mínimo real caiu de CR$ 112,52, em 1961, para CR$ 68,93 em 1970. Em 1965, eram necessárias 88 horas e 16 minutos mensais para o trabalhador adquirir ração mínima, estabelecida em lei. Em 1974, eram necessárias 163 horas e 32 minutos para obter esta ração. O índice de Gini de concentração de renda era de 0,50 na década de 1960, 0,56 na década de 1970 e 0,59 na década de 1980. A intensificação do processo de exploração do trabalhador repercutiu em horas de trabalho, condições de vida e mesmo em perda de vidas humanas. As perdas salariais dos chefes de família tiveram que ser compensadas com o ingresso de mulheres e jovens no mercado de trabalho, as horas-extras se multiplicaram, assim como a troca das férias por salário. Uma das consequências mais trágicas desta intensificação da taxa de exploração da força de trabalho nacional foi a posição de “campeão mundial de acidentes de trabalho”, com 1.743.025 sinistros e 3.900 mortes, atingida pelo Brasil em 1976. Outra medida fundamental para o “sucesso” da política econômica e salarial da ditadura foi a lei n. 5.107, de setembro de 1966, que criou o • 115 Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), destruindo a estabilidade no emprego do trabalhador e reduzindo os custos iniciais da demissão de empregados com mais tempo de serviço ou tempo de estabilidade. Por intermédio desta lei, pretendia-se também adequar nossa legislação trabalhista ao sistema capitalista internacional. Registre-se, por fim, neste conjunto de instituições nocivas à classe trabalhadora, a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, substituindo os institutos de aposentadoria e pensões e significando a perda de representatividade dos trabalhadores frente à máquina estatal. Este instituto destituiu os trabalhadores do direito de gerir os seus recursos financeiros de maneira autônoma. 7 - Na esteira das violações de direitos mencionadas, ocorreram as graves violações de direitos dos trabalhadores: prisões ilegais e arbitrárias, tortura, assassinatos, desaparecimento forçado, ocultação de cadáver. No que se refere às prisões ilegais e arbitrárias, ressalte-se que a violência exercida pela ditadura atingiu os trabalhadores não apenas individualmente, mas também de forma coletiva ou massiva. As torturas eram coetâneas às prisões: com base nos depoimentos colhidos e sistematizados pelo GT 13, constatou-se que o trabalhador era vítima de socos, pontapés, pancadas, "corredor polonês", xingamentos, toda sorte de humilhação desde os momentos iniciais de sua detenção. Ademais, os cárceres aos quais foram encaminhados eram insalubres, fétidos, sem condições mínimas de higiene, muitas vezes superlotados. Sucessivamente, mantinha-se o preso detido e incomunicável, sem formalização da prisão, visando impedir o conhecimento e o controle da tortura a que era submetido durante os interrogatórios. 8 - A classe trabalhadora foi vítima de torturas que importaram em sequelas físicas e psicológicas insuperáveis. As Forças Armadas brasileiras incorporaram a tortura como estratégia e prática fundamental do Estado de segurança nacional implantado. Ela foi generalizadamente praticada no Brasil, sucedendo-se a prisões ilegais e arbitrárias, sendo imposta à classe trabalhadora com diferentes objetivos, entre estes, especialmente, sua humilhação, subordinação e paralisia. Além dos traumas e transtornos psíquicos que gerou, impôs danos à saúde e à vida dos trabalhadores, traduzidos em perda de audição ou de visão, crises de labirintite, perda de dentes, problemas circulatórios, lesões na coluna, fraturas em membros e bacia e traumatismos de diferentes tipos. 9 - Tem-se notícia de muitas mortes e desaparecimentos forçados de trabalhadores, mas os números continuam inconclusivos. 116 • O confronto de diferentes levantamentos a respeito de mortes, por diferentes causas, incluindo execuções e desaparecimentos forçados de trabalhadores urbanos no país, entre 1964 e 1988, permite concluir a ocorrência de um total de 114 casos de trabalhadores como vítimas, sendo 35 sindicalistas. É certo que houve mortes e desaparecimentos anteriores, no período de 1946 a 1964. Contudo, não temos registros precisos destas vítimas, às quais nos referiremos apenas quando constituírem casos notórios. Note-se que os casos de trabalhadores mortos no campo não estão sendo computados, porque este grupo de trabalho só tratou da problemática urbana. Uma das formas de construir o universo dos casos em discussão foi verificando solicitações feitas por familiares à Comissão da Anistia, criada pelo Estado brasileiro para reparações materiais a vítimas da ditadura e outras situações de violência estatal, relativamente a seus mortos e desaparecidos. Outra fonte de consulta foram os dados da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Por fim, mencione-se que o GT 13 também analisou casos de suicídio ou induzimento ao suicídio e casos de massacres de conjuntos de trabalhadores, como os ocorridos em Serra Pelada, no Pará, datado de 29 de dezembro de 1987, na Usiminas, Minas Gerais, em 7 de outubro de 1963, e o de Volta Redonda, Rio de Janeiro, na greve que durou 17 dias em novembro de 1988. Continuando as lutas do GT 13 Quanto aos desdobramentos dados pelas centrais sindicais e seus militantes à luta por memória, verdade, justiça e reparação, após a vigência do GT 13, foi constituído um novo espaço de ação designado como Fórum de Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação, que vem produzindo vários eventos, entre os quais se destacam os debates e medidas pela responsabilização empresarial por graves violações de direitos humanos praticadas contra trabalhadores durante a ditadura de 1964. Nesta modalidade de ação, escolheu-se a Volkswagen para funcionar como caso líder em relação a outras empresas que serão responsabilizadas. A escolha foi feita considerando-se a expressiva quantidade de provas existentes sobre monitoramento contínuo, restrição de liberdades, demissões e prisões ilegais e arbitrárias, bem como tortura que a empresa patrocinou direta ou associadamente. Neste caso, a partir do incansável trabalho do fórum, o Ministério Público Federal (MPF) sediado em São Paulo instaurou, em 22 de setembro de 2015, um inquérito civil público. A representação que gerou o inquérito foi assinada pelas dez centrais sindicais existentes (algumas destas não são reconhecidas). Consiste numa petição, acompanhada de um dossiê sobre a atuação da empresa, reunindo documentos do Arquivo do Estado e do • 117 Arquivo Nacional, que comprovam a correspondência constante entre a Volkswagen e os aparelhos estatais de repressão e, ainda, a montagem de um sistema de segurança dentro da fábrica, que vigiou e reprimiu os trabalhadores e suas organizações. Além disso, como se ressaltou anteriormente, a empresa exercia um papel de liderança na repressão praticada pelos setores privados. Recordem-se a respeito os documentos produzidos no âmbito do Centro Comunitário de Segurança (Cecose). Até o momento foram ouvidos pelo MPF quatro trabalhadores, dentre eles o metalúrgico Lúcio Bellentani, preso e torturado dentro da fábrica. Foi ouvido também o coronel Adhemar Rudge, que chefiou o Departamento de Segurança entre 1969 e 1991. Enfatize-se, afinal, que a luta por reparação e justiça continua a mobilizar significativamente os trabalhadores brasileiros e que a crise política e econômica em curso no país, com o desmonte de direitos trabalhistas, penosamente reconstruídos depois da ditadura de 1964, lhe dá imensa atualidade. A exploração e a repressão que se anunciam à classe trabalhadora permite ver o passado com mais clareza e entendê-lo como uma página que não está virada. 118 • REPRESSÃO E RESISTÊNCIA: O REGIME MILITAR E OS TRABALHADORES URBANOS SOB A LUZ DA COMISSÃO DA VERDADE DE PERNAMBUCO1 Rafael Leite Ferreira* Introdução “O passado também é urgente” Guimarães Rosa A Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (CEMVDHC), criada, através da Lei n o 14.688, de 1 o de junho de 2012, por iniciativa do então governador do estado de Pernambuco, Eduardo Henrique Accioly Campos, e encerrada no dia 31 de dezembro de 2016, teve o objetivo de esclarecer as graves violações de direitos humanos, tais como torturas, mortes, estupros, sequestros, ferimentos, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e suas autorias, ocorridas no estado de Pernambuco ou contra pernambucanos ainda que fora deste território, praticadas por agentes públicos durante o período de 1946 a 1988. Para atingir o seu objetivo, a CEMVDHC realizou, metodologicamente, uma criteriosa pesquisa bibliográfica e documental para a montagem de uma linha do tempo sobre as vítimas da ditadura. A CEMVDHC utilizou para a sua pesquisa fontes documentais encontradas em diversos arquivos: Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano de Pernambuco (Apeje/ Dops); Arquivo Público Estadual do Rio de Janeiro (Aperj/Dops); Arquivo Público Estadual de São Paulo; Arquivo Nacional em Brasília – Coreg, com documentos secretos do Serviço Nacional de Informação e dos órgãos de repressão – Ciex, Cenimar e Cisa – do Exército, da Marinha da Aeronáutica, respectivamente; Arquivo do Instituto de Medicina Legal (IML) e do Instituto de Criminalística (IC) de Pernambuco; Arquivo do Superior Tribunal Militar e do Ministério das Relações Exteriores; entre outros. Os documentos produzidos pela ditadura, apesar de não corresponderem à completa verdade dos fatos, continuam sendo importantes testemunhos do funcionamento das instituições que os gerou. Esses “documentos * Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Assessor da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, Recife, Brasil. 1 As ideias centrais deste artigo foram apresentadas no 4º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos, que ocorreu entre os dias oito e dez de junho de 2016, na cidade de São Paulo. Gostaria de agradecer aos amigos Manoel Severino Moraes de Almeida e Nadja Maria Miranda Brayner, ex-membros da CEMVDHC, pelos comentários e sugestões feitas ao texto original. Os erros e imprecisões são de minha inteira responsabilidade. • 119 sensíveis”, no dizer de Caroline Bauer e René Gertz, 2 permitem – ainda que nem sempre – reconstituir memórias sobre as perseguições, as prisões, as torturas, as mortes e os desaparecimentos. A CEMVDHC utilizou-se também de fontes testemunhais para o embasamento de suas investigações. Fundamentadas, sobretudo, nos depoimentos dos militantes sobreviventes, dos familiares e de agentes da repressão. Além de termos de declarações constantes em inquéritos e documentos dos setores de segurança como os do Exército, Marinha, Aeronáutica e da Polícia Federal. No caso da relatoria temática dos trabalhadores, foram colhidos mais de vinte depoimentos de trabalhadores e ex-sindicalistas que vivenciaram o quadro de repressão em Pernambuco. Para esses trabalhadores, prestar um testemunho a uma Comissão da Verdade não era somente contribuir para o esclarecimento de um fato, como era também uma forma de rememorar fatos, conciliar-se com o passado, um indispensável instrumento terapêutico. A busca pela diversidade das fontes existentes, assim como a amplitude da documentação disponível permitiram, portanto, a CEMVDHC realizar os cruzamentos e as verificações correspondentes para realizar suas conclusões. A pesquisa realizada pela CEMVDHC apontou o número de 51 vítimas, dando, assim, início ao curso das investigações e diligências. Cada uma das vítimas ficou sob a responsabilidade de um membro da Comissão (relator ), apoiado por dois outros membros (sub-relatores). Ao longo das investigações, a CEMVDHC chegou ao entendimento que as investigações sobre os 51 casos individuais não dariam conta de explicar o estado de terror instalado em Pernambuco após o golpe de 1964. Não se deve esquecer que, devido ao histórico de lutas libertárias e de forte presença de segmentos progressistas, populares e de esquerda, Pernambuco foi o estado do Nordeste onde a repressão se abateu de maneira mais forte. Na fase que antecedeu ao golpe, o estado vivia um clima de efervescência política com a crescente agitação e manifestação das classes trabalhadoras. Para dar conta, portanto, de toda a complexidade da região, além das relatorias sobre os indivíduos, a CEMVDHC optou, também, pelo tratamento de sete grandes linhas temáticas: 2 Documentos sensíveis podem ser deinidos provisoriamente como aqueles que foram produzidos ou recebidos durante as atividades dos organismos produtores ou doadores. No âmbito das suas atividades, cujo conteúdo documental contém segredos de Estado e/ou expressam polêmicas e contradições envolvendo personagens da vida pública ou de seus descendentes. BAUER, Caroline Silveira; GERTZ, René E. Fontes sensíveis da história recente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O historiador e suas fontes, p. 173-193. 120 • • Estrutura e financiamento da repressão em Pernambuco; • Violações dos direitos humanos no campo; • Violações dos direitos humanos nos meios estudantis, acadêmicos e culturais; • Violações dos direitos humanos a grupos religiosos; • Resistência política e cassação de mandatos; • Violações de direitos humanos nos meios de comunicação; • Violações dos direitos humanos nos meios sindicais. A relatoria temática responsável pelos trabalhadores e pelo meio sindical tratou de investigar as graves violações de direitos humanos impostas à classe trabalhadora pernambucana (prisões ilegais, desaparecimento forçado, monitoramento, suicídios, assassinatos políticos); o modelo socioeconômico imposto aos trabalhadores (salários baixos, deterioração das condições de trabalho, extensão da jornada de trabalho); as invasões, destruições e intervenções sindicais; a aliança da polícia política, das delegacias regionais do Trabalho e do Ministério do Trabalho com o patronato para reprimir as greves, entre outros. Repressão e resistência: o caso dos trabalhadores pernambucanos A partir do golpe civil-militar de abril de 1964, o Brasil passou a viver um dos períodos mais repressivos de sua história, quando se inaugurou um verdadeiro ciclo de perseguições, cassações e demissões, e os movimentos socais, de caráter popular, foram duramente combatidos. “Neste período, foram muitos os que sofreram ou morreram. Foram muitos os que pagaram caro por ter mantido a chama da resistência. Foram muitos os que, pacientemente, com riscos e sacrifícios, conquistaram alguns centímetros de espaços e alguns metros de liberdade”.3 Com o golpe de 1964, iniciou-se uma fase de puro ódio, uma verdadeira caça às bruxas. Somente nos primeiros dias de abril, quase duas mil pessoas foram presas em Pernambuco.4 Em milhares de casos, as prisões políticas não tinham formalidade legal. Entre elas, havia centenas de detenções por desavenças pessoais. Naquele contexto, nas águas da perseguição política, tudo era válido. A partir do golpe de 1964, seguiram-se 21 anos de ditadura militar, durante a qual as eleições diretas foram suspensas, assim como muitas 3 RAINHO, Luís Flávio; BARGAS; Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo (1977-1979), p. 7. 4 A partir de dados coletados pela CEMVDHC. Pedimos aos leitores e às entidades que tiverem informações no sentido de acrescentar e/ou corrigir esses dados que as enviem à CEMVDHC, a im de tornar este registro o mais completo possível. • 121 liberdades individuais. Os movimentos sociais organizados foram duramente sufocados. Iniciou-se uma longa fase de recessão e arrocho salarial para a classe trabalhadora pernambucana. Órgãos de segurança do estado invadiram casas residenciais, universidades, colégios, hospitais, sindicatos, associações, seminários e igrejas para prenderem opositores do regime. Sequestros, assassinatos, grupos de extermínio, prisões ilegais sem registro oficial, extensos períodos de incomunicabilidade, denúncias sem provas, confissões sob torturas, sequestro de bens pessoais dos detidos, sentenças condenatórias sem embasamento documental, foram alguns elementos que marcaram a atuação da estrutura repressiva da ditadura. De fato, foi um verdadeiro “Deus nos acuda” para grande parte da população pernambucana. O autor Paulo Cavalcanti descreveu os fatos ocorridos durante aquele momento em Pernambuco: Foi uma fase de ódio. Foi uma caça às bruxas, uma fase de terrorismo... As prisões não tinham formalidade legal, prendiam por prender. No meio dessas prisões políticas, havia as prisões por malquerenças pessoais. O senhor de engenho que tinha problemas com os camponeses, o plantador de cana que não gostava de plantador rural, até mulher que não gostava do marido, o sujeito que emprestava dinheiro e não recebia. Eles iam ao Dops e denunciavam o camarada como comunista. Então, nas águas da perseguição política, tudo era válido. Quase dois mil presos políticos em Pernambuco.5 Tomando como base a Doutrina de Segurança Nacional, formulada pela Escola Superior de Guerra durante as décadas de 1950 e 1960, os militares, após assumirem o poder através do golpe de 1º de abril de 1964, procuraram colocar em prática a lógica da “vigilância total e permanente” do país, sob o argumento de “defesa da segurança nacional”. De acordo com esta doutrina, qualquer cidadão poderia estar sob o poder do “inimigo comunista” e qualquer ação coletiva ou individual poderia esconder uma intenção “subversiva e revolucionária”. Permeava, assim, na mentalidade militar, a lógica do “inimigo interno” ou dos “inocentes úteis” que eram manipulados por forças comunistas. Por isso, merecedores de serem controlados e vigiados.6 Embora na ótica dos militares todo e qualquer tipo de prática social poderia causar danos “à ordem pública e à segurança nacional”, algumas 5 Guerrilhas de Julião eram burguesas. Jornal do Commercio, Recife, p. 8, 12 nov. 1995. 6 Para um maior conhecimento acerca da ideologia que permeou a “defesa da segurança nacional” durante o regime militar, ver COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. 122 • atividades, no entanto, foram vistas como altamente indesejáveis e, por isso, merecedoras de uma “dose” maior de vigilância. Entre os inúmeros exemplos, podemos citar as entidades sindicais urbanas e rurais, as atividades da chamada Igreja progressista, as associações de bairro e as reuniões clandestinas estudantis e político-partidárias como as mais representativas. Neste contexto, como parte do projeto político autoritário de desmantelamento das forças de esquerda e das instituições democráticas do antigo regime, os trabalhadores foram duramente atingidos pela repressão. Em poucos dias após o golpe, inúmeros líderes sindicais foram aprisionados, perseguidos ou expurgados. Além de presos, fichados e estigmatizados como “subversivos”, os líderes, quando respondiam a inquérito policial em liberdade, eram obrigados a comparecer periodicamente ao Dops, para controle. No caso dos sindicatos, federações e entidades sindicais foram fechadas ou tão seriamente controladas que restou ao movimento sindical oposicionista pouco ou quase nenhum espaço de manobra. Para alcançar os seus objetivos, a ditadura utilizou-se da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e/ou de algumas outras leis de caráter mais repressivo criada durante o primeiro governo Vargas, como foi observado por Kenneth P. Erickson: “Durante o Estado Novo, sob o governo Dutra e, novamente, após 1964, o Estado usou a estrutura corporativista para impor sua vontade sobre o movimento operário diminuindo, substancialmente, sua ação autônoma”.7 O controle dos sindicatos foi uma pedra indispensável para o governo no que se refere à efetivação de suas diretrizes econômicas: a determinação dos reajustes salariais, exclusivamente, através de decretos governamentais; o rebaixamento dos salários; a piora nas condições de trabalho; a dilapidação das energias físicas e psíquicas dos trabalhadores; o aumento da subordinação do trabalhador à disciplina da empresa; o maior controle das greves; o aumento de produtividade nas empresas e de rotatividade no emprego; as intervenções nos sindicatos, incluindo expurgos, espionagem, prisões, torturas, campanhas de difamação, perseguições arbitrárias, censura e assassinatos de inúmeros sindicalistas; o incentivo à prática “peleguista” e “assistencialista” dos sindicatos; a supressão das liberdades civis; o aumento da “espoliação urbana”, isto é, a inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo, que justamente com as dificuldades de acesso a terra e a moradia aguçavam ainda mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho. 7 ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo no processo político no Brasil, p. 53. • 123 A implantação desta política gerou sérias consequências para os trabalhadores brasileiros. Com a supressão do regime de estabilidade e a crescente erosão do salário real, grande parte dos trabalhadores procurou recompor suas rendas recorrendo a duas medidas básicas: a “intensificação do trabalho familiar” e a “extensão da jornada de trabalho”. Em relação à primeira iniciativa, percebe-se, a partir deste período, o aumento significativo no número de trabalhadores dentro de uma residência, visando completar a renda familiar. A própria Constituição de 1967 (art. 158, inciso x) reduziu a idade legal mínima de trabalho para doze anos, institucionalizando um sistema de trabalho infantil que acarretou em consideráveis custos sociais para a sociedade brasileira. No que diz respeito à segunda medida, percebese a elevação brutal da produtividade física do trabalhador brasileiro. Isto é, a fórmula ideal que aumentou a reprodução do capital no país e que gerou as precondições para o “milagre econômico” a partir de 1968. À medida que os sindicatos viviam mergulhados numa onda de intervenção e de repressão constante, estando, de fato, nas mãos do governo, o sindicalismo brasileiro acabou perdendo uma das características básicas de sua função, isto é, o seu poder de reivindicação, a sua autonomia e liberdade, a sua capacidade de luta. Durante anos, apenas a ameaça de intervenção foi uma arma eficiente do governo na tarefa de desencorajar a militância sindical. Para intervir nos sindicatos, o governo não precisou criar um novo conjunto de leis, especificamente, de exceção, repressivo, mas simplesmente recorrer, de maneira ampla e efetiva, aos dispositivos legais que foram criados durante o primeiro governo Vargas. Para aprimorar o arcabouço jurídico da CLT e dar continuidade ao plano econômico do governo, este decretou um considerável corpo de novas leis trabalhistas e sindicais para aplicar com mais “eficiência” os aspectos repressivos da CLT e estreitar seus canais de ação. Nas palavras de Leôncio M. Rodrigues: “A estrutura corporativa foi mantida inalterada e diversos decretos governamentais foram baixados no sentido de aumentar o controle do governo sobre as organizações sindicais”.8 O regime militar – apesar de trabalhar com os elementos da mesma ideologia do “Estado Novo” (paz social, colaboração entre classes e ordem etc.) – na verdade, necessitou reformular algumas técnicas de pressão e alguns mecanismos legais daquele período, como meio de atingir os seus objetivos. Assim como o Estado Novo, o regime militar procurou romper com a liberdade, a autonomia e a pluralidade das organizações sindicais no Brasil, 8 RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e classe operária (1930-1964). In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira, p. 551. 124 • ao mesmo tempo em que as tornaram órgãos de colaboração do Estado, evitando, assim, que os trabalhadores desenvolvessem uma ação mais coerente com seus interesses de classe. A entrevista do ministro Arnaldo Prieto, por exemplo, demonstra o pensamento da ditadura a este respeito: Autonomia para quê? Autonomia para voltar ao que era antes de 1964? Essa, se Deus quiser, não haverá, o sindicato não será instrumento de agitação, de intranqüilidade, de arruação, de perturbação da ordem do país. Autonomia para defender os legítimos interesses da classe, essa tem, e deve ser aperfeiçoada. Acho que o principal é que o sindicato se transforme num organismo atuante. E isso pode.9 A principal medida adotada pelo governo para adequar os sindicatos à sua política foram as “intervenções”, que visavam a um só tempo quebrar a espinha dorsal do pujante movimento organizacional dos trabalhadores, em ascensão desde os anos 1950, e impedir que nas organizações sindicais se estruturasse qualquer possibilidade de resistência contra o golpe. De acordo com Leôncio M. Rodrigues, entre 1964 e 1970 foram efetuadas 536 intervenções (sendo 483 em sindicatos, 49 em federações e em quatro confederações). A maior parte dos sindicatos atingidos, durante este período, foram sindicatos de trabalhadores industriais (49% do total das intervenções). Das intervenções realizadas pelo Ministério do Trabalho, a maioria ocorreu nos primeiros dois anos do regime. Entre 1964 e 1965, 63 dirigentes sindicais tiveram seus direitos cassados e houve intervenção em quatro confederações, 45 federações e 383 sindicatos.10 Somente entre os meses de março e abril de 1964, a ditadura nomeou o expressivo número de 235 interventores. As intervenções concentraram-se nos grandes sindicatos, ou seja, aqueles mais poderosos e politicamente mais ativos: atingiram 70% dos sindicatos que tinham mais de cinco mil membros, em 37% dos que contavam entre mil e cinco mil afiliados, e em 19% dos que possuíam menos de mil associados. Maria H. Alves observou que, entre os anos de 1964 e 1965, as intervenções foram geralmente justificadas por uma das três razões seguintes: • 9 os funcionários dos sindicatos, federações ou confederações haviam “desaparecido”, e o Ministério do Trabalho presumiu abandono dos cargos, intervindo para indicar novos responsáveis; O sindicato deve lutar em paz. Veja, São Paulo, n. 471, p. 24, 14 set. 1977. 10 FREDERICO, Celso. A esquerda e o movimento operário: 1964/1974 – a resistência à ditadura, 1964/1971, v. 1, p. 17. • 125 • os líderes sindicais eram “subversivos”; • o comandante militar da região fora obrigado a ocupar as “instalações dos sindicatos para impedir atividades subversivas”. Sob ocupação militar, o sindicato não podia exercer suas funções normais, solicitando por isso a intervenção do Ministério do Trabalho. A intervenção frequentemente limitava-se a ratificar iniciativa já tomada por um comandante militar local ou representante da Delegacia Regional do Trabalho.11 De acordo com Heloisa de Souza Martins, o maior número de intervenções ocorreu na região Nordeste (42,32%) seguida pela região Sudeste (39,55%). Nestas duas regiões, os estados que apresentaram maior índice foram Pernambuco com 23,25% do total e São Paulo com 22,99%, respectivamente. 12 Segundo Paulo Cavalcanti, logo após a deflagração do golpe civil-militar, isto é, já no dia 8 de abril de 1964, 21 sindicatos operários e três federações de trabalhadores estavam sob intervenção do novo delegado do trabalho em Pernambuco, José David Gil Rodrigues, que nomeou velhos “pelegos” ou oficiais do Exército e da Marinha para a presidência das entidades.13 As intervenções causaram um profundo esvaziamento dos sindicatos. O Sindicato dos Metalúrgicos de Pernambuco, que tinha alcançado a marca de dois mil sócios nos anos anteriores ao golpe de 1964, caiu para duzentos associados em 1965. Como se vê, a legislação sindical estruturada a partir do golpe civilmilitar serviu, de modo geral, a três objetivos principais: • apertando os controles diretos, ela impediu os sindicatos de estruturar uma base organizacional a partir da qual pudessem atacar o sistema político e social existente, ou opor-se a políticas governamentais específicas; • procurou fortalecer os sindicatos e o sistema corporativo para seu papel na construção da nação e da coesão social; • e sob a escusa do controle da inflação, transferiu recursos para a indústria, sujeitando os trabalhadores a vários tipos de programas de poupança forçada. Embora a maior parte das intervenções tenha se dado entre os anos de 1964 e 1965, a partir deste período ainda houve um número significativo de 11 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984, p. 84. 12 SOUZA MARTINS, Heloisa Helena Teixeira de. O Estado e a burocratização do sindicato no Brasil, p. 100. 13 CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi: fatos do meu tempo (memórias políticas), p. 24. 126 • intervenções em diversos sindicatos espalhados pelo país. A partir de 1965, segundo Leôncio M. Rodrigues, “[...] o número de intervenções decresceu fortemente uma vez que o controle dos principais sindicatos já havia sido realizado”.14 Se, entre 1964 e 1965, a “subversão” era apontada como o principal motivo para as intervenções, durante o período de 1966 a 1970, os motivos eleitorais (irregularidades nas eleições), assim como outros motivos (rejeição de prestação de contas da antiga diretoria, infração das normas e regulamentos etc.), constituíram a grande maioria das justificativas apresentadas pelo governo para a destituição da diretoria sindical e indicação de um interventor, isto é, um “pelego”. A partir deste período, ocorreram elevados níveis de corrupção dentro das organizações sindicais. Isto se deu por dois motivos: por um lado, pela inexpressiva participação dos trabalhadores, e, por outro, pelo fato de o governo recompensar a lealdade política dos líderes sindicais, pelego ou não, fazendo vista grossa à constante malversação dos fundos sindicais. Além das “intervenções”, “atestado de ideologia”, “cooptação” e “expurgos” de líderes não alinhados com o regime militar, uma forma também de controlar as organizações sindicais no pós-1964 e de recuperar o contingente expressivo de associados que os sindicatos haviam conquistado nos anos anteriores ao golpe foi a “mudança de função” dos sindicatos. Isto é, a partir do golpe de 1964, o governo procurou tirar, cada vez mais, os sindicatos de suas funções reivindicatórias, mais combativa, para incentivarlhes na ampliação de seus patrimônios físicos e atribuir-lhes funções meramente burocráticas: atendimento médico e odontológico, assistência jurídica, concessão de bolsas de estudo, homologações etc., valendo-se para isso das gordas somas vindas do “imposto sindical”, criado desde os anos Vargas. Como salientou Heloisa de Souza Martins, a partir desse período surgiu no Brasil um “sindicalismo gerencial”, que acentuou o caráter burocrático do sindicato e o papel de administrador de seus diretores. Estes se transformaram em executores das exigências burocráticas do Ministério do Trabalho. Os militares esperavam do dirigente sindical um comportamento semelhante ao chefe de uma empresa, um mero “burocrata”. O dirigente sindical surgiu como membro do quadro administrativo estatal cujas atribuições, dentro da legislação sindical e trabalhista existente, consistiam em pôr em prática os objetivos definidos pelo poder governamental. Na ótica do governo, o papel dos sindicatos deveria ser o de “abafar” os conflitos trabalhistas, atuando como um mediador entre empregados e empregadores e prestador de assistência social à classe trabalhadora. Em 14 RODRIGUES, op. cit., p. 551. • 127 outras palavras, a ideia do regime militar era que o sindicato deveria ser uma agência bem gerenciada, para a prestação de serviços, seja à categoria, seja ao país: Na realidade, os sindicatos foram transformados em organizações de previdência social que desempenham as funções de um Estado previdenciário, em grande parte liberando o governo central de obrigações sociais. Simultaneamente, o peso desse encargo impede que os sindicatos cumpram sua inalidade intrínseca: a de representar os interesses econômicos dos trabalhadores.15 Após 1974, quando o clima político do país passou a ser menos repressivo, (re)surgiram diversos movimentos sociais no Brasil, atravessando o Estado, de lado a lado, despontando novas formas de participação social e política das classes populares.16 Em Pernambuco, começaram a surgir no interior de diversas fábricas segmentos de trabalhadores que compartilhavam de uma perspectiva mais “reivindicativa” – algo, inclusive, que, neste período, começava a apontar também em diversos outros sindicatos espalhados pelo país. As reuniões desses trabalhadores, ocorridas geralmente durante a hora do almoço, eram improvisadas, clandestinas e tinham como pauta principal a discussão dos problemas enfrentados pela categoria. Como destacou, por exemplo, o então metalúrgico João Paulo da Silva, ex-prefeito do Recife e ex-deputado federal pelo PT-PE: [...] a gente conversava um pouco sobre nossa realidade. Não só conversava, mas tentava buscar alternativas. Isso foi em 74, quando organizamos a Caixinha de Ajuda Mútua. A partir daí, conseguimos criar uma biblioteca, compramos livros que falavam sobre o movimento operário e circulamos esses livros dentro da fábrica. Foi desse jeito que, pela primeira vez, conseguimos paralisar a empresa, por causa do arrocho salarial que todo mundo vivia.17 Cabe destacar que essa estratégia de confronto trouxe consigo também uma série de represálias por parte do patronato. Além do risco constante de desemprego em função da militância desempenhada, houve, durante o período de 1974-1978, perseguições, suspensões, advertências, exploração, abusos, conforme relatou um metalúrgico: “[...] a questão do confronto direto 15 ALVES, op. cit., p. 289-290. 16 SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). 17 GT SINDICAL DO CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS JOSUÉ DE CASTRO. Até chegar no Zé. 128 • com o patrão foi um negócio sério, a questão de puxar a arma, de ameaçar gente, de dar murro no birô, isso ai aconteceu com muitos empresários”.18 Estas atitudes da classe empresarial foram tomadas, é importante que se diga, com a conivência dos militares: [...] a empresa queria que trabalhássemos no feriado. Discutimos a questão com um grupo de trabalhadores que já vinham se encontrando. Como a situação era ruim, o salário muito baixo, decidimos não ir trabalhar. Articulamos o pessoal e na irma não foi ninguém [...]. Depois o pessoal começou a reagir contra o expediente dobrado para quem trabalhava à noite. Uma vez eu e mais três companheiros deixamos as máquinas funcionando e dissemos que não poderíamos dobrar. Depois disso, fui chamado e eles me identiicaram como uma pessoa que estava incentivando o pessoal e ameaçaram de me entregar para o IV Exército.19 Como se pode perceber, entre 1974 e 1978, houve uma intensa movimentação de pequenas lutas trabalhistas no interior das fábricas pernambucanas. Essa situação, portanto, faz cair por terra a conservadora ideia de que os trabalhadores urbanos dessa região foram indivíduos “passivos” e “amorfos” em relação ao governo e ao patronato, sem nenhuma participação/contribuição na redemocratização do país. Bastou-nos arrancar o véu para vermos o que estava escondido, esquecido pela historiograia oicial do período: mesmo em pleno regime autoritário, diversos trabalhadores pernambucanos agiram, em diversas ocasiões, de maneira “silenciosa” e “clandestina” no interior das empresas e do próprio sindicato situacionista a im de (re)organizar e mobilizar a categoria proissional. No esteio da onda grevista desencadeada no país no final da década de 1970, a partir da região do ABC paulista, diversas categorias de trabalhadores pernambucanos no campo e na cidade passaram a se organizar com vistas a manifestarem publicamente suas reivindicações e críticas ao regime militar. Foi nessa época também que veio à tona um grupo de trabalhadores, com características combativas e reivindicativas, ligados à oposição sindical, que lutavam contra os patrões, a política econômica do governo e as lideranças situacionistas e pelegas do período. Na área rural, o processo de renovação das direções sindicais se deu mais rapidamente.20 18 Idem. 19 Depoimento de Raimundo Barreto citado por: MONTEIRO, Maria Alexandra da Silva. Ação Católica Operária: fé e luta em tempos difíceis no Nordeste do Brasil, p. 228, grifo nosso. 20 ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural: lutas, partidos, projetos, p. 148-151. • 129 A expressão mais elevada deste novo sindicalismo rural concentrase na Zona da Mata de Pernambuco, onde a perfeita articulação entre a Federação [a Fetape] e um expressivo e ativo grupo de sindicatos conseguiu atingir um nível de organização e mobilização capaz de desencadear movimentos grevistas, envolvendo 200 mil trabalhadores, em três campanhas salariais sucessivas (1979, 1980 e 1982).21 Na área urbana de Pernambuco, o processo de renovação das direções sindicais ocorreu de maneira lenta. Nesta região – mesmo no final da década de 1970, quando já se apresentavam algumas lideranças “combativas” em outros estados brasileiros –, os dirigentes sindicais estavam desligados de qualquer trabalho de base e, em geral, contrários à proposta de reformas efetivas e profundas na legislação sindical. Em Pernambuco, as novas lideranças dos trabalhadores começaram a surgir à revelia de suas entidades sindicais. Como fruto da articulação desses trabalhadores, inúmeras greves e paralisações em diversas categorias profissionais foram deflagradas no meio urbano de Pernambuco entre os anos de 1979 e 1984, período final do regime militar. O sucesso dessas ações criou um clima de “euforia grevista” entre os trabalhadores, e isto incitou muitas greves ou tentativas no período que se seguiu. O quadro abaixo apresenta a composição das greves ocorridas em Pernambuco nos anos finais da ditadura militar: Greves urbanas ocorridas em Pernambuco entre os anos de 1979 e 1984(a)1 Ano Categoria Médicos residentes 1979 1980 Período 22/05* 03/06 – 19/06 Professores da rede particular 30/05 – 05/06 Professores da rede oicial 30/05 – 04/07 Motoristas e cobradores de ônibus 31/05 – 01/06 Caminhoneiros 21/08 – 24/08 Eletricitários (CELPE) Eletricitários (CHESF) Professores da UFPE Professores da UFRPE 29/10 – 13/11 31/10 – 04/11 19/11 – 10/12 27/11 – 08/12 21 SOARES, José Arlindo. Pernambuco e Paraíba: tendências atuais do sindicalismo no Nordeste: modernização conservadora ou mobilização social. In: CEDEC. Sindicatos em uma época de crise, p. 90. 130 • 1981 1982 1983 Motoristas e cobradores de ônibus 01/10* Professores da UFPE/UFRPE 11/11 – 01/12 Médicos residentes 28/06 – 19/08 Professores da UFPE/UFRPE Servidores da UFPE/UFRPE 18/11 – 17/12 15/12 – 20/12 Operários da Micromotores ** 02/05 – 09/05 “Passeata dos desempregados” 18/05* Professores da rede particular 27/05 – 07/06 “Dia Nacional de Protesto” 21/07* “Seca-pneu” 07/04* Professores da rede particular 04/06 – 11/06 Médicos residentes 12/06 – 01/08 1984 Médicos Professores da UFPE/UFRPE Servidores da UFPE/UFRPE 19/06* 04/07 – 06/07 15/05 – 07/08 22/05 – 06/08 (a) FERREIRA, Rafael Leite. O “novo sindicalismo” urbano em Pernambuco (1979-1984): entre mudanças e permanências. * Refere-se às greves com duração de 24 horas (ou menos). ** Greve que não envolveu a paralisação de toda a categoria, icando restrita apenas a uma empresa, mas que causou grande repercussão no período. As manifestações ocorridas no meio urbano pernambucano, ao enfrentarem o governo e/ou patrões, tornaram-se um ponto central na luta dos trabalhadores dessa região, pois, ao mesmo tempo em que furaram o cerco montado pela ditadura, trouxeram esses indivíduos à cena política e à luta pela democracia que se desenhava no país. Nas palavras de um grevista, à época dos acontecimentos: “O que ninguém pode negar é que este movimento por melhores salários transformou-se na mais importante manifestação política da cidade, no momento”.22 Considerações finais Um conceito que vem ganhando bastante espaço na comunidade internacional, após a Segunda Guerra Mundial, é o da “Justiça de Transição”. C omo o próprio nome sugere, a Justiça de Transição ocorre no contexto da mudança de um regime autoritário e/ou totalitário para outro que lhe sucede, este com princípios e valores democráticos. Denomina-se Justiça de Transição o conjunto de medidas que devem ser adotadas pelo Estado, após o fim de um conflito ou um regime de força, direcionadas a consolidar o Estado democrático de direito, superar os graves danos causados à sociedade, a garantir a não repetição das atrocidades do passado 22 Queixa de mestre é contra Maciel. Jornal do Commercio, Recife, p. 12, 24 jun. 1979. • 131 e a reconstruir as relações de confiança entre o Estado e os seus cidadãos. 23 A implantação da Justiça de Transição em determinada localidade ou sociedade implica a adoção das seguintes providências: • promover a reparação dos danos às vítimas; • esclarecer a verdade; • realizar a justiça, mediante a responsabilização dos violadores de direitos humanos; • reformar institucionalmente os serviços de segurança, inclusive as Forças Armadas e os órgãos policiais, para adequá-los ao Estado democrático de direito, fundado no respeito aos direitos fundamentais; • instituir espaços de memória, para que as gerações futuras possam conhecer e compreender a gravidade dos fatos. Como se vê, dentro do escopo da Justiça de Transição, a verdade e a memória têm um lugar essencial. Para Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, os países latino-americanos que instituíram comissões de verdade possuem, hoje, uma democracia e um respeito aos direitos humanos em um patamar mais elevado. E nenhum deles experimentou retrocesso por ter promovido a justiça e a verdade. Estas categorias reforçam a cidadania e a democracia pela valorização da verdade e da reparação, bem como pelo repúdio à cultura da impunidade e do segredo.24 A CEMVDHC foi criada justamente dentro do espírito da Justiça de Transição, no efetivo sentido de proporcionar às vítimas do regime militar o direito de conhecer a verdade sobre os abusos que sofreram (as circunstâncias e fatos das violações), incluindo a identificação dos perpetradores, as causas que deram origem a tais violações, e, quando for o caso, o destino final ou o paradeiro de desaparecimento forçado (familiares e amigos). A tomada de consciência sobre o passado de violações aos direitos humanos é importante para avançar na reconstrução da democracia e do Estado de direito, que não poderá ser alcançada enquanto persistirem as feridas dos tempos de violência. Assim, o reconhecimento da verdade total, dura, complexa e livre de maquiagens é a tarefa fundamental de uma comissão da verdade. 23 Conforme relatório do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) ao Conselho de Segurança. The Rule of Law and Transitional Justice in Conlict and Post-Conlict Societies, S/2004/616, 24 ago. 2004. 24 SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. The Impacts of Human Rights Trials in Latin America. Journal of Peace Research, p. 427-445. 132 • As vítimas do regime militar têm o direito a uma reparação efetiva por parte do Estado. A verdade sobre os fatos ocorridos é uma dívida do Estado para com os familiares das vítimas de abusos de direitos humanos. A verdade e a memória, apesar de algumas vezes doloridas, podem auxiliar no processo de superação após eventos traumáticos, podem restaurar a dignidade pessoal (muitas vezes, após muitos anos de estigmatização) e proteger contra a impunidade e a negação. [...] a memória é parte integrante do processo de acerto de contas com o passado e um aspecto importante de qualquer processo de justiça de transição que busca corrigir o registro histórico. Memorialização pós-conflito se insere sob a rubrica das formas de reparação, como uma categoria de reparação simbólica que busca reconhecer as vítimas e contribuir para processos mais amplos de reconciliação. 25 A CEMVDHC, criada sob a luz da Justiça de Transição, teve a função crucial de reconhecimento histórico, em oposição à negação e ao silêncio anterior do Estado de exceção, e de cumprir um imperativo moral do direito das vítimas à verdade e à memória sobre o passado e às violações que tenham sofrido. A relatoria temática “Violações dos direitos humanos nos meios sindicais”, cujo objetivo foi analisar a repressão da ditadura sobre os trabalhadores e os meios sindicais urbanos, buscou realizar um verdadeiro acerto de contas com o passado e com a história de nosso estado. Após anos de silenciamento, os trabalhadores receberam atenção especial da CEMVDHC. Para os ideólogos da ditadura, o golpe civilmilitar de 1964 se fez contra a suposta corrupção do governo João Goulart, contra a “subversão, a baderna e a anarquia das esquerdas” e o temor da instalação de uma “república sindical” no país. Para a CEMVDHC, mais apropriado seria afirmar que o golpe de 1964 significou um golpe contra a incipiente democracia política vivida no país; um movimento contra as reformas sociais e políticas prometidas, em nível federal, pelo governo de João Goulart, e, em nível estadual, pelo governo Miguel Arraes; e, principalmente, uma ação repressiva contra a politização da organização dos trabalhadores no campo e na cidade. O inédito espaço político conquistado pelos trabalhadores rurais e urbanos e pelas lideranças sindicais no interregno democrático de 1945-1964 incomodava e amedrontava determinados setores militares, religiosos, empresariais, da 25 ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (coord.). Da memória à ação: um kit de ferramentas para memorialização em sociedades pós-conlito, p. 11. • 133 imprensa e da classe média. Como acertadamente resumiu o historiador Paulo Fontes: “O golpe de 1964 foi, antes de tudo e, sobretudo, um golpe contra os trabalhadores e suas organizações”. 