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TECNOLOGIAS DA UNIVERSALIZAÇÃO: DIFERENÇAS NO ACESSO À ÁGUA NA RMSP O objetivo de universalizar acesso à água carrega diversas ordens de implicações espaciais que merecem análise. A história desse espaço revela o processo de fragmentação das qualidades integradas em funções parciais, e contradições decorrentes – o crescimento urbano desigual, simultâneo à evolução dos padrões técnicos e de financiamento dos sistemas de saneamento com valorização de seus ativos. Tanto o espaço realizado das redes como o espaço possível dos planos são analisantes importantes destes processos. Este artigo, que reúne resultado de pesquisas sobre a universalização do abastecimento na Região Metropolitana de São Paulo e experiência profissional para criação de entidade de saneamento no setor público municipal de São Paulo, pretende compreender como evoluiu o pensamento e a prática dos planejadores desta camada funcional, e identificar, no ponto de chegada de uma trajetória histórica de fragmentação espacial, como as tecnologias mais recentes para distribuição de água da Companhia de Saneamento de São Paulo (Sabesp) induziram novas diferenças qualitativas no espaço urbano metropolitano, constitutivas de seu colapso e que se revelam no momento da crise. Palavras-chave: abastecimento de água, favelas, tecnologia, universalização. 1 PADRÕES DE ABASTECIMENTO: BASES TECNOLÓGICAS E ESPACIAIS Abastecer uma localidade com água encanada implica em uma série de transformações concretas no espaço. Mas é uma atividade que abstrai o espaço. Dos diversos planos de abastecimento para a cidade e para a metrópole até as mais recentes inovações tecnológicas no setor, pode-se perceber, principalmente na função de distribuição de água, que a relação espaço-saneamento caracteriza-se por uma alienação crescente da função em relação ao meio: a função, reduzida a um número abstrato de pontos de consumo; o espaço, concreto, matéria em que a função se realiza. A situação de crise pode, ainda que temporariamente, restituir espaço e função. O planejamento operacional e estratégico das redes de água das empresas de saneamento – e, no caso estudado, da empresa Sabesp - passou, nos últimos 25 anos, a ser estruturado pelas lógicas de gestão da demanda: controle do consumo, das perdas de água (fraudes ou vazamentos), e priorização de expansão da rede para áreas com expectativa de retorno controladas. Essas estratégias apoiam-se em instrumentos do campo gerencial e da tecnologia da informação e transformam processos de trabalho na empresa, sobrepondo-se a antigas abordagens da engenharia civil, predominantes nos períodos anteriores. Estas transformações são o ponto final de uma trajetória, e são correlatos ao redesenho institucional e financeiro do setor. Nos diversos estágios de desenvolvimento, os padrões físicos de expansão das redes de abastecimento coexistiram com realidades que não lhes eram redutíveis. Frente a situações irredutíveis, a prática profissional reparte sistemas em padrões distintos: pontos e números que localizam equipamentos de controle pouco robustos, de menor impacto e visibilidade, compõem, com estruturas mais antigas, pedaços de sistemas incompletos e híbridos. Os elementos das redes de água passam por transformações radicais: na passagem dos chafarizes e fontes, que continham sentido econômico e certa representação na vida social da época; aos reservatórios, controladores e reguladores de vazões e pressões no sistema padrão de águas captadas a distância, que ainda guardavam visibilidade e certa capacidade de representação simbólica da organização das funções urbanas na primeira República; e, finalmente, às válvulas redutoras de pressão (VRPs), mecanismos dissipadores de energia, controlados a distância por sistemas informatizados, visíveis apenas por meio de representações de informações espaciais altamente abstratas, assim como os boosters, com função de aumentar a pressão na rede via comando eletrônico. 