26 Referências ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. (coord.). Da memória à ação: um kit de ferramentas para memorialização em sociedades pós-conlito. Brasília/DF: Comissão de Anistia, 2010. ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural: lutas, partidos, projetos. Recife: Editora Universitária da UFPE; Editora Oito de Março, 2005. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. São Paulo: Edusc, 2005. BAUER, Caroline Silveira; GERTZ, René E. Fontes sensíveis da história recente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi: fatos do meu tempo (memórias políticas). 4. ed., v. 2. Recife: Cepe, 2008. COMBLIN, Joseph. 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Disponível em: <htp:https://www.cartamaior.com. br/?/Editoria/Politica/O-golpe-contra-os-trabalhadores/4/30727>. Acesso em: 30 nov. 2016. 134 • Social) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1992. O SINDICATO deve lutar em paz. Veja, São Paulo, n. 471, p. 24, 14 set. 1977. ONU. The Rule of Law and Transitional Justice in Conlict and Post-Conlict Societies, S/2004/616, 24 ago. 2004. QUEIxA de mestre é contra Maciel. Jornal do Commercio, Recife, p. 12, 24 jun. 1979. RAINHO, Luís Flávio; BARGAS; Osvaldo Martines. As lutas operárias e sindicais dos metalúrgicos em São Bernardo (1977-1979), v. 1. São Bernardo (SP): Associação Beneicente e Cultural dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, 1983. RODRIGUES, Leôncio Martins. Sindicalismo e classe operária (1930-1964). In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira. O Brasil republicano: sociedade e política (1930-1964). 3. ed., v. 10, t. 3. São Paulo: Difel, 1986. 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São Paulo: Hucitec, 1979. • 135 136 • O HISTÓRICO LEGADO DA COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO PARANÁ – TERESA URBAN Marcio Kieller* O processo histórico da luta política para a construção da Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban (CEV/PR) se mistura com o processo da luta política pela criação da Comissão Nacional da Verdade – a CNV, como ficou conhecida em todo o país e até internacionalmente –, que já vinha de muitos anos, mas se consolida como movimento extremamente forte e organizado em 2011, lastreado por uma forte pressão popular, após o lançamento do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).1 Os primeiros atos dessa luta se constituíram com a iniciativa política de aglomerar todos os movimentos por verdade, memória, justiça e reparação já existentes, expressos em entidades que tinham suas lutas específicas, como Tortura Nunca Mais, Terra de Direitos, Comissão Nacional de Anistia, Comissão Nacional de Mortos e Desaparecidos, grupos de direitos humanos das mais variadas vertentes e movimentos sociais de defesa dos direitos humanos. No Paraná, essa movimentação política deu origem ao Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça,2 que inicia seus trabalhos com uma intensa proposição de atividades públicas e de organização, fomentando um calendário intenso de ações públicas, políticas e culturais, sempre tendo como eixo norteador o tema da verdade, memória e justiça. Um parêntese importante está na nomeação do coordenador 3 do fórum, Norton Hohama, uma pessoa incansável e persistente na busca por manter o organismo ativo e atuante até os dias de hoje. Com essa escolha, * Secretário-geral da Central Única dos Trabalhadores do Paraná (CUT/PR); membro da Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban (CEV/PR), Curitiba, Brasil. 1 O Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), fruto de um amplo debate na sociedade civil organizada, foi fundamental como instrumento para viabilizar a criação da CNV, pois esse plano trouxe uma série de teses que foram disputadas com setores mais conservadores da sociedade, entre elas a questão fundamental do direito à memória e à verdade. Ver: BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). 2 O Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça se constituiu em 2011 e, na sua plenária de lançamento, teve a participação de mais de sessenta entidades dos movimentos sindicais, sociais e daqueles ligados ao resgate da memória no Paraná. Dentre essas entidades, estava a CUT/ PR e seus sindicatos. 3 Indicado por unanimidade como coordenador do fórum, o senhor Norton Hohama, funcionário de carreira da UFPR, foi conduzido à condição de membro suplente da CEV/PR. Posteriormente, foi integrante da recomposição dessa comissão. • 137 destaca-se também a importância e o apoio dados ao fórum e à CEV/PR por parte da Universidade Federal do Paraná (UFPR).4 O fórum tinha como um dos seus principais objetivos a luta por uma lei que constituísse a CNV; nesse intuito, casou diversas atividades com a Comissão Nacional de Anistia, incluindo Curitiba no projeto Caravanas da Anistia por duas vezes, além de inaugurar um espaço de preservação da história e da memória das graves violações contra os direitos humanos, o Museu de Percurso "Caminhos da Resistência". O museu é formado por totens explicativos, colocados ao longo dos pontos da cidade que serviam de resistência à ditadura ou em lugares usados para a prática de tortura e maus tratos. É composto por cinco locais: 1. O presídio desativado do Ahú que por muitos anos serviu de local para a guarda de presos políticos. Para lá foram todos os que icaram mais tempo sob guarda e as agruras do regime militar; 2. O prédio histórico da reitoria e o prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, que foram focos permanentes de resistência e de denúncia utilizados pelo movimento estudantil; 3. A Boca Maldita, no centro de Curitiba, que foi um grande palco de enfretamento político com realizações de inúmeras manifestações políticas contra o golpe; 4. A sede da União Paranaense de Estudantes, a UPE, que prestou grandes serviços aos militantes que se opunham ao golpe militar; 5. O prédio sede da praça Rui Barbosa que serviu também de lugar de guarda de presos que vinham do interior, até serem transferidos para o presídio do Ahú.5 O Museu de Percurso proporciona aos cidadãos de Curitiba e aos que o visitam uma noção do que se viveu naqueles tempos e como se resistiu para que chegasse ao fim aquele tenebroso período de exceção. Fará com que as novas gerações tenham contato com a realidade e com as dificuldades que muitas pessoas, defensoras das liberdades democráticas, viveram, além de terem uma dimensão dos lugares que foram fundamentais para a resistência. A criação da CNV foi fruto da luta política do fórum e de suas alianças estaduais e nacionais conseguidas pela pressão popular dos movimentos organizados ainda no primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff. 4 A UFPR, por parte de seu então reitor, Zaki Akel Sobrinho, teve um papel determinante em todos os processos que desembocaram na constituição da CEV/PR, desde os trabalhos iniciais do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça, cedendo pessoas para coordená-lo. 5 Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça do Paraná. 138 • Com a sanção da lei federal n. 12.528/2011, a comissão foi constituída e nominada em 16 de maio de 2012: Em cerimônia realizada no Palácio do Planalto a presidenta Dilma Roussef deu posse aos sete integrantes da comissão: Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, João Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha, na ocasião. Em dezembro de 2013, o mandato da CNV foi prorrogado até dezembro de 2014 pela medida provisória n. 632, e houve a substituição de Cláudio Fonteles, que renunciou e assumiu sua vaga Pedro Dallari. A Comissão foi criada com a inalidade de apurar as graves violações de direitos humanos ocorridas no recorte temporal de 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.6 A Central Única dos Trabalhadores (CUT/Brasil) foi parceira de primeira hora na luta pela criação da CNV. A CUT estava tão imbuída na luta pelo resgate da verdade, memória, justiça e reparação, que, em seu xI Congresso Nacional, realizado entre os dias 9 e 13 de julho de 2012, criou a Comissão de Acompanhamento da CNV. Depois a transformou na Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da Central Única dos Trabalhadores,7 que teve todo o suporte estrutural do Centro de Documentação e Memória Sindical, o Cedoc da CUT/Brasil. Essa comissão teve uma atuação importantíssima e de destaque nas contribuições à CNV, inclusive sendo uma das responsáveis pela criação do Grupo de Trabalho dos Trabalhadores dentro da Comissão Nacional da Verdade, que foi o GT 13, gerido pela então coordenadora da CNV, dra. Rosa Cardoso. Com o êxito alcançado na constituição da CNV, reforçou-se a ideia de se criarem também comissões da verdade em todos os âmbitos possíveis. Assim, elas começaram a proliferar, bem como grupos de trabalho de resgate da verdade, por todos os cantos do Brasil: comissões da verdade de estados e municípios, oficiais ou não; de centrais sindicais, como a Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT; de federações e sindicatos. Estima-se que mais de trezentos desses grupos foram criados ou 6 Ver: site da Comissão Nacional da Verdade - <htp:https://www.cnv.gov.br>. 7 Compuseram a Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da Central Única dos Trabalhadores: Vagner Freitas de Moraes, presidente da CUT/Brasil; Sergio Nobre, secretário-geral; Expedito Solaney, secretário de Políticas Sociais na gestão 2012-2015; além de Indalécio Wanderley Silva, João Batista Gomes, José Rodrigues Sobrinho, José Soares Malta, Lourdes Aparecida de Jesus Vasconcelos, Luiz Eduardo Greenhalgh, Luiz Henrique Alves Pereira, Marcio Mauri Kieller Gonçalves, Maria José Soares de Lima, Osvaldo da Silva Bezerra, Paulo Vannuchi e Rubens Marques de Souza. CUT (Central Única dos Trabalhadores). Relatório da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT. • 139 estavam funcionando concomitantemente à CNV. Junto a essas entidades, construiu-se uma rede nacional de verdade, memória e justiça, com o objetivo de fortalecer e fornecer subsídios, históricos e documentais, além de se criarem linhas de atuação para os trabalhos da CNV. No Paraná não foi diferente. O forte trabalho desempenhado pelo fórum voltou seus esforços e suas articulações para que também se criasse por lei estadual a Comissão da Verdade do Paraná. Isso aconteceu pela promulgação da lei estadual n. 17.362/2012, que na sua formatação garantiu ao Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça a prerrogativa de indicar um dos sete nomes que iriam compor a CEV/PR. O decreto n. 7.128/2013,8 de nomeação dos seus comissários, foi publicado no dia 28 de janeiro. Como prerrogativa, a lei dava ao Fórum Paranaense a possibilidade de indicação de um dos sete nomes. Em suas reuniões, o grupo debateu exaustivamente quem ou qual das entidades poderia compor a comissão, com condições de dar visibilidade social, capilaridade e trânsito nas entidades e nos movimentos, tanto na capital como no interior. O debate apontou para a indicação da CUT/PR, na minha pessoa, então vice-presidente da central na época. Nas estratégias de potencialização, como forma de ver qual importância o governo do Paraná daria à comissão que havia sido criada por lei, o fórum apresentou também uma nominata para deixar à disposição do governador Carlos Alberto Richa.9 O governador, além de referendar o nome da CUT, indicou os outros cinco nomes que constavam da nominata apresentada, que tomaram posse como comissários: Pedro Rodolfo Bodê de Moraes, prof. dr. da Universidade Federal do Paraná; Ivete Maria Caribé da Rocha, advogada e integrante do Comitê de Refugiados do Paraná; Luiz Edson Fachin, jurista e prof. dr. de direito na UFPR; Marcio Mauri Kieller Gonçalves, bancário, vice-presidente da Central Única dos Trabalhadores do Paraná, CUT/PR (na vaga do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça); Olímpio de Sá Soto Maior Neto, procurador de 8 A nomeação dos comissionados da CEV/PR foi feita sem nenhuma espécie de ônus para o Estado, do ponto de vista da sua manutenção durante o trabalho na comissão. Diferentemente de outras igualmente importantes, oiciais, formadas em outros estados brasileiros, bem como a CNV. 9 A indicação da nominata ao governador Beto Richa fazia parte de uma estratégia do fórum de ver qual seria a importância política que o governo daria para a comissão estadual. Se ele desconsiderasse a nominata e indicasse outros seis membros, demonstraria que tinha interesse político no trabalho. Pelo contrário, se acatasse os nomes indicados, demonstraria que não estava dando o valor político suiciente. O que na prática aconteceu, porque somente indicou um nome que não igurava na lista. 140 • Justiça do Ministério Público do Paraná; Vera Kara de Chueri, prof.ª dra. da Universidade Federal do Paraná; Neide de Azevedo Lima, ex-presidente do Movimento Feminino pela Anistia no Paraná.10 A comissária Neide de Azevedo Lima foi a única e exclusiva indicação do governador do estado do Paraná para a composição da CEV/PR. Desde seu início, a comissão estava subordinada operacionalmente à Secretaria de Justiça do Estado do Paraná, que tinha à frente a secretária Maria Teresa Ullie Gomes. Acabou sendo, porém, apenas mais um ente político dentre os diversos que estavam ligados a esse órgão. Os trabalhos da CEV/PR – Teresa Urban já começaram com problemas de ordem operacional, pois o intento de organizá-la e propiciar que tivesse a estrutura material e técnica adequada gerou debates acalorados sobre o tipo de formato que teria e como seria sua manutenção e desenvolvimento de atividades. A comissão se deparou com graves problemas na estruturação das frentes de trabalho, assim como na designação de quais grupos de trabalho seriam formados e quem iria coordená-los. O primeiro passo foi a indicação política do coordenador da comissão. Abriu-se o debate sobre quem teria o melhor peril para ocupar a coordenação dos trabalhos e o indicado foi o prof. dr. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes, especialista em violência, área em que atua no Departamento de Ciências Sociais da UFPR. Designado, o coordenador estabeleceu nas primeiras reuniões algumas regras e também a criação dos grupos de trabalho da comissão, que foram no total de seis, denominados GT’s,11 assim distribuídos: GT 1 – Graves violações de direitos humanos – Coordenadoras: Neide de Azevedo Lima e Vera Karan; GT 2 – Operação Condor – Coordenadores: Ivete Caribé Rocha e Norton Hohama; GT 3 – Segurança pública e militarização – Coordenadores: Pedro Bodê e Silvia Caciolari; GT 4 – Partidos políticos, sindicatos e ditadura – Coordenadores: Marcio Kieller e Roberto Elias Salomão; GT 5 – Ditadura e sistema de repressão – Coordenadores: Luíz Edson Fachin, Olympio Sá Soto Maior Neto; GT 6 – Violações no campo e aos povos indígenas – Coordenadores: Olympio Sá Soto Maior Neto.12 10 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban. Relatório inal. 11 Para os grupos de trabalho, inicialmente, foi indicado apenas um coordenador. Após a aprovação do decreto governamental que indicaria suplentes para a comissão estadual e a sua recomposição, pela saída dos membros Luiz Edson Fachin, que havia assumido uma tarefa internacional, e Neide de Azevedo Lima, em função de problemas de ordem pessoal, os suplentes também foram alocados como coordenadores dos grupos de trabalho. 12 PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. • 141 Ao iniciarmos os trabalhos da comissão, não tínhamos a dimensão do tamanho das dificuldades para operacionalizá-la. A começar pela própria importância que o governo do estado deu à comissão, quase nenhuma. Isso foi observado nas condições estruturais em que a CEV/PR começou a funcionar, somente tendo à disposição dois funcionários, sendo um deles o próprio secretário-executivo da Secretaria de Justiça do Estado do Paraná. 13 Mais uma dificuldade política na implementação operacional foi a questão do corpo de assessoria da comissão. Desde o início, pensava-se em disponibilizar funcionários de outras secretarias que quisessem prestar serviços a ela. Apesar do interesse de inúmeros trabalhadores ligados à Secretaria de Educação e de outras, isso não se realizou da forma e na quantidade necessária de servidores para o seu bom funcionamento.14 O altruísmo do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça e de algumas entidades que dele participavam é que possibilitou que a maioria das atividades da comissão acontecesse. Os problemas foram inúmeros, a começar pelas dificuldades financeiras, pois, sendo uma comissão oficial, deveria ter todo o apoio do Estado e não teve. Mas a comissão não podia parar. Era imperativo que conseguíssemos continuar os trabalhos, dar cabo das tarefas que nos estavam impostas de levantar a memória, a verdade e restabelecer a justiça àqueles que foram vítimas das graves violações de direitos humanos no Paraná, em grande parte a classe trabalhadora, para que, de alguma forma, pudéssemos contribuir para os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Seguindo uma organização, começaram a ser marcadas as oitivas da CEV/PR, que aconteceram por meses em um calendário semanal, todas as quintas-feiras. Foram ouvidas mais de 34 pessoas, entre vítimas e parentes de vítimas das graves violações cometidas pelo regime civil-militar no Paraná. Poucos agressores se dispuseram a depor na comissão. Outros foram convocados a fazê-lo e se negaram.15 13 Foi destacado como secretário-executivo da Comissão Estadual da Verdade o prof. dr. Gediel, que também era secretário-executivo de toda a pasta da Secretaria de Justiça do Estado do Paraná. Ou seja, não tinha a dedicação exclusiva que uma comissão da envergadura dessa requer. 14 Pensou-se no início em abrir chamado interno para que funcionários do estado que tivessem ainidade com os trabalhos da comissão pudessem se inscrever como candidatos à assessoria, sem que tivessem qualquer tipo de prejuízo com relação às suas lotações iniciais. Isso também causou grandes diiculdades nos trabalhos da comissão, pois os chefes diretos não aceitavam a desvinculação dos funcionários de suas secretarias, ou os liberavam sem garantias de volta ao local de origem. O fato é que, com relação aos técnicos que iriam assessorar a CEV/PR, foi colocado à disposição um número ininitamente menor do que de fato se precisava. 15 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. 142 • Também foi estabelecido um calendário de audiências públicas pelas diversas regiões do estado do Paraná, das quais trataremos abaixo: 1. Foz de Iguaçu/PR (Estrada do Colono); 2. Apucarana/PR (Casos dos Estudantes); 3. Curitiba/PR (Chácara do Alemão); 4. Maringá/PR (Sindicatos/PCBR/Norte); 5. Londrina (Sindicatos); 6. Ato Unitário Sindical (CEV/Centrais Sindicais), 7. Cascavel/ PR (Camponeses e indígenas); 8. Umuarama/PR (Sindicatos); 9. Curitiba/PR (Seminário Operação Condor); 10. Curitiba/PR (Justiça e militarização); 11. Papanduva/SC (Caso de Papanduva); 12. Curitiba/PR (Audiência pública da Itaipu – Binacional).16 Todas as audiências públicas foram importantes, mas é fundamental centrarmos o enfoque na realizada em Foz do Iguaçu, nos dias 27 e 28 de março de 2013, a primeira feita pela CEV/PR e também uma das principais, pelo fato de tratar dos crimes da Estrada do Colono no Parque Estadual do Iguaçu, onde jovens soldados se rebelaram contra o Exército e aderiram ao combate à ditadura. O caso da Estrada do Colono foi o único a ter destaque no relatório da CNV.17 Nessa audiência em Foz do Iguaçu, tivemos muitas diiculdades em ouvir os militares convocados para os depoimentos. Foi preciso acionar a Polícia Federal para poder ouvir um desses depoentes. Mesmo assim, não obtivemos sucesso na empreitada, porque o militar se negou a falar, ainda com todas as suas prerrogativas constitucionais garantidas pela lei. Nessa audiência, foram feitas nove oitivas de vítimas e parentes das vítimas de graves violações cometidas pela ditadura civil-militar e uma oitiva de agressor, sendo que outro agressor se negou a depor. As seguintes pessoas deram depoimentos: Adão Luís Almeida, Aluízio Ferreira Palmar, Ana Beatriz Fortes, Gilberto Giovanneti, Isabel Fávero, Jair Kriscke, Letizia Abate Solley, Lilian Rúgia, Rodolfo Mongelos, Leguizamon.18 Também merecem atenção especial as audiências públicas nas cidades de Curitiba, Umuarama, Maringá, Londrina, além da realização da Caravana da Agricultura Familiar e do Ato Sindical Unitário, justamente por causa da essência sindical dessas audiências, desde a maioria dos ouvidos até as entidades que se propuseram a realizá-las. Nessas cidades, as audiências foram chamadas pela CEV/PR, pela CUT/PR e por alguns sindicatos da base da central. 19 16 Idem. 17 Ver BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório inal. 18 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. . 19 Isso aconteceu devido à postura progressista da CUT e de suas federações e sindicatos, que desde os primeiros momentos foram entidades que estiveram ao lado da instalação da CNV e da própria CEV/PR, como destacamos anteriormente. • 143 A audiência pública de Curitiba foi dividida em três partes: universidade, movimentos de esquerda e justiça. Também houve espaço para homenagens à primeira mulher vereadora em Curitiba, Maria Olímpia Carneiro Moschel. 20 Nessa audiência, foram ouvidos os casos da Chácara do Alemão e do processo político da Operação Marumbi, onde foi desmontada pelo Exército toda a estrutura política dos dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCBdoB) no Paraná e em Santa Catarina. Também foram ouvidos diversos ex-militantes do PCdoB e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).21 Durante os três dias, foram ouvidas as seguintes pessoas: O prof. dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho; o advogado e radialista, militante do PCdoB, Cláudio Benito Antunes Ribeiro; o advogado trabalhista, militante da Ação Popular (AP) e do movimento sindical bancário na década de 60 e 70, Cláudio Antônio Ribeiro; o advogado trabalhista e militante da AP, Edésio Franco de Oliveira Passos; o dirigente do PCB, Francisco Luís França; a prof.ª dra. Judite Trindade, militante do movimento estudantil; o advogado trabalhista, e militante do PCB, Vitório Sorotiuk; o jornalista e dirigente do PCdoB, Luís Manfredini; Stênio Salles Jacob, ex-presidente da UPES; Neusah Cerveira, ilha do major Cerveira; Ciro Viegas de Oliveira, ilho de Híran Ramos de Oliveira, advogado, professor e dirigente do PCB e do PCdoB e Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de Luís Inácio Lula da Silva, quando foi preso nas greves do inal dos anos 70, e também advogado do Comitê Brasileiro de Anistia.22 Na audiência em Curitiba, foi ouvido o advogado de presos políticos Eduardo Greenhalgh, que deu importantes informações sobre a localização das ossadas dos estudantes Edésio Brianeze e Antônio dos Três Reis de Oliveira. Mais uma vez, tentou-se por força de lei, com intimação legal, 20 Maria Olímpia Carneiro Moschel era professora da rede estadual de ensino e militante do Partido Comunista do Brasil (então PCB – ver nota 21). Porém, foi vereadora pelo PST, dado o período de exceção que o PCB viveu no pós-1947, com a cassação do seu registro, o que fez muitos comunistas declarados concorrerem a cargos eletivos por outros partidos. No Paraná, elegeram-se por outras legendas três vereadores: Maria Olímpia Carneiro Moschel, em Curitiba; José Leandro dos Santos, em Morretes; e Janesci Guimarães, em Maringá. Ver: CODATO, Adriano Nervo; KIELLER, Marcio. Velhos vermelhos: história e memória dos dirigentes comunistas do Paraná. 21 O Partido Comunista do Brasil, então PCB, até sua 5ª Conferência Nacional em 1958, era um partido só; depois do racha político de 1958, passaram a existir dois partidos comunistas: o Partido Comunista Brasileiro, que icou com a sigla PCB e mudou de nome, e o Partido Comunista do Brasil, que icou com o nome e mudou a sigla para PCdoB. Ver: KIELLER, Marcio. A unidade comunista no Brasil. 22 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. 144 • ouvir em separado o depoimento do agente da repressão e advogado Mario Ostroviski sobre as mortes acontecidas na Estrada do Colono, em Foz do Iguaçu. A audiência pública na cidade de Umuarama,23 que aconteceu em 9 e 10 de maio de 2014, foi chamada em conjunto com o Sindicato dos Bancários de Umuarama, Assis e Região e teve maioria de depoimentos dos movimentos sindical e da resistência à ditadura. Foi na região de Umuarama e Cruzeiro do Oeste que José Dirceu, que fora eleito presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), apesar de não poder assumir por causa do desmonte do congresso da entidade, em 1968, retorna à militância clandestina, depois do exílio em Cuba. Nessa audiência, foram ouvidos: Dr. Wagner Brussolo Pacheco, advogado criminalista e ex-preso político; o ex-aluno da Escola de Cadetes do Exército e ex-dirigente sindical bancário Osni Miguel Santana; o médico José Alcindo Gil, perseguido político e um dos responsáveis pela manutenção da clandestinidade de José Dirceu na região, e o ilho de José Dirceu, o deputado federal Zeca Dirceu.24 A audiência realizada na cidade de Maringá, no Norte Pioneiro do Paraná, foi realizada pela CEV/PR – Teresa Urban, pela Universidade Estadual de Maringá25 (UEM) e pelo Sindicato dos Servidores Municipais de Maringá nos dias 4 e 5 de agosto de 2014. Teve como eixo os depoimentos e o processo político do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), cuja atuação foi muito forte no norte do Paraná, bem como nos conflitos contra os processos de grilagem de terra que ficaram conhecidos em todo o Brasil como Revolta de Porecatu.26 Também foram feitas oitivas com os indígenas da tribo xetá. Além dos dois dias de audiência, houve ainda 23 A audiência pública em Umuarama não teve todo o suporte necessário da Secretaria de Justiça, sendo que, com exceção da equipe de ilmagem e a convocação dos depoentes, todo o resto da estrutura para a realização do evento foi de responsabilidade da CUT/PR e do Sindicato dos Bancários de Umuarama, Assis e Região. Esse sindicato foi parceiro na realização da audiência na cidade, atendendo ao chamado da CUT/PR, que incentivou suas entidades no estado. Assim também aconteceu nas audiências ocorridas nas cidades de Maringá e Londrina, no norte do Paraná. 24 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. 25 Na audiência em Maringá, houve o suporte dos professores doutores Ângelo Priori e Reginaldo Benedito Dias. Ângelo Priori é suplente na CEV/PR e um dos estudiosos da questão da terra e dos sindicatos rurais na região norte do Paraná. 26 A Revolta de Porecatu é um dos principais conlitos de terra que aconteceram no Paraná no inal dos anos de 1940. Juntamente ao levante do sudoeste que ocorre na região de Francisco Beltrão no inal da década de 1950. Ambos os conlitos tiveram presença do PCB, que tinha uma forte atuação na região e que, em seus documentos, defendia o im das colonizações por meio de uma reforma agrária digna e decente para os trabalhadores. Ver: CODATO, Adriano Nervo; KIELLER, Marcio, Op. cit. • 145 uma solenidade histórica de devolução do mandato do vereador comunista Bonifácio Martins, que, por causa das perseguições políticas constantes, ficou impedido de exercê-lo. Essa solenidade devolveu simbolicamente seu mandato de vereador em um evento que teve a presença das suas filhas e com grande público local. Nessa audiência, foram ouvidos: Claudemir da Silva, Edvaldo da Silva, indígenas da tribo xetá, João Maria Rodrigues – Tapixi, cacique da tribo dos Caingangues; Ivana Martins Costa, filha do vereador Bonifácio Martins; Jorge Haddad, advogado do movimento sindical; Ruth Lima, ex-presa política; José Tarcísio Pires Trindade, ex-preso político; Orivaldo Robles, padre e perseguido político; José Helga Preiss e João Preiss, irmãos do deputado Arno Preiss, morto pela ditadura. 27 Ao final das oitivas, ouvimos contribuição do professor doutor da UEM Reginaldo Benedito Dias, que fez um panorama histórico da questão da terra e da situação política da região na época dos acontecimentos. A audiência pública foi realizada na cidade de Londrina, em parceria com o Sindicato dos Bancários de Londrina e Região e com o Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), na pessoa da prof.ª dra. Ana Paula Bracarense. O primeiro dia de audiência aconteceu no plenário da Câmara Municipal de Londrina, com a parceria também do mandato da vereadora Lenir de Assis, do Partido dos Trabalhadores 28 (PT) e da vereadora Elza Correa, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB, ex-PMDB). 29 Entre as principais questões da audiência, estavam ainda o processo do PCBR no norte do Paraná, as perseguições políticas de advogados trabalhistas e a questão da Assessoria de Serviços e Informações (ASI) da UEL, que perseguiu diversos professores do quadro da instituição que se opunham à ditadura civil-militar imposta após abril de 1964, mesmo sem ser comprovada a militância desses docentes. Nessa audiência, foram ouvidos: 27 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. 28 A iniciativa da realização da audiência teve a parceria do mandato da vereadora de Londrina do PT Lenir de Assis, inclusive com a disponibilização de toda a infraestrutura necessária e no suporte à convocação pela CEV/PR dos depoentes da região de Londrina. 29 A vereadora Elza Correia foi uma das depoentes, pois é ilha do histórico militante do PCB na região de Londrina, Manuel Jacinto Correia, eleito em 1946 vereador e impedido de exercer o mandato por perseguição política. Manuel Jacinto foi um dos principais organizadores da Revolta de Porecatu, conlito de terras que aconteceu na região no inal dos anos de 1940 com forte participação dos comunistas. Ver: CODATO, Adriano Nervo; KIELLER, Marcio, Op. cit. 146 • Elza Correia, vereadora, ilha do dirigente do PCB, Manuel Jacinto Correia; Oscar Nascimento, advogado de presos políticos e trabalhadores; Amadeu Felipe, advogado, ex-presidente do PCB de Londrina e um dos líderes da guerrilha do Caparaó; professor da UEL, Tsutomo Higashi, cujo título de doutor fora cassado pela UEL; Mario Secki, também professor da UEL; Marilia Polis, dona da RETA Táxi Aéreo; Geraldo Fausto dos Santos (o Ceará), dirigente sindical bancário no início dos anos 80; Roberto Morita, advogado de trabalhadores e presos políticos; Ascênio Lopes, primeiro reitor da UEL; José Tadeu Felismino, do jornal Poeira, ex-militante do movimento estudantil; Clarice Valença e José Luís Silveira Baldy.30 Além das audiências públicas, também foram desenvolvidas atividades de cunho essencialmente sindical no trabalho da CEV/PR: a II Caravana da Agricultura Familiar, realizada no campus da Universidade da Fronteira Sul (UFFS), em Realeza, organizado pela CUT/PR e pela Fetraf/CUT/PR, que dedicou um dia de debates para o resgate da memória e história do movimento dos pequenos agricultores. Nesse evento, foram ouvidos representantes das primeiras lideranças sindicais rurais da agricultura familiar: Pedro Tonelli, ex-deputado estadual e federal e líder sindical da região; Ives Bianchini, presidente da Assessoar; Antônio Marcos Mysklw, professor da UFFS; Jaci Poli, representante das lutas sociais do sudoeste; Altair José Anzileiro, representante da classe dos agricultores familiares.31 Os relatos dos militantes revelaram como foi a repressão dos militares e a resistência dos movimentos sociais da região do sudoeste, bem como denunciaram sobre o fechamento da Estrada do Colono, passando pelo histórico das primeiras atividades da Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural, a Assessoar. Por fim, foi realizado o Ato Sindical Unitário,32 não descrito em ordem cronológica, mas sendo uma das principais atividades feitas pelo grupo de trabalho Partidos, sindicatos e ditadura da CEV/PR, no dia 20 de março de 2014, juntamente à Comissão Estadual da Verdade da OAB/PR e às centrais 30 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. 31 Idem. 32 Os atos sindicais unitários foram iniciativas conjuntas do GT 13 dos Trabalhadores da Comissão Nacional da Verdade e das centrais sindicais. Foram realizados dezenas desses atos por todo o país (São Paulo, Pará, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco). Ver CUT (Central Única dos Trabalhadores). Relatório da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT. • 147 sindicais organizadas no Paraná: CUT/PR, União Geral dos Trabalhadores (UGT/PR), Força Sindical/PR, Central Brasileira de Sindicatos (CSB/PR), Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST/PR), Intersindical/PR e CSP/Conlutas/PR. O ato teve também o acompanhamento do GT de Trabalhadores da Comissão Nacional da Verdade, com a participação de mais de 120 pessoas que saíram de suas entidades, seus trabalhos, suas casas, deixando seus afazeres, apesar das chuvas torrenciais que caíram sobre a tarde curitibana. O ato teve dois eixos principais. O primeiro foi a breve saudação das centrais sindicais, onde falou pela CUT/PR sua presidenta, Regina Cruz; pela Força Sindical/PR a diretora de Mulheres, Neuralice Maina; pela CSB/PR seu presidente, Juvenal Pedro Cim; pela CTB/PR o diretor Zenir Teixeira; pela CSP/Conlutas/PR o dirigente Rodrigo Tomazini; pela UGT/ PR seu presidente, Paulo Rossi; e pela NCST/PR seu diretor, Adilson Carlos da Silva. Também falaram: Marcio Kieller, representante da CEV/PR e vicepresidente da CUT/PR; Daniel Godoy, advogado coordenador da Comissão Estadual da Verdade da OAB/PR; e Sebastião Neto, integrante do grupo de trabalho Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical da CNV, que compareceu ao evento representando a doutora Rosa Cardoso, coordenadora desse GT e membro da comissão nacional. No segundo eixo, tivemos a oitiva e os depoimentos de quatro exdirigentes sindicais no período da ditadura; são eles: Clair da Flora Martins, advogada e militante da Ação Popular (AP) e do movimento estudantil e sindical, que foi presa e torturada durante a ditadura civilmilitar; Cláudio Antônio Ribeiro, advogado e ex-dirigente do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região, além de militante da AP, um dos bancários presos e torturados durante o regime; José Romeu Naldony, ex-dirigente do Sindicato dos Petroleiros do Paraná e de Santa Catarina, que sofreu torturas psicológicas e morais, tendo sido injustamente demitido pela direção da Petrobras no período por acusação de atividades subversivas; e Milton Ivan Heller, jornalista e escritor, que foi diretor do jornal comunista Tribuna do Povo, onde atuava como repórter sindical entre as décadas de 1950 e 1970.33 Do ponto de vista dos depoimentos a tônica foi no sentido de realçar as questões das perseguições sofridas, a clandestinidade e as humilhações [a] que os depoentes foram submetidos. Os depoimentos que trazem uma carga muito grande de emoção e dor, 33 Milton Ivan é autor de diversos livros sobre o período, sendo Resistência democrática: a repressão no Paraná o mais célebre deles, editado pela Paz e Terra. Trata-se de um dos principais trabalhos sobre a ditadura civil-militar escrito nos anos de 1980. Além desse, em 2014, Milton lançou um livro sobre os cinquenta anos do golpe. 148 • pelo fato de depoentes não esquecerem os detalhes das prisões, dos processos de tortura, das diiculdades da vida clandestina, do isolamento dos parentes e amigos, pela opção revolucionária de combater a opressão, a ditadura que se abateu sobre o país.34 Em suma, as falas fizeram fortes referências à necessidade de se lembrar, em tom de “descomemoração”, dos cinquenta anos do golpe civilmilitar que o Brasil enfrentou, no qual os principais atingidos foram os trabalhadores, os dirigentes sindicais e suas entidades, que foram fechadas, desmanteladas ou vítimas de intervenções rigorosas, sofrendo modificação em seu objetivo final – a representação de suas categorias –, na busca por melhores condições de vida e trabalho, melhores salários, além de dignidade e cidadania. As entidades que verdadeiramente representavam os trabalhadores tiveram suas imprensas fechadas, suas vozes caladas, suas portas cerradas, seus dirigentes presos, exilados, torturados e mortos por uma ditadura que defendia a lógica do capital contra a lógica do bemestar social; a lógica da concentração, do autoritarismo, da delação, das represálias e da negação da participação contra a lógica do direito de organização dos trabalhadores. Essas audiências públicas citadas, a Caravana da Agricultura Familiar e o Ato Unitário Sindical, descritas entre as 12 audiências realizadas, tiveram um grande envolvimento do movimento sindical ligado à CUT e seus sindicatos nas regiões onde ocorreram. Mais dois pontos fundamentais dos trabalhos da CEV/PR foram as oitivas e as importantes parcerias desenvolvidas. As oitivas realizadas durante as atividades da comissão totalizaram 39 pessoas; 35 que, somadas às noventa ouvidas nas audiências públicas, totalizam 119 pessoas ouvidas ao vivo pelos membros da CEV/PR.36 Essas oitivas específicas foram feitas juntamente aos depoimentos efetivados por outros parceiros, dentre os quais estão aqueles que doaram ao grupo de trabalho Partidos e sindicatos da CEV/PR. Por convênio, foram cedidos ao acervo da CEV/PR mais de 350 depoimentos, que são aqueles relativos aos projetos DHPaz Paraná/Tortura 34 Ver: KIELLER, Marcio. Centrais Sindicais do Paraná realizaram importante e representativo Ato Unitário Sindical. Portal CUT/PR. 35 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. 36 Todas as gravações das oitivas individuais e das pessoas ouvidas nas audiências públicas compõem o acervo da CEV/PR e estão à disposição da sociedade paranaense e brasileira para interessados, familiares e pesquisadores acadêmicos das mais diversas áreas do conhecimento. • 149 Nunca mais,37 os cedidos ao projeto do livro Velhos vermelhos, que somam 11 entrevistas de dirigentes do PCB entre os anos de 1945 e 1964, mais os que foram doados pelo grupo de trabalho Verdade, memória e justiça do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região. O projeto do livro sobre a história dos oitenta anos desse sindicato soma mais de 15 entrevistas de dirigentes que estiveram à frente das lutas sindicais bancárias ao longo das oito décadas de sua existência. Isso sem mencionar a enorme quantidade de documentos e materiais anexados ao acervo da CEV/PR. Nesse tempo, muitas atividades importantes foram encaminhadas e o resultado dos trabalhos foi considerável. Porém muitas outras questões ficaram de fora, como a relevância política do recorte que havia sido estabelecido pela CNV, de 1946 a 1988. Isso somente aconteceu porque, tanto dentro da comissão nacional quanto da estadual, houve pressão pelos grupos organizados para que se privilegiasse o recorte pós-1964, que acabou sendo a principal tônica das comissões, em que pese, como destacamos, o esforço pontual para que se olhasse o recorte todo apontado pela CNV, quando da sua criação. No Paraná, e mesmo no Brasil, foram esforços especiais e pontuais, como o restabelecimento histórico de mandatos cassados ou impedidos de serem exercidos nos anos de 1946 e 1947, por causa da conhecida militância comunista de vereadores, deputados (estaduais e federais) e do senador Luís Carlos Prestes; dos vereadores em cidades do Paraná – Maria Olímpia Carneiro Moschel, de Curitiba, Manoel José Leandro dos Santos, de Morretes, Janesci Guimarães e Manuel Jacinto Correia, de Londrina, Bonifácio Martins, de Maringá; além do deputado estadual do PCB, professor catedrático da UFPR, José Rodrigues Vieira Neto, dentre tantos outros. Nesse sentido, somente foram restabelecidos historicamente os mandatos dos 14 deputados federais e do senador Luís Carlos Prestes, pelo Congresso Nacional, que fora pressionado pela CNV, pelas entidades de resgate da verdade, memória e justiça, pelas famílias dos parlamentares cassados e pela militância política dos partidos. Assim como no Paraná, a Assembleia Legislativa, em função dos trabalhos da CEV/PR, em sessão simbólica e histórica, reconstituiu o mandato do deputado estadual, o prof. dr. José Rodrigues Vieira Neto, do PCB, com a presença da CEV/PR e de familiares. E na cidade de Maringá foi restabelecido, em sessão simbólica e histórica, com a presença também da CEV/PR, dos movimentos sociais e de familiares, o mandato do vereador cassado em 1947, Bonifácio Martins. 37 Todas as mais de duzentas entrevistas realizadas pelo DHPaz Paraná em convênio com um projeto da Comissão Nacional de Anistia estão disponíveis na rede mundial de computadores, no Youtube, no canal do DHPaz/Tortura Nunca Mais. 150 • Durante os trabalhos da comissão, tivemos a renúncia do prof. dr. Luiz Edson Fachin, que havia assumido compromissos profissionais fora do Brasil. Depois desses compromissos, Fachin foi indicado pela então presidenta Dilma Rousseff como ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga aberta pelo então ministro Joaquim Barbosa. Quando deixou os trabalhos em abril de 2014, Fachin foi substituído pela desembargadora de Justiça do estado do Paraná, Maria Aparecida Blanco de Lima. E na vacância da senhora Neide de Oliveira Lima, foi nomeado o prof. dr. José Antônio Peres Gediel, que meses antes havia requerido aposentadoria e exonerou-se do cargo de secretário-executivo da Comissão Estadual da Verdade – Teresa Urban, tendo sido substituído por Regina Bergamaschi Bley, nomeados no mesmo decreto que havia alterado o nome da comissão para Comissão Estadual da Verdade do Paraná – Teresa Urban. Outro decreto de agosto de 2014 nomeia os membros suplentes da CEV/PR: o advogado Daniel Godoy Junior, então coordenador da Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil/PR; o então coordenador do Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça, Norton Hohama; o prof. dr. em direito da UFPR, Eduardo Faria Silva; o jornalista Roberto Elias Salomão, militante dos movimentos sociais; o prof. dr. da UEM, Ângelo Priori; e a mestranda em direito pela UFPR, Heloísa Fernandes Câmara. 38 A CEV/PR finalizou seus trabalhos em dezembro de 2014, quando levou ao governador Carlos Alberto Richa o relatório final. Com a apresentação dos relatórios elaborados pelos seis grupos de trabalho, com suas recomendações, foi feita a solicitação para que fosse prorrogado o tempo de funcionamento da comissão. O pedido foi prontamente atendido pelo governo do estado, porém sem nenhuma mudança estrutural do ponto de vista administrativo. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes (coordenador da CEV/PR de janeiro de 2013 a dezembro de 2014), José Perez Gediel e Vera Karan Chueri optaram por não continuar como membros da comissão com a prorrogação do mandato por um ano, decretada pelo governador, e foram substituídos por seus suplentes. A coordenação-geral dos trabalhos no espaço de tempo da prorrogação ficou a cargo do procurador do Ministério Público Estadual dr. Olímpio de Sá Sotto Maior. Com cerca de três anos e meio de trabalho, que foram concluídos ainda no ano de 2016, a CEV/PR deixará um legado importantíssimo para a história política do estado do Paraná, traduzido no acervo que construiu de história oral nas oitivas e nas audiências públicas. Um acervo imenso de depoimentos, documentos, fotos e entrevistas. Além da documentação 38 Ver PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban, op. cit. • 151 que recebeu nos convênios e parcerias que firmou com as mais variadas instituições de defesa dos direitos humanos e de resgate da verdade, memória, justiça e reparação. Os trabalhos da CEV/PR tiveram visibilidade razoável, mesmo estando dentro do site da Secretaria Estadual de Justiça, que está por sua vez hospedada na página do Governo do Estado do Paraná, o que dificulta a busca. A visibilidade foi aumentada após ser criada uma página na rede social Facebook,39 onde pudemos divulgar nossas atividades, como oitivas e audiências públicas, além de expor fotos e vídeos de eventos e notícias relacionadas ao tema da verdade, memória e justiça. Hoje a página da CEV/ PR possui 1.833 seguidores e 1.848 curtidas. Nesse paper, fizemos um breve relato do período da ditadura civilmilitar no Brasil e das posições defendidas por mim como representante da CUT/PR na Comissão Estadual da Verdade – Teresa Urban, na perspectiva das trabalhadoras e dos trabalhadores. Como membro da comissão, ficou sob minha responsabilidade a coordenação política do grupo de trabalho Partidos, sindicatos e ditadura, que buscou fazer um levantamento histórico das lideranças e das entidades sindicais no estado do Paraná que sofreram as graves violações dos direitos humanos cometidas pelo regime ditatorial imposto em 1964, a partir do recorte temporal histórico de 1946 a 1988. Referências BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3). Brasília: SEDH/PR, 2010. ______. Comissão Nacional da Verdade. Relatório inal. 2014. Disponível em: <htp:https://www.cnv.gov.br>. Acesso em: dez. 2016. CODATO, Adriano Nervo; KIELLER, Marcio. Velhos vermelhos: memória e história do Partido Comunista do Brasil no Paraná 1946/1964. Curitiba: Editora da UFPR, 2006. CUT (Central Única dos Trabalhadores). Relatório da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT. São Paulo, 2015. HELLER, Milton Ivan. Resistência democrática: a repressão no Paraná. Paraná: Editora Paz e Terra; Secretária de Cultura do Paraná, 1988. KIELLER, Marcio. PCB/PCdoB: a unidade comunista no Brasil. Curitiba: Ibert, 2000. 39 Ver: página no facebook da Comissão Nacional da Verdade – <htps:https://www.facebook.com/co missaoestadualdaverdade/?fret=ts>. 152 • ______. Centrais sindicais do Paraná realizaram importante e representativo Ato Unitário Sindical. Portal CUT/PR, 24 mar. 2014. Disponível em: <htps:https:// cut.org.br/artigos/centrais-sindicais-do-parana-realizaram-importante-erepresentativo-ato-aadd/>. Acesso em: mar. 2017. KIELLER, Marcio; STÉDILE, Patrícia. 80 anos do Sindicato dos Bancários de Curitiba. Curitiba: Sindicato dos Bancários de Curitiba, 2012. PARANá. Comissão Estadual da Verdade do Paraná - Teresa Urban. Relatório inal. Curitiba: UFPR, 2014. Disponível em: <htp:https://www.forumverdade.ufpr. br/Relatorio-Final-CEV-PR-08-12-2014.pdf>. Acesso em: mar. 2016. Parcerias: – Comissão Nacional da Verdade (CNV) – Comissão Nacional de Anistia – Comissão Estadual da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ PR) – Comissão da Verdade da Universidade Federal do Paraná – DHPaz/Tortura Nunca Mais – Fórum Paranaense da Verdade, Memória e Justiça – Grupo de estudos “Verdade, memória e justiça” do Sindicato dos Jornalistas – Grupo de estudos “Verdade, memória e justiça” do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região Metropolitana. • 153 154 • COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE DO PARÁ: A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DO PARÁ (1964-1988) Girolamo Domenico Treccani* 1. Comissão Camponesa da Verdade: memória, verdade e justiça A ditadura militar-civil chamou para si a responsabilidade da execução da política de regularização fundiária da Amazônia Legal, centralizando as ações nos órgãos federais.1 Por meio da lei n. 5.917/1973, e dos decretos-leis n. 1.164/1971 e n. 1.476/1976, foram federalizadas mais de 70% das terras. Analisando-se a política fundiária adotada pelo governo federal nas décadas de 1970 e 1980, percebe-se como ela foi baseada em duas frentes distintas e contrastantes de ocupação do território nacional. De um lado, foi priorizada a “expansão das fronteiras”. Em lugar de se promover a reforma agrária no nordeste e sul-sudeste do Brasil, favoreceu-se a ida para a Amazônia de milhares de camponeses sem terra.2 De outro, por meio da concessão de incentivos fiscais, patrocinou-se a “modernização do campo”, com o ingresso de grandes empresas agropecuárias. Essas duas frentes de ocupação do espaço se chocaram entre si, dando origem a confrontos violentos, que deixaram o rastro de centenas de assassinatos de camponeses3 e lideranças sindicais, religiosas e políticas. A violência contra camponeses é fruto da ação/omissão do Estado, como comprovam os casos de assassinato a seguir: Gabriel Pimenta (advogado, Marabá, 18 de julho de 1982); Benedito Alves Bandeira (presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais – STR – de Tomé Açu, 4 de julho de 1984); João Canuto de Oliveira (presidente do STR de Rio Maria, 18 de dezembro de 1985); Paulo César Fonteles de Lima (advogado, Ananindeua, * Advogado; doutor em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA); professor da graduação e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA; pesquisador da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA/UFPA), Belém, Brasil. 1 Para administrar essas terras, foram criados o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários (MEAF), pelo decreto n. 87.457/1982; o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), pelo decreto-lei n. 1.110/1970; o Grupo Executivo das Terras do Araguaia/ Tocantins (Getat), pelo decreto-lei n. 1.767/1980; e o Grupo Executivo para a Região do Baixo Amazonas (Gebam), pelo decreto n. 84.516/1980. 2 Treccani, analisando os dados oiciais relativos aos projetos de colonização, constatava: ”A Amazônia concentrou 67,30% de todas as famílias assentadas na década de 1970 e 84,06% da área destinada a este im”. TRECCANI, Girolamo Domenico. Violência e grilagem: instrumentos de aquisição da propriedade da terra no Pará, p. 183. 3 Preferiu-se adotar a mesma terminologia empregada pela Comissão Camponesa da Verdade, que utilizou o conceito de camponês no sentido amplo, compreendendo também trabalhadores assalariados rurais e extrativistas. • 155 11 de junho de 1987); João Carlos Batista (advogado e deputado estadual, Belém, 6 de dezembro de 1988). Antes de serem assassinados, esses homens tinham denunciado reiteradas vezes, às autoridades estaduais e federais, que estavam correndo perigo: NADA FOI FEITO pelas autoridades competentes. Em vários momentos, foram divulgadas verdadeiras listas de ameaçados de morte. 4 Esses assassinatos não foram casos isolados, eles integram a realidade do chão de nossa pátria ontem e hoje. Em muitos casos, a mão assassina do latifúndio antes ameaçou, depois matou. Foi assim também fora do Pará: com Margarida Alves (presidenta do STR de Alagoa Grande/PB, 12 de agosto de 1983); padre Josimo Morães Tavares (coordenador da Comissão Pastoral da Terra, vigário de São Sebastião do Tocantins, 10 de maio de 1986); Chico Mendes (presidente do STR de xapuri/Acre, 22 de dezembro de 1988); e dezenas de outras lideranças sindicais, políticas, religiosas e camponesas no Pará e em outros estados do Brasil.5 Dois depoimentos ilustram essa situação: Expedito Ribeiro de Souza, presidente do STR de Rio Maria/PA, assassinado em 2 de fevereiro de 1991, costumava dizer: “Uma vez que você está numa lista para morrer, cedo ou tarde eles acertam você”.6 A Comissão Nacional da Verdade registrou uma declaração de Socorro Gomes, 7 que foi deputada federal pelo PCdoB/PA: “Eu saí do Pará para não morrer. A CPI da Violência no Campo, do Congresso Nacional, de 1996 (ano aproximado), listou os mortos no campo. Dezoito deles são meus amigos”. Esses testemunhos mostram como os crimes citados acima não foram fruto das mentes doentias de matadores de aluguel, mas o resultado de planos cuidadosamente elaborados por fazendeiros e políticos da região e executados sem qualquer oposição do poder público estadual ou federal. Um ponto fundamental para esclarecer os fatos ocorridos naquele período foi a edição da lei n. 12.528/2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade. Seu artigo 1o apresenta assim sua finalidade: 4 Todos os anos, o relatório “Conlitos no campo Brasil”, publicado pelo Secretariado Nacional da Comissão Pastoral da Terra, tem uma seção com a lista de camponeses e seus aliados ameaçados de morte. 5 O relatório inal da Comissão Camponesa da Verdade apresenta uma “lista de camponeses e apoiadores mortos ou desaparecidos de 1961 a 1988, segundo o acesso e usufruto dos direitos da justiça de transição deinidos pela lei n. 9.140/1995, com 1.196 nomes”. 6 TRECCANI, op. cit., p. 255. 7 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório inal. 156 • Examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período ixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a im de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Comparando os relatórios da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão Camponesa da Verdade, da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT e do livro O golpe militar contra trabalhadores e trabalhadoras: sindicalistas mortos e desaparecidos durante a ditadura militar e a transição civil no Brasil (1964-1988), percebe-se que vários sindicalistas e trabalhadores rurais assassinados e desaparecidos políticos não foram reconhecidos até agora pelo governo brasileiro. É necessário trabalhar para que esse reconhecimento aconteça. Muitos estados criaram suas próprias comissões estaduais da verdade, permitindo ampliar consideravelmente o leque das investigações. No caso do Pará,8 a lei n. 7.802/2014 criou “a Comissão Estadual da Verdade e Memória, com a finalidade de colaborar com a Comissão Nacional da Verdade, examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas contra qualquer pessoa no território do estado do Pará” (art. 1º). Outro passo importante para o resgate da memória histórica da violência no campo e o registro das lutas camponesas foi a realização do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das águas e das Florestas, efetuado em Brasília em agosto de 2012, onde foi assumido o compromisso de: Lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte e desaparecimento forçado de camponeses, bem como os direitos de reparação aos seus familiares, com a criação de uma comissão camponesa pela anistia, memória, verdade e justiça para incidir nos trabalhos da Comissão [Nacional da Verdade], visando à inclusão de todos os afetados pela repressão. Nasceu dessa maneira a Comissão Camponesa da Verdade: uma articulação entre movimentos sociais e universidades, cujo relatório final9 apresenta 8 No âmbito da UFPA, foi criada em 2013 a Comissão “César Morais Leite” da Memória e Verdade, que investigou os ataques contra professores, servidores e estudantes. 9 O relatório inal, elaborado conjuntamente por pesquisadores de várias universidades e centros de pesquisa, foi assinado, em dezembro de 2014, pela Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura); CPT; Fetraf (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar); MMC (Movimento das Mulheres Camponesas); MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores); MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); Relatoria do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação da Plataforma DHESCA; Renap (Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares); e Terra de Direitos. • 157 uma avaliação crítica das políticas adotadas pela ditadura no campo e denuncia as violações dos direitos humanos cometidas contra camponeses. 2. Comissão Camponesa da Verdade do Pará. Lembrar para não esquecer: direito à memória e à verdade Para acompanhar os trabalhos da Comissão Camponesa da Verdade, a Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA), do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará; a Comissão Pastoral da Terra (CPT/PA); a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Fetagri/PA); a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH/PA) e a Defensoria Pública Agrária do Estado do Pará deram origem, em 14 de agosto de 2013, à Comissão Camponesa da Verdade do Estado do Pará. Esse grupo participou ativamente dos trabalhos da Comissão Camponesa da Verdade, desenvolveu pesquisa nos acervos da Secretaria Nacional da CPT, da CPT/PA, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, da Fetagri, e analisou jornais e livros sobre o tema. Esses levantamentos permitiram a elaboração de uma listagem de camponeses assassinados entre 1964 e 1988, identificando-se 566 vítimas. Para viabilizar seus estudos, a Comissão Camponesa solicitou formalmente, para a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará (Segup/PA), informações sobre a abertura de inquéritos que apuraram esses crimes. Outros ofícios foram encaminhados para o Ministério Público Estadual (MPE/PA), solicitando informações sobre as denúncias oferecidas contra pistoleiros e mandantes dos assassinatos, e ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJ/PA) para poder verificar a situação de alguns dos processos em tramitação que investigam a autoria dos delitos e sua responsabilização criminal. A partir das várias fontes citadas, foram analisados 16 casos envolvendo trinta assassinados: Pedro Gomes da Silva (Moju, 24 de julho de 1965); Raimundo Ferreira Lima, o “Gringo” (Araguaína/TO, 29 de maio de 1980); José Manuel de Souza, o “José Piau” (Jacundá, 2 de janeiro de 1981); Sebastião Souza Oliveira “Mearim” (Viseu, 8 de janeiro de 1981); Francisco Jacinto Oliveira, o “Sinhozinho” (xinguara, 2 de junho de 1981); Belchior Martins (Rio Maria, 2 de março de 1982); Avelino Ribeiro da Silva (Aveiro, 24 de março de 1982); Gabriel Pimenta (Marabá, 18 de julho de 1982); Benedito Alves Bandeira, o “Benezinho” (Tomé Açu, 4 de julho de 1984); Armando Oliveira da Silva, o “Quintino” (Viseu, 4 de janeiro de 1985); Irmã Adelaide Molinari (Eldorado do Carajás, 14 de abril de 1985); chacina da fazenda Ubá (São João do Araguaia, de 13 a 18 de junho de 1985); chacina da fazenda Princesa (Marabá, 27 de setembro de 1985); João Canuto de Oliveira (Rio Maria, 18 de dezembro de 1985); Paulo César Fonteles de 158 • Lima (Ananindeua, 11 de junho de 1987); chacina de Goianésia (Goianésia, de 23 a 24 de outubro de 1987).10 Em seu trabalho, a Comissão Camponesa da Verdade do Pará adotou uma decisão que passou a nortear suas atividades. Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro estabelecer que, depois de um determinado período, os responsáveis pelos crimes não podem ser mais “perseguidos” pela força repressiva do Estado, pois a punibilidade “prescreve”, a comissão entendeu que: a prescrição jurídica dos crimes não cancela a prescrição políticomoral, por isso existe a necessidade de resgatar a memória (história) desses delitos. Assim, a comissão continuou a analisar os casos que aconteceram décadas atrás para resgatar a memória dos que tombaram e denunciar seus algozes. Depois de ter participado da elaboração do relatório final da Comissão Camponesa da Verdade, onde a descrição dos casos do Pará ocupou mais de setenta páginas, sendo o estado com o maior número de casos pesquisados, a Clínica de Direitos Humanos está assessorando a Comissão da Memória e Verdade do Pará, investigando novos casos e coletando depoimentos. Outros 11 casos estão em fase de investigação atualmente: Gleba Cidapar; fazenda Vale do Rio Cristalino; Benedito Pereira Serra; Gabriel Sales Pimenta; chacina da fazenda Surubiju; índios Suruí; Honorato Oliveira e João Figueiredo; José Pereira; João Honório da Silva; Ercílio xavier e José Francisco de Souza; e Ayrton Alves Santos.11 3. Violência contra camponeses: resgate das informações Um dos primeiros trabalhos realizados pela Clínica foi se reunir com um professor de direito penal para estudar mais de perto a tipicidade do crime de assassinato e lesões corporais e as diferentes causas que podem interromper a prescrição. Percebeu-se que, antes de enfrentar qualquer discussão que não fosse um mero resgate de informações históricas, era necessária uma base jurídica sobre o acompanhamento desses debates de um ponto de vista técnico. 10 A pesquisa, coordenada pelo prof. dr. Girolamo Domenico Treccani, foi realizada pelos acadêmicos de graduação da UFPA que integravam os quadros da Clínica: Flávia Sousa Garcia Sanz, José Sonimar de Sousa Matos Júnior, Isadora Cristina C. de Vasconcelos e Luana Nunes Bandeira Alves. Todos os assassinatos aconteceram no estado do Pará, a não ser o do “Gringo”, pesquisado por se tratar de uma liderança sindical e religiosa que vivia no Pará. 11 Os novos casos estão sendo pesquisados por Maria Sebastiana B. Pinheiro, Mayara Rayssa Rolim, Halyme Ray Franco, Raphael Lopes Costa e Ana Paula Pinheiro. • 159 3.1 - Pará: a terra das mortes anunciadas O segundo passo foi resgatar as informações sobre os assassinatos no campo e sua apuração. O primeiro documento encontrado foi uma listagem de assassinatos no campo, que a CPT Norte II (Pará e Amapá), em 1987, entregou ao presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Apesar do compromisso assumido de analisar a situação dos casos denunciados, nenhuma resposta foi dada. Em 1990, o Instituto do Desenvolvimento Econômico e Social do Pará (Idesp) publicou um relatório com 529 assassinatos, com 78% dos casos concentrados nas microrregiões de Araguaia Paraense, Marabá e Guajarina. 12 Em 1991, a CPT entregou a listagem atualizada de assassinatos no campo para a procuradora-geral de Justiça Edith Marília Maia Crespo, que determinou, em 19 de maio de 1992, por meio do ofício n. 09/92/MP/PJG Circular, que os promotores remetessem a ela, mensalmente, informações sobre a situação dos processos que apuravam o assassinato de trabalhadores rurais. Trinta e seis atenderam à determinação. Esse documento permitiu verificar que foram abertos processos em menos de 20% dos casos denunciados. A resposta mais frequente foi: “Não existe processo”. Nessas décadas, foram instaladas, tanto pelo Congresso Nacional13 quanto pelas Assembleias Legislativas de vários estados (como, por exemplo, as do Pará 14 e do Maranhão 15), várias comissões parlamentares de inquérito para averiguar a violência no campo. Em 12 de março de 1991, a Assembleia Legislativa do Estado do Pará instaurou a CPI “Violência: omissão e impunidade”. O relatório final registrou 227 casos com 273 assassinatos. Atendendo a uma das reivindicações apresentadas no IV Grito do Campo organizado pela Fetagri/PA e pela Contag, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará criou, em 5 de agosto de 1997, o Grupo 12 Destaca-se que esse levantamento e o inventário publicado em 2002 pela Secretaria Especial de Estado de Defesa Social contabilizam os assassinatos de trabalhadores rurais, pistoleiros e fazendeiros, enquanto os dados da CPT, MST, Contag e Comissão Camponesa da Verdade só fazem referência a camponeses e seus aliados. Ver: PARá AGRáRIO. Informativo da situação fundiária: ocupação do solo e subsolo; conlitos agrários. 13 Ver no site do Congresso Nacional: <140673_138722_11352_CPi da Violência no Campo. pdf> (1991), <140672_138719_11348_CPI Crimes de pistolagem Tomo I.pdf> (1993-1994), <140672_138719_11349_CPI Crimes de Pistolagem Tomo II.pdf> (1993-1994). 14 PARá. Assembleia Legislativa do Estado do Pará. Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Violência: omissão e impunidade. 15 MARANHÃO. Assembleia Legislativa do Estado. Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Violência no campo. 160 • Especial de Trabalho Crimes no Campo (Getac). A portaria Segup n. 58, de 5 de agosto de 1997, que nomeou os integrantes do GT, 16 apresentava sua finalidade: “Reunir informações sobre o elevado número dos crimes contabilizados pelas entidades representativas dos trabalhadores rurais”. Durante meses foram realizadas visitas a dezenas de delegacias e fóruns. Parte desse trabalho resultou em uma publicação contendo 595 casos, com um total de 587 assassinatos (destes, 256 ocorrências registradas com 408 mortos aconteceram entre 1980 e 1988). 17 O documento reconhece que, em 26 ocorrências, estavam envolvidos policiais militares, atuando sozinhos ou juntamente a pistoleiros. Apesar disso, se faz referência à abertura de um único inquérito policial (IPL). Segundo Treccani: Em 78 assassinatos membros da ativa da PM do estado do Pará aparecem como suspeitos de serem os executores dos crimes, enquanto em 16 casos teriam atuado em conjunto com jagunços. Isto signiica que, em lugar de proteger a vida dos cidadãos, a PM pode ser considerada responsável por 13,60% dos assassinatos de trabalhadores. Um dado preocupante é que a maioria destes crimes, 57 (60,64%), foi cometida depois do im da ditadura (grifos do autor).18 Quando a Comissão Camponesa da Verdade do Pará solicitou informações sobre os trabalhos do Ministério Público Estadual (MPE) e da Secretaria de Segurança Pública (Segup), recebeu como resposta documentos que não fizeram qualquer referência aos casos investigados duas décadas atrás. Em 26 de junho de 2006, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, desembargador Milton Augusto de Brito Nobre, baixou a portaria n. 0904/2006-GP Belém/PA, constituindo uma “comissão destinada para acompanhar a tramitação de processos relacionados a fatos em que foram vítimas trabalhadores em conflitos pela posse da terra”, integrada por representantes do Tribunal e pela OAB/PA, Fetagri/PA, SDDH e CPT/PA. Essa comissão conseguiu sistematizar informações vindas de diferentes comarcas. 16 Integravam a comissão representantes da Segup, Polícia Civil, Fetagri e CPT. 17 PARá. Secretaria Especial de Estado de Defesa Social. Inventário de registros e denúncias de mortes relacionadas com a posse e exploração de terra no Estado do Pará: 1980-2001. 18 TRECCANI, op. cit., p. 265. Os dados se referem a assassinatos acontecidos entre 1964 e 1998. • 161 Em 11 de março de 2009, o CNJ manifestou sua preocupação de investigar a violência no campo revendo os crimes cometidos no passado. Para viabilizar essa pesquisa, sua portaria de n. 491 instituiu o Fórum Nacional para Monitoramento e Resolução dos Conflitos Fundiários Rurais e Urbanos. 3.2 - Assassinatos e conlitos pela posse da terra: uma realidade constante nas lutas camponesas Analisando os relatórios da CPT, a Comissão Camponesa da Verdade do Pará constatou que, entre 1964 e 1988, no estado do Pará, foram registrados 968 conflitos pela posse da terra, envolvendo 485.616 famílias e 10.676.386,425 hectares. De 1964 a 1988, no Pará, foram assassinados 556 trabalhadores(as), lideranças sindicais, políticas e religiosas. Percebeu-se, porém, que o latifúndio continuou a matar também depois da promulgação da Constituição de 1988. Decidiu-se, então, elaborar a listagem dos assassinatos perpetrados entre 1989 e 2015, quando foram encontrados mais 367 nomes de vítimas, perfazendo um total de 923 assassinatos de 1964 a 2015. Esse quadro de violência continuada coloca para a sociedade, e de maneira particular para o movimento sindical, um desafio: qual a estratégia de enfrentamento? Distribuição temporal dos assassinatos no campo no estado do Pará (1964 a 1988) Fonte: CIDHA/UFPA. Analisando o aspecto temporal da violência contra camponeses, verifica-se que 42,93% dos assassinatos aconteceram nos primeiros dois anos da Nova República: os militares saíram do campo e entraram os pistoleiros, com a conivência do aparato estatal. 162 • 3.3 - Características da violência Os relatos dos assassinatos permitem-nos apontar três características que a violência pode assumir: a) massiva: em dezenas de caso, registram-se mais de três assassinatos no mesmo conflito, atingindo todos de forma indistinta; b) seletiva: em outras ocasiões, seu alvo são as lideranças sindicais (os STRs pagaram um alto preço nessa guerra), dirigentes de associações; lideranças religiosas (um padre e duas freiras foram assassinados); políticos (dois deputados estaduais foram mortos); e advogados ligados ao movimento. Matando essas lideranças, além de espalhar a ideologia do terror, procurouse enfraquecer as organizações e desarticular a ação de quem defende os camponeses; c) indiscriminada: da fúria assassina do latifúndio não escaparam mulheres, crianças e idosos. Em vários casos no Brasil, foram assassinadas famílias inteiras. 3.4 - Apuração dos crimes do campo: impunidade Não existem estudos que abranjam os julgamentos dos assassinatos acontecidos entre 1946 e 1988, anos a serem investigados pela Comissão da Verdade, conforme determina o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção [...]”. Por isso se utilizam dados que compreendem o período mais aproximado possível. A Comissão Camponesa da Verdade assim se manifestou: O relatório inal da CPI sobre Violência no Campo apresentou dados da Comissão Pastoral da Terra relativos aos julgamentos dos crimes cometidos contra camponeses de 19 de janeiro de 1964 a 31 de dezembro de 1989: A CPT – Comissão Pastoral da Terra registrou um total de 1.566 assassinatos de trabalhadores rurais, índios, advogados, religiosos e outros proissionais ligados à luta pela terra, no período de 19 de janeiro de1964 a 31 de dezembro de 1989. Dos 1.566 assassinatos em 26 anos, houve apenas 17 julgamentos e apenas oito condenações, em nove casos, houve absolvição. A relação entre crimes e julgamentos é ínfima: 1,09%. No caso do Pará, analisando de 1964 a 1998, Treccani escrevia: Dos 703 casos de trabalhadores rurais assassinados no estado do Pará de 1964 a 1998, só em 183 casos temos notícia de que tenham sido abertos • 163 inquéritos e só 113 deles deram origem a processos que tramitaram ou estão tramitando na Justiça. Os casos investigados alcançam assim 26,03% dos casos denunciados, enquanto só 16,07% chegaram a tramitar na Justiça. Nos últimos anos foram realizados os júris populares ou emitidas sentenças de impronúncia, arquivamento ou absolvição em 18 casos, isto é, só 2,56% dos casos ocorridos foram julgados (grifos do autor).19 O CNJ publicou, em 2009, um documento chamado “Relatório preliminar sobre a situação dos conflitos fundiários rurais no Brasil. A atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários – 2009”, 20 que mostra a relação entre as denúncias e os julgamentos. Relação entre camponeses assassinados e julgamentos (1985 a 2008)21 UF-Região Casos Vítimas Julgamentos % julgamentos Pará 391 595 15 3,84 Norte 504 760 25 4,96 Nordeste 336 377 18 5,36 Centro-Oeste 114 165 11 9,65 Sudeste 113 144 27 23,89 Sul 62 75 4 6,45 Brasil 1.129 1.521 85 7,53 Fonte: quadro adaptado pelo autor a partir do publicado pelo CNJ. Verificando-se os resultados dos julgamentos, percebe-se a dificuldade de punir os mandantes. Em 81,6% dos casos, só foram julgados os pistoleiros; só em 18,3% dos processos apurou-se a responsabilidade dos mandantes. Os números acima mostram como existiu uma constante na atuação do Poder Judiciário paraense e brasileiro: a impunidade. O histórico desaparelhamento dos órgãos de repressão,22 quando não sua omissão ou conivência, dificulta hoje a apuração dos fatos, pois os inquéritos foram feitos de maneira precária, ou simplesmente nem chegaram a ser realizados. 19 Ver TRECCANI, op. cit., p. 278. 20 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Relatório preliminar sobre a situação dos conlitos fundiários rurais no Brasil, p. 23-24 e 35. 21 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, op. cit., p. 23-24. 22 Durante décadas, o policiamento do interior era feito não por delegados de carreira, mas por pessoas sem a devida qualiicação, muitas vezes indicados pelos mandatários do poder local. 164 • Por isso, a CPI da Assembleia Legislativa 23 paraense destaca a morosidade do Judiciário como um dos principais problemas: Do ponto de vista penal, a morosidade é uma falha tão grave que culmina com a absolvição do réu e tem sido marca da atuação do Poder Judiciário onde os processos judiciais tramitam lentamente e se eternizam. Por essas e outras ações é que a população está descrente na justiça. Hoje não se denuncia mais ao promotor ou ao juiz. As pessoas vão diretamente aos jornais, rádios ou televisão para fazer suas denúncias, tal é o descrédito que têm na justiça. No entanto o Poder Judiciário se mostra ágil e eiciente nas ações cíveis, onde a propriedade particular corre perigo. O documento do CNJ investiga a atuação do Poder Judiciário relativa aos anos de 1985 a 2008, mas suas conclusões apresentam uma radiografia que, entendemos, extrapola aquele período histórico: Um dos dados existentes que nos traz grande preocupação no âmbito de atuação do Judiciário é o baixo número de casos de homicídios julgados num período de 23 anos. Dos 1.129 casos de conlitos com mortes que vitimaram 1.521 pessoas, apenas 85 foram julgados. Os dados sobre pessoas assassinadas no Brasil em razão de conlitos agrários foram coletados pela CPT no período que vai de 1985 a 2008. Observamos que a situação mais grave é a da região Norte, com 504 casos e um total de 760 vítimas (representando um percentual de 44,6% dos casos e 50,0% das vítimas), com destaque para o estado do Pará (34,6% dos casos e 39,1% das vítimas). O estado do Pará possui um número de assassinatos e de vítimas maior que o de todas as regiões brasileiras, exceto da própria região Norte onde se situa [...]. A federalização da apuração desses crimes pode ser uma opção a ser analisada. A CPI dos deputados paraenses destacava a “agilidade” do Poder Judiciário. Efetivamente, as ações de interdito proibitório, manutenção e reintegração na posse, quando envolvem “propriedades” particulares, tinham uma tramitação rápida. Muitas vezes, considerando que nessas ações não se discute o domínio (quem é o titular da propriedade), mas quem pretensamente ocupa o imóvel, foram concedidas liminares ou sentenças baseadas em “papéis podres” (“terras griladas”) sem que o juiz 23 PARá. Assembleia Legislativa, op. cit., p. 44. • 165 tivesse ido à área verificar quem detinha a posse efetiva do imóvel. Essa situação mudou com a instalação das Varas Agrárias, nas quais a maioria dos juízes adota a conduta de promover a inspeção no local antes de tomar outras providências, colocando em prática o que determina o parágrafo único do artigo 126 da Constituição Federal: “Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio”. 3.5 Dimensão espacial dos assassinatos de camponeses De um ponto de vista espacial, os municípios do sul e sudeste do Pará concentram 70,53% dos assassinatos, com destaque para: xinguara (89); São Geraldo do Araguaia (51); Marabá (33); Conceição do Araguaia e São Félix do xingu (30). Destacam-se também Viseu (37) e Paragominas (24). 4. Algumas das possíveis causas da violência Além de investigar casos de assassinatos e demais formas de violência no campo, a Comissão Camponesa da Verdade do Pará sempre procurou chamar a atenção para as causas desse problema, evidenciando o estreito vínculo existente entre violência contra camponeses, grilagem de terras públicas,24 apropriação ilegal de madeira25 e desmatamento ilegal.26 Em vários momentos, foi mostrada a responsabilidade da ditadura militarcivil na utilização de incentivos fiscais para garantir a “modernização da agricultura”, uma política que, na realidade, beneficiou o avanço do capitalismo no campo. Alguns trechos extraídos do relatório final da CPI são significativos:27 A instalação da CPI [...] desnuda o trágico quadro de desacerto no campo paraense, fruto principalmente da incúria e da inércia com que os governos paraenses trataram, ao longo do período republicano, a questão fundiária. [...]. A posição do governo era conlitante e geradora dos conlitos. Ao mesmo tempo em que apresentava a Amazônia como “terra sem homens para homens sem terra”, propiciou através da criação dos incentivos iscais 24 A ditadura favoreceu a grilagem de terras, chegando a legitimar, em nome do “desenvolvimento nacional”, a legalização de áreas apropriadas indevidamente por meio das exposições de motivo n. 5 e n. 6 do Conselho de Segurança Nacional. 25 Várias pesquisas mostram como mais de 70% da madeira comercializada no Pará nas décadas de 1970 e 1980 tinham origem ilegal. Esse fato não mudou muito nos últimos anos, mostrando a ineicácia dos sistemas de comando e controle adotados pelo poder público. 26 O Pará integra os estados do assim chamado “arco do desmatamento”, onde esses índices são muito superiores aos do resto do país. 27 PARá. Assembleia Legislativa, op. cit., p. 4-9. 166 • distribuídos pela Sudam que grande parte das terras da Amazônia fosse comercializada e transferida para empreendimentos de fazendeiros do centro-sul e empresas nacionais e estrangeiras, que aqui implantaram os conhecidos projetos agropecuários. Em muitas das vezes, nenhuma preocupação houve por parte da Sudam, na análise da situação dominial das terras adquiridas, o que ensejou o aparecimento dos primeiros conlitos entre os compradores e os posseiros que existiam nas áreas [...]. Analisando a atuação do Departamento de Terras do Estado, neste período, o advogado Paulo Lamarão, além de apontar as falhas e vícios das alienações das terras públicas paraenses, denunciou que entre os anos de 1962 e 1963, “desencadeou-se nos processos de alienação das glebas devolutas uma espécie de anarquia quase total” [...]. É inacreditável, diz o advogado, “a degradação a que se chegou, na titulagem de terras no Pará. Houve de tudo, títulos falsos porque sem apoio em qualquer processo. Processos nulos, defeitos de edital, ausência ou fraude na demarcação, superposição de áreas, nomes de pessoas inexistentes ou desaparecidas, acidentes geográicos não localizáveis, azimutes e declinações magnéticas imagináveis, metragens distorcidas, coninantes ou posseiros desrespeitados”. [...]. É evidente que essas irregularidades, cometidas sob a chancela, conivência ou complacência do Estado, provocaram em verdadeiro caos fundiário, principalmente na área da abrangência do sudeste paraense. [...]. O que aqui está relatado é o suiciente para vulnerar a atuação do Estado e indiciá-lo como agente propiciador da criação da violência no campo paraense (grifos nossos). O prefácio do inventário da Secretaria Especial de Estado de Defesa Social28 associa a violência com o “avanço da fronteira”: Há uma correlação direta entre a alta incidência de mortes por questão da terra e sua ocorrência na faixa de fronteira de penetração do território paraense. Para lá se deslocaram, ao longo das últimas décadas do século passado, grandes contingentes de excedentes populacionais que emigraram do nordeste, centrooeste e até do sul do país, todos atraídos pela busca de uma vida melhor na Amazônia. 28 RIBEIRO, Paulo de Tarso. In: PARá. Secretaria Especial de Estado de Defesa Social, op. cit. • 167 4.1 Amazônia: política de exploração dos povos e das riquezas naturais Vários são os aspectos a serem analisados, pois historicamente a região amazônica foi tratada como um grande almoxarifado de riquezas a ser explorado. Essa política, adotada nos tempos coloniais, continua hoje. 4.1.1 Caos fundiário A situação atual da Amazônia pode ser resumida na expressão “caos fundiário”, que é uma das primeiras causas da violência. Por isso é necessário verificar como se deu o processo de ocupação das terras do Brasil, especificamente da Amazônia e do Pará. Um documento do Instituto de Terra do Pará (Iterpa) 29 reconhece que, “para que o estado do Pará possa superar o atual caos fundiário, primeiramente deverá definir a dominialidade das áreas”. Para que possa ser viabilizada uma política de ordenamento territorial, é necessário responder a algumas perguntas fundamentais: quantas terras foram incorporadas no patrimônio público? Quantas foram destinadas a particulares? Analisandose os resultados da política fundiária adotada pelos governos federal e estaduais, chega-se à conclusão de que o poder público não sabe, de maneira sistematizada, o que foi destinado aos particulares: quem foi beneficiado? Qual o tamanho das áreas concedidas? Onde estão localizadas? O acesso a essas informações é hoje impossível: nenhum site dos órgãos públicos federais ou estaduais mostra quais imóveis foram incorporados no patrimônio público e quais foram destinados a particulares. Por que a sociedade não é informada sobre como foi usado e como será destinado seu patrimônio? É indispensável agilizar a criação de um sistema que organize todas essas informações. Um caso recente mostra como o descontrole de informações do passado gera conflitos hoje: em 2 de junho de 2016, em Curitiba/PR, iriam a leilão cerca de 275.000 hectares de terras, de imóveis com matrículas bloqueadas em 21 de junho de 2006 pela Corregedoria de Justiça das Comarcas do Interior do Tribunal do Pará (Provimento 13/2006) e canceladas por decisão da Corregedoria do CNJ em 16 de agosto de 2010. Nessa área, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) criou dezenas de assentamentos agroextrativistas, e o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade criou uma reserva de desenvolvimento sustentável (RDS). 29 PARá. Instituto de Terras do Pará. Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará, p. 13. 168 • 4.1.2 Política fundiária do governo federal e estadual O governo federal, que chamou para si a responsabilidade sobre mais de 75% do território, atraiu para a Amazônia milhares de famílias, mas, ultimamente, tem favorecido o avanço do capitalismo no campo, gerando ocupação desordenada, violência e desmatamento ilegal (em 1976 a Volkswagen desmatou 9.300 hectares em um projeto agropecuário financiado pela Sudam). As licitações foram dirigidas em favor de grandes empresas ou de capitais de fora da região, 30 beneficiando a concentração da terra nas mãos de algumas famílias oligárquicas regionais (castanhais do sul do Pará e fazendas do Marajó). A sobreposição de responsabilidades entre órgãos fundiários federais e estaduais permitiu a consolidação do caos fundiário que favoreceu o latifúndio; sua superação se inicia com a sistematização das informações relativas à incorporação das terras no patrimônio público: áreas arrecadadas, desapropriadas e compradas. 4.1.3 Populações tradicionais Nesse período, foi mantida a secular política de “invisibilidade” das populações tradicionais: povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agroextrativistas. A política de regularização fundiária não levou em consideração a presença dessas populações e a região continuou a ser apresentada como um “vazio demográfico”, não se reconhecendo os direitos territoriais desses povos e comunidades. 4.1.4 Grilagem: ineicácia dos sistemas de controle dos registros imobiliários. Qual a responsabilidade e o papel do Estado na apropriação indevida de terras públicas? O governo federal31 reconheceu que: A grilagem é dos mais poderosos instrumentos de domínio e concentração fundiária no meio rural brasileiro. Em todo o país, o total de terras sob suspeita de serem griladas é de aproximadamente 100 milhões de hectares – quatro vezes a área do estado de São Paulo ou a área da América Central mais México. 30 O governador do Pará Alacid Nunes criou uma caravana intitulada “O norte vai ao sul”, que visava estimular investimentos de empresas nacionais no Pará. 31 BRASIL. Ministério de Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário. O livro branco da grilagem de terras no Brasil, p. 8. • 169 A CPI da Ocupação das Terras Públicas na região amazônica32 apontou alguns dos responsáveis por esse fenômeno: Alguns cartórios foram identiicados como contumazes na prática de ilícitos registrais: Altamira, São Miguel do Guamá, Moju, São Félix do xingu, Tomé Açu, Acará, São Domingos do Capim, Rondon do Pará, Paragominas, Marabá, Santa Isabel. Outros cartórios denunciados no estado do Pará foram Igarapé Mirim, Portel e Breves. O combate à grilagem não é um problema de natureza legal, mas político. O arcabouço jurídico brasileiro tem normas para combater a grilagem, conforme mostra a decisão da Corregedoria do CNJ, que determinou o cancelamento de milhares de matrículas irregulares, conforme demonstram os estudos de Felzemburg33 e de Castilho.34 5. Arquivos dos trabalhadores Nossa pesquisa mostrou a fragilidade dos “arquivos” de posse dos sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais (STTRs) e da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Estado do Pará. Na maioria dos casos, essa “memória” foi perdida; quando muito, tem-se o registro de algumas denúncias mais recentes. Uma explicação possível é que a maioria dos STTRs não tem estrutura para isso nem pessoas capacitadas para resgatar essa história. As muitas demandas e desafios que surgem todo dia dificultam uma atividade de registro dos fatos atuais e pretéritos. Seria de fundamental importância conseguir recursos e capacitar as organizações sindicais para esse trabalho, possivelmente com a ajuda do Arquivo Nacional. Diante da diiculdade de coletar informações nos arquivos sob a guarda dos movimentos sindicais, optou-se por trabalhar com os dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, do Secretariado Nacional da CPT, onde constam mais de quatrocentos mil documentos já digitalizados e milhares a serem digitalizados. Desde 1983, a CPT apresenta relatórios anuais sobre conlitos no campo no Brasil. Essa violência se perpetuou ao longo do tempo. A Comissão Camponesa da Verdade do Pará percebeu a riqueza e a quantidade enorme de informações contidas nesse acervo. Sua pesquisa, 32 BRASIL. Congresso Nacional. Relatório inal da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Ocupação das terras públicas na região amazônica, p. 559. 33 FELZEMBURG, Daniel Martins. Cancelamento administrativo do registro imobiliário: instrumento de combate à grilagem de terras públicas. 34 CASTILHO, Alceu Luís. Partido da Terra: como políticos conquistam o território brasileiro. O autor mostra como parte considerável dos políticos detém terra, muitas vezes de maneira irregular, e como determinam a política fundiária. A assim chamada “bancada ruralista” é uma das mais atuantes e expressivas do Congresso Nacional. 170 • porém, apesar da disponibilidade e auxílio do Setor de Documentação da CPT, responsável pela coleta e sistematização desses documentos, nem sempre é fácil. Seria valiosíssimo conseguir a elaboração de um sistema que permitisse uma pesquisa mais rápida no banco de dados, resgatando essa memória a partir de determinados temas. Além dessa fonte, foi também consultado o acervo existente no site <https://armazemmemoria.com.br/> e em outras páginas, e foram feitas pesquisas em jornais e livros. Referências BARATA, Ronaldo. Inventário da violência: crime e impunidade no campo paraense. Belém: Cejup, 1995. BRASIL. CPI da Pistolagem. Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a continuar as investigações de crimes de “pistolagem” nas regiões centro-oeste e norte, especiicamente na chamada área do “Bico do Papagaio”. Brasília, 1992. ______. Ministério de Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário. O livro branco da grilagem de terras no Brasil. Brasília, 1999. ______. Conselho Nacional de Justiça. Relatório preliminar sobre a situação dos conlitos fundiários rurais no Brasil. Brasília: CNJ, 29 set. 2009. ______. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição. 1. ed. Brasília: SDH, 2013. ______. Comissão Nacional da Verdade. Relatório inal. Brasília, 2014. CARNEIRO, A.; CIOCCARI, M. Retrato da repressão política no campo Brasil 1962-1985. Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. 2. ed. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2011. CASTILHO, Alceu Luís. Partido da Terra: como políticos conquistam o território brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2012. CEDENPA (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará). Em defesa da vida: a realidade dos(as) defensores(as) de direitos humanos sob situação de risco e ameaça no estado do Pará. Belém: Cedenpa, 2008. CUT (Central Única dos Trabalhadores). Relatório da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT. São Paulo, 2015. ______. O golpe militar contra os trabalhadores e as trabalhadoras: sindicalistas mortos e desaparecidos durante a ditadura militar e a transição civil no Brasil (1964-1988). São Paulo, 2015. • 171 COMISSÃO CAMPONESA DA VERDADE. Relatório inal. Violações de direitos no campo 1946 a 1988. Brasília, 2014. CPT (Comissão Pastoral da Terra). Secretariado Nacional. Banco de dados. Disponível em: <htps:https://www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/massacresno-campo/110-para>. Acesso em: 2014-2016. ______. Assassinatos e julgamentos 1985-2013. Goiânia: CPT, 2014. CPT NORTE II. Assassinatos no campo 1980-1996. Belém: Secretariado Regional, 1997. FELZEMBURG, Daniel Martins. Cancelamento administrativo do registro imobiliário: instrumento de combate à grilagem de terras públicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2015. MARANHÃO. Assembleia Legislativa. CPI Violência no Campo. Relatório inal. São Luís, 1991. MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Assassinatos no campo: crime e impunidade 1964-1986. São Paulo: Global, 1987. PARá. Assembleia Legislativa. CPI. Violência: omissão e impunidade. Belém, 12 ago. 1991. ______. Secretaria Especial de Estado de Defesa Social. Inventário de registros e denúncias de mortes relacionadas com a posse e exploração de terra no Estado do Pará: 1980-2001. Belém, 2002. ______. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Levantamento da situação processual de trabalhadores do campo assassinados no Estado do Pará. Belém, 2006. ______. Secretaria de Segurança Pública. Portaria n. 58/1997, de 6 de agosto de 1997. GT Crimes no Campo 1997. ______. Instituto de Terras do Pará. Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém: Iterpa, 2008. PARá AGRáRIO. Informativo da situação fundiária: ocupação do solo e subsolo; conlitos agrários. Belém: Idesp, 1990. TRECCANI, Girolamo Domenico. Violência e grilagem: instrumentos de aquisição da propriedade da terra no Pará. Belém: UFPA/Iterpa, 2001. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARá. Clínica de Direitos Humanos da Amazônia. Levantamento de assassinatos no campo no Estado do Pará, 19642013. Belém, 2014. Disponível em: <htp:https://www.cidh.ufpa.br/index.php?vi 172 • ew=article&catid=1%3Apidh&id=746%3Aapcf&format=pdf&option=com_ content&Itemid=113>. Acesso em: 2014-2016. Anexos apresentados à Comissão Estadual da Memória e Verdade do Pará CPI Federais: 140672_138719_11348_CPI Crimes de Pistolagem tomo I 140672_138719_11349_CPI Crimes de Pistolagem tomo II 140673_138722_11352_CPI da Violência no Campo 140751_138770_11437_CPI do Sistema Fundiário 140751_138770_11438_CPI destinada a apurar a venda de terras brasileiras a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras Relatório CPI da Grilagem 2001. • 173 174 • PARTE III A ALIANÇA EMPRESARIAL-POLICIAL DURANTE AS DITADURAS • 175 176 • ARQUIVOS, FONTES E NOVAS APROXIMAÇÕES SOBRE TRABALHADORES, EMPRESAS E DITADURA NO CASO ARGENTINO (1976-1983) Victoria Basualdo* Os estudos sobre ditadura e trabalhadores na Argentina têm uma trajetória de quatro décadas, começando com denúncias e documentos de análise que são contemporâneos aos fatos e com publicações acadêmicas de diversos tipos, desde a década de 1980 em diante. Enquanto que nos primeiros anos posteriores à ditadura predominaram as abordagens de entendimento e mais gerais, nos anos de 1990 houve a tentativa de colocar na pauta o caso argentino dialogando com outros processos em nível latinoamericano e de grandes trajetórias. Um traço diferente da produção mais recente é a abordagem de casos específicos de empresas ou em unidades territoriais, os quais permitem interpelar, a partir de estudos mais profundos, detalhados e específicos, algumas das caracterizações gerais, assim como enriquecer as abordagens prévias com contribuições adicionais. Esta produção historiográfica, em um marco de expansão dos âmbitos científicos e acadêmicos na Argentina, foi possível em grande parte graças ao acesso a um conjunto de arquivos, fundos documentais e repositórios que permitiram o contato com documentos e evidências muito relevantes. O objetivo do presente trabalho é apresentar algumas referências sobre alguns destes arquivos e fontes e suas potencialidades, para contribuir com o fortalecimento neste campo de estudos. Em primeiro lugar sintetizaremos informação sobre arquivos consultados em uma pesquisa cujo principal objetivo foi analisar as transformações das formas de organização e militância da classe trabalhadora industrial em seus locais de trabalho, entre os anos de 1950 e 1980, ou seja, desde a segunda etapa da industrialização, em substituição as importações, até o início do novo modelo centrado na valorização financeira, desenvolvido a partir da instauração da última ditadura na Argentina, que foi acompanhado de uma forte desindustrialização e reconfiguração setorial. Muito mais que traçar algumas tendências importantes em nível nacional da história das comissões internas e dos delegados como formas organizativas, esta pesquisa se centrou em estudos de casos de grandes complexos industriais: a planta da Acindar em Villa Constitución, província de Santa Fé, e as plantas da Alpargatas em Barracas e em Florencio Varela, localizadas na cidade e na província de * área de Economía y Tecnologia (AEyT) da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), Buenos Aires, Argentina. • 177 Buenos Aires, respectivamente, desde as origens das suas representações sindicais nas fábricas até a metade da década de 1980. 1 Em segundo lugar, o presente trabalho fará referência aos arquivos e fontes consultados em outra pesquisa recente desenvolvida por quatro instituições: a área de Economía y Tecnologia de la Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (AEyT de Flacso), o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), o Programa Verdad y Justicia e a Secretaria de Derechos Humanos, além de estudos de casos, centrados na análise das diversas formas de responsabilidade empresarial na repressão aos trabalhadores durante a ditadura. 2 A partir dessas experiências, se busca contribuir para a reflexão e ampliação do trabalho com arquivos e mais pesquisa sobre estes temas, na Argentina e na América Latina, sublinhando, com especial interesse, as potencialidades dos estudos focados nos locais de trabalho. O estudo das formas de organização e militância dos operários da indústria em seus locais de trabalho durante as últimas décadas tem sido um eixo relativamente pouco abordado pela historiografia no que se refere ao trabalho e aos trabalhadores na Argentina. Provavelmente, uma das razões para explicar o escasso e insuficiente desenvolvimento que teve essa linha de análise durante muito tempo, tenha sido o difícil acesso aos acervos documentais que possibilitassem reconstruir as relações sociais e econômicas que se teceram no âmbito da produção, e as formas que adquiriram a organização sindical e a militância política dos trabalhadores de base nas fábricas, especialmente em tempos de censura e repressão. Alguns dos fatores que interferem no difícil acesso aos acervos pertinentes têm a ver com a deficiência de políticas de preservação documental por parte de vários organismos e repartições estatais; a falta de uma tradição de guarda, de arquivamento e valorização de materiais históricos por parte das organizações sindicais; o difícil ou nulo acesso aos arquivos das grandes empresas para etapas contemporâneas (em especial para períodos ditatoriais) e o legado da censura e autoritarismo que promoveu a destruição e/ou desaparecimento da documentação política e sindical chave, que estava em mãos dos próprios operários ativistas e militantes. Como resultado destes e outros fatores, o acesso a fundos documentais orgânicos, que permitissem reconstruir a história dos trabalhadores de base em seus locais de trabalho e suas trajetórias de organização e militância na história recente, tornou-se mais difícil. 1 BASUALDO, Victoria. Labor and Structural Change: Shop-loor Organization and Militancy in Argentine Industrial Factories (1943-1983). 2 AEyT de Flacso, CELS, PVyJ y SDH. Responsabilidad empresarial en delitos de lesa humanidad. 178 • Neste contexto, o arquivo da extinta Dirección de Inteligencia de la Policía de la Província de Buenos Aires (DIPBA), administrado pela Comisión Provincial por la Memoria, na cidade de La Plata, adquiriu uma importância particular. O arquivo da DIPBA é um extenso e detalhado registro de espionagem política-ideológica sobre homens e mulheres ao longo de meio século. Criada em agosto de 1956, funcionou até 1998 quando, no contexto de uma reforma da Polícia da província de Buenos Aires, foi dissolvida e seu arquivo fechado. No dia 10 de junho de 1999, a Cámara Federal de Apelaciones de La Plata promulgou uma medida na qual não se deveria alterar o arquivo da DIPBA, por considerar que os documentos ali existentes poderiam trazer provas para os julgamentos pela verdade que estavam em curso. Em dezembro do ano 2000, o governo provincial transferiu o arquivo para a Comisión Provincial por la Memoria e pela lei n. 12.642 foi desclassificado, ficando sob custódia e gestão daquela entidade. Em outubro de 2003, se abriu ao público, experiência pioneira na Argentina, dado o caráter sigiloso de parte do fundo documental. Os documentos do arquivo foram e continuam sendo contribuições para os processos judiciais contra os responsáveis por delitos de lesa-humanidade, a averiguação de dados referentes às pessoas e para a pesquisa histórica e jornalística. No que se refere à pesquisa sobre história das comissões internas nas indústrias; dos delegados em nível nacional e outras formas organizativas importantes dos trabalhadores de base nos grandes complexos industriais, a documentação do arquivo proporcionou informações muito valiosas. Um exemplo proveniente deste processo de pesquisa pode servir para ilustrar o tipo de fonte possível de se encontrar no arquivo. Diante das dificuldades que implicava a localização de indicadores que permitissem refletir a importância das instâncias de organização de base, tais como os delegados e as comissões internas, na organização sindical em nível nacional durante os anos de 1960, se considerou que o Plano de Lutas colocado em prática pela Confederación General del Trabajo (CGT) em 1964 se constituía em um documento chave. Efetivamente, o estudo em profundidade de uma medida tão importante desenvolvida em âmbito nacional, permitia contrastar a hipótese de pesquisadores que afirmavam previamente que a partir das derrotas de uma série de lutas importantes em 1959 e 1960, as comissões internas tinham sido reduzidas a um estado geral de crise que se estendeu durante toda a década de 1960, considerando, ademais, em comparação com as anteriores, como uma época de grande imobilidade da classe trabalhadora. O arquivo da DIPBA se mostrou fundamental nesta tarefa, já que vários conjuntos de documentos sobre o desenvolvimento do plano de luta da CGT permitiram provar alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, documentos elaborados pelo pessoal de inteligência demonstraram • 179 a importância que os organismos de segurança davam ao papel ativo das bases no desenvolvimento da resolução, o que é considerado um fator decisivo para explicar o sucesso das medidas tomadas pela central sindical. Em segundo lugar, os relatórios sobre a preparação do plano de luta, que incluíam numerosas alusões às tarefas de informar e organizar as bases operárias, revelam a importância que as próprias lideranças sindicais davam para o convencimento e mobilização das bases trabalhadoras, as quais consideravam um ator decisivo e definitivo. Por outra parte, uma série de panfletos sindicais, publicações e documentos originais produzidos por diversas organizações sindicais, incluídos como anexos nos relatórios de inteligência, possibilitaram reconstruir os vínculos entre os diversos níveis de organização da estrutura sindical, e confirmar o papel chave que tiveram os representantes nas fábricas, as comissões internas e os delegados na mobilização de quase quatro milhões de trabalhadores que tomaram cerca de onze mil locais de trabalho durante a segunda etapa do plano de luta em 1964. Finalmente, uma série de documentos sobre diversos sindicatos têxteis e dos metalúrgicos durante os anos de 1960 e 1970 foram importantes para reconstruir alguns aspectos da ligação entre as representações diretas dos trabalhadores industriais nas grandes fábricas e a estrutura sindical local, regional e nacional. Ao mesmo tempo, outros documentos do arquivo resultaram de grande utilidade para conirmar que, durante os anos de 1970, sobretudo a partir da ditadura militar iniciada em março de 1976, os serviços de inteligência e as forças repressoras izeram um monitoramento periódico e estreito do ativismo sindical e da militância política nas grandes indústrias. Em particular, estas fontes permitem documentar a preocupação com a “guerrilha fabril”, denominação que usavam as forças repressoras à presença das organizações político-militares no seio das grandes fábricas, ou por vezes à própria organização sindical, com um viés negativo. A inluência das organizações políticas e especialmente político-militares sobre as bases, os delegados e as comissões internas era observada com especial atenção e alarme pelos serviços de inteligência. Os relatórios do monitoramento dos grandes polos industriais na província de Buenos Aires, e ainda mais, detalhando os nomes dos representantes sindicais de base e seus dados pessoais, junto com as suas tendências e/ou militância política, constituem outro fator de prova da importância dada à organização operária de base e suas relações com as organizações da esquerda. Este monitoramento que faziam os serviços de inteligência durante os anos de 1970 se deu de forma paralela à crescente repressão sobre os trabalhadores da indústria e seus representantes imediatos, que a partir do golpe militar de 1976 foram um dos alvos preferidos dos mecanismos repressores instaurados pelas forças de segurança. 180 • Talvez uma das maiores contribuições dada pelo arquivo da DIPBA para a história dos trabalhadores é a possibilidade que se abre para o estudo da organização e militância nas grandes indústrias, em particular na província de Buenos Aires. Pela organização da documentação do arquivo em dossiês que, identificado com o nome de cada um dos estabelecimentos industriais, concentra toda a informação de inteligência recolhida sobre os mesmos, o material resulta em enorme valor para o historiador no estudo de casos particulares. O monitoramento das fábricas da Alpargatas, em Barracas e em Florencio Varela, não particularmente exaustivo nem profundo comparado com outros casos de empresas que se caracterizaram pela maior presença de militantes combativos e conflitos laborais mais intensos e prolongados, proporcionou toda forma de documentos de grande utilidade. Para começo, a DIPBA inclui como documento inicial em muitos dos dossiês de monitoramento da situação das grandes fábricas, uma folha de síntese das principais características dos estabelecimentos: localização, seus produtos, nomes e sobrenome do gerente e do chefe de pessoal (destacada na documentação entregue pelo arquivo ao pesquisador), número de trabalhadores e turnos (com lista de empregados, operários especializados e não especializados), sindicato aos quais estão filiados, nomes e sobrenomes de delegados dos operários e empregados, assim como endereço, dados de filiação e seção que representa, e outras especificações a respeito da empresa. Com relação aos conflitos levados adiante pelos trabalhadores, as fontes referidas às diversas formas de luta são de três tipos principais: 1) recortes de jornal sobre os conflitos, 2) relatórios de inteligência elaborados pelo pessoal da DIPBA sobre conflitos, reunião de trabalhadores, medidas de força, boatos sobre medidas de força, atividade de panfletagem etc. e 3) fontes originais elaboradas pelos próprios trabalhadores no seio dos conflitos ou mobilizações, retidas pelo pessoal de inteligência e anexadas aos relatórios como sustentação e ampliação dos mesmos. No caso das duas unidades da fábrica Alpargatas, por exemplo, o conjunto de documentos incluiu material sobre o processo da crescente mobilização e protestos dos trabalhadores da Alpargatas, em Florencio Varela, em 1973 e 1974, e a ocupação da fábrica reivindicando a substituição dos representantes burocráticos por outros realmente representativos, assim como sobre medidas de força que se impuseram nas duas plantas durante a última ditadura militar. Em Florencio Varela a reação dos trabalhadores aconteceu em novembro de 1977, enquanto que na planta de Barracas houve uma paralisação em abril de 1979. A documentação inclui também panfletos e material distribuídos nas fábricas, o que permite perceber a presença de certos agrupamentos políticos, assim como as demandas e reivindicações. O caso da empresa Alpargatas é só um exemplo utilizado • 181 aqui como objetivo central de explicitar o tipo de documentação à qual se tem acesso. Outras pesquisas, já finalizadas ou em andamento, sobre outros casos de grandes empresas, põem igualmente em evidência o enorme potencial desta documentação. Uma possível característica problemática do arquivo como tal, é que para os usuários em geral se requer a intermediação dos pesquisadores do arquivo na seleção de materiais, embora se tenham contemplado, nos últimos anos, convênios especiais com instituições que permitem o acesso direto às fontes, que logo são controladas pelo pessoal do arquivo para resguardar dados relacionados à intimidade das pessoas, antes de serem entregues aos pesquisadores. Ainda nos casos em que não fosse possível conseguir o acesso direto ao material, podería-se desenvolver diversas estratégias, que incluem: 1) a consulta das descrições disponíveis que detalham a estrutura do arquivo, sua organização e conteúdo de forma exaustiva, 2) a elaboração, por parte do pesquisador, de um pedido, o mais detalhado e explícito possível, a respeito dos parâmetros e objetivos da pesquisa e 3) a colaboração ativa com os pesquisadores do arquivo (disponibilidade para consultas, precisões etc.). Um segundo fator importante é ter em conta as limitações e desafios que implicam as próprias fontes do arquivo. Em primeiro lugar, resulta imprescindível, como em toda pesquisa histórica, chegar à documentação com um olhar crítico e aplicar uma metodologia de cruzamento com outras fontes, que permita confirmar ou refutar a informação contida nelas. Neste sentido, e atendendo às particularidades e condições da documentação de inteligência, a análise dos agentes da DIPBA, mais que confirmar dados específicos sobre a militância e organização dos trabalhadores, serve tanto para desvendar o olhar dos organismos de inteligência a respeito dos trabalhadores quanto para proporcionar uma aproximação, embora limitada, aos processos de organização dos trabalhadores e à evolução das relações trabalhistas. Os dados sobre a evolução dos conflitos e da organização requerem, no entanto, um cruzamento das informações, com panfletos mantidos no dossiê, artigos de imprensa, para o qual sempre é conveniente acrescentar documentação de outras procedências que permita confirmar, refutar ou ampliar. Outro arquivo estatal que poderia ter sido particularmente relevante e útil para esta pesquisa é o do Ministerio de Trabajo, Empleo y Seguridad Social de la Nación. Embora tenha colocado à disposição fontes interessantes da sua seção de biblioteca e centro de documentação, apresentou ao mesmo tempo diversas restrições e dificuldades de acesso ao material documental de arquivo, devido a que os fundos se encontram parcialmente sem classificação e em depósitos externos de difícil acesso. 182 • Resultou particularmente útil para cruzar os documentos e informações provenientes do arquivo da DIPBA o acervo do Centro de Documentación e Investigación, sobre la Cultura de Izquierdas en la Argentina (CeDInCI), que reúne a maior coleção de materiais sobre a cultura das esquerdas na América Latina, abrangendo as produções político-culturais das principais correntes políticas desde as últimas décadas do século xIx até a atualidade (anarquismo, socialismo, comunismo, trotskismo, maoísmo, seguidores de Guevara, nova esquerda, nacionalismos revolucionários), movimentos sociais (movimento operário, estudantil, de mulheres, direitos humanos, movimento camponês) e grupos artísticos e intelectuais. Possui, ademais, importantes documentos e coleções bibliográficas e de hemerotecas de outras correntes políticas, incluindo diversos setores do liberalismo, radicalismo, conservadorismo, democracia cristã, cristianismo social, peronismo e outros nacionalismos latino-americanos. O CeDInCI nasceu como uma associação civil sem fins lucrativos dedicada à preservação do patrimônio cultural das esquerdas. O acervo inicial se constituiu na base do arquivo pessoal do historiador Horacio Tarcus. Em 1997, surgiu essa ideia de transformar esse volumoso acervo privado em um centro aberto ao público. Desde a inauguração da sua primeira sede em 1998, esse acervo inicial cresceu substancialmente através de algumas compras e, fundamentalmente, de doações. Na atualidade é uma das maiores bibliotecas latino-americanas especializadas em história social, política e cultural da América Latina e dispõem para consulta pública de importantes publicações periódicas produzidas na América Latina por organizações políticas, culturais, estudantis, sindicatos, de direitos humanos, de mulheres etc., convertendo-se em um centro de referência no campo de estudos sobre as esquerdas e os movimentos sociais na América Latina. Outros arquivos que poderiam ter sido muito úteis para a abordagem dessa problemática, como é o caso dos arquivos das organizações sindicais por ramo de atividade ou das centrais sindicais nacionais, apresentaram, entretanto, diversos problemas de preservação, classificação e acesso. No caso da pesquisa mencionada, não foi possível pesquisar os arquivos de forma sistemática, já que no caso dos sindicatos têxteis, só foi possível acessar alguma documentação parcial, limitada e dispersa na Associação Operária Têxtil. Igualmente não foi possível acessar a documentação referente aos metalúrgicos, já que a União Operária Metalúrgica não dispõe de arquivos históricos centralizados abertos ao público, e nem sequer da Confederação Geral do Trabalho cujo arquivo é de acesso restrito e indireto. Perante a falta de arquivos sistemáticos das organizações sindicais estudadas, só foi possível rastrear material em alguns sindicatos, tanto no âmbito de suas sedes centrais como nas subsedes correspondentes. Este material disperso • 183 e incompleto se juntou a fontes provenientes de militantes particulares e agrupamentos que foram decisivas para permitir uma reconstrução de diversos processos de organização. Por outra parte, as hemerotecas da Biblioteca del Congreso de la Nación, assim como da Biblioteca Nacional, em conjunto com o arquivo de imprensa Santiago Senén González, disponível na Universidad Torcuato di Tella, especializado em sindicalismo, foram recursos fundamentais. Embora alguns dos recortes de imprensa nos dossiês fossem especialmente difíceis de serem encontrados ou inacessíveis, com as datas e dados proporcionados pela documentação da DIPBA, foi possível rastrear documentação adicional de imprensa que não figurava nos dossiês.3 Em termos das trajetórias empresariais e para a reconstrução da evolução setorial, foram muito úteis as bibliotecas e arquivos especializados em economia. Por um lado, o Centro de Documentación e Información (CDI) do Ministerio de Economía y Obras y Servicios Públicos de la Nación, foi criado pela resolução conjunta do Ministerio de Economía y Obras y Servicios Públicos, no dia 28 de dezembro de 1993. No Ministerio de Economía funcionavam até fins de 1993, de forma independente, três unidades de informação: Biblioteca do Ministerio de Economía, Centro de Documentación e Información de la Secretaria de Programación Económica e o Departamento de Información Legislativa. Estas unidades se localizavam em diversos andares do edifício, fato que dificultava a consulta dos usuários. Então se avaliou a conveniência da integração de todas as unidades de informação em um único Centro de Documentação. Desta maneira foi constituído um fundo bibliográfico de aproximadamente 130 mil volumes, unificando o mobiliário, infraestrutura e recursos humanos, permitindo funcionalidade e eficiência nos serviços oferecidos. Os primeiros trabalhos de planejamento da integração e transferência se iniciaram em setembro de 1992 e a mudança se realizou entre outubro de 1993 e maio de 1994. Paralelamente e devido ao processo de privatização das empresas públicas e à dissolução dos agentes regulatórios, foi necessário depurar e anexar ao CDI os arquivos e bibliotecas residuais sob a denominação de Bibliotecas Técnicas. Por outro, foram realizadas consultas na Biblioteca Prebisch del Banco Central de la República Argentina (BCRA), especializada em economia, com particular atenção nos assuntos monetários e financeiros, mas com fundos bibliográficos que cobrem, além disso, áreas de história econômica, estatística, finanças, direito bancário. Em permanente crescimento pela 3 Ver informação em: <htp:https://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=2280&id_item_ menu=4559>. 184 • incorporação de publicações jornalísticas e outros documentos, sua origem se remonta à criação do Banco Central, no ano de 1935, e em cumprimento ao disposto o Banco de la Nación Argentina transferiu sua biblioteca econômico-financeira, originada na antiga coleção do Banco Nacional. Ademais, possui um valioso Setor de Documentos Históricos pertencente ao Crédito Público Nacional e antigas entidades bancárias, em virtude das funções do Banco Central, como ente regulador do sistema financeiro, junto com a documentação histórica de interesse para pesquisadores e estudiosos da nossa história econômico-financeira. A partir de março de 2005 foi designada Biblioteca Depositária del Fundo Monetário Internacional. É consultada por funcionários e pessoal do BCRA, órgãos públicos nacionais e regionais, bancos e entidades financeiras, pesquisadores do país e do exterior, docentes e estudantes, e público em geral. Ademais, foram de grande utilidade, a biblioteca e fundos do arquivo da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais. Finalmente, outras fontes decisivas para reconstruir as trajetórias da organização e militância sindical nos locais de trabalho, foram histórias orais que permitiram não só contribuir com a reconstrução histórica, como também trabalhar aspectos da memória dos trabalhadores, dos processos de luta e da repressão. Parte dessas entrevistas orais foi gerada, especificamente, para a pesquisa e envolveram um intenso trabalho de campo e ao mesmo tempo outros testemunhos vieram de diversas instâncias judiciárias (tanto os já mencionados julgamentos pela verdade como as diversas etapas e processos para colocar na esfera judiciária estes temas). Outras fontes foram consultadas em repositórios relevantes da história oral, como o que existe na organização Memoria Abierta, uma aliança de organizações de direitos humanos que promove a memória sobre as violações dos direitos humanos do passado recente e os repositórios de outras instituições como a Facultad de Humanidades y Ciencias de Educación de la Universidad Nacional de La Plata, a Facultad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires e a Biblioteca Nacional entre outros. Este conjunto de arquivos e acervos foi decisivo para abrir novas linhas de pesquisa, em particular estudos focados nos locais de trabalho, não só para acompanhar as trajetórias empresariais e as histórias de organizações sindicais e os ciclos de conflitos, como também para abordar outras dimensões que surgiam de pesquisas anteriores, como a participação de lideranças empresariais nas políticas repressivas exercidas contra os trabalhadores. Um exemplo claro de um avanço qualitativo na pesquisa, que foi adiante em estreita vinculação com o processo de judicialização dos delitos de lesa-humanidade reaberto desde 2003, foi o projeto levado por quatro instituições: a área de Economía y Tecnologia de Flacso, o organismo de direitos humanos Centro de Estudos Legales • 185 e Sociales (CELS), e duas dependências estatais: o Programa Verdad e Justicia e a Secretaria de Derechos Humanos del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación. Este projeto se centrou em estudos de casos de 25 empresas de todo o país, considerando que esta escala permitia focar de forma privilegiada o processo repressor que afetava os trabalhadores nos seus locais de trabalho, e analisar as diversas formas de participação de funcionários com postos de comando e dos próprios donos das empresas. 4 Este projeto de pesquisa permitiu um avanço muito significativo a partir da constituição de uma equipe multidisciplinar que abordou, consultando um leque amplo de fontes, uma quantidade importante de casos de empresas de maneira sistemática. A seleção dos casos se iniciou, em primeiro lugar, com o levantamento geral de fontes documentais, de imprensa, bibliográficas e judiciais, o que permitiu detectar evidências – em alguns casos, concreta, e em outros, tentativa ou prestes a realizar-se – de algum tipo de participação de funcionários das empresas na repressão. Baseado nisto, foram considerados diversos critérios de seleção: a intenção de abordar casos de diversas atividades econômicas e localizadas em diversas regiões do país; a importância que o Exército atribuía a empresas que, ou eram lideranças nas suas respectivas áreas de atividade ou eram fornecedoras de bens e serviços para as Forças Armadas e de Segurança; a prioridade dada aos casos que apresentavam algum tipo de avanço em matéria judicial; e, finalmente, as restrições de tempo, pesquisas e recursos. O trabalho de pesquisa se realizou com critérios metodológicos desenhados para contrastar a evidência preliminar, conseguir nova informação e elaborar uma primeira análise sistemática. Vários dos casos foram abordados anteriormente por diversos pesquisadores de ciências sociais, historiadores, jornalistas, pesquisadores e funcionários 4 As empresas analisadas são: Ledesma, Minera El Aguilar, La Veloz del Norte, Grafanore, os engenhos La Fronterita e Concepción na região do noroeste argentino (NOA); Alpargatas, Molinos Rio de la Plata, Swift, Propulsora Siderúrgica, Astilleros Rio Santiago e Petroquímica Sud-americana, estão vinculados como cordão industrial da zona sul de Buenos Aires, que compreende o sul da cidade de Buenos Aires, a região austral do complexo urbano bonaerense, La Plata, Berisso y Ensenada; Grafa, Ford, Mercedes Benz, Lozadur y Cataneo, Astilleros Astarsa y Mestrina, Dálmine-Siderca y Acindar, permite uma aproximação ao cordão industrial da zona norte e oeste da província de Buenos Aires e sul de Santa Fé; a empresa transnacional de origem italiana Fiat constitui uma aproximação a um território chave na história operária do país como a província de Córdoba, ao tempo que a análise da empresa Las Marías proporciona evidências preliminares vinculadas à região do nordeste argentino (NEA). Os casos Loma Negra e La Nueva Província possibilitam uma aproximação a zonas do interior da província de Buenos Aires. 186 • do judiciário, embora com objetos de estudo heterogêneos. Além de partir destas imprescindíveis contribuições prévias, se realizou um intenso trabalho de levantamento de fontes. Em primeiro lugar, foi selecionado como repositório central o Fondo Documental do Archivo Nacional de la Memoria, subordinado a Secretaria de Derechos Humanos de la Nación, que contém uma enorme quantidade e variedade de documentos sobre a escalada do terrorismo de Estado na Argentina e das respostas sociais e institucionais à violência do Estado. Este arquivo, criado por meio do decreto n. 1.259/2003, pelas particularidades de conteúdo e características dos suportes da documentação, tem um enorme valor jurídico, já que grande parte dessa documentação foi utilizada em processos judiciais. Além de cumprir uma função histórica e educativa. Entre seus acervos se contam mais de quinhentas horas de gravação do histórico processo das Juntas Militares, por volta de seiscentas horas de material histórico audiovisual, mais de vinte mil fotografias, quase três milhões de imagens da fototeca do Archivo de los Reporteros Gráficos de Argentina (Argra), os fundos da Comisión Nacional por Desapareción de Personas (Conadep), conjuntos de documentos da Secretaria de Derechos Humanos (SDH) com testemunhos de vítimas do terrorismo de Estado, material gráfico da coleção Secretaria de Médios, documentos de instituições que trabalharam junto com a Comisión Argentina de Derechos Humanos (Cadhu), assim como documentação da Comisión Nacional de Responsabilidad Patrimonial criada pela última ditadura civil-militar, entre outros acervos disponíveis, tanto em papel como em repositório digital. Outro arquivo fundamental consultado foi o Departamento de Archivo Intermedio del Archivo General de la Nación, criado em 1979, com a função específica de dar assistência aos órgãos que integram a Administração Pública Nacional com relação à classificação, avaliação, descrição, seleção e aplicação das normas vigentes, para uma adequada administração dos seus documentos e arquivos. Com a promulgação da lei n. 23.696/1989 da Reforma do Estado e do decreto n. 2.281/1991 de Desregulamentação, que constituiu o marco da privatização de diversos órgãos públicos ou a desintegração de outras instituições, foi necessário adotar medidas concretas para a preservação desses fundos documentais. O primeiro passo consistiu em solicitar às instituições o levantamento geral de toda a documentação preservada em seus arquivos, com a finalidade de incorporar estes fundos documentais neste arquivo de grande riqueza. Além de tudo isso, o arquivo intermédio tem alguns fundos particularmente relevantes para a análise do período ditatorial como: o da Comisión de Asesoramiento Legislativo, o fundo do Consejo Supremo de las Fuerzas Armadas, e os do Ministerio de Justicia e do Ministerio del Interior (expedientes gerais e os sigilosos e confidenciais), entre outros. • 187 De forma complementar, se utilizaram muitos dos arquivos já mencionados, como o da DIPBA na Comisión Provincial por la Memoria, o Archivo Cisea-Cespa da Facultad de Ciencias Económicas de la UBA, o arquivo do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), e o Fundo de documentação e séries estatísticas da área de Economía y Tecnologia da Flacso, entre outros. Além disso, dado o foco específico da repressão aos trabalhadores, se ampliou o trabalho para incluir outros arquivos relevantes como o arquivo e biblioteca do Ministerio de Trabajo, o Fundo Secretaria General de la Junta Militar e a Dirección de Estudios Históricos de la Fuerza Aérea, do Ministerio de Defensa de la Nación, entre outros. Somaramse a estes arquivos diversos repositórios específicos que se consultaram vinculados a diversas circunstâncias, casos e processos, como o Archivo de la Comisión Provincial de la Memoria de Córdoba, antigo D2, ou o arquivo no Museo de la Memoria, em Rosário. A estas fontes documentais escritas se somou um amplo leque de fontes orais conformadas por entrevistas realizadas previamente por outros pesquisadores e instituições, algumas delas disponíveis em arquivos orais como o da Memoria Abierta, e entrevistas realizadas para este projeto de pesquisa. A análise das fontes documentais recolhidas para um conjunto de 25 casos de empresas de diversas regiões do país permitiu comprovar que, embora existissem importantes variações em cada um dos casos (para cuja análise se procurou uma abordagem que desse lugar a suas particularidades e características específicas), os incontáveis pontos de contato nas estratégias adotadas por estes dirigentes do empresariado, sempre em sintonia com a ação militar, fazem referência à existência de uma estratégia repressora comum. A escolha do tipo de práticas a serem utilizadas em cada caso, o grau de violência dos métodos e o nível de participação relacionada a esta combinação empresarial-militar, não alteram, em nenhum dos casos, o fato de que tanto pelas suas características próprias quanto pelo fato de que se inseriam na trama do terrorismo de Estado, o uso que se fez destas práticas derivou em graves violações dos direitos humanos. De acordo com o analisado nesta pesquisa, as práticas repressoras dos empresários devem ser vistas no marco de um processo geral de militarização dos locais de trabalho, fábricas e empresas. Com o termo “militarização” fazemos referência à presença visível do pessoal militar nas fábricas e o desenvolvimento de tarefas de vigilância, controle e ação disciplinar; à escalada de operativos militares massivos ou dirigidos especificamente contra alguns trabalhadores que se produziram no dia do golpe ou como resposta a conflitos trabalhistas, antes ou depois de iniciada a ditadura, tanto dentro como fora da fábrica; à decisiva nomeação de quadros militares nas diretorias e em cargos de hierarquia nas empresas; como também à ação do pessoal dos órgãos de inteligência civil, militar ou policial, com relação 188 • aos empresários ou às estruturas de segurança e controle das empresas. A expressão mais extrema da militarização foi a instalação de centros ilegais de detenção e tortura nos próprios locais de trabalho. Esta pesquisa, vinculada a um conjunto de contribuições mais amplas e gerais sobre as relações entre o poder econômico e a ditadura, mostra que, longe de ficar distante de métodos e alcances, um setor do empresariado do país tomou conta de uma série de práticas repressivas que deram lugar aos crimes de lesa-humanidade dos quais foram vítimas principais os trabalhadores, em seus locais de trabalho, que pertenciam a esses empresários coniventes. Repensar, à luz destas evidências, o vínculo estabelecido entre empresas e forças militares implica, em primeiro lugar, descartar a ideia de uma “cumplicidade” em termos jurídicos, políticos ou históricos e toda outra terminologia que atribua a estes empresários papéis secundários na política criminosa do Estado naqueles tempos. A utilização do conceito de “responsabilidade” empresarial, nos delitos de lesahumanidade que sofreram os trabalhadores e trabalhadoras, busca refletir a existência de formas de participação direta de figuras do empresariado no processo repressivo o que deixa claro que não eram só subsidiários, secundários ou davam assistência a um protagonista militar. Estes achados têm consequências importantes para a compreensão do processo repressivo, não só única e exclusivamente vinculados com as Forças Armadas, senão, como um conjunto de relações que o sustentaram e aplicaram, e permite incluir novos sujeitos centrais tanto na compreensão quanto no caráter judicial destes fatos. Em resumo, estas pesquisas recentes sobre a última ditadura argentina e seu impacto sobre os trabalhadores e as organizações, que se somam a uma grande quantidade de contribuições no âmbito de crescimento da produção acadêmica sobre estes temas, foram possíveis em um contexto de abertura, expansão e crescente acessibilidade a um conjunto de arquivos estatais e privados que proporcionam fontes de imensa utilidade para iluminar aspectos tão decisivos como as transformações da organização sindical de base ou o papel de setores da liderança empresarial na repressão aos trabalhadores e suas organizações em regimes ditatoriais. Ao mesmo tempo, foram possibilitadas por um processo de expansão do financiamento destinado à produção científica e tecnológica, à transformação das instâncias estatais que passaram a desenvolver tarefas de pesquisa vinculadas com os processos que colocaram na esfera judiciária estes temas e aos desenvolvidos no interior de diversas disciplinas que procuraram não só aprofundar as análises como também vinculá-los com os processos sociais de grande relevância, como o processo de memória, verdade e justiça e com outros atores chaves, como os trabalhadores, sindicatos e organizações de vítimas. • 189 Neste contexto foi possível passar de pesquisas individuais enraizadas exclusiva ou majoritariamente no âmbito acadêmico a projetos mais amplos de caráter multidisciplinar que incorporaram diversos atores, incluindo instituições acadêmicas e universitárias, organismos da sociedade civil, (particularmente organizações de direitos humanos) e dependências estatais com pessoal especializado, e permitiram, a partir da recepção por parte do Ministerio Público Fiscal, nutrir os processos judiciais vinculados ao caos analisado. Este breve percurso pelos arquivos e fontes enfatiza, no entanto, matérias pendentes e de grande magnitude na reconstrução desta história. Por um lado, as deficiências na maior parte dos arquivos operários e sindicais, que na sua maioria não estão constituídos como tais, e que, quando existem, se encontram em precário estado de conservação, classificação e acesso. Em segundo lugar, se destaca também o difícil ou impossível acesso a arquivos empresariais, que seriam de grande utilidade para reconstruir alguns aspectos centrais, mas que na atualidade permanecem fechados ao público, apesar de conterem informação muito relevante em termos sociais e acadêmicos. O avanço em ambos os sentidos, assim como a organização e abertura ao público de uma grande quantidade de arquivos estatais de diversa ordem que ainda permanecem com escassa ou nenhuma classificação, ou com acesso parcial ou total, seria fundamental para continuar aprofundando o estudo do complexo emaranhado social que manteve regimes ditatoriais que deixaram legados de longo prazo em termos políticos, econômicos e sociais. Referências AEyT de Flacso, CELS, PVyJ y SDH. Responsabilidad empresarial en delitos de lesa humanidad: represión a trabajadores durante el terrorismo de estado. Buenos Aires: Infojus, 2015. BASUALDO, Victoria. Labor and Structural Change: Shop-loor Organization and Militancy in Argentine Industrial Factories (1943-1983). Ph.D. dissertation, Columbia University, 2010. 190 • EMPRESÁRIOS, ESTADO E ACIDENTES DE TRABALHO DOS OPERÁRIOS DA CONSTRUÇÃO CIVIL DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR NO BRASIL (1964-1988) 1 Pedro Henrique Pedreira Campos* Durante a construção dos estádios de futebol para a Copa do Mundo Fifa 2014 no Brasil, um total de nove operários morreram em acidentes de trabalho. 2 Já na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, um único acidente em 2015 deixou três vítimas fatais. 3 Esses casos recentes de óbitos em obras associados a grandes projetos de engenharia indicam, em algum grau, a manutenção de parcos mecanismos de segurança nos ambientes de trabalho no Brasil, em particular no setor da construção civil. Essa situação remonta a episódios anteriores da história brasileira, em particular o período da ditadura civil-militar (1964-1988), quando houve um dinamismo inédito e até hoje inigualável no setor de obras públicas e empreendimentos na construção civil imobiliária e, ao mesmo tempo, uma política de pouca fiscalização ou repressão ao desleixo das empresas com a segurança dos trabalhadores nos locais das obras, o que redundou na elevação exponencial das mortes nos canteiros e na liderança do Brasil nas estatísticas de acidente de trabalho no mundo. Fica a impressão de que as empresas – que em sua maioria são as mesmas que tocaram os principais projetos do “milagre” e dos anos 1970 – se mantiveram apegadas às práticas desenvolvidas naquele período, de relegar pouco cuidado à vida e integridade do operário, economizando no quesito segurança no ambiente de trabalho. Ao mesmo tempo, e relacionado a isso, parece que o Estado brasileiro não rompeu plenamente com um padrão de generosidade com as empresas que pouca atenção dão às condições de trabalho nos canteiros e à vida dos seus funcionários. Também não opera de maneira firme na fiscalização e imposição dos aparatos mínimos de segurança nos canteiros de obras de construção civil no país. * 1 Professor do Departamento de História Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil. Este artigo constitui trecho adaptado e atualizado de nossa tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), no ano de 2012, sob o título A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985. A tese depois foi publicada em 2014 pela Eduf na forma de livro após algumas modiicações com o título Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. 2 Disponível em: <htp:https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/08/140811_mortes_estadios_copa_mv>. Acesso em: 1 ago. 2016. 3 Disponível em: <htp:https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/05/1636001-tres-operariosmorrem-em-acidente-em-usina-de-belo-monte.shtml>. Acesso em: 1 ago. 2016. • 191 As principais empresas brasileiras de construção pesada 4 foram formadas em meio ao advento de padrão de acumulação urbano e industrial no Brasil. Assim, a fundação das mais tradicionais empresas brasileiras do setor data dos anos 1920, 1930, 1940 e 1950. Inicialmente, essas empresas foram muito ligadas à sua cidade, região e estado de origem, realizando empreendimentos para prefeituras, governos estaduais e agências estatais que atuavam na região de sua formação. Em meio ao conjunto de demandas de obras públicas vigentes no período do governo de Jucelino Kubitschek, as maiores empresas de Minas, São Paulo, Rio e Nordeste nacionalizam as suas atividades e passam a atuar em diversas frentes, como nas obras rodoviárias ao longo do território nacional e na construção da nova capital federal. Essa nacionalização do mercado do setor abriu espaço também para a organização dos empreiteiros de obras públicas em nível nacional. Não à toa, data desse período a formação das duas primeiras entidades nacionais do setor, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic, de 1957) e o Sindicato Nacional da Construção Pesada (Sinicon, 1959). Esses organismos deram coesão e direção para os interesses e projetos desses empresários, potencializando seu poder e ação junto ao aparelho de Estado e também junto à sociedade civil. Assim, no início da década de 1960, o Sinicon compôs a rede de entidades empresariais liderada pelo Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) que atuou no processo de desestabilização do governo João Goulart, na articulação do golpe de Estado e na elaboração de projetos para um governo posterior à quebra da ordem institucional. Após o desfecho do golpe de 1964, os empreiteiros de obras públicas tiveram seu acesso às agências do Estado facilitadas e intensificadas, fazendo com que alguns dos seus integrantes e representantes ocupassem postos-chave na sociedade política. Como decorrência disso, o período da ditadura foi altamente favorável para o empresariado e, em particular, para os empreiteiros de obras de infraestrutura, que tiveram então um orçamento com aportes 4 A indústria da construção pesada é o setor econômico que abrange as empresas dedicadas às obras de infraestrutura, comumente conhecidas como empreiteiras. Essas empresas são responsáveis por empreendimentos contratados preferencialmente pelo aparelho de Estado, realizando obras de transporte (rodovias, ferrovias, hidrovias, túneis, pontes e viadutos), de energia (usinas hidrelétricas, usinas térmicas, linhas de transmissão, subestações, dentre outras), de saneamento (estação de tratamento de água e esgoto, encanamento, emissários submarinos etc.), de urbanização (vias públicas, calçamento, logradouros e outras intervenções urbanas), obras industriais (plantas fabris, plataformas de petróleo etc.), dutos (oleodutos, gasodutos, minerodutos e alcooldutos), além de portos e aeroportos. Muitas vezes, essas irmas também atuam em outros ramos da engenharia, realizando projetos de montagem industrial, montagem elétrica e ediicações urbanas. 