2 Panorama espacial das redes de distribuição de água: sistema aberto x setores fechados No final do século XIX e início do século XX, na transição da Companhia Cantareira de Águas e Esgotos para a Repartição de Águas e Esgotos (RAE), foi desenvolvido organismo administrativo capaz de planejar e realizar de forma sistêmica e intensa o padrão de abastecimento das águas distantes. Estas águas eram armazenadas e distribuídas para a área urbana por reservatórios estrategicamente localizados. O espaço do consumo da água já não tinha o mesmo poder de representação na vida cotidiana que possuía na época dos chafarizes, anterior à própria Companhia Cantareira de Águas e Esgotos. Mas restava sua presença nos debates dos corpos técnicos e políticos, ainda que apenas como concepções ou diretrizes projetuais (virtuais) para o abastecimento. Atualmente, nem mais neste campo profissional o espaço está presente e vivido em sua complexidade; números e índices são muito mais frequentes que mapas. O planejamento do uso da água e as formas necessárias ao abastecimento é assunto de poucos. A crise hídrica recente que São Paulo enfrenta permitiu colocar novamente na agenda política, técnica e cotidiana um assunto que estava restrito, e recuperar dimensões espaciais implicadas. O Plano de Abastecimento para São Paulo, realizado na RAE por Saturnino de Brito em 1905, apresenta uma abordagem radical do território - da topografia e de suas formas de ocupação - que radicaliza igualmente a implantação do sistema de abastecimento: distribuição de águas altas para zonas altas e de águas baixas e próximas para as zonas baixas (BRITO, 1943, vol. 3, p. 52). Polemiza e dialoga com o raciocínio predominante no meio técnico de sua época - de buscar águas em mananciais distantes - ao sugerir seu inverso, ou seja, que a manutenção permanente da qualidade das águas junto ao sítio - o rio Tietê garantiria para a área de maior crescimento da cidade a generalização necessária que o funcionamento econômico dos sistemas de abastecimento exigem. A compreensão da matriz topográfica deste plano (FIG. 1, p. 4) introduz um eixo de análise interessante para comparação com os demais planos de abastecimento para São Paulo. Brito atribui ênfase e confere significado espacial ao controle da pressão da rede, propondo um desenho cuja topologia resulta não só da interconexão bidimensional de linhas entre nós, mas da premissa de controlar a variante altura, ou seja, cargas hidráulicas, estabelecendo coerência altimétrica na ligação entre sistemas produtores e pontos de consumo. 3 Vamos tomar de empréstimo sua visão integrada para identificar, principalmente na função de controle das pressões, a crescente fragmentação espacial das propostas seguintes para o abastecimento de São Paulo. Na sequência desta marcha histórica, propostas como o plano de abastecimento do engenheiro Whitaker (diretor da RAE), de 1942; o anel adutor metropolitano da Comasp, de 1969; os planos para o Sistema Adutor Metropolitano da Comasp (de 1970 e 1973) e da Sabesp (de 1982 e 1995); as propostas em trabalhos técnicos das últimas décadas para gerenciamento de rede da RMSP, e, mais recentemente, as saídas para contingenciamento do abastecimento em plena crise hídrica, marcam inflexões nos padrões. Padrões que nunca foram realizados completamente, cujo acúmulo resultou numa rede híbrida e complexa. FIG. 1 Plano de Abastecimento para são Paulo, de 1905 A topografia em evidência identifica zonas de pressão (por cores), e é levada às últimas consequências: radicaliza o dilema do padrão de águas distantes com obtenção de águas próximas, no Tietê. (Fonte: BRITO, 1943). Duas condições permitiram que, em 1942, o engenheiro Plínio Penteado Whitaker formulasse um plano de abastecimento para São Paulo de consequências concretas, o primeiro razoavelmente executado. Primeira condição: era possível circunscrever a expansão regular dos serviços e das redes de água a limites de crescimento urbano definido por uma urban fence. Em 1936, no Ato Municipal 1057, a Prefeitura definu um limite claro e preciso onde ocorreria a expansão urbana de São Paulo, enquanto as áreas externas permaneceriam submetidas a regularizações pontuais. Em 1941, esses mesmos limites foram definidos como área de atuação da RAE (Ato 4 1368, in: Revista DAE - Boletim RAE, ano 5, n. 13, 1941), que corresponde à totalidade dos setores de