192 • elevados e crescentes, reserva de mercado, isenções fiscais, financiamentos facilitados e outros benefícios.5 Se a ditadura foi uma vitória para os empresários, principalmente os de grande porte – estrangeiros e domésticos –, ela representou uma derrota para os trabalhadores. O golpe de 1964 foi seguido de diversas perdas para a classe trabalhadora brasileira, que viu nos mais de vinte anos seguintes um período e um regime avesso aos seus direitos e interesses. Logo após o golpe, foi expedida uma lei que limitava o direito de greve dos operários. Além disso, um dos alvos principais da repressão após a derrubada do governo democrático foram as organizações de trabalhadores e suas lideranças. Assim, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) foi fechado, líderes sindicais foram presos, sindicatos sofreram intervenção e a perseguição policial aos trabalhadores aumentou. Essa repressão às formas de organização dos trabalhadores se relacionava e se combinava com os ataques desferidos contra os seus direitos e condições de trabalho. O salário mínimo foi congelado e seu poder de compra foi dilapidado ao longo dos dez primeiros anos de ditadura, resultando na perda de quase metade do valor nesse período. Além disso, foram proibidas as elevações salariais em período inferior a um ano. Preços tabelados e controlados, como os de aluguéis e alimentos, foram liberados, resultando em elevação do custo de vida para os trabalhadores, principalmente os de renda mais baixa. Por fim, foram criadas poupanças compulsórias, como o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), o PIS (Programa de Integração Social) e o Pasep (Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público), que subtraíam recursos dos salários dos trabalhadores, canalizando-os para os empresários através dos bancos públicos. Assim, as condições das classes subalternas se deterioraram muito com a ditadura, fazendo elevar os índices de uso de horas extras de homens e de mulheres e trabalho infantil para integralização da renda das famílias dos trabalhadores.6 Dentre os trabalhadores, os operários da construção civil guardam certas especificidades, ao mesmo tempo em que as derrotas sentidas para as classes subalternas durante a ditadura tenham sido particularmente intensas para essa fração social. O setor de construção civil teve um boom econômico expressivo ao longo da ditadura. A década de 1970 foi marcada como a de maior atividade na história do setor. Isso se deve por um lado ao crescimento dos investimentos estatais em obras de infraestrutura, 5 Sobre o Ipes, ver a obra de DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Sobre as empreiteiras na ditadura, ver CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais. 6 Ver SINGER, Paul Israel. A crise do “milagre”: interpretação crítica da economia brasileira; OLIVEIRA, Francisco de. A crítica da razão dualista; IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital; GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. • 193 resultante da ampliação dos recursos disponibilizados pelo aparelho de Estado após as reformas do Paeg (Plano de Ação Econômica do Governo, política econômica implementada entre 1964 e 1967) e do deslocamento de recursos de áreas de impacto social, como saúde e educação, para a realização de inversões em setores como transporte e energia, dadas as condições particulares da correlação de forças políticas no regime ditatorial fechado. Por outro lado, o pique sentido no setor é fruto dos empréstimos disponibilizados pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), que ativaram a construção imobiliária urbana, com demandas de residências para as classes médias e também para as classes populares.7 Assim, com os investimentos estatais e os recursos disponibilizados pelo BNH, houve um intenso incremento das atividades do setor da construção civil no país naquele período. Com a expansão das atividades das empresas do setor, a força de trabalho empregada na indústria da construção civil se elevou também exponencialmente ao longo do regime, consoante a política estatal de geração de empregos no setor.8 Dado também o caráter tecnológico pouco desenvolvido da construção civil no país naquele momento – principalmente no ramo da construção leve –, o uso elevado de força de trabalho era especialmente comum, por causa do seu baixo custo e também porque não era difundido no setor naquele momento o uso intensivo de máquinas e equipamentos em substituição ao trabalho humano. Assim, uma significativa parcela da classe trabalhadora brasileira ao longo da ditadura estava empregada na construção civil. O perfil geral desse trabalhador era de um sujeito de origem, sobretudo rural, e em muitas ocasiões originário do Nordeste, com baixa qualificação e instrução na maior parte das vezes e que tinha no canteiro de obras péssimas condições de alojamento, vida e trabalho, além de salário reduzido. 9 Há relatos no período de uso de força de trabalho prisional, principalmente em grandes obras públicas em regiões afastadas dos grandes centros urbanos. 10 E eram especialmente problemáticas e explosivas as situações de operários que viviam e trabalhavam em canteiros de obras de usinas hidrelétricas, geralmente confinados e afastados das cidades. 7 Ver FONTES, Virgínia. Rupturas e continuidades na política habitacional brasileira. 8 Ver FERREIRA, Carlos Ernesto. A construção civil e a criação de empregos. 9 COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Operário de construção civil: urbanização, migração e classe operária no Brasil. 10 Isso é citado por, entre outras referências, QUINTELLA, Wilson. Memórias do Brasil grande: a história das maiores obras do país e dos homens que as izeram. 194 • Não à toa, ao mesmo tempo em que é empregador de numerosa força de trabalho e que opera baixos salários e más condições de trabalho, vida, alojamento e alimentação, o setor da construção civil foi um dos principais polos de mobilizações, protestos, greves e piquetes ao longo do período ditatorial, principalmente no final do regime. Assim, dez anos após as greves de 1968, no final da década de 1970, os operários da construção civil foram alguns dos principais agentes de mobilização e manifestação dos trabalhadores em meio ao processo de transição política, ao lado dos profissionais da educação e das fábricas. Houve piquetes e quebraquebras nos canteiros de obras do metrô do Rio de Janeiro, nos da cidade de Belo Horizonte e o grande levante dos trabalhadores do canteiro da usina hidrelétrica de Tucuruí no ano de 1980. Esses episódios indicam um operariado ativo na defesa dos seus direitos e que não era passivo em meio às agressões desferidas pelo empresariado e pela ditadura e que fizeram manifestar o seu descontentamento com a forma como eram tratados nos canteiros de obras, nas refeições providas pelas empresas, com seus salários e agressão aos seus direitos. A forma específica de expressão dessas manifestações dos operários da construção era particularmente violenta, com quebra-quebras, destruição de máquinas, equipamentos e de ambientes do trabalho e do canteiro, como a cantina e o alojamento. Nair Sousa intitulou essa expressão da revolta dos trabalhadores de “cidadania do protesto”. 11 Pode-se dizer que uma forma específica de beneficiamento do empresariado, particularmente o da construção civil, ao longo da ditadura deu-se com o uso da política direcionada aos trabalhadores. Por meio da política do “arrocho salarial” e da repressão às formas de organização e ação operária, a ditadura reduzia custos e ampliava as possibilidades de margens de lucro das empresas do setor da construção. Com isso e as políticas de incentivo direto ao setor, os empresários da indústria da construção encontraram no regime civil-militar, inaugurado em 1964, um cenário ideal para o desenvolvimento das suas atividades e obtenção de altas taxas de ganho. Porém, esse favorecimento aos empresários em desproveito das condições de vida e trabalho dos operários da construção foi especialmente dramático em uma política específica. Esta diz respeito às condições de segurança no canteiro e no tratamento dado aos acidentes de trabalho. 11 SOUSA, Nair Heloísa Bicalho de. Trabalhadores pobres e cidadania: a experiência da exclusão e da rebeldia na construção civil. • 195 Acidentes e culpabilização dos trabalhadores ao longo da ditadura Resta saber que no Quarto Centenário o carioca, esse otário, vai ter água pra chuchu. Pois tem morrido um bocado de operário pra aliviar nosso calvário com a adutora do Guandu.12 A citação de Vinícius de Moraes, datada de janeiro de 1965, pode indicar como uma característica histórica das condições de trabalho no Brasil foi potencializada pela ditadura, a do alto índice de acidentes de trabalho. Com o objetivo de produzir mercadorias baratas e elevar as taxas de lucro, os empresários economizavam em mecanismos de segurança para os trabalhadores, acarretando altos índices de acidentes, muitos letais, além de doenças relacionadas ao trabalho.13 Com os novos mecanismos institucionais implementados então, como a retenção da justiça trabalhista e a reformulação do sistema de previdência, os números de acidentados no trabalho se multiplicaram, acompanhando o crescimento econômico e o tacanho ou nulo controle sobre as empresas que não respeitavam a legislação e desconsideravam a saúde de seus funcionários. A OMS (Organização Mundial de Saúde) fez relatórios sobre o assunto e denunciou as condições de trabalho no país, mostrando sua liderança estatística mundial no quesito. O organismo internacional indicava que dos 77 milhões de trabalhadores brasileiros, 1,47 milhão haviam se acidentado em 1972, segundo os registros oficiais.14 O próprio presidente da República ressaltou em cerimônia de posse do novo presidente da Cbic, em 1980, que o país era recordista em números de acidentes de trabalho, registrando 1,5 milhão de casos anualmente, e que a indústria de construção tinha um papel central naquela estatística. 15 Vários desses acidentes eram mortais e, segundo a Folha de São Paulo, 2.559 pessoas morreram em acidentes de trabalho no ano de 1971, 4.001 em 1975, chegando a 4.824 em 1980, índice 12 MORAES, Vinícius de. ‘Toadinha de Ano Novo’, p. 119. 13 Marx ressalta em O capital várias formas usadas pelos empresários para ampliar suas margens de lucro. No que concerne aos trabalhadores, ele veriica as estratégias dos capitalistas para prolongar a jornada de trabalho, dentro e fora da legalidade, o que resulta na mais-valia absoluta. Com consequências diretas também sobre os operários, Marx nota que os donos de fábrica faziam economia no capital constante com o objetivo de obter maiores ganhos, superlotando recintos estreitos e insalubres, economizando em ediicações, acumulando maquinaria perigosa à saúde do trabalhador e omitindo-se na proteção do mesmo. Ver MARx, Karl. O capital, livro I, capítulos 5, 8 e 10. Ainda na obra marxiana, sobre o tema das condições de vida e labuta dos trabalhadores no século xIx, há também a obra de ENGELS, Friederich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 14 Revista O Empreiteiro, nov. 1974, n. 82. 15 Ibidem, set. 1980, n. 152. 196 • similar ao da primeira metade dessa década.16 Já a OIT (Organização Internacional do Trabalho) trazia dados bem diferentes, contabilizando 8.892 óbitos por trabalho no Brasil só no ano de 1980, contra 4.400 nos EUA, que tinha naquele momento o dobro da população economicamente ativa brasileira. 17 A parcela significativa representada pela construção nesses índices era ressaltada pela revista O Empreiteiro, em editorial em 1974: “Neste contexto, o setor de construção está consciente que lidera as estatísticas de acidentes, disparando na frente de outros setores industriais”. 18 Nesse ano, foram 400 mil acidentes na construção segundo a revista19 e 1.796.761, segundo a Fundacentro.20 A importância do setor nos acidentes de trabalho não era uma novidade, e, no período do Estado Novo, a construção era a terceira responsável por trabalhadores acidentados no Rio de Janeiro.21 Fora os acidentes de trabalho, várias eram as doenças verificadas entre os operários da construção. Em função do trabalho pesado e da alimentação insuficiente provida pela empresa, a desnutrição era um mal comum entre os trabalhadores do setor. Com a exposição à luz do sol, havia câncer de pele e hiperpiresia. O trabalho com máquinas que emitiam altos ruídos, muitas vezes sem o equipamento adequado, levava a distúrbios no ouvido interno e perturbações psíquicas, insônia e outras doenças. O trabalho com materiais radioativos, como o pó de amianto, era outro perigo para o trabalhador e levava a patologias próprias, havendo também a “alergia de pedreiro”, reação à poeira comum entre operários da construção.22 O trabalho com ar comprimido levava a intoxicação com nitrogênio e problemas ósseos, sendo esse distúrbio comum na construção pesada, nos serviços de fundações. Os tubulões, usados em obras de pontes, requeriam o trabalho com ar comprimido, levando à necrose do osso e desintegrando as juntas ósseas nos ombros e quadris.23 Essa forma de lesão só começou a ser 16 Apud KLAUSMEYER, Maria Luiza Cristofaro. O peão e o acidente de trabalho na construção civil no Rio de Janeiro: elementos para uma avaliação do papel da educação nas classes trabalhadoras, p. 55-140. 17 ROCCA, Miriam Cantelli. Uma das faces do capitalismo selvagem no Brasil: a (in)segurança do trabalho na construção civil, p. 1-63. 18 Revista O Empreiteiro, nov. 1974, n. 82, p. 3. 19 Ibidem, jun. 1976, n. 101. 20 ROCCA, Miriam Cantelli. Uma das faces... op. cit., p. 1-63. De acordo com essa mesma fonte, entre 1971 e 1976, os acidentes anuais no setor variavam de 1,3 a 1,9 milhões de casos. 21 LOBO, Eulália Maria Lahmeyer; OLIVEIRA, Antonio de. O Estado Novo e o sindicalismo corporativista, 1937-1945, p. 102-96. 22 KLAUSMEYER, Maria Luiza Cristofaro. O peão... op. cit., p. 55-140. 23 Revista O Empreiteiro, jun. 1974, n. 77. • 197 controlada no Brasil em 1971, sendo numerosa em obras como a ponte RioNiterói, onde foram registrados 45 mil casos de doença de descompressão e outros de necrose asséptica. No metrô de São Paulo, foram contabilizados 59.284 casos dessa enfermidade entre os trabalhadores.24 Eram comuns também os registros de fadiga dos trabalhadores da construção civil, sendo isso muitas vezes relacionado aos acidentes de trabalho, como ocorreu no xVI Congresso Nacional de Prevenção de Acidentes, realizando no Rio de Janeiro em 1975.25 Na construção pesada, a principal causa de acidentes eram as quedas, havendo também casos com quedas de ganchos, objetos e torres, choques elétricos, desmoronamento de barrancos e de valas, além de acidentes envolvendo maquinário, desabamentos, explosivos, estruturas provisórias e materiais radioativos.26 Alguns acidentes na construção pesada durante a ditadura vieram a público, como situações envolvendo vários mortos na construção da ponte Rio-Niterói, Usina Hidroelétrica de Itaipu e outros grandes empreendimentos. Um caso ocorreu no metrô do Rio de Janeiro em 1978, com “o colapso da lança de guindaste no centro, na Cinelândia; o incêndio nos alojamentos dos operários e o rompimento da laje no Centro de Manutenção, que matou dois operários e feriu muitos outros”. 27 Nesse mesmo trecho da obra, tocado pela empresa Cetenco, havia denúncias de má qualidade das refeições dos operários e “maus tratos infligidos por guardas de segurança que policiam os canteiros de obras e tratam os operários como delinquentes”. 28 Na rodovia dos Imigrantes, realizada junto a encostas da serra do Mar, operários fugiram temendo “novos deslizamentos de terra no canteiro, que ocorreram por falta de contenção”.29 A partir de uma análise quantitativa, Maria Klausmeyer verificou em sua tese de doutorado que a maioria dos acidentes de trabalho na construção civil ocorria com serventes, os operários em nível mais subalterno na hierarquia da indústria da construção. Entre os vitimados por acidentes, as estatísticas eram mais elevadas entre os operários com 20 a 25 anos; entre os que possuíam de um a dez anos de profissão; e entre os que estavam de três meses a três anos na empresa. Além disso, dos acidentes no setor, 52% 24 Ibidem, out. 1975, n. 93. 25 Ibidem, nov. 1975, n. 94. 26 Ibidem, nov. 1974, n. 82. 27 Ibidem, mar. 1978, n. 122, p. 16. 28 Ibidem, p. 3. 29 Ibidem, fev. 1975, n. 85, p. 5. 198 • ocorriam entre os operários que não possuíam formação profissional formal.30 Assim, com essas informações, é possível definir um perfil geral das vítimas de acidentes de trabalho na construção civil naquele período. Eram em geral funcionários jovens, pouco experientes, com reduzido tempo de empresa, sem qualificação formal, mal remunerados e expoentes dos níveis mais básicos da estrutura do canteiro de obra. Dessa forma, verificamos que a perversidade e regressividade econômica e social vigente no país naquele período e típica do regime e do setor se expressavam também nos acidentes na construção civil durante a ditadura. As vítimas eram, sobretudo, os funcionários mais frágeis da indústria. Eram comuns também os acidentes em empreendimentos imobiliários urbanos, apesar de não gerarem tantas vítimas por vez quanto na construção pesada. No final da ditadura, a imprensa passou a noticiar de maneira mais frequente os casos e, no início dos anos 1980, foram divulgadas matérias em jornais cariocas sobre morte de operário em obra em Niterói, outra no Guarujá, uma por rompimento do cinto de segurança no 33º andar da torre do Rio Sul, no Rio de Janeiro (obra a cargo da Odebrecht), dentre outras. Quando a vítima era o operário, as repercussões do acidente eram limitadas, o que não ocorria quando o lesado estava além dos muros do canteiro, principalmente em certas regiões da cidade. Em 1981, uma pedra foi lançada de dentro de um canteiro no Leblon e matou um homem que passava pela rua. O caso teve grande divulgação na imprensa e um operário do empreendimento, de responsabilidade da Gomes de Almeida Fernandes (Gafisa), foi a público admitir sua “culpa”, afirmando que tinha ingerido bebida alcoólica e, por isso, agira incorretamente, levando ao lançamento do objeto. Com a culpabilização do peão da obra, ele recebeu a punição e o caso foi encerrado.31 Esse último exemplo é representativo de uma característica comum no setor no período, a culpabilização do operário pelos acidentes. Em cada incidente no canteiro, o empregador era obrigado a preencher uma Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e nela punha os motivos para o ocorrido. Maria Klausmeyer notou que a maioria dos acidentes tinha como causa registrada “atos inseguros” realizados pelos funcionários. Em seu estudo quantitativo, as motivações principais assinaladas para os acidentes eram ações impróprias, inadequadas ou inseguras por parte dos operários, além de imprudência, negligência, distração ou desatenção. A culpabilização recaía sobre o indivíduo e sua personalidade.32 30 KLAUSMEYER, Maria Luiza Cristofaro. O peão... op. cit., p. 55-140. 31 Apud KLAUSMEYER, Maria Luiza Cristofaro. O peão... op. cit., p. 55-140. 32 Idem. • 199 Essa marca era visível nas obras públicas e, segundo a revista O Empreiteiro, os acidentes no setor ocorriam por “atos inseguros – e aqui entra a questão da automatização”. 33 A revista, bancada por fabricantes de equipamentos, dava como solução para as altas taxas de acidentes o uso de mais máquinas. Em outra edição, matéria da revista repetiu a mesma alegação: “No Brasil, praticamente [sic] noventa e oito por cento em cada cem acidentes são provocados por atos inseguros, por condições inseguras ou pelos dois fatores em conjunto”.34 O que se nota na ditadura é que, além de culpabilizar o operário pelo acidente do qual ele foi vítima, a displicência com os equipamentos de segurança no canteiro era um bom negócio para os empreiteiros. Diante da situação política, sindical e da limitação dos organismos fiscalizadores, era lucrativo para as empresas manter obras sem aparatos de segurança adequados para o operário. A Lei Orgânica de Previdência Social (Lops), de 1966, que criou o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), implantou um seguro para os trabalhadores que sofriam acidentes, sendo que o custo de manutenção do operário, após 15 dias de afastamento, não onerava o patrão. 35 Quem acabava arcando com o afastamento dos operários de licença eram os próprios trabalhadores, com suas poupanças compulsórias descontadas na folha de pagamento. Com isso e com a precária fiscalização ao cumprimento das normas, era lucrativo para o empresário não prover segurança adequada ao trabalhador. A respeito disso, a revista O Empreiteiro afirmou: “É fato notório que há empresas construtoras [que] preferem pagar multas por falta de materiais de segurança na obra, do que instalá-los no canteiro”. 36 O que o periódico não informava era que as multas eram raras e seus valores, módicos. Em outra edição, matéria sobre o alto número de acidentes afirmava que dentre as obras tocadas por empreiteiras, “[...] a segurança em geral é limitada e entravada por ser considerada antieconômica”.37 Segundo um empresário entrevistado por Mirian Rocca, havia normas do Ministério do Trabalho para garantir a segurança do operário, mas, para ele, “seguir todas as regras complica muito”.38 Nesse mesmo sentido, 33 Revista O Empreiteiro, nov. 1974, n. 82, p. 3. 34 Ibidem, ago. 1981, n. 164, p. 3. 35 ANDRADE, Eli Gurgel. O (des)equilíbrio da previdência social brasileira, 1945-1997: componentes econômico, demográico e institucional, p. 45-83. 36 Revista O Empreiteiro, set. 1976, n. 104, p. 3. 37 Ibidem, nov. 1974, n. 82, p. 16. 38 Empresário entrevistado por ROCCA, Miriam Cantelli. Uma das faces do capitalismo... op. cit., p. 66-7. 200 • empresários explicavam a não adoção de equipamentos de segurança pela redução na rentabilidade: “existe um custo para que efetivamente se implante a segurança, para que funcione. Do ponto de vista da produtividade, não parece alterar. Portanto, absorver esse custo não é válido”.39 E o trabalhador era culpabilizado pelo não uso dos equipamentos: “O peão dá mais valor quando paga a bota ou o capacete. Caso contrário, ele não cuida do material, perde, vende, quebra etc.”.40 Entrevistando operários, Maria Klausmeyer verificou em uma obra que estucadores trabalhavam sem cinto, que a maioria das obras não tinha Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), que acidentes não levavam a afastamento ou não eram notificados e que não havia cursos de segurança.41 Com o alto índice de acidentes na construção, o governo, em vez de reforçar a fiscalização e multar empresas fora das normas, determinou, em 1976, que o INPS destinasse 2% da receita do seguro por acidentes de trabalho para financiar sem juros a compra de equipamentos de segurança pelas empresas.42 Assim, o aparelho de Estado entrava com crédito subsidiado para proporcionar equipamentos que deveriam constar como obrigatórios nos canteiros. No final das contas, as políticas do Estado ditatorial brasileiro, além de potencializar os lucros pela política salarial e demais medidas voltadas para a classe trabalhadora, impulsionaram também os acidentes de trabalho, ao transformá-lo em um bom negócio do ponto de vista empresarial, e as próprias tentativas de atenuar os índices de acidentes ocorriam em detrimento dos recursos públicos. Diante do caráter público e flagrante dos acidentes de trabalho e sua elevação ao longo do regime, houve movimento para dar resposta à tendência e algumas medidas foram tomadas para atenuar as estatísticas. Apesar dessa movimentação no aparelho de Estado, nenhuma decisão incorreu em radical alteração das posturas dos empresários para proporcionar um adequado sistema de segurança ao trabalhador ou em onerar substancialmente os empregadores pelos acidentes ocorridos com os operários. Uma primeira decisão foi a convocação, em 1976, pelo Ministério do Trabalho, do I Congresso Nacional de Prevenção de Acidentes na Construção (Conpac). 43 Após essa iniciativa, medidas foram tomadas para tentar reduzir os acidentes no setor. Em dezembro de 1977, o decreto-lei n. 6.469 estabelecia a responsabilidade técnica da 39 Ibidem, p. 67. 40 Ibidem, p. 68. 41 KLAUSMEYER, Maria Luiza Cristofaro. O peão... op. cit., p. 55-140. 42 Revista O Empreiteiro, jun. 1976, n. 101. 43 Idem. • 201 empresa de engenharia, que ficava sujeita a ser chamada aos tribunais para assumir responsabilidades legais e indenizar as vítimas dos acidentes. 44 Apesar do caráter aparentemente duro da deliberação, não houve substantiva modificação nas condições de segurança ou grave punição das empresas. A partir das mobilizações dos operários, a velocidade do processo de implantação de aparatos de segurança no canteiro se modificou. Com as agitações no ABC paulista, em 1978, o editorial da revista O Empreiteiro sentenciou: “Talvez num prazo menor do que muitos imaginam, os empresários terão que sacrificar uma parte dos seus lucros na melhoria das condições de trabalho dos seus operários”.45 A revista passou a evocar a melhora das condições de vida, segurança e trabalho dos operários no canteiro, alertando para os seus benefícios em produtividade. A movimentação dos operários e o fato de o tema da segurança no trabalho constar nas pautas de reivindicações das mobilizações e greves, na passagem das duas décadas, levaram a mais medidas do governo federal. Em 1978, uma portaria do Ministério do Trabalho determinou a criação de comissões internas para prevenção de acidentes em todos locais com mais de cinquenta empregados. Além disso, o decreto n. 68.255, de fevereiro de 1981, criou em caráter emergencial a Campanha Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho.46 As mobilizações dos trabalhadores e as medidas estatais tiveram respostas diferenciadas nas empresas. Enquanto a maioria tentava manter as mesmas relações com os trabalhadores existentes nos anos mais duros do regime, outras encamparam o tema da segurança do trabalhador e a minimização dos acidentes. A paulista Adolpho Lindenberg lançou a revista Cal-CIPA, com normas de higiene e segurança para os canteiros.47 Em 1979, construtoras cariocas, como a Carvalho Hosken, Veplan, João Fortes e a Servenco, promoveram a Semana de Prevenção de Acidentes, com cursos para os operários e instrução sobre equipamentos de segurança. E a também carioca Wrobel orientou os operários sobre segurança e parece ter sido pioneira no cumprimento estrito das normas legais já implantadas em países mais avançados, propondo ainda a “democracia interna na construtora.”48 44 Ibidem, mar. 1978, n. 122. 45 Ibidem, jun. 1978, n. 125, p. 3. 46 Ibidem, ago. 1981, n. 164. 47 Ibidem, ago. 1978, n. 127. 48 KLAUSMEYER, Maria Luiza Cristofaro. O peão... op. cit., p. 55-140; revista O Empreiteiro, n. 207. O caso foi analisado por Nilton Vargas em A prática da fraqueza e da ‘discordância’: a participação dos trabalhadores na gestão de uma construtora. 202 • Apesar dessas iniciativas localizadas, tomadas em função da pressão operária e para dar aparência de “modernidade” junto ao governo e à população, as condições de trabalho e segurança dos operários da construção se mantiveram em um nível precário durante a transição política dos anos de 1980, quando as mobilizações operárias foram cada vez mais intensas, chegando às grandes revoltas dos últimos anos do regime. Dessa forma, a política específica desenvolvida pela ditadura para o tema da segurança do trabalhador e a atuação nos casos de acidentes de operários, em particular no setor da construção civil, incorreu em benefício dos empresários do setor. A economia de custos com os equipamentos e protocolos de segurança fazia com que as empresas tivessem gastos limitados e maiores possibilidades de margens de lucro, sendo esse um dos fatores que contribuiu para a construção civil ser extremamente lucrativa para as firmas que atuavam no setor. A combatividade dos operários da construção, que exigiram maior atenção e cuidado com as condições de alimentação, alojamento, trabalho e nível salarial nas suas atividades foi responsável pela melhora das condições nos canteiros, principalmente a partir do final da ditadura. Mesmo assim, o setor até hoje é marcado por seus acidentes e óbitos no ambiente de trabalho, tendo em vista os episódios recentes envolvendo grandes empreendimentos no país no início do século xxI. Essa situação parece decorrer do próprio caráter do empresariado que está à frente do ramo da construção civil no país, que constitui em geral o mesmo grupo do período da ditadura e mantém práticas similares, como a redução dos custos da obra com desleixo em relação à segurança do trabalhador. Essa prática é corroborada por um Estado que também guarda heranças e reminiscências do período da ditadura, sendo relapso em relação aos acidentes de trabalho e pouco incisivo na fiscalização da segurança do canteiro de obra. Essas similitudes da ação do Estado hoje em relação ao período da ditadura parecem decorrer da correspondência do Estado em relação a esse empresariado, apegado a práticas mantidas e cultuadas ao longo da ditadura. Esse elo entre Estado pouco fiscalizador e empresa que não se preocupa com segurança no canteiro parece que só pode ser quebrado com a própria atuação dos trabalhadores. Estes, por sua vez, com a sua organização e a ação coletiva, podem exigir das empresas o cumprimento das normas de segurança e reivindicar junto ao aparelho de Estado a fiscalização e o não conluio com os empresários do setor e suas práticas. • 203 Referências ANDRADE, Eli Gurgel. O (des)equilíbrio da previdência social brasileira, 19451997: componentes econômico, demográico e institucional. 1999. Tese (Doutoramento em Demograia) – Cedeplar/Face/UFMG, Belo Horizonte, 1999. CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais. Niterói: Eduf, 2014. COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Operário de construção civil: urbanização, migração e classe operária no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1981. ENGELS, Friederich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. 2. ed. São Paulo: Global, 1988 [1845]. FERREIRA, Carlos Ernesto. A construção civil e a criação de empregos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 1976. 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Tese (Doutorado em Sociologia) – USP, São Paulo, 1994. • 205 206 • PARTE IV TRABALHO, GÊNERO, RAÇA E SOCIABILIDADE NO MUNDO DOS TRABALHADORES • 207 208 • ÀS MARGENS DA CIDADE, ÀS MARGENS DA HISTÓRIA? PELO DIREITO À MEMÓRIA DOS TRABALHADORES DAS FAVELAS CARIOCAS Rafael Soares Gonçalves* À margem da história? As favelas do Rio de Janeiro e, de maneira mais ampla, os bairros considerados informais têm sido uma sentida ausência nas produções de cunho histórico. Há décadas que se reproduz, conforme reflexão de Brodwyn Fischer, uma espécie de presentismo em relação às favelas cariocas. 1 De certa forma, a questão dos bairros informais, no Brasil e no mundo, sempre emerge como um problema novo, mas com a mesma roupagem. 2 Essa forma de compreensão de tais espaços, como um problema a ser resolvido, acaba distorcendo o entendimento dessa realidade, comprometendo políticas públicas e perpetuando formas específicas de intervenção. Os espaços informais se manifestavam como parte provisória da cidade e estavam condenados a acabar diante do desenvolvimento da sociedade. O caráter provisório e emergencial desses espaços trouxe evidentemente questionamentos quanto à reflexão histórica sobre tais áreas. Como construir a história de algo que não deveria existir e estava condenado a desaparecer? Como pensar no passado de algo que não tinha futuro? Ora, apesar de consideradas ilegais, as favelas do Rio se consolidaram na paisagem carioca. Como analisa Ananya Roy, 3 é preciso alterar os discursos apocalípticos e diatópicos sobre esses espaços e compreender que são locais de habitação, convivência, cultura e práticas políticas. Tais espaços ainda são bastante estigmatizados e relativamente negligenciados pelos anais da teoria urbana, o que reforça a importância de uma reflexão sobre a abordagem histórica da cidade informal. Pesquisar a história das favelas e resgatar a memória dos seus moradores se manifesta como algo imprescindível para a formulação de novas políticas públicas para esses locais. A formação das cidades latino-americanas e, em especial brasileiras, foi influenciada pela enorme articulação entre seus * Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil. 1 FISCHER, Brodwyn. A Century in the Recent Tense. Crises, Politics, and the Intelectual History of Brazil’s Informal Cities, p. 50. 2 GONÇALVES, Rafael Soares. Da teoria da marginalidade à luta pela permanência: apontamentos iniciais sobre a luta pelo acesso à água nas favelas cariocas. 3 ROY, Ananya. Slumdog Cities: Rethinking Subaltern Urbanism. International Journal of Urban and Regional Research, p. 224. • 209 espaços formais e informais.4 No entanto, a reflexão histórica sobre suas experiências cotidianas ainda é incipiente. Considerar, por exemplo, as favelas como áreas de “urbanização espontânea” é negligenciar as múltiplas formas de arranjos políticos, inclusive – e sobretudo – do próprio Estado na formação, expansão e consolidação desses espaços. Muitas questões sobre o cotidiano dos seus moradores ainda demandam respostas: quais eram as estratégias de produção e gestão desses bairros, as formas de autoconstrução, as lutas pelo acesso aos serviços públicos, as estruturas associativas e recreativas e/ou as lógicas de interpenetração das formas jurídicas nas práticas locais de regulação? A importância da reflexão histórica sobre a experiência cotidiana se explica pelo fato, como sublinha José de Souza Martins,5 que o cotidiano não tem sentido divorciado do processo histórico que o reproduz. É claro que construir a história desses bairros exige um esforço do pesquisador na busca por fontes, sobretudo diante do vazio dos arquivos sobre os trabalhadores favelados. Como analisamos em trabalho anterior,6 a classificação e arquivamento de documentos são atos políticos. São extremamente precários os fundos sobre as lutas e o cotidiano dos moradores dos bairros informais e periféricos. É muito interessante sublinhar que uma das expressões mais criativas de mobilização política pela cultura nas favelas atualmente é a criação de museus locais. A memória é um espaço de luta 7 e passa pela consolidação de lugares de memória.8 Podemos citar, por exemplo, o museu das favelas da Maré, da Rocinha, do Cantagalo ou do Horto. 9 A experiência de museus nas favelas dialoga com o entendimento de Ulpiano Menezes, que afirma que “certos espaços, paisagens, estruturas, monumentos, equipamentos – enfim, áreas e objetos sensíveis do tecido urbano, socialmente apropriados, percebidos não só na sua carga documental, mas na sua capacidade de alimentar as representações 4 FISCHER, Brodwyn. Introduction. In: FISCHER, Brodwyn; MCCANN, Bryan; AUYERO, Javier (ed). Cities from Scratch. Poverty and Informality in Urban Latin America, p. 7. 5 MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples, p. 89. 6 GONÇALVES, Rafael Soares; AMOROSO, Mauro; BRUM, Mario. Habitação e direito à cidade: favelas, subúrbios, periferias e assentamentos informais. 7 POLLACK, P. Memória, esquecimento, silêncio. 8 NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. 9 Podemos citar também os inúmeros projetos de história oral em parceria com universidades e organizações não governamentais, como, por exemplo, os pioneiros projetos Condutores de Memória, organizados pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), nas favelas do bairro da Tijuca, e os projetos de história oral, conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no complexo de favelas de Manguinhos. 210 • urbanas”. 10 Tais experiências possibilitam uma reflexão sobre novos conhecimentos do urbano, conduzindo a novas formas de abordagem da história da cidade. Trata-se, assim, como analisa, ainda, Garcia,11 de um esforço de superar uma visão esquemática e reducionista, que procurava apresentar uma história oficial das cidades, através dos dados e falas dos que a governam, compondo-se uma narrativa linear e homogênea sem apreender as descontinuidades e confrontos. Nesse sentido, o esforço em constituir a especificidade do “lugar” é um elemento central, sobretudo em relação às favelas, cujas representações tendem a generalizar, de forma negativa, as práticas ali existentes. De certa forma, arquivar ou não documentos sobre esses bairros é reconhecer seu lugar na história e na própria cidade. Quem realiza estudos nas áreas em questão sabe da dificuldade em encontrar fontes administrativas sobre esses locais. Enquanto isso, os seus moradores possuem a prática da guarda de documentos, principalmente como ato político. Como citamos em um trabalho já mencionado,12 uma promessa de compra e venda, uma correspondência recebida no passado, a carteira de vacinação dos filhos ou uma antiga fotografia são formas de comprovar, por exemplo, uma situação residencial em uma linha de temporalidade, ato muitas vezes usado como contraponto a uma situação não regularizada de residência. Isso pode fazer toda a diferença em negociações que tem geralmente em sua ponta extrema uma remoção de lares. A questão do acesso às fontes documentais impõe muitas vezes criatividade do pesquisador, assim como o interpela a buscar novas metodologias de pesquisa. Muitos trabalhos sobre tais espaços se baseiam em um esforço de reconstituir a memória desses locais a partir de um rico diálogo entre fontes documentais de acervos públicos e pessoais, com a etnografia, a história oral ou a própria geografia. Fazer a história desses espaços não somente desconstrói as representações negativas que lhes são associadas, assim como é um elemento central na construção de direitos. A informalidade urbana, segundo Ananya Roy, 13 é um modo de produção da cidade e não se resume absolutamente a dicotomia legal e ilegal. Se os bairros informais se consolidam como tal é porque existe um processo histórico de criminalização dessas áreas e seus habitantes. No entanto, outras realidades urbanas, associadas à elite e que também poderiam ser 10 MENEZES, Ulpiano apud GARCIA, Luiz Henrique Assis. Intervenção museal no espaço urbano: história, cultura e cidadania no parque ‘Lagoa do Nado’. História. 11 GARCIA, Luiz Henrique Assis, op. cit. 12 GONÇALVES, Rafael Soares; AMOROSO, Mauro; BRUM, Mario, op. cit. 13 ROY, Ananya, op. cit.. • 211 caracterizadas como informais, são autorizadas e, muitas vezes, mesmo regularizadas. O espaço construído, como sustenta Marcos Mello e Arno Vogel14 é, portanto, um elemento constitutivo da própria cultura e confere ao modo de vida vigente o seu caráter peculiar. É preciso, assim, compreender o espaço construído das favelas cariocas como verdadeiros sistemas de memória, que se apresentam, ao mesmo tempo, como uma espécie de arquivo do modo de viver ali estabelecido, assim como agente produtor de novos modos de vida. Para o pesquisador, esse diálogo permite desemaranhar os fios condutores de narrativas de um passado marcado por experiências e mobilizações políticas, que normalmente não constam em manuais oficiais ou livros didáticos de História. Descrever o cotidiano de vida e de lutas desses moradores denota, de certa forma, um ato político de resistência pelo direito à memória e ao passado. Como indagamos em trabalho anterior, 15 será que o direito à cidade não passa em primeiro lugar pelo direito à memória? Tornar esses espaços objetos da história suscita um debate ampliado sobre como a sociedade preserva as fontes a partir das quais se construirão narrativas sobre o seu passado, o que permitirá, certamente, melhor compreender os seus desafios atuais e futuros. Dessa forma, o presente artigo questionará, em primeiro lugar, as representações negativas associadas às favelas e suas repercussões sobre a formação e consolidação desses espaços. Procurará, ainda, compreender, de um lado, como a informalidade urbana paulatinamente se tornou uma forma de planificação urbana e, de outro, como o mencionado presentismo no trato das favelas cariocas ainda se faz presente de forma a considerá-las como o principal problema urbano do Rio de Janeiro. Espaços informais, precários e marginais? É comum descrever, como citamos acima, as favelas como espaços de urbanização espontânea, consolidadas nas franjas da legalidade e epicentros da marginalidade. As favelas e seus moradores sempre estiveram associados a uma espécie de risco: desde o epidêmico até ao social, ambiental e/ou estético. O plano urbanístico da cidade do Rio de Janeiro de 1930, coordenado pelo arquiteto francês Alfred Agache, definia, por exemplo, as favelas como uma lepra urbana, “que suja a vizinhança das praias e os bairros mais graciosamente dotados pela natureza, desde os morros do seu 14 MELLO, Marcos; VOGEL, Arno. Sistemas construídos e memória social: uma arqueologia urbana. Revista de Arqueologia, p. 49ss. 15 GONÇALVES, Rafael Soares; AMOROSO, Mauro; BRUM, Mario, op. cit. 212 • enfeite verdejante e corroe até as margens da mata na encosta das serras”. 16 O arquiteto advogava a proibição de construções estáveis e definitivas nas favelas, já que a única solução para elas era a destruição total. Esse mesmo discurso se reproduziu sistematicamente no decorrer dos anos e, de certa forma, ainda é parcialmente presente nos dias atuais. Carlos Nelson Ferreira dos Santos17 airmou, por sinal, que os moradores de favelas, historicamente, foram acusados de muitos males urbanos, verdadeiros e/ou imaginários, tornando-os “sujeitos de culpa atribuída”. Assim, como bem pontuam também Anthony e Elizabeth Leeds,18 as favelas cariocas não podem ser compreendidas como “enclaves dentro da cidade”. É preciso entender as favelas muito além da aparente precariedade de suas construções. A moradia, de acordo com o pensamento de John Turner,19 deve ser compreendida como um processo e não simplesmente como unidade de habitação. Nessa mesma direção corrobora Carlos Nelson Ferreira dos Santos,20 quando sublinha que a “questão do morar e, em particular, a questão do morar para os pobres é, pois, o relexo, em um nível e em uma determinada instância particularizada, de um processo histórico mais geral”. No entanto, tais espaços, como sublinhamos em trabalho anterior, 21 foram sistematicamente associados à precariedade, assim como seus moradores foram constantemente considerados marginais. O primeiro recenseamento das favelas cariocas, promovido pela Prefeitura do então Distrito Federal, em 1948, descreve de maneira extremamente negativa os moradores das favelas e chega a fazer referência direta ao eugenismo: Muitas considerações já foram tecidas relativamente à eugenia, mas as autoridades competentes têm mostrado certas reservas no trato dos diversos fatores suscetíveis de melhorar a raça humana. O assunto permanece em suspenso. Para os nossos propósitos, tomaremos os favelados essencialmente como são constituídos e examinaremos o que deles se pode esperar de acordo com as realidades, tanto sob o ponto de vista econômico como o social e moral.22 16 AGACHE, Alfred. Cidade do Rio de Janeiro: remodelamento, extensão e embelezamento, p. 190. 17 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A desordem é só uma ordem que exige uma leitura mais atenta. Revista de Administração Municipal, p. 12. 18 LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth. A sociologia do Brasil urbano, p. 87. 19 TURNER, John. Vivienda, todo el poder para los usuarios: hacia la economía en la construcción del entorno, p. 79. 20 SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos, op. cit., p. 10. 21 GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. 22 PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL. Censo das favelas: aspectos gerais, p. 11. • 213 Podemos citar, ainda, o relatório do Instituto de Pesquisas e Estudos de Mercado (Ipeme), de 1957, que fez considerações sobre as populações negras e os migrantes do Nordeste brasileiro, que compõem historicamente grande parte da população favelada. Intitulado A vida mental dos favelados do Distrito Federal, o relatório procurou investigar a causa dos comportamentos dos moradores das favelas e argumentou que o subconsciente do favelado carrega: não apenas tendências surgidas do seu substrato étnico, mas também, as que nasceram ao longo dos séculos ou milênios de uma vida ancestral (...) não é por acaso, mas por razão racial, que os nordestinos são mais belicistas que os outros; não é por causalidade, mas por pressão subconsciente do animismo central que os pretos produzem duas vezes mais macumbeiros que os brancos ou os mulatos; e não se deve a contingências sociais o fato de uma apreciável porcentagem dos favelados, antigos camponeses ou ilhos de camponeses, terem conseguido, apesar da sua miséria, converter-se em pequenos proprietários.23 Nesse sentido, autores, como Oscar Lewis,24 identificavam que os valores rurais dos migrantes eram incompatíveis com a vida urbana na América Latina. No entanto, segundo Turner, os observadores mais afeitos ao trabalho de campo constataram, no contexto latino-americano, que “muitos favelados – em algumas regiões a grande maioria – não são camponeses ignorantes e recém-chegados, mas famílias da classe operária capazes e ativas, embora pobres”. 