abastecimento desenhados no plano de Whitaker. O princípio de eficiência técnica e econômica dos sistemas de abastecimento exige sua máxima generalização - altos recursos investidos na produção e distribuição de água precisam ser compensados pela ampliação do consumo. A produção das redes de infraestrutura desse momento não se antecipava ao crescimento que ocorria desordenado independente da urban fence definida; subordinava-se e ampliava o processo urbano de segregação espacial, que podemos caracterizar, grosseiramente, como zonas altas urbanizadas e ocupadas pela elite e zonas baixas ocupadas pela população mais pobre. Segunda condição que permitiu o desenvolvimento do Plano de 1942: com a possibilidade de utilização da represa Guarapiranga como manancial de abastecimento, e não mais exclusivamente para geração de energia, foi possível planejar a distribuição de uma oferta crescente de água neste momento. O Plano de Whitaker retomava alguns princípios do plano de abastecimento de Brito, como a idéia de uma distribuição econômica da água em termos de altitude, distâncias, volumes e pressões, mas com algumas simplificações. A primeira qualidade do espaço que se perdeu no plano de Whitaker em relação ao de Saturnino de Brito está representada na interpretação da topografia do sítio acidentado de São Paulo: o plano de Brito trazia zonas altimétricas abertas, em expansão, enquanto o plano de Whitaker apresenta compartimentos de um perímetro - a área urbanizável - como setores de abastecimento, não exclusivamente organizados em função da topografia. São porções territoriais menores, sistemas fechados, com controle de regularidade da oferta por meio de reservatórios setoriais de distribuição. Esta concepção e prática de setorização permaneceu, com alguma transformação, nos demais planos – ora sendo realizada plenamente, ora misturando-se a sistemas abertos. Soluções que seriam mais econômicas para o abastecimento ainda ficaram subordinadas às contingências dos interesses da energia elétrica, como os recursos da Bacia do Alto Tietê. Assim, restava a planejar apenas a grande oferta da Guarapiranga, que impunha a necessidade de transpor a barreira do espigão da av. Paulista ao invés de adequar-se economicamente ao sítio - situação resolvida com as grandes estruturas de elevação das águas até reservatório de Vila América. Não se tratava de desenhar uma solução ideal, mas desenhar a condução da água que estava disponível de fato (MOREIRA, 2008). 5 FIG 2. Mapa do Plano Geral de Whitaker (1942) e diagrama resumo de propostas para a rede. As divisões correspondem à interpretação topográfica para a área abastecível, dividida em setores; as cores identificam os sistemas produtores principais. Abaixo, diagrama ilustrativo das propostas descritas no Plano de 1942. Os círculos representam sistemas produtores e os quadrados representam reservatórios de distribuição. Em preto, elementos existentes; em vermelho, elementos propostos não executados. Apenas o primeiro anel de redundância – junto ao centro – foi parcialmente realizado com a ligação entre os reservatórios do Araçá, Liberdade e Consolação. (Fonte: WHITAKER, 1943, elaboração: autor). 6 Mas o plano de 1942 trazia também novas qualidades espaciais ao propor, como desenho para a rede de distribuição estrutural, conexões redundantes entre elementos de distribuição - os reservatórios setoriais - e os pontos de produção de água, garantindo que a grande oferta da Guarapiranga socorresse setores servidos por outros mananciais menos produtivos (ver mapa do plano com setores de abastecimento e diagrama das propostas para rede, FIG. 2, p.6). Esta qualidade de criar redundâncias permaneceu por pouco tempo na prática da expansão das redes de abastecimento para São Paulo. Com o crescimento urbano acelerado a partir da década de 1960, não só as ligações redundantes tornaram-se defasadas como até mesmo a implantação de conexões de rede simples. A partir da década de 1950, o crescimento de São Paulo assumia escala metropolitana, que alterava a qualidade dos problemas espaciais e sua formulação. Para o saneamento, foram criadas instituições metropolitanas organizadas e especializadas segundo capacidades funcionais dos sistemas: produção, adução, distribuição final. No caso do abastecimento de água para a RMSP, um destes órgãos era a Comasp, responsável pelas funções de produção e adução de água, enquanto aos DAEs e à SAEC cabia a responsabilidade da distribuição final em nível municipal. Em 1969, a Comasp desenvolveu estudos para um sistema de distribuição na RMSP (FIG. 3, p. 8), entre eles, o de anel adutor que circundava toda a área a ser servida, ofertando água a reservatórios estratégicos, a partir dos quais seria redistribuída. A proposta radicalizava a idéia de interligação entre os sistemas produtores do Plano de Whitaker, e o fazia desenhando uma forma correspondente à escala metropolitana. Retomava a leitura do sítio, como fez Brito, sugerindo uma nova geografia: o anel determinaria nova altitude uniforme para o fornecimento geral de água, como se o desenho da função de distribuição principal pudesse simular um manancial ideal, de fornecimento ininterrupto e altitude adequada. Esse desenho tornava desimportante a setorização de áreas de influência, e as áreas de consumo poderiam ser pensadas, novamente, como sistemas abertos em expansão, sendo o limite do abastecimento não o perímetro do anel, mas o alcance da pressão (carga hidráulica) que o anel garantiria. Embora o desenvolvimento da proposta tenha sido inexequível, o resgate desta solução vale como resgate de potência espacial, de raciocínio pelo espaço. Os estudos posteriores de viabilização econômica e adequação para obras do Sistema Adutor Metropolitano, desenvolvidos pela Comasp em 1970 e 1973, transformaram muito a concepção original do anel adutor. 7 FIG 3. Estudo de Anel Adutor para a RMSP, Comasp, 1969. Fonte: BORBA et alli, 1969. Nas adaptações, propunha-se a implantação de um anel estrutural interrompido, aberto, interligado apenas em pontos-chave, e reforçado em trechos próximos à maior oferta de produção de água. Não apresentava premissas relativas à altura e cargas hidráulicas. A área de abastecimento a ser servida voltava a ser pensada na lógica do Plano de Whitaker, como compartimentos fechados determinados pela proximidade aos diversos sistemas produtores, mas agora em função da rede já implantada, e não mais da topografia. Estas propostas foram realizadas de maneira extensa na RMSP na segunda metade da década de 1970, nos primeiros anos de atuação da Sabesp (que fundiu, em 1973, empresas metropolitanas de água e esgoto, a Comasp, entre elas) e dos diversos departamentos municipais do Estado de São Paulo (DAEs e SAEC). O interesse em produzir, na escala do crescimento metropolitano, formas radicalmente novas para a rede de distribuição de água foi abandonada; a possibilidade de invenção de uma segunda natureza possível deu lugar à consolidação de uma segunda natureza contigente. 8 Enquanto esta inflexão acontecia nas capacidades da rede de distribuição, a transformação espacial das capacidades produtoras ganhava porte e transformava em macroescala. Assim, bacias interestaduais eram transpostas para poder aduzir o volume que a metrópole necessitava. A essa potência de transformação, correspondia uma organização institucional de planejamento dos investimentos em âmbito nacional, o Planasa, com companhias executoras na escala administrativa estadual, como a Sabesp. O planejamento da Sabesp para as redes de distribuição de água na RMSP a partir da década de 1980 propunha a expansão do Sistema Adutor Metropolitano seguindo a mesma linha das adaptações da transição Comasp-Sabesp de 1970 e 1973: áreas de influência dos sistemas produtores e interligações da distribuição principal apenas pontuais e necessárias, conforme o ritmo e a localização crescimento da oferta de água. O Sistema Adutor Metropolitano da década de 1970 - SAM -, reforçado ao norte (manancial Cantareira-Juqueí) e ao sul (Billings Guarapiranga), tornou-se a forma perene da rede que resiste até hoje. Com a diferença: o crescimento populacional em altas taxas nas décadas de 1970 e 1980, fora de padrões urbanísticos, e a rápida expansão da rede nos anos 1980, fez com que se abandonasse os critérios de fechamento e arranjo clássico dos setores de abastecimento que a expansão