25 Segundo o mesmo autor, “sem uma cuidadosa qualificação, é impossível a generalização”.26 Valentine, por sua vez, insiste que a reflexão de Lewis generaliza essa realidade e carece de reflexão empírica e desembaraçada de preconceitos. O mesmo autor ressalta a importância de se “buscar as origens das condições atuais examinando a evidência histórica”.27 No caso específico do Rio de Janeiro, contrapondo às representações negativas mencionadas no recenseamento de 1948 ou no relatório do Ipeme, Maria Laís Pereira da Silva constata que, a partir dos dados do censo do IBGE de 1950, 23% dos favelados eram operários das indústrias 23 IPEME, A vida mental dos favelados do Distrito Federal, p. 31 apud ALMEIDA, Rafael Gonçalves. Favelas do Rio de Janeiro: a geograia histórica da invenção da favela, p. 215. 24 LEWIS, Oscar. La cultura de la pobreza. 25 TURNER, John. Vivienda, todo el poder para los usuarios: hacia la economía en la construcción del entorno, p. 272. 26 Ibidem, p. 269. 27 VALENTINE, Charles. La cultura de la pobreza, p. 135. 214 • de transformação, enquanto que, no conjunto da cidade, esse número só chegava a 13%. 28 Em pesquisas realizadas nas favelas da região do bairro da Tijuca desde 2010, recolhemos vários relatos de moradores sobre a relação das favelas com as fábricas do seu entorno. Muitos ali trabalhavam e a vida associativa dessas favelas esteve profundamente articulada com estruturas sindicais.29 Ora, grande parte do operariado carioca vivia nos bairros do subúrbio, mas também habitava as favelas espalhadas pela cidade, destoando das representações negativas impostas aos favelados da época. Outro aspecto controverso do pensamento de Oscar Lewis era o mecanismo de autoperpetuação da marginalidade da sua noção de cultura da pobreza.30 Valentine31 airma que as descrições de Oscar Lewis dos casos de famílias porto-riquenhas não pareciam representativas da realidade local, mas, sim, casos extremos e isolados de desvios. Os trabalhos de William Mangin,32 dessa mesma época, já iam de encontro ao fatalismo da cultura da pobreza e mostravam o alto grau de organização comunitária adaptativa das populações localizadas em bairros informais na América Latina. Não cabe aqui retomar uma crítica às teorias da marginalidade, mas constatar que tais teorias trouxeram grande impacto nos conhecimentos, atitudes e planos de ação dos poderes públicos em relação aos bairros informais e seus moradores.33 Podemos citar, por exemplo, para o caso do Rio de Janeiro, a fala da então secretária de Serviços Sociais do Rio de Janeiro, Sandra Cavalcanti, que, defendendo o projeto de erradicação de favelas iniciado em 1962, afirmou: “Não se tratava mais de urbanizar as favelas, mas os favelados”.34 O discurso civilizador marcou esses espaços como patológicos e justificou toda sorte de arbitrariedades. Os conceitos evocados pela noção de marginalidade tornaram-se a justificativa teórica de muitos programas de assistência social na América Latina que, de fato, apenas perpetuaram o status quo em nome da “ajuda aos pobres”.35 28 SILVA, Maria Laís Pereira da. Favelas cariocas, 1930-1945, p. 110. 29 Um dos casos mais notórios foi a Fundação da União dos Trabalhadores Favelados, no morro do Borel, pelo advogado comunista Antoine de Magarinos Torres, em 1954. Ver GONÇALVES, Rafael Soares; AMOROSO, Mauro. União como acesso à cidade: a UTF entre a história e a memória do movimento associativo de favelas do Rio de Janeiro. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. 30 PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro, p. 151. 31 VALENTINE, Charles. La cultura de la pobreza, p. 64. 32 Apud ibidem, p. 66. 33 Ibidem, p. 74. 34 Entrevista concedida e publicada em FERREIRA, Américo; OLIVEIRA, Lucia Lippi. Capítulos da memória do urbanismo carioca, p. 88. 35 PERLMAN, Janice E. O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro, p. 149. • 215 A informalidade como forma de planejamento urbano Apesar do esforço de uma reflexão histórica sobre as favelas, a ideia de associar tais espaços a toda espécie de risco ainda é presente. O economista peruano Hernando de Soto, conhecido pelas suas campanhas pela formalização dos bairros informais, através da distribuição massiva de títulos de propriedade, afirma que a difusão da propriedade pode ajudar “a solucionar a mais gritante e persistente reclamação sobre a expansão do pobre urbano – a necessidade de ‘lei e ordem’”. Para o autor, o direito à propriedade engendraria finalmente o respeito à lei.36 Por sua vez, Mike Davis, em seu livro sobre a expansão das slums ao redor do mundo, afirma que “as grandes favelas de hoje são incubadoras singulares de novas e ressurgentes doenças, que podem agora viajar pelo mundo com a velocidade de um avião a jato”. 37 Ele afirma, ainda, que, politicamente, o setor informal, na falta de respeito aos direitos trabalhistas, é “um reino semifeudal de comissões, propinas, lealdades tribais e exclusão étnica”.38 Segundo Roy, 39 Mike Davis reforçou o senso comum que associa, sem maiores problematizações, a informalidade à pobreza e concebe tais espaços como o protótipo global de um entreposto do rural-urbano pobre e marginalizado pelo ajustamento estrutural e a desindustrialização. Ora, tais reflexões são limitadoras da realidade desses locais e parecem retomar reflexões amplamente criticadas desde os anos de 1960. Nesse sentido, o presentismo, mencionado no início deste artigo, se manifesta, mais uma vez, como a forma de pensar e “solucionar” a questão das favelas. A reflexão histórica, insistimos, se manifesta como um elemento imprescindível para compreender as lógicas e práticas desses espaços. As formas de ocupação dos bairros informais não se limitam necessariamente a ocupações de terrenos por autoconstrução. Como analisamos anteriormente,40 muitas favelas cariocas se formaram também a partir de loteamentos irregulares ou tiveram alguma forma de negociação do solo ou da casa, sem contar práticas recorrentes de cobrança de 36 SOTO, Hernando de. O mistério do capital: por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo, p. 227. 37 DAVIS, Mike. Planeta favela, p. 153. 38 Ibidem, p. 185. 39 ROY, Ananya. Why India Cannot Plan its Cities: Informality, Insurgence and the Idiom of Urbanization, p. 82. 40 GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. 216 • aluguéis. 41 Essas áreas foram sendo toleradas, mas não escapavam ao controle do Estado. Os raros elementos de formalização normativa visavam a retirar toda responsabilidade do Estado e, assim o fazendo, o Estado as condenava à precariedade. Constroem-se, assim, um quadro teórico de rejeição a essa forma de urbanização com a elaboração dos instrumentos de sua precarização jurídica. A consolidação do urbanismo é mais uma expressão, dentre tantas, das formas de intervenção do Estado na sociedade. Se o urbanismo, através de suas teorias, planos e normas, vai definir o que seria o modelo de cidade e sociedade, ele acaba, por contraposição, a definir também aquilo que não estaria conforme tal projeto. Assim, a noção e o conceito de bairros informais, com todas as suas diferentes denominações regionais, se constrói necessariamente em diálogo com a reflexão teórica sobre o urbano e as elaborações normativas sobre a cidade. A grande novidade aqui seria o urbanismo com seus esforços de planificação, normatização e, sobretudo, classificação do espaço urbano. A emergência de bairros informais, como as favelas, não se explica como o surgimento de novos modos de produção do urbano, mas de esforços de relegar à irregularidade modos de produção já existentes. Desse modo, no caso do Rio de Janeiro, apesar das favelas terem sido consideradas ilegais desde sua origem, a sua formação é comparável à formação de muitos bairros operários de subúrbio de outras cidades ao redor do mundo. O que as distingue dos demais bairros operários é que elas foram rapidamente condenadas à ilegalidade. É preciso ultrapassar a compreensão que esses espaços são o grande problema urbano, mas entender a informalidade atribuída a esses locais como uma forma de planejamento urbano. Não se trata aqui de advogar que essa forma de produção do urbano seja a solução de nossas cidades, mas é imprescindível compreender a importância de construir políticas públicas que dialoguem com essa realidade, compreendendo que a informalidade exerce uma função social e permite, paradoxalmente, o acesso à cidade a uma importante parcela da população carioca. Isso explica a razão das formas de mobilização política dos moradores das favelas se voltarem historicamente para a permanência nos seus locais de moradia e não se mostram, ao menos no caso das favelas 41 GONÇALVES, Rafael Soares. Le marché de la location informelle dans lês favelas de Rio de Janeiro et as régularisation dans une perspective historique; VAZ, Lílian Fessler. Modernidade e moradia: habitação coletiva no Rio de Janeiro nos séculos xIx e xx, descreve que muitas atividades dos donos de cortiços se transferiram para as vertentes dos morros próximas a essas construções, ou seja, muitas favelas nasceram com alguma forma de aluguel do solo ou mesmo das construções. • 217 cariocas, necessariamente inclinados para reivindicar a formalização desses espaços. Se a forma de acesso informal à moradia dificulta aos moradores terem os mesmos direitos usufruídos pelos demais cidadãos, garante, paradoxal e precariamente, o acesso à cidade, o que seria extremamente difícil pelas formas de direito à moradia via mercado ou produção estatal de habitação. A informalidade seria, de certa forma, um arranjo político complexo e se configuraria, indiretamente, em uma forma de planejamento urbano. As favelas cariocas, como já citamos anteriormente, garantiram a uma parcela importante da classe trabalhadora um acesso privilegiado à cidade. A reticência dos moradores de favelas às políticas de habitação tem sua origem nas suas práticas cotidianas em relação à moradia e que, para eles, repetimos, permanecer no bairro era a primeira exigência. Ora, compreende-se, aqui, que as favelas não se manifestam necessariamente como uma etapa dentro de um pretenso percurso ascendente urbano padrão dos migrantes. É fácil, por exemplo, encontrar gerações da mesma família em uma favela, inclusive com sinais claros de ascensão social das gerações mais jovens. As políticas públicas de moradia possuem muitas vezes um caráter coercitivo, exercendo um forte controle sobre os seus beneficiados e, em muitos casos, reforçando a segregação espacial. Topalov descreve, em relação ao caso francês, que políticas sociais, tais como as de moradia, se explicavam mais pelo projeto educativo coercitivo em relação aos trabalhadores urbanos do que como respostas às pressões reivindicativas desses últimos.42 O que é importante reforçar aqui, para o caso das favelas cariocas, é que a mobilização política em torno do direito à cidade passava necessariamente pelo esforço em consolidar a própria favela no tecido urbano, o que implicava na reivindicação pela instalação de equipamentos públicos, redes de serviços coletivos, assim como na própria ressignificação simbólica desses espaços no seio da polis. É bastante significativo que as primeiras associações de moradores se chamavam frequentemente “Uniões Pró-melhoramentos”, identificando que a reivindicação política se pautava no esforço de melhorar e consolidar o lugar onde viviam. Em que pese à ausência de planos urbanísticos na formação dessas áreas, tais espaços não escapam do controle dos poderes públicos. O grau de tolerância e a falta de controle por parte dos poderes públicos se explicam muitas vezes por um cálculo político complexo e podem variar de acordo com o contexto histórico. O que se observa é que a informalidade 42 TOPALOV, Christian. Da questão social aos problemas urbanos: os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século xx, p. 27. 218 • integra plenamente as práticas de planejamento urbano do Estado. Como sustenta Ananya Roy, 43 o próprio Estado opera de maneira informal, ou seja, a informalidade não é um domínio sem regulação, mas estruturado através de formas variadas de regulação “extralegal, social e discursiva”. Trata-se, assim, de um modo de produção do espaço. Não há nada de casual ou espontâneo no cálculo da expansão ou controle da informalidade. A natureza estrutural da informalidade é, por si só, ainda segundo Ananya Roy, uma estratégia de planejamento.44 Esses “bairros informais” apresentam características no seu tecido urbano e social, que refletem o seu processo de formação. No entanto, as suas particularidades não podem conduzir a uma reflexão que os separe do restante da cidade. As favelas no Rio de Janeiro estão profundamente articuladas tanto em suas dimensões socioeconômicas quanto em suas dimensões políticas com o restante da cidade. A sua precariedade jurídica não é um aspecto marginal, mas a chave analítica para compreender o seu funcionamento. A irregularidade dessas áreas é justamente o espaço de emaranhamento de interesses privados e coletivos. Mais do que a formalização desses espaços, a permanência passa pela construção – física e simbólica – de lugares de vida. Os poderes públicos exercem historicamente uma política ambígua de tolerância precária das favelas. 45 Existe obviamente uma dimensão informal das políticas urbanas. 46 É preciso se questionar como modalidades de planejamento podem produzir justamente o que é considerado como não planejado. As formas de exceção e tolerância podem estrategicamente serem utilizadas pelos planejadores para mitigar o déficit de moradia e garantir o direito à cidade. Roy e Al Sayyad 47 utilizam o termo informalidade urbana para indicar uma lógica organizacional, um sistema de normas de regulação dos processos de transformação urbana. Roy afirma, ainda, que a informalidade não é um setor em separado, mas uma série de transações, que conectam diferentes economias e espaços umas às outras. 48 43 ROY, Ananya. Las metrópolis del siglo xxI: nuevas geografías de la teoría, p. 167. 44 ROY, Ananya. Why India Cannot Plan its Cities: Informality, Insurgence and the Idiom of Urbanization, p. 82. 45 GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas do Rio de Janeiro: história e direito. 46 ROBINSON, Jennifer. Ordinary Cities: Between Modernity and Development; ROY, Ananya. Urban Informality Toward an Epistemology of Planning. 47 ROY, Ananya; AL SAYYAD, Nezar. Urban Informality: Transnational Perspectives from the Middle East, Latin America, and South Asia (Transnational Perspective on Space and Place). 48 ROY, Ananya, op. cit. • 219 Conclusão Apesar das inúmeras críticas contundentes à noção de marginalidade, as representações negativas das favelas do Rio de Janeiro ainda são bem presentes e sempre ressurgem, com outras roupagens, como matrizes para explicar o fenômeno das favelas.49 A título de exemplo, podemos citar o editorial do jornal O Globo, de 2 de maio de 2015, que afirmou que as favelas são um grande desastre da cidade e que as iniciativas “civilizatórias da prefeitura” atual “irão por água abaixo se a prefeitura ficar leniente diante de novos focos de favelização acelerada”, ou seja, a noção dualista que favelas e seus habitantes estão à margem da civilização continua bem clara. O mesmo jornal, em editorial do dia 10 de maio de 2015, afirma que a favelização “é uma chaga que prejudica a cidade sob qualquer ângulo que se olhe”. O mesmo editorial expressa que essas comunidades, à margem da cidade legal, são terreno propício para se tornarem “santuários da criminalidade”. Se, por descuido, esquecermos de observar a data da publicação dessas reportagens, poderíamos nos questionar se elas são efetivamente atuais. Parece que, infelizmente, as representações negativas associadas às favelas e seus habitantes pouco mudaram no tempo. Enfim, a espécie de presentismo no trato da cidade informal, que fizemos alusão no início deste artigo, continua sendo extremamente atual. 50 Essa forma de abordar a realidade das favelas generaliza certas afirmações e descontextualiza o cotidiano de luta e resistência dos seus moradores. Se tal abordagem pode se manifestar em políticas que evoquem o retorno das remoções de favelas, pode paradoxalmente estar presente também em políticas de urbanização e regularização dessas áreas. O perigo é que tais intervenções continuem a compreender essas áreas como um estágio em um pretenso desenvolvimento urbano linear. Isso se manifesta, por exemplo, em termos simbólicos, no projeto de urbanização de favelas do Rio de Janeiro dos anos de 1990, chamado Favela-Bairro. A intenção implícita na denominação do projeto conduz à compreensão que seria necessário superar as características de favela para que essas áreas alcançassem enfim o status de bairro. De certa forma, o próprio termo “urbanizar favelas” é problemático, já que afirma indiretamente que as favelas não são ainda propriamente urbanas, ou seja, não fazem parte efetiva da cidade. Não se trata aqui tampouco, insistimos, de afirmar que as favelas são a solução urbana da cidade. A reflexão histórica do surgimento e 49 GONÇALVES, Rafael Soares. Da teoria da marginalidade à luta pela permanência: apontamentos iniciais sobre a luta pelo acesso à água nas favelas cariocas. 50 FISCHER, Brodwyn. A Century in the Recent Tense. Crises, Politics, and the Intelectual History of Brazil’s Informal Cities. 220 • desenvolvimento dessas áreas mostra-se cada vez mais importante como ferramenta para a construção de políticas inovadoras, que compreendam a função social exercida pela informalidade. Nesse contexto, fazer a história das favelas é reconhecer finalmente que elas e seus moradores não precisam ser urbanizados, pois já fazem parte da cidade. Referências AGACHE, Alfred. Cidade do Rio de Janeiro: remodelamento, extensão e embelezamento. Paris: Foyer brésilien, 1930. ALMEIDA, Rafael Gonçalves. Favelas do Rio de Janeiro: a geograia histórica da invenção da favela. 2016. Tese (Doutorado em Geograia) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2016. DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006. FISCHER, Brodwyn. Introduction. In: FISCHER, Brodwyn; MCCANN, Bryan; AUYERO, Javier (ed). Cities from Scratch. Poverty and Informality in Urban Latin America. 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Já uma leitora feminista implica que tal leitora tem uma postura política, ou seja, exerce sua cidadania como uma verdadeira feminista que signiica uma prática de vida, portanto, consciente da discriminação sexual contra a mulher.”(Clélia Reis Geha, Unicap)1 Ao investir na criação da expressão “genderizando/genderizar”,2 que não existe nos dicionários de língua portuguesa, agi de forma interpretativa e consciente da especificidade do meu gênero como uma construção social e cultural, visando desnaturalizar as distinções entre os sexos. “Genderizar” o cotidiano é uma subversão construtiva; é incorporar a dimensão das relações de poder existentes e o aspecto relacional entre mulheres e homens, articulando-o com as diferenças de classe, raça, etnia e geração. Como historiadora consciente de sua inserção em um tempo específico, observo as demandas sociais e femininas que emergem por meio das ações dos sujeitos em várias instâncias e de suas agências,3 sugerindo não só novas questões a serem enfrentadas, como a necessidade de retomar aquelas que ficaram no limbo da história. São problemas que se relacionam com * Livre docente em História no Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília, Brasil. 1 Ver LEIRO, Lúcia. Mulher e literatura (blog). 2 Reconheço-me como uma leitora feminista, diferenciando-me pela consciência que tenho de mim mesma frente às questões sociais, culturais e políticas que me atingem diretamente e, muitas vezes, me excluem como sujeito. Reconheço que me iz feminista em um processo de descoberta como pessoa que precisou romper com as representações do feminino socialmente construídas, na medida em que decodiiquei o meu “ser/estar”, o meu ”gênero”, como agente da minha própria existência. Assim, tomei de empréstimo e recriei o termo “genderizando” a partir do artigo de Mariana Bonat Trevisan, que analisa a legitimação do poder da monarquia do mestre de Avis e a relação da caracterização feminina da cidade de Lisboa pelo cronista Fernão Lopes, no século XIV. TREVISAN, Mariana Bonat. A cidade “genderizada”: Lisboa e o contexto de airmação política da dinastia de Avis no século XV. História. 3 Entendo essa categoria como uma forma mais complexa do papel dos sujeitos nos processos sociais, com formas de organização, fora da atuação do Estado, em movimentos de reivindicações coletivizadas e especíicas, no alcance de maior representatividade e de enfrentamento das desigualdades. Ver ORTNER, Sherry. Poder e projeto: relexões sobre agência. In: GROSSI, Miriam Pillar; Eckert, Cornelia; Fry, Peter. Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas, p. 45. • 225 o presente vivido e que, pelas mudanças paradigmáticas, possibilitaram a introdução de outros olhares, outras categorias analíticas, sem deixar de manter o vínculo com o passado dado. Assim sendo, questiono aquele movimento linear da história tão defendido pelo discurso civilizatório do progresso, como aquela lógica mecânica de tempo. Não seriam aquelas perspectivas responsáveis por muitas conclusões equivocadas e pistas deixadas sem respostas? Invisto, portanto, na retomada das construções existentes na historiografia, inclusive as consideradas recentes, para colocar o que vejo e sinto à luz de outros conflitos e tensões que emergem no cotidiano de uma sociedade cada vez mais plural, globalizada e complexa. Olhando atentamente, percebo os desconfortos de ausências explicativas cabíveis, e mesmo da crítica apurada, ao retomar as antigas perguntas. Situação essa que me coloca diante da necessidade de revisão das certezas e das afirmações até então feitas, para destrinchar os silêncios da história. A partir dos anos de 1980-90, historiadores produziram, não por acaso, ferramentas analíticas e uma diversidade teórica rica que, a princípio, enfrentaram os questionamentos metodológicos existentes e os modelos paradigmáticos abstratos e universalistas que homogeneizavam os comportamentos e a vida cotidiana. Passou-se a considerar as experiências dos indivíduos, mulheres e homens concretos, com identidades e subjetividades, vivendo distintas relações com a vida que corre e se altera constantemente diante das transformações macroeconômicas e sociais de um processo de mudanças que recebe respostas e apropriações diversas. Com as preocupações voltadas para o entendimento dos comportamentos, das práticas culturais, da presença das formas simbólicas que nos envolvem e fazem com que as pessoas deem sentido ao seu mundo é que foi possível observar as variações de perspectivas individuais e a polifonia que ampliaram as múltiplas abordagens históricas. O saber hermético e acadêmico existente foi enfrentado em suas epistemologias e ficaram evidentes as relações de poder do discurso científico: a ciência não é e nunca foi neutra. Ela tem um lugar e sempre foi conduzida pela mente de alguns. Para compreender o lugar das mulheres nas preocupações acadêmicocientíficas, retomo a década de 1970, quando a perspectiva feminista fundamentada nos escritos de Simone de Beauvoir, de 1949, com a publicação em francês do livro O segundo sexo, se fez ouvir na academia e com efeito no mundo das ciências em geral, a partir da frase bombástica da autora: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. De pronto, o feminismo científico, liberal/igualitário levantou a bandeira de uma igualdade plena entre os sexos, ignorando naquele momento que, 226 • entre homens e mulheres, havia distinções de pensar e agir. As mulheres, embora existentes na academia, eram pensadas como um bloco de pessoas semelhantes, e deveriam agir como os homens; portanto o seu ingresso exigia que se adequassem, aceitassem o que existia, como fundamentos, métodos científicos e objetos de pesquisa. Nos anos de 1980, nos Estados Unidos, aquela premissa foi rebatida pelo feminismo da diferença, com ênfase na observação de que os determinismos culturais, mais que os biológicos, mantinham as mulheres em sua condição de subalternidade, reforçada nas representações construídas de papeis sociais e normas que elas nunca escolheram ou para a qual nunca foram consultadas. Na condição de mulheres intelectuais e também acadêmicas, passaram a recuperar outras qualidades que, até então, a sociedade ocidental tinha desvalorizado como sendo o “feminino”, tais como subjetividade, cooperação e empatia.4 Nesse processo revelador dos silêncios e das desigualdades também as aulas, os currículos de ciência, as teorias, os laboratórios e as prioridades dos programas de pesquisa passaram a ser revistos. Foi justamente na década de 1990, ao ingressar no meu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com uma pesquisa sobre as mulheres no espaço ferroviário,5 que tive contato com toda essa gama de discussões das feministas, principalmente as diferencialistas. E, ao subjetivar as identidades assumidas em minha trajetória, tomei consciência das dificuldades a serem enfrentadas para conciliar as tarefas domésticas com a de mulherintelectual-profissional. Como permanecer assumindo as atribuições de esposa, mãe, dona de casa em horário quase integral com as atividades e exigências de pesquisadora? Como criar um espaço de trabalho de consulta e de análise de uma vasta documentação de arquivo existente nos escritórios remanescentes da estrada de ferro Noroeste do Brasil/NOB e ainda realizar as viagens a São Paulo para cursar as disciplinas? É evidente que não foi sem conflitos nas relações conjugais e, principalmente, sem a revisão das idealizadas representações da maternidade. Para começar, me vi diante de categorias/conceitos que, em geral, pareciam sinônimos. O senso comum as utilizava de maneira indistinta. Logo percebi que possuíam significados diferentes em suas concepções teóricas e seu uso, tais como: mulher, um indivíduo específico; mulheres, conjunto de indivíduos específicos que vivem uma determinada realidade histórico-social e profissional, não sendo possível tratá-las de maneira 4 SHIEMBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? 5 Minha tese de doutorado foi defendida em 2000 na USP, com o título Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. • 227 homogênea – são plurais; gênero, a categoria analítica que veio evidenciar as relações assimétricas, de poder e relacional entre homens e mulheres e que diferenciava a atribuição das práticas sexuais. Ainda existia o termo feminino, ao referir-se aos comportamentos idealizados das mulheres com variações e determinações históricas, e feminista, o mais temido e estereotipado desde o tempo das sufragistas. Essas mulheres, consideradas para uma minoria como vanguarda no final do século XIX, ao exigirem ser “sujeitos de direito político” e ter acesso ao voto, foram identificadas como “não mulheres”, rebeldes e com muitos estereótipos. Identificadas como mulheres assexuadas, fora de padrão da norma e possuidoras de uma afecção típica do final do século XIX: a “histeria”.6 Foram alvo de investigação por médicos como Freud, o criador do método da psicanálise por meio do uso da fala, da criação de um espaço onde elas possuíam um interlocutor, embora ainda fossem tratadas com grande resistência por parte dos homens médicos em geral. Como docente em uma universidade pública paulista a partir de 1995 e com um projeto de pesquisa para conduzir sobre as mulheres no mundo ferroviário que adentrava o sertão de São Paulo em meados do século XX, fui levada pelo interesse pessoal e, posso dizer, curiosidade em desvendar uma situação constrangedora: por que as mulheres, ao romperem com o espaço privado – o recôndito do lar – e decidirem ocupar outras funções no espaço público ou mercado de trabalho, recebiam adjetivos desqualificadores, principalmente de conduta? Transformavam-nas em “mulheres públicas”, sinônimo de prostitutas. Em uma das entrevistas que fiz, cheguei a ouvir de um funcionário da NOB por que eu queria pesquisar as mulheres nesse mundo dos trens, lugar de homens, de “macho” (sic). Elas existiam, sim, mas eram “todas vagabundas”, ele reforçou! Essa frase ficou gravada em minha mente e foi norteadora de toda a pesquisa. Surpresa com sentença tão eloquente do interlocutor para a qualificação de mulheres que “trabalhavam fora de casa”, tive a possibilidade de acessar uma produção científica considerada feminista, a começar pelo ensaio de Joan Scott.7 Esse texto me levou a recusar pensar as mulheres e os homens como entidades separadas e definidas pelo seu aparato biológico. Se “gênero” diferenciava os papéis sexuais das práticas sociais atribuídos a ambos, também acentuava as conexões e as hierarquias explícitas e 6 As histerias desaiavam a classe médica; no caso, estou falando de Viena. Um comportamento típico feminino era enfrentado como um enigma associado à análise de que elas estivessem possuídas pelo demônio”. MOLINA, Artur José. O que Freud dizia das mulheres, p.76. 7 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. A discussão sobre “gênero” chegou ao Brasil por meio da publicação dessa obra, cujo título original era Gender: a useful category of historical analyses 228 • implícitas que significavam a existência de relações de poder, as assimetrias na sociedade. Para tanto, eu deveria estranhar não só identidades atribuídas, mas também as instituições políticas, religiosas e seus discursos. Envolvida com as leituras das feministas estadunidenses, que no Brasil encontravam ressonância nas lutas e resistências contra a Ditadura Militar (1964-1984) e nos movimentos das Diretas Já,8 passei a pensar as mulheres como uma ideia, uma categoria construída socialmente. A pesquisa foi intensa e constou de análise de documentos como prontuários, relatórios, correspondências oficiais, publicações de ferroviários e de entrevistas. Com a certeza de que localizei o meu discurso como historiadora e para me deter na temática proposta da mesa redonda “O mundo dos trabalhadores e seus arquivos”, vou me ater às mulheres na condição de “ferroviárias”, que identifiquei nos escritórios remanescentes da NOB, 9 na cidade de Bauru (1906-1957), uma vez que esse arquivos existiam e ainda eram utilizados pelas(os) funcionárias(os) e aposentadas(os) da Rede Ferroviária Federal S.A.10 Com a atenção voltada para localizá-las na documentação da NOB, enfrentei uma primeira dificuldade: todos os prontuários foram organizados a partir de sobrenomes que recebiam uma numeração protocolar. Logo teria que consultar cada um. Missão quase impossível diante do tempo e da minha disponibilidade. A alternativa foi viabilizar a pesquisa por meio de outros indícios, pistas que me confirmassem a existência feminina no mundo dos trens e trilhos. 8 Foi um movimento político democrático que ocorreu em 1984 com grande participação da sociedade, em que compareceram os segmentos populares, artistas, intelectuais, funcionários públicos etc. As mulheres se izeram presentes nos comícios e passeatas. Apesar de não conseguirem a votação da ementa por eleições diretas, em janeiro de 1985 tivemos eleições indiretas e Tancredo Neves foi eleito para a Presidência da República. 9 Essa ferrovia apresenta característica própria: ela nasceu a partir da cidade de Bauru, em 1906, e dirigiu-se ao Mato Grosso devido à expansão cafeeira. Em conjunto com a Cia. Paulista e a Sorocabana, duas outras ferrovias paulistas que chegaram à região em 1910, transformaram a cidade em um amplo entroncamento ferroviário no interior paulista. A vila de Bauru, localizada na “boca do sertão” e transformada em sede de município em 1 de agosto de 1896, com uma população de 7.815 indivíduos, emergiu com potencialidades entre 19061960. Como zona de passagem, trânsito, comércio e negócios, foi também espaço de muitos bordéis que atendiam a região, sendo conhecida também pela sua “zona do meretrício”. AGROQUISA: Os frutos da terra, p. 17. 10 Em 16 de março de 1957, a então E. F. Noroeste do Brasil (atual Novoeste, inclusão minha) foi incorporada à Rede Ferroviária Federal S.A. e, em 30 de outubro de 1969, passou a integrar o Sistema Regional Centro-Sul da RFFSA, hoje Superintendência Regional de São Paulo, que também agrupa a Superintendência de Produção de São Paulo (ex-Santos-Jundiaí). Em 1995, a RFFSA, com toda a rede da Noroeste, foi transferida para o grupo da Illinois Central Railway, dentro do programa de privatização promovido pelo governo FHC. POSSAS, Lidia Maria Viana. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista, p. 22. • 229 Lendo um livreto de autoria de Schoppa,11 encontrei a publicação de vários contos, “causos” e boatos que formavam a base social e cultural das construções dos mitos, das alegorias no mundo ferroviário e que lhes garantiam as raízes de uma comunidade de sentidos que defendiam como ser ferroviários. Um dos “causos” era este: Uma mulher desejava ser admitida na estrada, mas não havia verba. Morrendo o burro, admitiu-se a mulher, pagando-lhe com a verba destinada à alimentação do animal. Essa mulher icou conhecida como: a funcionária que entrou na vaga do burro. O “causo” da mulher que almejava ser admitida na ferrovia não tem referência precisa quanto à sua temporalidade cronológica nem uma localidade específica para lhe conferir veracidade. Porém ele está garantido pelo lastro cultural ferroviário que se reforça na narrativa reproduzida e que alcançou os mais diversos segmentos e regiões atingidas pelos trens e trilhos, tornando-se fato peculiar, investido de crédito, pela reprodução do relato. Além disso, a história tem sua peculiaridade ao evidenciar as representações e as relações sociais que estão ali contidas, manifestando as diferenças e as desigualdades entre os sexos. A condição feminina é uma delas. Veiculada no “causo”, expõe uma situação de inferioridade, de subordinação de um “segundo sexo”.12 A mulher, colocada no mesmo patamar de valorização de um animal, o burro, tornou-se, portanto, digna de ser apresentada de forma anedótica. Penso que a sua peculiaridade está justamente em ser um episódio que não envolveu um ferroviário, o que afastaria a possibilidade de se transformar em um “causo”, ou seja, não teria elementos para ser absorvido pela comunidade de sentidos e tornar-se relevante ao ponto de ser contado, pois não estaria revelando algo inusitado, nos limites do absurdo, como, por exemplo, constatar a presença de uma mulher que queria trabalhar fora de casa, no espaço público, ainda mais na ferrovia, local por excelência de vivência e prática masculina. Reconheço que demonstra uma situação singular, “uma coisa miúda”, porém me permitiu observar as relações de gênero, a oposição masculino/feminino em nível de representação e, principalmente, a discriminação da inserção da mulher no mundo do trabalho como algo desqualificável, onde seu valor pessoal e profissional é visto de maneira acidental e excludente. 11 SCHOPPA, Renê Fernandes. Humor ferroviário. 12 Expressão criada por Simone de Beauvoir em 1949, no título de seu livro lançado naquele ano. 230 • Prosseguindo na pesquisa, localizei o registro do primeiro grupo de 16 mulheres que foram admitidas como funcionárias da ferrovia.13 Foi em um bloco de prontuários de contratações individualizadas entre 1918 e 1929. Ocuparam as diversas seções departamentais que faziam parte do complexo sistema de divisões14 administrativas implementadas, após a NOB ter sido incorporada ao governo da União em 1919. As mulheres exerciam as funções que exigiam conhecimento prático e assumiram as áreas de telegrafia, telefonia, contabilidade, fazendo a escrita, transcrição de faturas e manifestos, e com utilização do recurso da datilografia. Nesse momento, não há qualquer alusão a concursos de seleção ou comprovação de escolaridade superior à quarta série do ensino básico, práticas que se transformariam em critérios após os anos de 1930. Também ingressaram como prestadoras de serviços, na função de “lavadeiras”, contratadas temporariamente e recebendo por dúzia de roupas lavadas para os carros-restaurantes ao longo dos trilhos, ou para dar vazão ao serviço nos hospitais inaugurados pelo novo serviço sanitário da ferrovia, diante do aumento dos índices de mortalidade por malária.15 Tanto para aquelas funções burocráticas como para as dos serviços hospitalares, a visibilidade na ferrovia é quase imperceptível nesse período inicial. Primeiro, porque eram admitidas para serviços em que permaneciam reclusas a maior parte do tempo, em lugares isolados – as cabines telefônicas e salas do telégrafo – e de acesso apenas às chefias imediatas. Segundo, ao executarem tarefas de lavadeiras, faziam-no em setores também afastados do contato coletivo dos hospitais, ou até mesmo levavam as roupas para lavar em casa. 13 Trata-se dos prontuários no setor de pessoal. Elas não são identiicadas, como tal, nos relatórios anuais oiciais. 14 Ao encampar a NOB, o governo federal ampliou a exclusiva responsabilidade em gerenciar o “pesado bloco ferroviário” do país. Essa transferência foi tida como um mau negócio, pois se tratava de uma estrada de ferro inacabada, com pontes de madeira, sem segurança de linha, material rodante obsoleto, deiciente, em estado precário diante do aumento considerável e intenso do tráfego. Para tanto, a NOB foi reorganizada em quatro divisões administrativas, de modo a abranger todo o complexo ferroviário que compunha: I Divisão, Escritório Central, situado em Bauru, compreendendo diretoria, secretaria, contadoria, serviço sanitário, contabilidade, almoxarifado, a cabeça da ferrovia, centro de decisões e controle inanceiro; II Divisão: relacionado ao tráfego, com toda a gestão sobre o setor de pessoal e material; III Divisão, que administrava a linha, com todo o material permanente, estações, residências das turmas de trabalho e os edifícios; IV Divisão, que cuidava da locomoção, com todo o material rodante, os trens e trilhos. POSSAS, Lidia Maria Viana. Relatórios da NOB de 1928 e 1929. Op. cit. 15 Em 1919, Araçatuba/SP concentrava o maior número de mortes. Dentre os 775 trabalhadores internados, 462 foram salvos da malária. NEVES, J. Correias. História da estrada de ferro Noroeste do Brasil, p. 56. • 231 Diante de sua pouca representatividade numérica e não tendo a oportunidade de maior sociabilidade nos grandes espaços coletivos da ferrovia, as mulheres não participavam das atividades essenciais diárias e posso dizer que foram alvo de uma imagem e representação – “eram todas vagabundas” –, que perdurou mesmo depois de 1937, quando os concursos passaram a legalizar o acesso de todos os funcionários públicos, incluindo as mulheres, e com uma lista que divulgava as notas das provas e as habilidades dos ingressantes. Essa imagem inicial se manteve na memória de muitos ferroviários, como foi constatado nas entrevistas que realizei. A permanência dessa alusão teve efeitos duradouros na trajetória das mulheres ferroviárias e dos seus novos papéis, que não eliminaram os tradicionais – os papéis prescritos – advindos da vida doméstica. As dificuldades de relacionamento com o sexo oposto, em uma condição paritária de colegas de trabalho, a procura de atitudes que configurassem os reais valores que defendiam, os constantes assédios, muitas vezes indelicados e grosseiros, o atendimento às ordens de tarefas, dadas em um volume extremo, apressadas e sem muita lógica, tudo isso evidenciou como a imagem da mulher fora reforçada nesse universo dos trens e trilhos. Sua presença, no entanto, não poder ser ignorada, como um assunto sem importância, uma vez que as experiências vividas pelas mulheres no mundo ferroviário produziram relações intensas, quase sempre marcadas por conflitos diários, deixando indícios sobre o processo de industrialização do país e suas peculiaridades. Não se encontra uma explicação para os critérios pelos quais elas foram designadas justamente para as tarefas de telefonia, de escuta, de transmissão da fala à distância. Apenas penso, pelas evidências por mim levantadas, que a partir das primeiras décadas do século XX a profissão de telefonista tornou-se uma atividade de domínio pleno do sexo feminino. 16 Por coincidência ou não, um editorial da revista A Cigarra, de 1918, também indagava sobre essa exclusividade feminina no uso do telefone, sendo ele “uma das maiores invenções do homem”, chegando mesmo a levantar uma hipótese: haveria nessa profissão “uma natureza tagarela e bisbilhoteira?”. 17 Foram nove as mulheres que iniciaram suas experiências na vida ferroviária por meio da relação com essa profissão. Extensão da vida doméstica privada, da “menina de recados” que sabia como transmitir as informações, com a lisura, o cometimento do sigilo, tão exigido pelos pais e maridos? Ou realmente eram as mudanças operadas no universo da 16 MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.) História da vida privada no Brasil República: da Belle Époque à Era do Rádio, p. 404. 17 Idem. 232 • modernidade tecnológica que o país, ou melhor, a cidade de São Paulo vivia tão intensamente? Ou, ainda, o modismo de estar dentro das “profissões modernas”, que ofereciam novas oportunidades para quem se adaptasse às novas técnicas e equipamentos?18 Ruptura, ousadia na perseverança em ocupar o espaço público, ampliação da cidadania, modismo proveniente da modernidade ou necessidade de sobrevivência, as mulheres acabaram por fixar-se em um espaço quase informalizado do mercado de trabalho, com relações bem definidas e papéis prescritos para ambos os sexos. No entanto elas enfrentaram outras circunstâncias reveladoras de situações adversas ao que elas até então tinham desempenhado. O ambiente nos escritórios era austero e disciplinador, embora ainda permanecesse com fortes influências das relações de pessoalidade e reciprocidade, resultado dos conchavos e solicitações coronelísticas, ambiente que o acesso das mulheres não modificou. E elas tiveram de aceitar e se adaptar. Com a intervenção do governo federal a partir de 1919, a NOB tornouse mais uma “repartição pública”,19 com todos os vícios que, desde os tempos imperiais, faziam do Estado o grande acolhedor dos problemas pessoais e domésticos em virtude das práticas eleitoreiras vigentes e da manutenção dos currais eleitorais, na figura do político regional, o mandachuva da região. Assim, o acúmulo de pessoas em hierarquias cada vez mais inchadas, pela redundância das funções nos quadros de serviços, não permitia grandes interações pessoais e acabava por aguçar os conflitos. As salas começaram a ficar abarrotadas de mesas e cadeiras para dar lugar para todo mundo. Tinha aquele apadrinhado de ciclano, amigo de beltrano, o filho ou parente de futuro procurador ou desembargador e até mesmo de ferroviárias que tinham costas largas.20 18 Um novo sentido de viver as práticas cotidianas diante dos avanços tecnológicos, materializados pelo consumo de produtos como o automóvel, pelo mercado de acessórios como a vitrola, que alterou hábitos domésticos, as injeções antigonocócicas que proclamavam “amar à vontade” e as lâminas azuis “Gilete”, que permitiram uma concreta liberdade dos homens frente aos barbeiros, tudo impulsionava a criação de outras proissões, de treinamento por meio de métodos mais rápidos, a que as mulheres puderam aspirar como datilógrafas, contadoras e secretárias. SEVCENKO, Nicolau Sevcenko, op. cit., p. 228-230. 19 Em Um trem corre para o Oeste, Fernando de Azevedo aponta as 49 companhias brasileiras de estradas de ferro que apresentavam déicit, ascendentes, segundo a publicação do próprio Ministério da Viação, sendo que um dos problemas apontados eram as constantes intervenções da política na gerência dos negócios das ferrovias. AZEVEDO, Fernando. Um trem corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacional, p. 186-187. 