contingente exigia: partes menores dos sistemas fechadas em torno de um reservatório de controle. Também diminuiu o ritmo das transformações na distribuição principal (conjunto adutoras-reservatórios) e aumentou a implantação de equipamentos necessários ao controle da operacão e do consumo, justamente porque grande parte da rede crescia, nos ramos capilares, fora de planejamento. Essas concepções marcam uma inflexão final: a distribuição de água não precisava mais restringir-se ou se impor às inconveniências da topografia, ou às regras clássicas de zonas de pressão e fechamento dos setores de abastecimento controlados por reservatórios de água porque, com a disseminação de equipamentos como boosters e VRPs, tornou-se possível simular e corrigir, concentrada e pontualmente, as pressões necessárias e os problemas de setorização (FIG. 4, p. 10). O resultado é uma rede híbrida, entre o padrão clássico de setores de abastecimento (sistemas de consumo fechados), a solução de um grande anel interligado (que serve sistemas abertos), e a pulverização da rede em pontos de manejo da pressão. A abstração dos diferentes padrões propostos não se concretizou plenamente, eles coexistam como resultados parciais. 9 Na década de 1990 essa rede complexa passou a apresentar crises e panes, e sofrer com racionamentos constantes, que prejudicam a saúde das tubulações. A ação que se intensificou a partir daí foi o desenvolvimento de mecanismos e técnicas gerenciais diversos, cada vez mais especializados em problemas localizados (nas diferentes Unidades de Negócios gerenciais da empresa Sabesp, em sua nova modalidade gerencial da década de 90). Esta prática procurou promover uma sintonia fina entre controle e desenvolvimento, visando à eficiência técnica e operacional das redes e das condições de sustentação financeira dos sistemas a partir de ênfases regionalizadas, simultâneas e variadas. O que se tornou padrão nos últimos 15 anos, entretanto, não foi mais um desenho para a expansão, mas a ação de controle sobre essa rede híbrida. FIG. 4 - Rede de distribuição de água da RMSP, 2008. Mancha Metropolitana com sistema adutor e reservatórios (em vermelho) – elementos pesados - e boosters e VRPs (em laranja e amarelo) – elementos leves. Elaboração: da autora. Fonte: SIGNOS, SABESP, 2008. 10 Base técnica e desenvolvimento institucional A fase final do percurso institucional é fundamental para compreender o desenvolvimento tecnológico tal como descrito, sobretudo da década de 1980 até hoje. Com a crise de sustentação do modelo de financiamento e a extinção do sistema vinculado ao Planasa, o setor sofreu aproximadamente 20 anos de vazio institucional e ausência de regulamentação clara para a atividade. As disputas travadas nesse período reuniam interesses diversos: entre a atribuição da esfera estadual ou municipal pela titularidade do serviço e para organização de sua prestação, e entre a privatização ou manutenção de empresas como empresas públicas. Mesmo após a aprovação do Marco Regulatório em 2007 (Lei Federal n. 11.445), e sua regulamentação em 2010 (Decreto n. 7.217), o setor não definiu a matéria da titularidade dos serviços nas regiões metropolitanas. Essas indefinições geravam problemas para assegurar financiamentos estáveis que os serviços de saneamento exigem. Assim, mesmo antes da aprovação da lei 11.445, as empresas de saneamento já tinham implementado dinâmicas e percursos próprios de acomodação e viabilização, e passaram por transições próprias de modernização. O debate em torno do marco regulatório para o setor mostrava-se atrasado em relação aos processos reais. No caso da Sabesp, a empresa desenvolveu dinâmica financeira específica, baseada na diversificação de fontes de recursos por meio de variados financiamentos privados nacionais e internacionais e pela abertura de seu capital no mercado de ações, mantendo o Governo do Estado como acionista majoritário. Questões institucionais e desenvolvimento tecnológico se auto-determinam, mas essa noção não foi plenamente incorporada na lei. A regulação da atividade poderia levar em conta as diferentes capacidades do sistema, e definir titularidades específicas em função da fase do serviço: produção, captação, distribuição principal, distribuição municipal, sistema comercial, etc. Mas a titularidade permaneceu como conceito integral no marco legal, apenas fracionada em atividades: fornecimento de água, esgoto, drenagem e resíduos sólidos. Assim, no último período de expansão da rede de distribuição de água para a RMSP, o que se faz presente são os interesses de máxima abstração do capital de um mercado de grandes proporções, não fracionado. Os espaços, abaixo das tampas dos poços de manobra e medição, enterrados, parecem não ter mais matéria, pertencem aos números e à forma abstrata da rentabilidade de seus investimentos e financiamentos. O gigantismo alimenta essa invisibilidade. 11 Tal racionalidade determina também os novos contratos revistos com os municípios, com o fim do prazo de vigência das concessões do período do Planasa. No caso do contrato com São Paulo, reestabelecido em 2010 (que segue a mesma linha que com os demais municípios), o equilíbrio econômico-tarifário é a pedra de toque do acordo, que retoma, na prática, a questão da titularidade dos serviços. O contrato apoia-se na lei municipal 14.934 de 2009, que permite ao município estabelecer convênio com o Estado, com a agência reguladora estadual, ARSESP, e com a Sabesp; e no convênio, em que o município concede, independente das decisões acerca da titularidade dos serviços que venham a ser definidas, a regulação à ARSESP por 30 anos. Os investimentos estão atrelados às garantias de retorno tarifário e às metas estabelecidas no Plano de Saneamento Municipal e no Plano de Investimento da empresa. A execução do Plano de Saneamento, embora sendo atribuição municipal, vincula-se a uma série ações e metas de obras compartilhadas na área metropolitana atendida pela empresa. Todos os parâmetros de desempenho para avaliar o atendimento das metas são estabelecidos e aprovados pela agência reguladora, que é também estadual. Esse arranjo mantém o município limitado em sua capacidade de regular as atividades prestadas pela empresa, e imobilizado a impor as condições de interesse municipal, como, por exemplo, relativa ao cruzamento de subsídios dentro do território municipal - que a receita de áreas solváveis possam socorrer as áreas não solváveis. Ao município coube, em contrato, participar do Conselho gestor do Fundo Municipal de Saneamento Ambiental Integrado, o FMSAI, que define o destino de parte das receitas municipais para ações integradas em saneamento - especialmente relacionadas ao atendimento das urbanizações em áreas precárias. Isto porque, no acordo, está definida uma nova urban fence para o município, com uma área abastecível pela empresa que corresponde a áreas urbanas formais somadas às áreas informais conhecidas pelo município e com projetos os perímetros dos projetos de urbanização de favelas Renova São Paulo. Assim, fica a cargo do município fiscalizar e controlar as áreas precárias em seu território fora das áreas abastecíveis, pois a empresa, por contrato, não assume obrigações de prestar atendimento nessas áreas. TECNOLOGIAS DA UNIVERSALIZAÇÃO PRECÁRIA Nos primeiros Programas para abastecimento de água em favelas vigentes até 1983 - realizados por convênio entre Prefeitura Municipal de São Paulo e Sabesp entre 1979 e 1982 (ProFavela e ProÁgua), com tarifas reduzidas - a companhia atuava por meio de normas 12 e exigências bastante restritivas se comparadas à realidade espacial que deveria enfrentar. Eram estipuladas 3 modalidades de ligação: individual, para domicílios situados na frente da via pública oficial; coletiva, composta de um cavalete e torneira, para atendimento à população moradora dos barracos internos das favelas; e individual secundária, proporcionada por prolongamentos de rede nas vielas internas. Esta última modalidade (vinculada ao Programa ProFavela) era condicionada à existência de projeto de urbanização sob responsabilidade da prefeitura (SEMEGHINI e ARAUJO: 1983, p. 3). Como estas medidas não permitiam o abastecimento homogêneo para o conjunto de moradias que compunham uma favela, instituía-se, no cotidiano dos moradores, a prática de empréstimos e comércio informal de água. Estes empréstimos aconteciam pela