20 Depoimento de um escriturário, J.P.S., de 78 anos, que trabalhou na seção da contadoria, da I Divisão, neto de um ferroviário das oficinas, ao observar como a NOB garantia empre• 233 Nesse ambiente de completa liberdade para os homens, quanto aos assuntos considerados impróprios para uma plateia feminina, no uso de vocabulário e de liberdades de tratamento pessoal provenientes do ritmo que o cotidiano das tarefas burocráticas cada vez mais exigia, a intromissão das mulheres criou situações de antagonismos e privilégios que, já naquela época, passaram a gerar queixas junto às chefias, com perseguições e denúncias de atraso, ritmo lento no serviço e muita conversa, tendo início então as repreensões e punições cada vez mais severas. Até 1929, as 16 primeiras mulheres que efetivamente assumiram a condição de ferroviárias contratadas como diaristas estavam em uma faixa etária de ingresso no trabalho formal bastante ampla, variando entre 15 e 43 anos. Convém observar que 63% delas eram solteiras, 25%, casadas, apenas uma viúva e uma sem indicação de estado civil. A presença significativa de jovens, sem laços de compromisso, disponíveis e em grande parte com mais de 21 anos, o que pela lei definia o seu livre arbítrio, deve ter reforçado a ideia da sua disponibilidade para qualquer outro tipo de relacionamento que não fosse o casamento. Contrariando a versão corrente de que, nesse período, a primeira metade do século XX, as mulheres se casavam mais cedo, tanto as mais pobres como as mais ricas, e que só ingressaram na ferrovia as mais adultas, com mais experiência para lidar com as relações masculinas, como as casadas ou viúvas, por necessidade de suplementar a renda familiar, constata-se que a maior parcela é de jovens e solteiras (63%). Eram moças que rompiam com os papéis prescritos pelo Código Civil, que determinava ser o exercício profissional da mulher fora do lar uma atividade considerada legítima somente quando necessária para o sustento da família. Em seus prontuários, a mudança no nome, pelo acréscimo ou substituição de outro sobrenome, ocorre quando se casam, geralmente com a idade superior aos 24 anos. De origem de família ferroviária em grande parte (70%), essas mulheres estabeleciam uniões também no âmbito do mundo ferroviário, e com cônjuges que compartilhavam o mesmo ambiente de trabalho, os escritórios. Não havia limites ou critérios que predeterminassem o acesso do trabalho feminino, de adolescente ou adulta, na ferrovia. Como e por que razão uma mulher era admitida, seja nos escritórios, seja nas lavanderias e hospitais? De acordo com testemunhos de ilhas, ilhos ou parentes próximos, pois todas eram falecidas, elas viveram desde muito cedo experiências da vida da ferrovia de maneira concreta, tanto pelo contato e proximidade diária com os trens e trilhos, quanto pela vivência, mais afetiva, go para filhos e parentes dos políticos influentes na cidade. POSSAS, Lidia Maria Viana, op. cit. 234 • com familiares que compartilhavam toda a gama de relações de poder das cheias superiores e sofriam as arbitrariedades das ordens, desmandos e punições. Assim, muitas delas conheciam a disciplina interna que vigorava no NOB e já tinham vivido os efeitos das resistências, como as transferências compulsórias para estações isoladas no sertão de Mato Grosso. Como filhas de ferroviários, as mulheres acompanhavam os pais no exercício das múltiplas tarefas nas estações de trens e substituíam suas mães e avós na lavagem dos carros, dormitórios, restaurantes e, depois, dos hospitais, quando não faziam serviços extras como a lavagem das roupas e dos ternos dos engenheiros que iam à inspeção pela linha. Conviveram com os trens e trilhos desde a mais tenra idade, morando, comendo, respirando. Minha mãe, antes de vir para Bauru, desde os sete anos auxiliava meu pai, que foi chefe de várias estações. Ela chegava a dormir próximo à mesa de telégrafo, enquanto ele saía para resolver problemas e até mesmo viajar pela linha. Não tinha sábado, domingo ou feriado. Aos nove anos, chegou a receber da NOB algum dinheirinho, como salário.21 21 Testemunho de Nair Monte, de 74 anos, professora de inglês aposentada, ilha da primeira mulher ferroviária, Flordaliza Meira Monte (1902-1983), reg. 363, que ingressou na NOB em 1918, com 16 anos. Flordaliza era de família ferroviária, de vida itinerante pelos trens e trilhos, residindo aqui e ali, onde o pai, chefe de estação, contava com ela desde os nove anos para auxiliar junto ao telégrafo. Na infância, brincava nos trilhos e várias vezes, inclusive aos domingos, icava na sala de telefonia da estação de trem, sem receber nada. Com as promoções do pai, a família se muda para Bauru onde ixa residência. Devido aos contatos que o pai tinha, conseguiu entrar, oicialmente, para a NOB, em 15 de maio de 1918, na I Divisão, dessa vez com um salário de 200$00. Em 1920, conheceu um rapaz que trabalhava em uma seção próxima à sua e se apaixonou. Ele era Ernesto Monte, um dos moços considerados mais bonitos da NOB. Casam-se em 1923. Ela leva uma vida difícil devido aos constantes problemas e perdas inanceiras do marido, precisando assumir as despesas e a educação dos sete ilhos, apenas com o que recebia na ferrovia. Sempre muito apaixonada pelo marido, chegou a viver sozinha quando ele precisou ausentar-se da cidade, por um bom tempo. Aposentou-se, por invalidez, devido a uma bronquite crônica em 1942, após 24 anos de serviço, vindo a morrer em 1983, com 81 anos. Ernesto Monte, o marido de Flordaliza, parte para Bauru, visando ao futuro promissor que a cidade parecia oferecer devido às múltiplas oportunidades de “cidade civilizada”. Recomendado para a NOB, faz muitas relações na cidade. Vê o desenvolvimento soberbo do comércio local. Sai da ferrovia, por não ver muito futuro, compra uma loja de secos e molhados que não dura, devido aos constantes iados de seus fregueses. Participa do movimento de 1924, que lhe cria situações difíceis, obrigando-o a buscar refúgio e segurança em Santa Catarina. Interessa-se pela política local, aproximandose da oposição liderada por Vergueiro de Lorena, coronel da Guarda Nacional, um dos chefes do PRP. É eleito vereador em 1929. Com 30 anos, como vice-prefeito, assume várias vezes a prefeitura, devido aos afastamentos temporários de Lorena. Integra o grupo de voluntários da Revolução Constitucionalista de 1932. Foi ocupante do executivo local, designado de 11 a de julho de 1929; 5 de abril a 27 de outubro de 1930 e nomeado como interventor local de 7 de junho de 1938 a 24 de março de 1947. Faleceu em 15 de março de 1950, com 51 anos. POSSAS, Lidia Maria Viana, op.cit. • 235 Era muita roupa. Tudo engomadinho e muito branco. Eles eram exigentes. Não podia faltar nem por doença, que descontava. Eu era pequena, não sei bem a idade e ia com minha mãe porque não tinha com quem icar. Meu pai era trabalhador da linha e não tinha hora para voltar. Às vezes, ela dizia que eu dormia em cima das enormes trouxas de roupas e fazia bonecas, amarrando os bicos das fronhas. Às vezes para me distrair ela cantava, mas acho que não podia, porque era sempre muito baixinho. De tanto ver passar roupa, aprendi e me tornei muito boa nisso. Naquela época o ferro era de carvão e os ternos dos homens eram tudo de linho branco, sinal de elegância.22 A infância dessas mulheres, mesmo aquelas que foram para os escritórios, foi ocupada em grande parte pelo trabalho no âmbito doméstico, complementando-o com as atividades informais na esfera pública. Desde muito cedo, elas conheceram a necessidade da luta pela sobrevivência, assumindo práticas diversas, improvisações da rotina e encontrando diiculdades diante da disciplina que os horários e as hierarquias exigiam, como no caso da produção fabril na Inglaterra no início do século XIX, a que Thompson23 faz referência para explicar o momento do nascimento da consciência operária. Passam a observar as falas em voz baixa, os resmungos e as formas de resistência possível. Sabiam quem mandava, mas aprendiam que as regras ditadas podiam ter alternativas que evidenciavam as preferências, as alianças e outras possibilidades de que muitas delas izeram uso, mesmo que para isso tenham se defrontado com conlitos de valores. Enfrentaram toda sorte de assédio quando expostas ao cotidiano essencialmente masculino da ferrovia, permeado de significados sobre sua presença em um local que parecia não ser de direito delas. “Minha mãe logo viu que precisava se proteger.” Para ocultar sua identidade, assinava os telegramas que enviava e recebia como “Meira”.24 Essas formas de ocultamento foram em grande parte responsáveis pelo pouco reconhecimento do trabalho realizado pelas mulheres em diversas áreas, conforme demonstrava o censo de 1920. A ausência de informações sobre elas dificulta a sua identificação nos registros. Foi por isso que a documentação da ferrovia, suas fichas, comparadas com a dos ferroviários, até meados dos anos de 1940, não possuem todos os 22 Testemunho de M. A. T., de 78 anos, passadeira no setor da lavanderia do Hospital Sales Gomes, na Bela Vista, em Bauru, que atendia a NOB. 23 THOMPSON, Edward Palmer. Formação da classe operária. 24 N.M. sobre sua mãe, Flordaliza Meira Monte. POSSAS, Maria Lidia Viana, op. cit. 236 • dados exigidos pelos impressos, ficando muitas vezes restritas ao nome e filiação. A trajetória profissional até início da década de 1930, pelas vias internas, não pode ser regularmente verificada devido à insuficiência dos dados e às omissões frequentes. Muitas ferroviárias admitidas nos idos de 1940 ainda reforçavam essa ideia, com certo rancor e consciência de sua inferioridade: “Para sermos respeitadas, era preciso ser igual aos homens.” Essa foi uma afirmação repetida por várias das entrevistadas. Esse comportamento foi muitas vezes interpretado como uma possível homossexualidade, a existência da “mulher–macho”, não só pelo público masculino, mas também pelas próprias mulheres. O ato de fumar em público, mais comum no pós-1930, dar tapinhas nas costas ou discutir política nos corredores e, principalmente, o uso de calças compridas eram os mais fortes indícios da metamorfose que prontamente era identiicada e criticada. Havia em seus contratos de trabalho uma transitoriedade, uma vez que conseguiam flexibilizar as atividades do trabalho doméstico com o trabalho a que eram submetidas. Era comum serem chamadas, no inal do expediente, diante do chefe para que não comparecessem ao serviço no dia seguinte, alegando falta de verbas e o constante déicit da ferrovia. Depois, quando eles precisassem, em outro momento seriam de novo readmitidas. Minha mãe passou por isso várias vezes. Ela sempre tinha esperança [de] que fosse novamente chamada e isso aconteceu, pois se aposentou como ferroviária da NOB, em 1957.25 Apesar da forte presença dos homens na ferrovia, a chegada das mulheres trouxe, de imediato, alterações na rotina da vida ferroviária, seja pelas próprias condições do seu acesso, que gerou os “causos”, seja por suas atitudes e pelas novas necessidades. A título de exemplo, fez-se necessário estabelecer horários para o uso dos “mictórios”, uma vez que não existiam sanitários femininos. Os reservados icavam fora do prédio principal e possuíam vaso sanitário e mictórios coletivos. De início criaram-se os horários de uso para as mulheres, que precisaram ser demarcados pela cheia, o que causou alguns dissabores e mal-entendidos para algumas delas. O cotidiano e as relações de trabalho envolvendo essas mulheres, trabalhadoras-operárias, diaristas, podendo ser dispensadas ao final da tarefa, eram de constante tensão, provenientes das lutas entre as normas e 25 Testemunho de A.K.V., ilha de Evangelina Kruger Vieira, ferroviária admitida em 1919. A mesma situação é atestada por outra aposentada, H.M.O., de 89 anos. POSSAS, Lidia Maria Viana, op. cit. • 237 a disciplina que a ferrovia cada vez mais exigia como empresa capitalista, apesar dos vícios clientelistas existentes. Ao serem contratadas para o trabalho de lavadeiras e passadeiras em uma instituição que se moldava às regras da racionalização do trabalho produtivo, elas não conseguiam, de imediato, deixar de reproduzir o seu universo doméstico e suas práticas de trabalho informal realizado de maneira sempre muito criativa e em um ritmo próprio, quase sempre intermitente. Por isso elas eram constantemente repreendidas pela forma como conduziam as suas tarefas, com muita improvisação, devido à experiência adquirida desde a infância. A falta de atenção à rotina do trabalho, vista como falha de conduta, as ausências periódicas e as faltas na escala de serviço, dando motivo para caracterizar abandono de emprego, demonstram os motivos da suspensão de dias de trabalho sem remuneração e as inúmeras repreensões e advertências a que eram submetidas. Dessa maneira, o enquadramento das mulheres trabalhadoras na ordem ferroviária foi lento e gradual. Apesar de terem de suportar a imagem associada às “mulheres públicas” como as “vagabundas”, espécie de mulheres fora do lugar, submetidas constantemente a avaliações de competência e expostas a situações hilariantes, como os inúmeros “causos” em que foram envolvidas, enfrentaram os valores e atitudes que, ainda nos anos de 1920, a sociedade brasileira relutava em defender, e vivenciaram a resistência contra eles. Assumiram as ofertas disponíveis, com baixo nível de acesso à instrução e próximas daquelas consideradas passíveis de serem atribuições das mulheres, como telefonistas, secretárias, enfermeiras e operárias da indústria têxtil, de confecções ou de alimentos. Penetraram o universo dos trens e trilhos como “vagabundas”, tagarelas, fofoqueiras e briguentas, carregando imagens emblemáticas, papéis prescritos que se refletiam no senso comum da sociedade, mesmo diante do processo de mudanças na urbanização em curso nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. Viveram em conflitos constantes, devido a esses papéis prescritos. Muitas delas acabaram interiorizando os valores que as discriminavam: “Lá dentro, era preciso ser igual aos homens, porque ser mulher era difícil. Podíamos ser mal interpretadas...”.26 Ocultas ou visíveis parcialmente, as mulheres estiveram inseridas direta ou indiretamente no processo de desenvolvimento dos projetos viários para o país, a começar pela instalação das ferrovias e pela ampliação das redes de trens e trilhos. Estiveram atentas quando a ferrovia, visando encontrar outras alternativas para seu constante déficit, passou a atuar, 26 Nair Salles, que entrou na ferrovia em 1939. Airmações como essa estão na memória de grande parte das mulheres entrevistadas. 238 • principalmente a partir de 1930, como uma “indústria de transporte”, diversificando sua natureza com atividades paralelas: as oficinas, as construções, os hortos florestais, as cooperativas previdenciárias, a assistência médico-hospitalar, os clubes de lazer, ampliando o universo de sua atuação e modificando as relações sociais até então mantidas. O trânsito entre o público e o privado, nessas novas conjunturas, intensificou-se de tal maneira que era difícil definir seus limites, uma vez que a ferrovia e suas atribuições estavam dentro da casa e foram assumidas as experiências do vivido cotidianamente por várias gerações da mesma família. As mulheres ferroviárias, funcionárias ou trabalhadoras, têm muito que contar. Suas memórias, muitas vezes perdidas e esparsas, suas falas fragmentadas e o seu silêncio, oficializado pela ausência de documentação, contêm trajetórias, “vidas distintas, mas que transcorreram num campo comum”,27 em uma mesma atmosfera – o espetáculo dos trens e trilhos – só que elas estavam às margens.28 Hoje, aqui e agora, eu continuo “genderizando” a ideia, dizendo: as mulheres têm o direito de escrever a sua história, e de muita outras, com as suas versões, interpretações captadas às narrativas de outro tempo. Referências AGROQUISA. Os frutos da terra. São Paulo: Marprint, 1988. AZEVEDO, Fernando. Um trem corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacional. DAVIES, Natalie Zenon. Nas margens: três mulheres no século XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. LEIRO, Lúcia. Mulher e literatura (blog). Disponível em: <htp:https:// mulhereliteratura.blogspot.com.br/2011/08/o-que-voce-entende-por-leitoragendrada.html>.Acesso em: jul. 2016. MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (org.) História da vida privada no Brasil República, v. 3: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia das letras, 1998. MOLINA, Artur José. O que Freud dizia das mulheres. São Paulo: Ed. Unesp, 2016. 27 DAVIES, Natalie Zenon. Nas margens: três mulheres no século XVII, p. 189. 28 Julgo ser oportuno revelar que, em 1996, quando da privatização da NOB, as mulheres representavam uma parcela pequena dos funcionários da ferrovia, 53 (2,30%), sendo que apenas sete mulheres icaram respondendo pelo expediente da “linha remanescente”. • 239 NEVES, J. Correias. História da estrada de ferro Noroeste do Brasil. Bauru: Tip. Brasil, 1958. ORTNER, Sherry. Poder e projeto: relexões sobre agência. In: GROSSI, Miriam Pillar; ECKERT, Cornelia; Fry, Peter. Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau: Editora Nova Letra, 2006. POSSAS, Lidia Maria Viana. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. Bauru: Edusc, 2001. SCHOPPA, R.F. Humor ferroviário. Rio de Janeiro, 1998. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, 5-22 jul./dez. 1990. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático da metrópole: sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia das Letras, 1992. SHIEMBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? Bauru: Edusc, 2001. THOMPSON. Edward Palmer. Formação da classe operária, v. 3. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1987. TREVISAN, Mariana Bonat. A cidade “genderizada”: Lisboa e o contexto de airmação política da dinastia de Avis no século XV. História, Rio Grande, v. 3, n. 2, 2012. 240 • SEXO E RAÇA NO MERCADO DE TRABALHO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DO TRABALHO NO BRASIL REPUBLICANO1 Álvaro Pereira do Nascimento* Nas atividades laborais, como sabemos, as diferenças entre os agentes presentes ultrapassam a mera identidade de classe. O uso indiscriminado da categoria trabalhador, por si só, encobre as distinções de sexo, raça, etnia, crença, origem, nacionalidade e idade. Atitudes discriminatórias e de assédio moral no ambiente de trabalho também parecem estranhas sem a descrição da diversidade humana dos indivíduos identificados sob a categoria trabalhador. Há uma falsa imagem de harmonia que invizibiliza as diferenças. Recorrentemente, quando elas são flagradas ou surgem espontaneamente no cotidiano das pessoas, logo algumas delas recorrem a velhas frases para novamente afastá-las, silenciá-las e escondê-las, como se não existissem. Assim, passamos a ouvir que “somos todos iguais”, “somos seres humanos”, “raças não existem” ou, no caso do machismo e da homofobia, “não vejo diferenças entre homem e mulher”, “o cara é gay, mas não tenho nada contra”. Essas falas encobrem as possíveis discriminações sofridas por negras, mulheres e/ou homossexuais nos locais de trabalho. Conflitos cotidianos são frequentes a partir das diferenças. Essas formas de discriminação aparecem no dia a dia das atividades profissionais, determinando as progressões na carreira e até gerando perseguições e humilhações. Não à toa, tais atos enquadram-se nos crimes de assédio moral e mesmo sexual. Muito embora acordos dos Estados nacionais com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tenham produzido legislação específica sobre o assunto, condenando ou responsabilizando os envolvidos em crimes de assédio e casos de discriminação, tais ações ainda muito se repetem no mercado de trabalho. Desde a oferta de uma vaga até a pós-demissão, casos graves ocorrem sem que haja qualquer denúncia aos sindicatos ou à Justiça. Há desconhecimento e medo por parte da pessoa ofendida. Tanto a discriminação quanto o assédio são responsáveis por provocar diversos males a mulheres e homens, sejam cis ou transgênero, quando empregam suas forças de trabalho. Além da saúde abalada, a geração * 1 Professor doutor, bolsista de produtividade CNPq, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil. Agradeço a Beatriz Loner, a Antonio José Marques e aos demais colegas do evento que deram riquíssimas contribuições para este texto. • 241 ou manutenção das desigualdades sociais é um dos efeitos mais graves. Algumas pesquisas demonstram que as pessoas que mais sofrem esses males são negras e negros. As mulheres não negras também são afetadas, mas ainda mantêm cargos e salários maiores que as negras e os homens negros. Racismo, machismo e sexismo são comumente acessados para explicar as ações de empregadores, responsáveis por cargos de mando, ou mesmo de colegas que se sentam ao lado da pessoa agredida e humilhada por expressões, gestos e discursos pejorativos. O racismo tem uma longa história no Brasil, que remonta ao século xIx, cujo poder de ser reconstruído, redimensionado e ressigniicado é imenso, mantendo-se vivo entre nós até os dias atuais. Há décadas o Estado vem sendo obrigado, por movimentos sociais e pelos impactos do noticiário da grande imprensa, a enfrentar essa realidade. Nos últimos quinze anos, aproximadamente, medidas mais efetivas de discriminação positiva vêm sendo adotadas; a avaliação das metas alcançadas carece ainda de mais tempo. O machismo, a homofobia e a misoginia, por sua vez, são problemas históricos que afetam as mulheres cis e transgênero, homens transgênero, travestis, lésbicas e gays no interior das casas, nas ruas, nos espaços de trabalho e de ensino. Também aqui a ação de movimentos sociais e da mídia exerce pressão sobre a sociedade e o Estado; essa ação já demonstra resultados, embora ainda estejamos longe de criar uma sociedade mais justa e menos violenta contra essas pessoas. A naturalização dos discursos que classificam e definem os papéis sexuais e de gênero, nas relações familiares e laborais, as tornam mais vulneráveis a diversas formas de ataques criminosos, ao silenciamento, a prejuízos na carreira e à interrupção de projetos pessoais e familiares. Nossa proposta aqui é analisar, à luz de pesquisas historiográficas, as desigualdades no mercado de trabalho provocadas por formas de discriminação de raça e gênero vigentes na sociedade brasileira do século xx. Infelizmente, não detectamos dados socioeconômicos reveladores da condição enfrentada por gays, lésbicas, travestis e mulheres transgênero no mercado de trabalho; daí nos resumirmos à análise das diferenças sexuais entre mulheres e homens cisgênero. Esperamos ter um conjunto sumário da trajetória dessas discriminações, a fim de compreendermos esse longo processo histórico de construção dos direitos de cidadania para trabalhadores e trabalhadoras no país. Gênero e raça, desigualdades contínuas Com pouco mais de vinte anos, estagiando como técnico em eletrônica em uma grande empresa multinacional, presenciei uma situação ilustrativa do tema deste artigo. Em uma seleção de candidatos para estágio na área de administração de empresas – cujo estipêndio era razoável, muito próximo 242 • ao salário mínimo –, candidatou-se um rapaz que apresentou gestual e voz associados à homossexualidade, provocando em outro estagiário, já contratado pela empresa, reações de homofobia, que, aparentemente, não foram notadas pelo candidato. Aquele entrevistador era o possível futuro supervisor do entrevistado. Ou seja, eles trabalhariam juntos na mesma sala, em mesas contíguas, e discutiriam assuntos relativos ao cotidiano das atividades do setor. O candidato preencheu o formulário como solicitado, entregou o curriculum vitae e respondeu a perguntas toscas e vazias de forma clara e objetiva. Despediu-se e saiu da sala com as expectativas próprias daqueles que precisam concluir seus estudos estagiando em uma grande empresa. Seu corpo e seus gestos foram interpretados como características de homossexuais, o suficiente para que sofresse discriminação. Logo após o candidato sair, o estagiário avaliador juntou seu formulário e curriculum vitae em suas mãos e começou a rasgá-los em nossa frente, dizendo: “Aqui não trabalha viado!”. Na minha então curta vida, lembro-me de que algo me incomodou bastante. Pensei nos 11 anos de estudo daquele rapaz, ao longo de toda a educação básica, de todos os cafés que pode ter ingerido para conseguir cursar o ensino médio noturno, nos gastos e dedicação que os pais tiveram para vesti-lo, alimentá-lo, mantê-lo saudável e educá-lo ao longo de 18 anos. Mas bastou apresentar gestual e voz associados ao universo feminino, ou mesmo ser gay, para que toda a sua trajetória e futura carreira fossem interrompidas (espero que apenas momentaneamente). Aquele rapaz não teria o direito de reproduzir as suas condições materiais de existência por ser gay? Essa história mostra que não é suficiente se intitular trabalhador para alcançar empregabilidade. Essa categoria encapsula e torna homogênea a heterogeneidade de raça, gênero, sexualidade, nacionalidade, crença e idade presente na disputa por vagas, emprego e progressão funcional no mercado de trabalho ainda hoje. A definição de discriminação constante na obra de Maria Luiza Pereira Coutinho conceitua objetivamente o caso que descrevi acima: [...] entende-se discriminação como um tratamento desequiparador [sic] que decorre de preferência ilógica, fundada em carac terísticas de sexo, raça, cor, etnia, religião, origem e idade. Essa conduta, assim determinada, é vedada pelo ordenamento jurídico por ter como efeito impedir a fruição do direito à igualdade de oportunidades devido a todos. Nesses de casos, distinguir, características desigualar, pessoais, sociais preferir, ou em culturais, razão tem o significado de tratamento desfavorável dado a alguém, ou • 243 a certo grupo de pessoas; isto seria agir com discriminação 2 (grifo meu). Embora essa definição reproduza muito bem o sentido de discriminação, ela mesma está subliminarmente contaminada quando a autora afirma ocorrer o que chama de “preferência ilógica”. A preferência é lógica e profundamente alicerçada no indivíduo que seleciona uns e impede a ascensão de outros. Preferência construída nos aprendizados familiares, midiáticos, escolares e na sociabilidade com seus grupos de afinidade. A lógica da preferência, no ato de discriminar, é comumente encontrada nas páginas da historiografia. Verticalmente, há forte interesse de empresários, comerciantes, industriais e outros empregadores em discriminar, mantendo a imagem conservadora patriarcal e as diferenças salariais, explorando as diversidades de gênero e cor entre seus trabalhadores. Para atender a uma clientela branca e racista, muitos lojistas escolhem vendedoras e vendedores de “boa aparência”, um eufemismo para empregar pessoas de cor branca, jovens, magras, de cabelos lisos e narizes afinados. 3 Há, por outro lado, empregadores que justamente se apropriam dessa discriminação para obter mais lucro com a mão de obra, seguindo o mercado de trabalho e pagando salários menores a pessoas que possuem as mesmas funções que outras. É imensamente comum encontrarmos mulheres recebendo salários menores que homens, por exemplo. Na horizontalidade da prestação de serviços cotidianos, encontramos discriminação entre os(as) próprios(as) colegas. Parece hoje absurda a possibilidade de algum homem sentir-se incomodado pelo desempenho de uma mulher ou um negro que entre em um espaço antes masculino e branco. Mas esse é um dado ainda real na atualidade. E não são poucos os casos em que isso ocorre. Atacam por meio de discriminatórios termos – as ditas “piadas”, apelidos e sabotagens são formas violentas de desestabilizar a pessoa e diminuí-la frente às demais. Desconsideram o conhecimento da funcionária e tentam transformá-la na mulher cuidadora deles, cumpridora de papéis domésticos, sempre que solicitam um copo de água ou dizem “isso é coisa de mulher, eu não sei fazer”. Afora isso, vêm os casos graves de assédio, baseados em uma vulnerabilidade feminina às pretensões machistas do assediador. 2 COUTINHO, Maria Luiza Pinheiro. Discriminação no trabalho: mecanismos de combate à discriminação e promoção de igualdade de oportunidades, p. 13-14. 3 Sobre o assunto, ver DAMASCENO, Caetana. Segredos da boa aparência: da “cor” à “boa aparência” no mundo do trabalho carioca (1930-1950). 244 • Com os(as) funcionários(as) negros(as), usam-se apelidos racistas que procuram retirar sua identidade. Como são raros em cargos de gerência ou empregos mais qualificados, são geralmente chamados de “negão” ou “preta”. Há colegas que ficam anos sem conhecer o nome da pessoa. Por outro lado, tentam falar mais alto ou dar a última palavra nas reuniões; não é difícil observar a baixa recepção à fala dessas pessoas em qualquer debate no espaço de trabalho. Trabalhadores que naturalizaram o racismo, o machismo e a homofobia podem chegar às raias de utilizar formas de sabotagem para desqualificar e deslegitimar negros e mulheres negras e brancas no ambiente de trabalho, por não suportarem conviver ao mesmo lado ou acatar ordens e decisões dessas pessoas. Homens negros e mulheres sofrem assédio moral ao serem desqualificados profissionalmente, desautorizados em seus posicionamentos, oprimidos por colegas e superiores por meio de discursos humilhantes. Não à toa, o homem negro e a mulher negra ou branca (sejam cis ou transgênero) precisam se impor diariamente, muito mais que os demais colegas, para se fazerem ouvidos(as), serem reconhecidos(as) em suas opiniões e terem suas identidades respeitadas, a exemplo de Sueli, uma mulher negra que ficou sete anos no mesmo posto, treinando aqueles que seriam seus futuros chefes. [...] aí ele (o encarregado) falou: “Olha, Sueli, eu vou te falar a verdade, você jamais vai chegar a ser encarregada aqui dentro”. Eu falei “por quê?” Ele olhou bem na minha cara, cínico como ele só, e falou: “Olha, o seu problema é ser duas coisas: ser mulher e a cor”. Aquilo ali me matou por dentro, mas eu não queria dar o braço a torcer, sair de cabeça baixa chorando. Eu dei risada na cara dele, mas por dentro só eu e Deus sabíamos o quanto foi duro ouvir aquilo tudo [...]. Então eu descobri que ele era racista [...].4 Outra mulher negra, em Araxá, Minas Gerais, também foi atacada por seus superiores. A juíza de primeira instância condenou a empresa pelo grave delito abaixo descrito. De acordo com os depoimentos das testemunhas, havia um líder nesse setor que tinha preconceito contra todas as mulheres que ali prestavam serviços. Dizia que o serviço da moenda era pesado e por isso não gostava de mulheres por lá. Gritava com a reclamante e depois jogava papel no chão e pedia para ela pegar. Além disso, 4 BENTO, Maria Aparecida Silva. A mulher negra no mercado de trabalho. Estudos Feministas, p. 483. Entrevista com Sueli, que iniciou suas atividades laborais aos seis anos no campo, depois foi doméstica e operária em uma montadora. • 245 conforme informou uma testemunha, um gerente da empresa não aceitou um atestado médico apresentado pela empregada, dizendo a ela para ir trabalhar e chamando-a de “negra preguiçosa”.5 Os casos de discriminação nascem antes e até depois da passagem da mulher pelo emprego. Jacqueline Satiko Tsuji, uma jovem engenheira de Guarapuava, viu o anúncio de “engenheiro eletricista: sexo masculino” na Agência do Trabalhador da sua cidade. Mesmo assim, ela tentou a vaga, não desistiu após ouvir um “não” e denunciou a discriminação. Pensava ela que fosse uma “colocação infeliz”. Ledo engano, foi rejeitada por ser mulher. 6 No caso das transexuais, situações de discriminação também são comuns. Há imensa dificuldade de conseguirem uma vaga nas empresas privadas. Possibilidades maiores são encontradas nos empregos públicos, a partir de concursos. Mesmo assim, manter-se trabalhando é uma tarefa que pode se tornar extremamente difícil, como se percebe na história de Nilce, que trabalhava na central de ambulância da cidade de Itu, no estado de São Paulo, há 14 anos. Em 2007, resolveu assumir a transexualidade e, a partir daí, alega que sofre perseguição por parte do seu superior hierárquico, o qual não lhe determina mais serviço. Todos os dias vai ao trabalho, mas o seu empregador lhe deixa na ociosidade, ou seja, não lhe permite uma exposição, como se ela fosse uma grande anomalia que devesse ser escondida. Em primeira instância, o juiz do trabalho julgou improcedente o pedido de dano moral, eis que não vislumbrou nenhuma atitude discriminatória. Já em recurso, no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, foi reconhecido o assédio moral, icando o município obrigado a pagar o valor de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) a título de indenização.7 Como se observa, empresas vêm sendo condenadas ao pagamento de pesadas multas por atitudes discriminatórias como as relatadas acima. Responsáveis pela contratação dos agressores e por colocá-los ao lado dos ofendidos, essas empresas devem ser punidas por isso, seguir a lei e não discriminar por diferenças em geral. Assim, algumas delas vêm buscando informações sobre seus empregados e empregadas, no que tange às diferenças e às desigualdades entre eles. 5 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Trabalhadora discriminada e desrespeitada por ser mulher será indenizada. 6 PIVA, Naiady. Engenheira perde vaga por ser mulher. Gazeta do Povo. 7 SILVA, Soia Vilela de Moraes e. Transexualidade e discriminação no mercado de trabalho. 246 • O “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas – Pesquisa 2010” levantou dados de quase 624 mil pessoas empregadas na indústria, serviços, comércio, alimentação e produção agrícola. Tais levantamentos vêm sendo desenvolvidos e acumulados de dois em dois anos, para vermos variações que apontem alterações ou não no mercado de trabalho. Realizado pelo Instituto Ethos e pelo Ibope Inteligência, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e a OIT, o estudo vem revelando dados aterradores. A distância entre homens negros e brancos e mulheres e homens negras e brancas é mostrada a partir dessa pesquisa. Fonte: “Peril social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações airmativas – Pesquisa 2010”, p. 14. A pesquisa dividiu os trabalhadores em quatro esferas operacionais, verticalmente sobrepostas. Dos cargos de executivos aos quadros funcionais, a base acumula a maior parte dos trabalhadores. Percebemos que, conforme seguimos essa verticalidade, a quantidade de negros vai aumentando, ou • 247 seja, de 5,3% de participantes nos ofícios mais bem remunerados até os 31,1% dos menos remunerados. Reparem também que, mesmo na base, a quantidade de negros não chega a 50%, algo contraditório se levarmos em conta que a população negra é maioria no Brasil. Fonte: “Peril social, racial e de gênero...”, p. 12. No caso da composição por sexo, a situação não é tão mais confortável para as mulheres. Embora hoje tenhamos quantidade bem maior de mulheres nos cargos executivos do que de negros, elas estão muito distantes de alcançar os 50%. Como nos revela a pesquisa, se considerarmos a presença feminina na sociedade brasileira, percebemos que elas somam “51,3% do total da população, 43,9% da população economicamente ativa 248 • (PEA) e 42,6% da ocupada”. Isso quer dizer que “além da desigualdade há uma sub-representação das mulheres nas empresas da amostra”. Percebe-se que há variações na série histórica que vem sendo construída a cada pesquisa, mas as alterações não acenam com cenários menos desiguais em poucas décadas. Isso fica claro na fala do diretorpresidente do Instituto Ethos, Jorge Abrahão. Para ele, “no atual ritmo de evolução das participações dessas minorias nas companhias, o equilíbrio no quadro só ocorrerá em pelo menos 150 anos”. Como chegamos a esse quadro? Não há espaço aqui para discutirmos a história do sexismo e do racismo, sobre os quais há autores diversos. No entanto, há possibilidades de enunciarmos alguns vetores mantenedores das diferenças entre homens e mulheres, negros e brancos ao longo do século xx e início do xxI. Esses vetores foram gerados por pessoas que estiveram em posições deliberativas decisivas, capazes de reproduzir, depois atualizar com novos argumentos, redimensionar para forjar e executar regras heteronormativas e mantenedoras das diferenças raciais. Esses discursos partem de centros do saber e do poder (político, científico, religioso e midiático), propagamse por diversos meios de comunicação, ensino e crença e inserem-se nas conversas de pais e filhos, de trabalhadoras nas bancadas das fábricas, de passageiros nos assentos dos trens, no futebol aos domingos. Os homens e algumas mulheres que desenvolveram projetos para instituições estatais muito específicas (secretarias estaduais e municipais de educação, por exemplo) e centrais, fossem estes projetos embrionados pela própria unidade ou provenientes de diretrizes nacionais de governos da União (Ministério da Educação, por exemplo), tiveram papel determinante para a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres, negros e brancos. A imprensa também foi um instrumento utilizado por homens e mulheres para expor suas ideias e alcançar públicos diversos. A linguagem dessa poderosa máquina procurava (e procura) não gerar dissabores aos seus leitores, ouvintes e espectadores, mesmo que para isso gritantes conflitos sociais, culturais, econômicos, políticos, ecológicos e raciais tenham de se manter silenciados. Público consumidor, obviamente, que paga para ter acesso aos produtos das empresas midiáticas (novelas, noticiários) e àqueles veiculados em anúncios (classificados, propagandas). Tais discursos, embora se tornem leis, são em parte refreados pelas convicções e sentimentos de justiça e liberdade de pessoas que não coadunam com limites impostos por tais regras. São diversos os movimentos coletivos e individuais que os combatem ou cobram a universalização por • 249 parte daqueles que reservam privilégios a homens heterossexuais e pessoas brancas, exigindo igualdade de direitos mesmo entre diferentes. Veremos parte desses conflitos por meio de três momentos em que regras tentaram ser impostas. Regras estas diretamente ligadas à formação da nacionalidade brasileira no século xx. Desde o final do século xIx, encontramos ideias e propostas eugênicas e patriarcais para a pretensa construção de um país moderno e poderoso, que necessitava de pessoas prontas para esse fim.8 A mulher era parte fundamental desse processo, desde que fossem garantidas a ela as condições de ser “honrada”, condição vista como fundamental por muitos juristas para que se constituíssem e se mantivessem famílias educadas e disciplinadas. Somente assim, na visão deles, poderia o país contar com novas gerações de brasileiros aptos ao empreendimento de modernização e progresso esperado. Homens como Viveiros de Castro e Oscar de Macedo Soares, juristas influentes do início do século xx, conciliavam a ciência e a religião cristã nesse processo em defesa de suas propostas. Como descreveu Sueann Caulfield, ao estabelecer códigos “civilizados” de honra e introduzi-los nos tribunais, essa primeira geração de juristas que interpretou os códigos legais republicanos tomou para si as responsabilidades pedagógicas e eugênicas que julgavam necessárias para a ordem e o progresso da nação [...]. Eles estavam seguros de que a defesa da honra sexual no direito representava a continuação da marcha para a elevação da civilização, uma marcha que começara alguns séculos antes pelos esforços da Igreja Católica.9 Segundo a autora, esse olhar já era bem criticado por outros juristas brasileiros, como Clóvis Bevilácqua, que sofreu diversos dissabores ao ver partes do Código Civil, que redigiu, aprovado em 1916, sendo modificadas para evitar a igualdade entre homens e mulheres. Na União Soviética (URSS), a discussão ia muitíssimo além. Revolucionários como Lênin e outros pensadores da época procuravam meios de libertar a mulher das limitações dos afazeres domésticos e cuidados 8 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940), p. 89. 9 Idem, ibidem. 250 • com a família.10 Propunham a igual participação do homem naquelas atividades, reservando ao Estado a obrigatoriedade da criação dos filhos, em instituições específicas para isso e sem participação alguma dos pais no processo. Embora as ações nesse propósito tenham aberto importantes caminhos para a liberdade feminina, o sexismo ali também esteve presente, produzindo graves problemas às mulheres. Mesmo as crianças sofreram duramente, quando os rumos da revolução limitaram os cuidados com elas. No entanto, é clara a percepção de ideais e ações contemporâneas extremamente divergentes a partir das ideologias correntes relativas ao papel social da mulher no Brasil e na antiga URSS. Essa experiência na revolução russa também não retratou a realidade de milhões de mulheres europeias, asiáticas e de outros grupos sociais não ocidentais. Segundo Pitt-Rivers, esses valores familiares eram mais comuns em países “latinos”, onde a “honra como precedente era a prerrogativa dos homens, a honra como atributo moral (pureza sexual) era restrita às mulheres, e a defesa da honra feminina, uma responsabilidade masculina”.11 Colunista e romancista, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) foi uma das maiores representantes do que se chamava “mulher honesta”. Como dissera em uma entrevista a João do Rio, a famosa cronista do jornal O País entendia que a mulher teria de assumir comportamentos fundamentais para a “felicidade conjugal”: “honestidade, trabalho [...] obediência, ausência de imaginação e de vontade própria, sujeição e servidão a um só homem”.12 O reflexo desse pensamento foi espraiado para um público feminino muito maior, presente em suas colunas na imprensa da época, e mais detidamente em suas obras voltadas para crianças e moças. As principais protagonistas de seus romances, como A intrusa e Cruel amor, são moças altamente bem educadas no que tange à formação desejada para a mulher: cultas, religiosas, leitoras, pianistas, praticantes da boa etiqueta. Seu público feminino aprendeu bastante dessa forma sobre casamentos, namoros e os comportamentos exigidos de uma "mulher honesta". 10 GOLDMAN, Wendy. Mulher, estado e revolução, p. 23. Segundo a autora, “Lênin falou e escreveu repetidas vezes sobre a necessidade de socializar o trabalho doméstico, descrevendoo como o ‘mais improdutivo, o mais selvagem e o mais árduo trabalho que a mulher pode fazer’. Sem poupar adjetivos duros, escreveu que o ‘trabalho doméstico banal esmaga’ e ‘degrada’ a mulher, ‘a amarra à cozinha e ao berçário’ onde ‘ela desperdiça seu trabalho em uma azáfama barbaramente improdutiva, banal, torturante e atroiante’”. 11 PITT-RIVERS, Julian. Honor. International Encyclopedia of Social Science, p. 507 apud CAULFIELD, Sueann, op.cit., p. 86. 12 xAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino, p. 18 apud LE ROY, Luciana Faria. A representação da mulher na literatura para crianças e jovens, p. 49. • 251 Mesmo as crianças não ficaram de fora do seu público. Como descreveu Luciana Le Roy, Almeida incutiu [...] em seus pequenos leitores os avanços e retrocessos pertinentes a sua época, sempre com o intuito primordial de educá-los e moralizá-los, através de textos que funcionam como mera reprodução do universo ideológico androcrático, onde o sexo feminino, restrito ao ambiente doméstico, se encontra em condição de servidão em relação ao sexo masculino.13 Júlia Lopes de Almeida ainda expandiu outro discurso mordaz para homens e mulheres negras: o racial. Em Cruel amor, A falência, Viúva Simões, entre outros escritos, a autora adjetivava repetidamente suas personagens negras com termos racistas. Em uma passagem de A falência, descreveu os pensamentos de uma mocinha branca, a Ruth, em relação à outra menina, uma negra que trabalhava na casa de suas tias. Sabia a história da Sancha: uma negrinha vinda aos sete anos da roça para a casa das tias, com sentido no pão e no ensino. Era dos últimos rebentões dessa raça que vai desaparecendo, como um bando de animais perseguidos. E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai misericordioso, porque a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e izera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra (grifos meus). A parte em destaque é bem característica da assimilação do darwinismo social por parte de Júlia Lopes de Almeida. Apontado por Sayferth como “principal doutrina racista vigente na passagem do século”, o darwinismo social afirmava que o “progresso humano é um resultado da luta e da competição entre raças, vencendo os mais capazes (ou aptos) – no caso os mais brancos”. Sancha, como destacado na citação, é representante “dos últimos rebentões 14 dessa raça que vai desaparecendo, como um bando de 13 LE ROY, Luciana Faria, op. cit., p. 49. 14 “Rebentão”, segundo o dicionário Caldas Aulete, pode ser um “broto que nasce junto da raiz da planta e que pode dela separar-se para dar origem a uma nova planta”. O fato de a autora não empregar o termo “ilha” chamou-nos a atenção. Ainal, por que Sancha seria um dos últimos rebentões dessa raça? A planta, em um sentido igurado, parece-nos a raça negra, africana, cujo rebentão no Brasil foi parar com o trato de escravos. A mistura com raças superiores levaria à superação e ao im daqueles rebentões, pelo embranquecimento, como defendiam os cientistas. 252 • animais perseguidos”. E tudo isso se consolidava através da observação e olfato da jovem Ruth, a moça branca misericordiosa que sentia pena e repugnação diante da presença da “feia” e “ imunda” Sancha. No romance A intrusa,15 publicado em 1908, Júlia Lopes de Almeida criou outro personagem negro pelo qual podemos observar a mesma influência do darwinismo social. Feliciano, um ex-escravo, servia como criado a um viúvo abastado, que sentia falta de uma presença feminina, para melhor cuidar de sua filha e gerenciar o serviço doméstico. Alice, uma rapariga branca, pobre e de excelentes costumes, foi contratada e passou a dividir os espaços da casa, até ganhar a confiança do patrão e assumir a chefia dos serviços, pondo Feliciano em segundo plano. Daí em diante, o ex-escravo perdeu privilégios, como ler “os jornais nas cadeiras do amo, com deliciosos charutos entre os beiços”, afora os “regalados descansos e da sua autoridade de chefe!” Ora, não fora para ser um empregado subordinado que ele “aprendera a ler na mesma cartilha de sua antiga iaiá”. Na interpretação da autora, a perda de todos os privilégios devia-se à cor de Feliciano. Por isso, ser negro tornava-se a pior das penas. Assim, revoltado contra a natureza que o izera negro, odiava o branco com o ódio da inveja, que é o mais perene. Criminava Deus pela diferença das raças. [...]. Ah, se ele pudesse despir-se daquela pele abominável, mesmo que a fogo lento, ou a aiados gumes de navalha, correria a desfazer-se dela com muita alegria. Mas a abominação era irremediável. O interminável cilício duraria até que, no fundo da cova, o verme pusesse a nu a sua ossada branca [...].16 Essa é uma das mais racistas representações encontradas de um indivíduo negro. Percebe-se ainda que se Ruth, a moça branca, pedia misericórdia por Sancha a Deus, frente à “injustiça” que Ele mesmo cometera, Feliciano, uma das vítimas, “criminava Deus” pela raça que sua pele denunciava. Júlia Lopes de Almeida, enfim, irrigava as teorias raciais com elementos religiosos do catolicismo por meio de seus personagens. Tudo isso reflete muito bem o discurso de uma parte considerável daquela sociedade do início do século. A diferença entre as raças, a superioridade da branca, os males inatos à cor negra, a impossibilidade de mudança e a punição divina aos filhos de Cam, que foram amaldiçoados pelo avô, Noé, são parte de um mesmo pensamento. Um segundo nome importante nesse debate é o de José Eduardo de Macedo Soares, que durante décadas não foi identificado como autor do 15 ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. 16 Idem, p. 115-116. • 253 livro Política versus Marinha. Era conhecido pela fundação e direção dos jornais O Imparcial (1912) e Diário Carioca (1928), pela participação no movimento tenentista e pelos cargos de deputado federal e senador pelo Rio de Janeiro. Mas, entre 1902 e 1912, fora guarda-marinha, segundo e primeiro tenente da Armada. Somente aos 28 anos, quando pediu a baixa do serviço, passou à carreira de jornalista.17 Na Marinha de Guerra, exerceu funções que já demonstravam seu apreço pelas letras, como o de redator da Revista Marítima Brasileira — até hoje publicada — ou simplesmente por escrever um livro sobre o almirante Saldanha da Gama. Para ele e boa parte dos que foram influenciados pelas ideias raciais do final do século xIx, a “preguiça”, a “incapacidade de progredir”, os vícios do jogo e do alcoolismo, as brigas, as violências sexuais, os sambas, o desperdício sem a previdência e tantos outros costumes reprovados pelo jovem oficial branco eram males inatos (ou “contingentes”) aos negros, que influenciavam os marinheiros de outras raças — mulatos, caboclos, brancos e quase brancos. Segundo ele: A primeira impressão que produz uma guarnição brasileira é a da decadência e incapacidade física. Os negros são raquíticos, mal encarados com todos os signos deprimentes das mais atrasadas nações africanas. As outras raças submetem-se à inluência do meio criado pelos sempre em maioria. Profundamente alheios a qualquer noção de conforto os nossos marinheiros vestem-se mal, não sabem comer, não sabem dormir. Imprevidentes e preguiçosos eles trazem da raça a tara da incapacidade de progredir.18 Havia no discurso do oficial uma definição do outro, do negro que vestia a farda branca da Armada. Ele misturava olhares de antigos senhores em relação aos comportamentos (como a preguiça, a indolência, a submissão etc.) e aos valores (cultos, festas, princípios etc.) dos seus escravos, com ideias importadas da Europa e difundidas no Brasil por eméritos cientistas dos centros de pesquisa nacionais. Nesse sentido, tendo por base o saber senhorial sobre os escravos e a “verdade” explicativa da ciência, José Eduardo Macedo Soares entendia que aquela “massa incorrigível”, dominante nos conveses e quartéis da Armada, deveria ter sido excluída do serviço militar. Contudo, ela continuou na Marinha de Guerra oferecendo 17 SILVA, Edmundo de Macedo Soares e. José Eduardo de Macedo Soares, sua vida e suas lutas. In: MATTOS, Heraldo de Souza et al. Peris biográicos, p. 410-15. José Eduardo nasceu em 1882 e faleceu em 1967. 18 SOARES, José Eduardo Macedo. Um oicial da Armada. Política versus Marinha, p. 85-86. 254 • “a mais propícia cultura do vício e do crime”.19 Não foi difícil para ele sair dessas conclusões e chegar à defesa do castigo corporal. A influência desses pregadores pôde gerar (e ainda gera) inúmeras ações racistas em todos os campos. A título de exemplo, reproduzimos o caso ocorrido na cidade de Salvador, em 1923, que ilustra as barreiras criadas para ingresso de negros no mercado de trabalho e nas fileiras das Forças Armadas. Naquele ano, a Escola de Aprendizes da Bahia teve todas as 47 vagas preenchidas rapidamente. E mais: só compareceram voluntários; nenhum fora recrutado à força ou enviado por juízes de órfãos, como era comum. Uma grande quantidade de mães procurava matricular seus filhos nessas unidades de ensino, no sentido de encaminhar o futuro do menor. Contudo, elas perceberam que algo estranho estava acontecendo na seleção dos candidatos, algo que abria as portas para uns e as fechava para outros. Segundo as informações do repórter do jornal soteropolitano A Tarde, o problema fora o seguinte: Pessoas que, debalde procuraram colocar menores ali, vieram à Tarde queixar-se de que apesar de satisfazerem a todas as condições exigidas pelas leis, os pequenos estavam sendo recusados pelo simples fato de serem pretos. Fomos então à Escola de Aprendizes, onde procuramos ouvir o seu comandante, o capitão de corveta Freire de Carvalho, que nos deu as seguintes informações: “[....]. Muitos rapazes de magníica robustez e boa aparência eram recusados pelo fato de serem analfabetos [...]. Outros também o eram, somente por não possuírem dentes ou os terem muito estragados, pois os dentes bons também são uma das exigências do regulamento. Quanto ao fato de estarem sendo excluídos os pretos, as queixas não procedem. Demais, havendo maior número de candidatos do que vagas, o comando da Escola tem o direito de escolher e, assim sendo, entre rapazes brancos e outros tantos pretos, é natural que sejam preferidos os primeiros.20 Na verdade, não há por que estranhar a posição do comandante da Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia, o capitão de corveta Freire de Carvalho. Ele e boa parte dos oficiais comandantes tinham todos os ingredientes para acreditar piamente ser “natural” escolher os menores brancos em detrimento dos pretos. Afinal, o preconceito em relação ao negro, presente no cotidiano das relações escravistas, aliado ao racismo 19 Idem, p. 86. 20 A Tarde, Salvador (BA), 7 fev. 1923, grifo meu. • 255 expresso no discurso cientificista de criminologistas, médicos, bacharéis e juristas de fins do século xIx, davam a esses homens os argumentos que legitimavam tais escolhas.21 Conclusão Com essas reflexões, podemos pensar acerca do que move o indivíduo a escolher somente parceiros homens e brancos para a formação de uma equipe. Quais seus argumentos? Recentemente comecei a questionar colegas que formam chapas para disputa de sindicatos, reitorias e grupos de pesquisa. Se há poucas mulheres ou se não existem pessoas negras, pergunto diretamente: “Por que não há negros em sua chapa?”. Já ouvi muito silêncio no semblante do questionado candidato que me veio pedir o voto. Nesse momento, percebo que posso ter incutido algum mal-estar, um constrangimento, que incomoda. Espero sempre que essa pessoa reflita sobre o caráter de suas escolhas ou das dos membros da chapa, geralmente formada por homens e poucas mulheres brancos. Eles vão se defender de inúmeras formas, alegando que as pessoas escolhidas eram mais próximas ideologicamente; que não havia negros para aquela função; que a única mulher capaz não aceitou o convite de participar da chapa; que foi uma coincidência etc. Mas sempre dirão que não são racistas nem machistas. Podem ir mais fundo e afirmar, já me constrangendo, que possuem avós negros, que são negros na verdade (aí vem aquela frase: “Fiquei assim, mais branco, por causa do meu pai”). Que há mulheres, sim, mas no segundo escalão. Isso e muito mais é possível de ser ouvido quando expomos esses indivíduos a uma realidade inescapável: o sexo e a cor dos membros da chapa estão em cartazes, banners, sites. Com os argumentos que expus neste artigo, espero que, pelo menos, leve o(a) leitor(a) a se interrogar sobre a razão dos seus elos de parceria nos ofícios que desenvolvem. Quem são seus colegas de trabalho? Por que têm aquela cor, sexo e/ou gênero? Isso para não falar em idade e outras diferenças. Antes de responderem transferindo a culpa para o ausente (do tipo, os pretos não querem estudar; faz pouco tempo que acabou a escravidão; a mulher é mais frágil e não tem equilíbrio emocional e poder de comando), repensem toda a construção da propaganda machista e racista que descrevi nas páginas anteriores. O problema não é uma herança da escravidão nem um fator biológico específico no universo feminino e dos negros que catapulta o homem branco ao topo da hierarquia social e empurra mulheres brancas e negras e 21 ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas; CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade; SCHWARCZ, Lilia Moriz. O espetáculo das raças; CAULFIELD, Sueann, op. cit. 256 • homens negros para a base. É necessário que os brancos compreendam que reproduzem o racismo cotidianamente, assim como o machismo, assumindo que fazem escolhas de amizades e colegas de trabalho devido à cor ou ao sexo, bem como precisam assumir para si a responsabilidade por termos mulheres ganhando menos que eles e de não haver negros ao seu lado. Ao se calarem frente a essas adversidades, estarão auxiliando na reprodução do machismo e do racismo no Brasil e das condições econômicas e sociais enfrentadas pelas mulheres e pessoas negras, como vimos nos dados do Instituto Ethos. Então, iniciem um novo dia, olhem para os lados da sua vida e perguntem-se sobre quem está lá e por quê. Mãos à obra? Referências ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional/Dep. Nacional do Livro, 1994. 1ª edição: 1908. ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas. São Paulo: IBCCRIM, 2003. BENTO, Maria Aparecida Silva. A mulher negra no mercado de trabalho. Estudos Feministas. São Paulo, v. 3, n. 2, 1995. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade. Bragança Paulista: Edusf, 1998. COUTINHO, Maria Luiza Pinheiro. Discriminação no trabalho: mecanismos de combate à discriminação e promoção de igualdade de oportunidades. Disponível em: <https://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/ discrimination/pub/oit_igualdade_racial_05_234.pdf>. Acesso em: 15 set. 2016. DAMASCENO, Caetana. Segredos da boa aparência: da “cor” à “boa aparência” no mundo do trabalho carioca (1930-1950). Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2011. GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução. São Paulo: Boitempo/Iskras, 2014. LE ROY, Luciana Faria. A representação da mulher na literatura para crianças e jovens. 2003. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2003. PITT-RIVERS, Julian. Honor. International Encyclopedia of Social Science, n. 6, 1968. • 257 PIVA, Naiady. Engenheira perde vaga por ser mulher. Gazeta do Povo. Disponível em: <htp:https://www.gazetadopovo.com.br/economia/pos-e-carreira/ engenheira-perde-vaga-por-ser-mulher-ecu2nfperjl9uv73rld98v13i>. Acesso em: 1 out. 2016. SCHWARCZ, Lilia Moriz. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. SILVA, Edmundo de Macedo Soares e. José Eduardo de Macedo Soares, sua vida e suas lutas. In: MATTOS, Heraldo de Souza et al. Peris biográicos. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio, 1997. SILVA, Soia Vilela de Moraes e. Transexualidade e discriminação no mercado de trabalho. Disponível em: <htps:https://jus.com.br/artigos/22199/transexualidade-ediscriminacao-no-mercado-de-trabalho>. Acesso em: 1 out. 2016. SOARES, José Eduardo Macedo. Um oicial da Armada. Política versus Marinha. S./l., s./d. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 3ª REGIÃO. Trabalhadora discriminada e desrespeitada por ser mulher será indenizada. Disponível em: <htp:https://trt-3.jusbrasil.com.br/noticias/140829693/trabalhadora-discriminada-edesrespeitada-por-ser-mulher-sera-indenizada>. Acesso em: 1 out. 2016. xAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record, 1998, apud LE ROY, Luciana Faria. A representação da mulher na literatura para crianças e jovens. 2003. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2003. 258 • NÚCLEO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS (UFPEL): SEUS ACERVOS E PESQUISAS RELACIONADAS A TRABALHO, GÊNERO, RAÇA E SOCIABILIDADE Lorena Almeida Gill* O Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas (NDH/UFPel) foi fundado em março de 1990, com as funções de um centro de documentação em história. A ideia inicial era de servir como um local de preservação da trajetória da instituição. Para isso, foram feitos contatos com grande parte dos institutos e faculdades existentes no momento, visando recolher fotografias, atas de fundação e funcionamento, vídeos, notícias publicadas em periódicos, documentos diversos, com a perspectiva de se construir uma história da UFPel.1 Com o passar do tempo, o NDH teve suas funções acrescidas ao receber novos acervos, vinculados, predominantemente, à história dos trabalhadores. A intenção deste artigo é, portanto, a de apresentar algumas dessas séries de documentos, relacionando-os a pesquisas construídas nos últimos anos e que têm como temáticas questões como gênero, raça e sociabilidade. Por centro de documentação, a partir de Belotto,2 se entende um espaço que agrega diferentes acervos e é responsável por oferecer informações, constituindo uma rede de conhecimento. Um centro de documentação difere de um arquivo pelo caráter misto dos acervos ali depositados, dificilmente provenientes de uma única fonte emissora e também pela flexibilidade dos tipos de suporte da documentação, podendo aceitar desde imagens, cartazes, fotos e vídeos, até a documentação tradicional em suporte papel. É diverso também de uma biblioteca, pelo fato de que revistas e livros disponíveis (às vezes até edições fotocopiadas ou escaneadas, no caso de livros mais raros) se encontram ali com o objetivo fundamental de auxiliar as atividades realizadas pelo próprio centro, subsidiariamente também sendo usadas para outras pesquisas, como de alunos e/ou outros interessados.3 * Professora associada da Universidade Federal de Pelotas, Brasil. 1 Há um capítulo de livro que aborda um pouco do trabalho realizado no início do NDH. Ver LONER, Beatriz. UFPel: um breve histórico. In: MAGALHÃES, Mario (org.). UFPel 30 anos. 2 BELLOTTO, Heloisa. Arquivos permanentes: tratamento documental. 3 LONER, Beatriz; GILL, Lorena. O trabalho de um centro de documentação: o Núcleo de Documentação Histórica da UFPel. Patrimônio e memória, p. 243. • 259 O primeiro desses acervos que marcaram a afirmação do NDH como uma referência para a história dos trabalhadores foi o da Delegacia Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul.4 Incorporado em 2001, por meio de um convênio com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde se encontrava anteriormente, reúne 627.213 fichas de qualificação ou fichas-espelho e fotos, preenchidas no momento em que o trabalhador pretendia tirar sua carteira de trabalho, surgida no ano de 1932, juntamente a outras regulamentações sobre o tema. O material impressiona, tendo em vista as informações que são disponibilizadas nas fichas de qualificação profissional, como características físicas e de identificação da família, profissão, local de trabalho e habitação, além de uma foto; pelo seu volume documental, constituído por 1.053 caixas pequenas e 53 caixas grandes; e também pelo fato de abranger todo o estado do Rio Grande do Sul, entre 1933 e 1968. A digitação das informações está sendo feita há anos em um banco de dados, além de serem realizadas pesquisas que se relacionam a temas diversos como o estudo de ofícios e proissões em especial, a análise de fotos, como as que indicam trabalhadores com varíola, dentre outras possibilidades. O segundo acervo é o da Justiça do Trabalho (JT)5 da comarca de Pelotas. Desde o ano de 2005, o NDH guarda os autos findos da JT, desde seu início até a década de 1995, com base em termo de comodato assinado com o Memorial da Justiça do Trabalho do RS. São cerca de cem mil processos inventariados que chegaram até o NDH e com um programa que permite localizar facilmente os nomes dos reclamados e dos reclamantes, além das empresas que ora foram demandadas ou que são demandantes. Pelotas possui a coleção mais completa do estado, já que na cidade não foi utilizada a lei n. 7.627/1987, a qual determinou a eliminação dos chamados autos indos. As eliminações foram suspensas pelo governo em 2006. 4 O trabalho no acervo inicialmente foi coordenado pela professora Beatriz Ana Loner, que implementou um banco de dados com o objetivo de digitar todos os campos existentes nas ichas de qualiicação. Hoje a coordenação está com o professor Aristeu Elisandro Lopes e a digitação continua se desenvolvendo, tendo em vista o imenso volume documental. 5 Para saber mais sobre a Justiça do Trabalho, ver SILVA, Fernando Teixeira. Nem crematório nem museu de curiosidades: por que preservar os documentos da Justiça do Trabalho. In: BIAVASCHI, Magda Barros; MIRANDA, Maria Guilhermina; LÜBBE, Anita (coord.). Memória e preservação de documentos: direitos do cidadão, p. 31-51; SCHMIDT, Benito; SPERANZA, Clarice. Acervos do judiciário trabalhista: lutas pela preservação e possibilidades de pesquisa. In: MARQUES, Antonio; STAMPA, Inez (org.). Arquivos do mundo dos trabalhadores: coletânea do 2º Seminário Internacional O Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos, p. 33-48; GOMES, Angela. Retrato falado: a Justiça do Trabalho na visão de seus magistrados. Estudos Históricos, p. 55-80; e SPERANZA, Clarice. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conlitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no RS (1940-1950). 260 • O acervo tem sido observado a partir de uma análise quantitativa, momento em que dados do processo são anotados, como o seu número, o ano da demanda, o estado civil e o sexo do requerente, advogados das partes, nacionalidade, período de duração, como foi concluído e se a ação é plúrima ou individual. Já na análise qualitativa, é realizado um resumo do processo, no qual constam, principalmente, os motivos da demanda, as fases processuais e qual foi a conclusão sobre o pedido. Algumas questões apareceram, de forma preliminar, na análise dos processos iniciais: as demandas de homens representavam 85% e as das mulheres, 15%. No caso destas, grande parte dos litígios era arquivada ou julgada improcedente. No que diz respeito aos homens, prioritariamente, eram realizados acordos. As empresas mais demandadas na cidade, para os anos iniciais (19411950), foram o Frigorífico Anglo; a Companhia Fiação e Tecidos, que empregava um contingente expressivo de mulheres e crianças; a Companhia Nacional de Óleo de Linhaça e a The Riograndense Light and Power Ltda. Grande parte dos processos teve por requerentes os trabalhadores, geralmente operários de diversas fábricas da cidade e, em sua maioria, brasileiros, como se esperava que acontecesse. Entretanto existem situações de estrangeiros, especialmente alemães, italianos e portugueses, algumas das imigrações preponderantes em Pelotas. Já o último acervo incorporado ao NDH foi a documentação da Laneira Indústria Brasileira, que acabou se tornando um marco no setor de lã da região, decretando falência, porém, em 2003, e fechando as portas em abril do mesmo ano. Em 2010, a UFPel adquiriu o prédio onde se encontrava a fábrica. Dentro dele havia resquícios de um arquivo descartado, em péssimo estado. Foi na busca por reconstruir a história e a memória da instituição que o NDH o inseriu nos demais acervos que o compunham. A constituição do acervo da Laneira visa salvaguardar a identidade da empresa e a memória dos trabalhadores, por meio de projetos de organização e higienização, fazendo com que todos os documentos fiquem à disposição de pesquisadores, dos próprios trabalhadores e demais interessados. Segundo Le Goff, 6 o documento é um produto da sociedade que o produziu. Diante disso, sua preservação e disponibilização tornam-se primordiais para a manutenção da memória coletiva. O arquivo tem caráter permanente e possui a função de conservar, reunir e facilitar a consulta da documentação, tornando-a acessível para a sociedade. Os seus documentos ganham significado à medida que são 6 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e memória. • 261 utilizados como informação, servindo de subsídios para a interpretação histórica. Principalmente, e acima de tudo, o arquivo histórico busca garantir a manutenção da memória e da identidade dos trabalhadores da Laneira.7 Vinculado ao NDH, há ainda o Laboratório de História Oral (LaHO), que foi organizado em 2010, com o objetivo de recolher e sistematizar as entrevistas realizadas desde 1992, para fins de se conhecer a história da UFPel, bem como de construir novas narrativas, relacionadas a projetos de pesquisa desenvolvidos. Atualmente o LaHO reúne mais de 150 entrevistas, a maior parte composta por documentos com termos de cessão, os quais possibilitam uma tranquilidade para o empréstimo dessas narrativas ao público acadêmico e em geral. O projeto que aglutina o maior volume de entrevistas é aquele realizado desde o ano de 2009, que versa sobre ofícios antigos ou em extinção. 8 No caso desse projeto, foram construídas mais de sessenta narrativas, com trabalhadores os mais diversos, como afiadores de faca, estivadores, pescadores artesanais, sapateiros, alfaiates, chapeleiras e, ainda, benzedores e benzedoras com foco na tradição, no dom ou na religião. A maior parte dos projetos presentes no LaHO esteve vinculada ao que se convencionou chamar de história oral temática, ou seja, aborda um conteúdo mais específico na construção das narrativas, como um ofício ou a trajetória de um grupo imigrante, por exemplo. Um único projeto desenvolvido pelo laboratório se vinculou à história de vida. Breve análise de um processo da Justiça do Trabalho relacionado a discussões de gênero, etnia e saúde: o caso de Olga No dia 25 de maio de 1945, Olga Tochttenhagen, nascida em 7 de julho de 1925, brasileira, solteira, residente em Pelotas/RS, procurou a Justiça do Trabalho para relatar que trabalhava na alfaiataria do senhor Miguel Rothbaum desde 16 de março de 1944 e que havia sido despedida sem justa causa e sem aviso prévio, depois de ter faltado ao serviço por motivo de doença, mesmo estando amparada por atestado médico. 7 Há alguns trabalhos sobre a Laneira, mas com enfoque no campo patrimonial, como MELO, Chanaísa. Fragmentos da memória de uma fábrica na coleção fotográica Laneira Brasileira Sociedade Anônima. No ano de 2016, no entanto, foi defendida dissertação de mestrado em história que versou sobre o cotidiano da fábrica. Ver PIEPER, Jordana. Da classiicação à iação: as experiências dos operários têxteis da fábrica Laneira Brasileira em Pelotas/RS (1980-1988). 8 Alguns resultados desse trabalho de sete anos estão publicados no livro GILL, Lorena; SCHEER, Micaele (org.). À beira da extinção: memórias de trabalhadores cujos ofícios estão em vias de desaparecer. 262 • Em sua defesa, o reclamado alegou que tinha idade avançada, 72 anos, e que não a contratou, mas apenas lhe dava lições de costura gratuitamente. Afirmava que Olga costurava algumas peças, mais com a intenção de colocar em prática os ensinamentos a ela concedidos. Para Miguel, não havia relação de empregador e empregado entre eles. Na ata de instrução e julgamento, datada de 13 de setembro de 1946, é dito por testemunhas que não havia dúvida de que a reclamante era empregada do reclamado, não recebendo o rendimento legal a que tinha direito, por ter mais de 18 anos. Durante a sua defesa, Miguel buscou desqualificar o fato de que Olga era sua funcionária, reafirmando que o que fazia era repassar lições de costura para a moça, sem ter uma relação empregatícia com ela. O reclamado refere-se aqui ao estatuto de aprendiz, ou seja, se qualifica como um mestre e Olga, como uma aluna que necessitava aprender, através da prática cotidiana. Segundo Sennett, 9 “o trabalho apresentado pelo aprendiz centrava-se no princípio da imitação: a cópia como aprendizado”. Miguel dizia, também, desconhecer que ela era maior, situação comprovada no processo com a anexação de um documento, o qual indicava a data de nascimento da reclamante. Olga apresentou atestado de frequência em um curso de corte e costura, o que comprovaria seu preparo anterior, além de juntar atestado médico, relatando que ela estava pré-tuberculosa e, por isso, deveria ter algum amparo. Seu caso foi julgado procedente, mas Miguel fugiu para a Hungria e não pagou o que devia. Como seu filho morreu em Pelotas e ele precisou retornar, Olga fez uma verdadeira peregrinação pela cidade até encontrálo no Grande Hotel. O processo de Olga está sendo pensado a partir das seguintes temáticas: gênero, imigração e saúde, já que se trata de uma mulher jovem, descendente de imigrantes alemães, cuja saúde está ameaçada em decorrência da tuberculose pulmonar. O estudo desse processo é apenas um exemplo de como podem ser analisados os documentos constantes do arquivo da Justiça do Trabalho. Vários ofícios e profissões10 já foram abordados, e atualmente se trabalha com o estabelecimento das características de uma determinada coleção de processos, a partir de uma série, por período de tempo. 9 SENNETT, Richard. O artíice. 10 Ver, entre outros: SILVA, Eduarda. Partejar e narrar: o ofício de parteira ao sul do Rio Grande do Sul (1960-1990); SOARES, Tamires. Lei para todos: tensões trabalhistas entre “súditos do Eixo” e empregadores, durante a Segunda Guerra Mundial, em Pelotas; SCHEER, Micaele. Vestígios de um ofício: o setor calçadista e as experiências de seus trabalhadores na cidade de Pelotas (1940-2014). • 263 Os negros de Pelotas e algumas de suas sociedades recreativas no pósAbolição No ano de 2003, iniciou-se no NDH uma pesquisa sobre os clubes carnavalescos negros na cidade de Pelotas. O estudo seguiu os rastros da tese 11 de Beatriz Loner, que analisou a organização dos operários nessa cidade e no Rio Grande. Loner abordou, sobretudo a partir de pesquisa em jornais diários, a existência de uma série de associações vinculadas aos negros, enfocando o significado dessas agremiações, a discriminação racial por que passavam, além das questões raciais e das entidades de classe. Como seu estudo recuava aos anos de 1888-1930, período do pós-Abolição, interessava trabalhar com a metodologia de história oral, a partir de sua vertente temática, vinculada a uma história mais próxima ao tempo presente. Alguns clubes negros já tinham sido tratados em sua tese, e a intenção nesse momento era a de encontrar narradores que pudessem contar sobre sua trajetória associativa em agremiações como “Depois da chuva”, fundada no ano de 1917, que albergava uma população bastante humilde do ponto de vista financeiro. Como sua sede ficava próxima a um lixo da prefeitura, ela ficou conhecida como o clube dos cisqueiros. Houve também a “Quem ri de nós tem paixão”, organizada em 1921, que era considerada uma das mais populares, a partir do reconhecimento que tinham em seus desfiles realizados durante o carnaval, quando aglutinavam um expressivo número de pessoas. Já o clube “Chove não molha” foi fundado em fevereiro de 1919, estando vinculado a profissionais liberais e pessoas com mais recursos. Trata-se de agremiação que até hoje possui sede própria. Outra organização importante foi a “Fica aí pra ir dizendo”, que aglutinou o que era pensado como uma elite negra, ou seja, uma população com maior poder aquisitivo, que possuía um rigoroso padrão associativo. “O ‘Fica aí’ utilizava, como padrão de comportamento para seus sócios, o mesmo vigente nos clubes de classe média da cidade, sendo extremamente rigoroso com a moral e o vestuário próprio para festas etc.”.12 Vinculado a esses clubes, com o tempo, começou-se a organizar cordões carnavalescos, que desilavam na rua e também alegravam os salões em bailes de carnaval. Já em ins da década de 1940 e 1950, surgiram as escolas de samba, algumas vinculadas aos clubes e outras com organização autônoma. 11 Parte da tese de Beatriz Loner foi publicada com o título Construção de classe: operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). 12 LONER, Beatriz; GILL, Lorena. Clubes carnavalescos negros na cidade de Pelotas. Estudos Ibero-americanos, p. 155. 264 • Era comum que houvesse uma diretoria, formada preponderantemente por homens, e um grupo feminino, que organizava festas, cuidava da sede e promovia eventos beneficentes, com o sentido de integrar ainda mais a comunidade negra. A vigilância sobre os corpos das mulheres era bastante presente, uma vez que se almejava um determinado comportamento de cada uma delas. Os clubes funcionavam como um espaço de sociabilidade, com a intenção de promover encontros, que levassem, inclusive, a casamentos intrarraciais. Desse modo, a busca era por um padrão adequado de conduta, que compreendia, em pequenos códigos expressos nas atas das reuniões, até as roupas que deveriam ser usadas pelas mulheres em cada ocasião. A fábrica Laneira e seus espaços de sociabilidade Recentemente, Pieper, 13 bolsista vinculada ao NDH, defendeu dissertação de mestrado sobre o acervo da Laneira. Embora para a autora interessasse, principalmente, a análise de um processo trabalhista, que teve como demandante Laura Lopes Dalmann, 14 Pieper abordou o cotidiano da fábrica e os processos de sociabilidade daí decorrentes. A primeira forma de sociabilidade, no ambiente da fábrica, se construía no próprio dia a dia do trabalho. Sennett15 e Antunes16 colocam que a vida está relacionada ao trabalho; quando ele é inexistente, é como se a vida, muitas vezes, não fizesse mais sentido. Outra questão que aparece na documentação observada é a existência de muitas pessoas próximas entre si trabalhando no mesmo lugar, tendo, inclusive, familiares atuando em igual setor. Na contratação de operários, formava-se uma espécie de rede, pois aqueles que já atuavam acabavam por indicar outros nomes. Tal fato propiciava uma maior integração entre os trabalhadores. Uma das mais importantes formas de sociabilidade, no entanto, ocorria a partir da formação do time de futebol da fábrica. Pieper entrevistou, utilizando a metodologia de história oral, um dos operários, Samuel Gonçalves Rosa, que revelou o seguinte: muitas vezes, para ser 13 PIEPER, Jordana, op. cit. 14 Laura Lopez Dalmann foi uma operária do setor de classiicação de lã, que atuou entre 1953 e 1990. O processo judicial movido por ela contra a Laneira serviu de exemplo para outras demandas de trabalhadores. Acervo do arquivo da Justiça do Trabalho do NDH/UFPel. 15 SENNETT, Richard, op. cit. 16 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a airmação e a negação do trabalho. • 265 contratado, era necessário ser um bom jogador. “Teve um tempo, muitos anos atrás, que para entrar na fábrica tinha que saber jogar futebol. Teve muitos profissionais de futebol que jogaram lá dentro, tem o Gilberto do Farroupilha, Valdomas do Internacional, também tinha o Amigo”.17 Embora o time agregasse pessoas e propiciasse momentos de integração, à medida que a equipe se profissionalizava, não havia mais espaço para amadores, que almejavam apenas se divertir. Segundo Antunes:18 Apenas os melhores integrariam a equipe. Poucos realmente teriam a condição de disputar uma posição no time da fábrica quanto aos demais, aqueles que gostavam de jogar só por diversão tinham que se conformar com a condição de espectadores. De qualquer modo, a assistência aos campeonatos de futebol também era uma forma de integração dos trabalhadores. Algumas pessoas que atuavam no futebol de fábrica chegaram, inclusive, a ocupar cargos de chefia e a ter suas cargas horárias reduzidas, tendo em vista o que representavam para a empresa, principalmente quando o time era vencedor. Outras fábricas da cidade também tiveram times de futebol que disputaram diferentes campeonatos, como a Cosulã e a Fiação e Tecidos, pois agrupavam um grande contingente de pessoas. Por fim, há que se dizer: a fábrica tinha um momento de integração cotidiana, que era justamente quando se servia uma sopa, nos intervalos de cada turno. Como existia uma horta no local, os operários poderiam levar ainda hortaliças para a casa, se houvesse sobras, o que contribuía para a alimentação diária da família. Considerações finais Nesses mais de 26 anos de funcionamento, já foram escritos textos19 abordando a trajetória do Núcleo de Documentação Histórica, surgido a partir de uma demanda específica: agregar a documentação da UFPel e pensar sobre ela, construindo uma espécie de história para uma universidade bastante jovem, que se iniciou no ano de 1969. Tais textos permitem que se percebam as transformações vividas pelo Núcleo, especialmente no que diz respeito ao seu acervo, cujo enfoque passou 17 PIEPER, Jordana, op. cit, p. 166. 18 ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. O futebol nas fábricas. Revista USP, p. 106. 19 Ver: LONER, Beatriz; GILL, Lorena. O trabalho de um centro de documentação: o Núcleo de Documentação Histórica da UFPel. Patrimônio e memória, p. 241-256; GILL, Lorena; ROSSELLI, Gabriela. Fontes para a história do trabalho na região sul do Brasil. Aedos, p. 230-245. 266 • a ser o mundo dos trabalhadores, embora documentos com outras temáticas continuem chegando e sendo agregados a esse centro de documentação. Este artigo, no entanto, teve outro objetivo, qual seja: o de refletir sobre algumas das produções que têm sido construídas nesses últimos anos, com destaque para a questão do gênero, da raça e da sociabilidade. Trata-se, como se pretendeu abordar, de exemplos de estudos possíveis, a partir de uma farta documentação, que propicia o desenvolvimento de uma série de trabalho que está apenas se iniciando, relativa à análise de acervos como o da Delegacia do Trabalho, Justiça do Trabalho, Laboratório de História Oral e fábrica Laneira. Entre os trabalhos já efetivados pelo NDH, estão as pesquisas citadas neste artigo, como a que envolveu o processo de Olga e de tantos outros trabalhadores (estivadores, motorneiros, sapateiros e tecelãs); a construção de memórias sobre o carnaval negro na cidade de Pelotas; e a sociabilidade em uma fábrica cujo acervo há pouco foi recebido e se encontra ainda hoje em processo de higienização e organização. Certamente, pelo volume documental de que dispomos e pelo engajamento de uma equipe que a cada dia mais se expande, formada por alunos da licenciatura, do bacharelado e do mestrado em história, além de professores e pesquisadores de outros cursos, muitos trabalhos vinculados ao gênero, à raça e à sociabilidade estarão presentes em nossas agendas para os próximos anos. Referências ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. O futebol nas fábricas. 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São Leopoldo/Porto Alegre: Oikos; Anpuh-RS, 2014. 270 • PROGRAMA DO 4º SEMINÁRIO INTERNACIONAL O MUNDO DOS TRABALHADORES E SEUS ARQUIVOS Programa 08/06/2016 – Quarta-feira 8h - Início do credenciamento e entrega dos materiais 9h às 10h - Ato de abertura coordenação: Sérgio Nobre – Secretário-Geral da CUT – São Paulo – Brasil Ivan Neves – Diretor-Geral do Arquivo Nacional – Rio de Janeiro – Brasil Vagner Freitas – Presidente Nacional da CUT– São Paulo – Brasil 10h às 12h - Conferência: Arquivos, justiça, reparação e direitos humanos coordenação: Ana Maria de Almeida Camargo – Universidade de São Paulo – São Paulo – Brasil Ramon Alberch i Fugueras – Universidad Autónoma de Barcelona y Archiveros sin Fronteras – Barcelona – Espanha 12h às 14h - Almoço 14h às 18h - Mesa Redonda: Memória, verdade, jusiça e reparação na América Laina coordenação: Sonia Maria Troitiño Rodriguez – Centro de Documentação e Memória Cedem/Unesp – São Paulo - Brasil María Luisa Oriz Rojas – Museo de la Memoria y los Derechos Humanos – Saniago – Chile Rosa M Palau – Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos – Assunção – Paraguai Valeria Barbuto – Memoria Abierta – Buenos Aires – Argenina Velia Muralles – Archivo Histórico de la Policia Nacional de Guatemala – Cidade de Guatemala – Guatemala Vicente A C Rodrigues – Centro de Referência Memórias Reveladas/Arquivo Nacional – Rio de Janeiro – Brasil 09/06/2016 – Quinta-feira 9h às 12h30 – Mesa Redonda: As Comissões da Verdade e os trabalhadores coordenação: Marco Aurélio Santana – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil Adriano Diogo – Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo – São Paulo – Brasil Girolamo Domenico Treccani – Universidade Federal do Pará – Belém – Brasil Márcio Kieller – Comissão Estadual da Verdade do Paraná Teresa Urban e Central Única dos Trabalhadores – Curiiba – Brasil Rafael Leite Ferreira – Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara – Recife – Brasil Rosa Maria Cardoso da Cunha – ex-integrante da Comissão Nacional da Verdade e da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil 12h30 às 14h - Almoço • 271 14h às 18h – Sessões de Comunicações SESSão DE CoMUNiCAçõES i – os arquivos do mundo dos trabalhadores da cidade e do campo coordenação: Antonio José Marques – Centro de Documentação e Memória Sindical – Cedoc/CUT – São Paulo – Brasil SESSão DE CoMUNiCAçõES ii – Jusiça, reparação e direito dos trabalhadores da cidade e do campo coordenação: Marinho Guedes dos Santos Neto – Universidade Estadual da Paraíba – Guarabira – Brasil SESSão DE CoMUNiCAçõES iii – Trabalho, gênero, raça e sociabilidade no mundo dos trabalhadores da cidade e do campo coordenação: Lorena Almeida Gill – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas – Brasil SESSão DE CoMUNiCAçõES iV – Repressão, resistência e memória dos trabalhadores da cidade e do campo coordenação: Inez Stampa – Centro de Referência Memórias Reveladas/Arquivo Nacional e PUC-Rio – Rio de Janeiro – Brasil 10/06/2016 – Sexta-feira 9h às 12h30 – Mesa Redonda: A aliança empresarial-policial durante as ditaduras coordenação: San Romanelli Assumpção – Insituto de Estudos Sociais e Políicos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil Pedro Henrique Pedreira Campos – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Brasil Rubén Vega García – Universidad de oviedo – oviedo – Espanha Victoria Basualdo – Facultat Lainoamericana de Ciencias Sociales – Buenos Aires – Argenina Demian Bezerra de Melo – Universidade Federal Fluminense – Rio de Janeiro – Brasil 12h30 às 14h - Almoço 14h às 17h - Mesa Redonda: Trabalho, gênero, raça e sociabilidade coordenação: Beatriz Ana Loner – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas – Brasil Alvaro Pereira do Nascimento – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Nova Iguaçu – Rio de Janeiro Rafael Soares Gonçalves – Poniícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) – Rio de Janeiro – Rio de Janeiro Lídia Maria Vianna Possas – Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho – Marília – São Paulo 17h às 18h30 - Conferência de encerramento coordenação: Leonilde Servolo de Medeiros Marlon Alberto Weichert – Procurador regional da República – Ministério Público Federal – São Paulo – Brasil 18h30 - Ato de encerramento 272 • 4º SEMINÁRIO INTERNACIONAL O MUNDO DOS TRABALHADORES E SEUS ARQUIVOS: MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA E REPARAÇÃO SÃO PAULO – BRASIL 08 A 10 DE JUNHO DE 2016 Promoção Arquivo Nacional – AN Central Única dos Trabalhadores – CUT Organização Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Amorj/UFRJ Centro de Documentação e Memória Sindical da Central Única dos Trabalhadores – Cedoc/CUT Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Cedem/Unesp Centro de Referência Memórias Reveladas/Arquivo Nacional (MR/AN) Grupo de Pesquisa Trabalho e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – GPTPP/PUC-Rio Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas – NDH/UFPel Núcleo de Documentação Histórica do Centro de Humanidades da Universidade Estadual da Paraíba – NDH/UEPB – Guarabira Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referências sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – CPDA/UFRRJ Apoio Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal – FENAE Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP Fundação Rosa Luxemburgo Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – DSS/PUC–Rio Sindicato dos Químicos de São Paulo Unisoli Turismo • 273 Comitê Cientíico Ana Maria de Almeida Camargo (USP) Beatriz Ana Loner (UFPel) Elina Pessanha (UFRJ) Heloísa Liberalli Belloto (USP) Inez Stampa (Arquivo Nacional e PUC Rio) John D. French (Duke University – Estados Unidos) Leonilde Servolo de Medeiros (UFRRJ) Lorena Almeida Gill (UFPel) Marco Aurélio Santana (UFRJ) Martinho Guedes dos Santos Neto (UEPB) Ramon Alberch i Fugueras (Universidad Autónoma de Barcelona, Espanha) Rodolfo Porrini (Universidad de la República, Uruguai) Sonia Maria Troitiño Rodrigues (UNESP) Comitê Organizador Antonio José Marques (Cedoc/CUT) Carla Machado Lopes (MR/AN) Marco Antonio S. Teixeira (CPDA/UFRRJ) Tatiani Carmona Regos (Cedoc/CUT) Vicente Rodrigues (MR/AN) 274 • DIREÇÃO EXECUTIVA NACIONAL DA CUT GESTÃO 2015/2019 Presidente Vagner Freitas de Moraes Vice-Presidenta Carmen Helena Ferreira Foro Secretário-Geral Sérgio Nobre Secretária-Geral Adjunta Maria Aparecida Faria Secretário de Administração e Finanças Quintino Marques Severo Secretário-Adjunto de Administração e Finanças Aparecido Donizeti da Silva Secretário de Relações Internacionais Antônio de Lisboa Amâncio Vale Secretário-Adjunto de Relações Internacionais Ariovaldo de Camargo Secretário de Assuntos Jurídicos Valeir Ertle Secretária de Combate ao Racismo Maria Júlia Reis Nogueira Secretária-Adjunta de Combate ao Racismo Rosana Sousa Fernandes Secretário de Comunicação Roni Anderson Barbosa Secretário-Adjunto de Comunicação Admirson Medeiros Ferro Junior (Greg) • 275 Secretário de Cultura José Celestino Lourenço (Tino) Secretária-Adjunta de Cultura Annyeli Damião Nascimento Secretária de Formação Rosane Bertoti Secretária-Adjunta de Formação Sueli Veiga de Melo Secretária de Juventude Edjane Rodrigues Secretário de Meio Ambiente Daniel Gaio Secretária de Mobilização e Relação com Movimentos Sociais Janeslei Albuquerque Secretária da Mulher Trabalhadora Juneia Martins Batista Secretário de Organização e Política Sindical Ari Aloraldo do Nascimento Secretário-Adjunto de Organização e Política Sindical Eduardo Guterra Secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos Jandyra Uehara Secretária de Relações de Trabalho Maria das Graças Costa Secretário-Adjunto de Relações Trabalho Pedro Armengol de Souza Secretária de Saúde do Trabalhador Madalena Margarida da Silva Secretária-Adjunta de Saúde do Trabalhador Maria de Fátima Veloso Cunha 276 • Diretoras e Diretores Executivos Ângela Maria de Melo Cláudio da Silva Gomes Elisângela dos Santos Araújo Francisca Trajano dos Santos Ismael José Cesar José de Ribamar Barroso Juliana Salles de Carvalho Julio Turra Filho Juvândia Moreira Leite Mara Feltes Marcelo Fiorio Maria Izabel Noronha (Bebel) Milton dos Santos Rezende Rogério Pantoja Virginia Berriel Vitor Carvalho Conselho Fiscal – Efetivo Adriana Maria Antunes Dulce Rodrigues Sena Mendonça Francisco Chagas (Chicão) Jose Mandu Amorim Conselho Fiscal – Suplentes Amanda Corcino Juseleno Anacleto Nelson Morelli Raimunda Audinete de Araújo • 277 278 • • 279 Impresso pela Gráica e Editora Matsunaga Ltda. Composição em Palatino Linotype Capa em papel cartão Supremo 250 g/m2 Miolo em papel Alta Alvura 90 g/m2 280 • e setoriais ainda estão em atividaseguimento e a intensiicação das discussões ligadas à memória, à verdade, à justiça e à reparação. aresários no apoio e sustentação da ditadura. O us Arquivos: memória, verdade, justiça e reparação foi um espaço ração e a preservação dos arquivos m, para a discussão desses grandes atina, trazendo à tona a relação entre arquivos e direitos humanos. es históricas da região, conferindo a esses tópicos o mesmo peso por da a importância de se lançar um os ocratização e a sua interface com o universo dos trabalhadores. vos, irmando-se como espaço de informações e de incentivo à recuperação e preservação dos suas organizações. Em suas edi ções, surgiram outros temas que são sobre o direito à memória e à verdade e a questão da justiça e reparação para os crimes das Latina. A divulgação do relatório inal da Comissão Nacional da Apoio signiicou um marco da luta pela recuperação da memória e da do país, condição indispensável para a plena restituição do poder político ao povo brasileiro. Mais do que isso, o relatório, em que pesem suas insuiciências e A riqueza das relexões desenvolenlas em uma publicação, com o objetivo de difundir essas informações, o que fazemos agora nos textos que compõem esta coletânea. importante para se avançar na reparação dos crimes cometidos realização nal atingidos pelo regime. Central Única dos Trabalhadores inal, os relatórios das diversas MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA cados lançam questionamentos e recomendações que precisam pelo Estado e pela sociedade ci vil. Nesse contexto, e diante do ARQ UIVO NACIONAL ARQUIVO NACIONAL