extensão de inúmeros ramais de ligação a partir dos cavaletes existentes, com tubos de PVC assentados pelos moradores para atendimento de até 30 ou 40 barracos, aumentando o risco de vazamentos e de contaminações da água. Frequentemente, essas extensões não eram cadastradas como economias de água pertencentes à determinada ligação, o que ocasionava, por parte da companhia, a classificação de tal ligação em faixas de consumo muito altas, nas quais incide maior tarifa por m³ consumido. E, em muitos casos, ainda mantinha-se o abastecimento a partir da captação de poços rasos, em geral contaminados pelas próprias condições de implantação do núcleo de favela (SEMEGHINI e ARAUJO: 1983, p. 4). Embora os primeiros programas para abastecimento em favelas já tenham mais de 30 anos, as condições espaciais de saneamento desses territórios ainda são precárias: casas são ampliadas e novas casas adensam os núcleos que já têm abastecimento regular, e servem-se do atendimento vizinho com mangueiras e redes PEAD perfuradas em meio a valas de esgoto. Desde 1983 houve, na rotina da empresa, atualização e incorporação de novos padrões técnicos e procedimentos para regularização e atuação em escala nas situações de precariedade. Recentemente, realiza-se o acompanhamento mais próximo destas situações vem por uma categoria de funcionários denominada ‘Comunitários da Sabesp’ - que exercem controles sociais sobre uma realidade que os aparatos tecnológicos não alcançam. Ainda assim, os problemas de saneamento são muito parecidos com o de 20 e 30 anos atrás, e as situações de precariedade são mais densas. Na trajetória de demandas por atendimento de redes em favelas, as pautas políticas das associações de bairro e os discursos das lideranças também se transformaram, incorporaram critérios institucionais e técnicos, corrigiram conteúdos, direções e estratégias (WATSON, 1992). Uma conquista polêmica nesta luta foi a concessão da "tarifa favela", em 13 1984, tarifa fixa por economia independente da medição do consumo. A partir deste momento, a Sabesp deixou de instalar medidores nas áreas atendidas anteriormente com tarifa reduzida, principalmente na entrada das vielas. Pela lógica da empresa, seria um custo desnecessário, e a colocação dos hidrômetros poderia ter apenas o sentido de controlar o macro fornecimento sem qualquer impacto tarifário. Para a população beneficiada pela tarifa favela, o cadastramento das ligações de água por economia também deixava de ser interessante porque, quanto menos economias cadastradas, menos se pagava, com o rateio de uma única economia por diversos consumidores. Na empresa há registros de que, depois dessa concessão, a pressão popular por água reduziu drasticamente. Mas, ao não realizar a expansão com qualidade uniforme, comparada a outras áreas de atendimento mais antigo e formais na cidade, e sendo constantes as panes e suspensão de abastecimento, as demandas populares transformaram-se novamente, e passaram a exigir qualidade no serviço. Neste sentido, a interação entre Sabesp e movimentos por demanda de água em um loteamento clandestino na zona Norte de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990 - o Jardim Damasceno, estudado por (WATSON, 1992) - é específica e exemplar: os problemas técnicos do abastecimento nesta localidade permitiram o desenvolvimento de inovações tecnológicas que foram generalizadas para o espaço metropolitano recentemente, apresentados no mapa dos elementos de rede da última década (FIG. 4). Após a expansão das redes da década de 1980 no padrão favela neste local, a companhia, já na década de 1990, teve que responder às reivindicações por regularidade no abastecimento, e o fez com aumento da pressão nas redes. Esta medida prejudicou condições de segurança, uma vez que as perdas d'água na rede decorrentes da alta pressão infiltravam no solo, causando desestabilização, movimentação e processos erosivos. A demanda dos moradores também assumiu viés técnico: depois de acessar a prefeitura para se queixar dos arrimos supostamente mal feitos nas obras de urbanização e ter compreendido que o problema era da empresa concessionária de água - a Sabesp -, e depois de compreender, também, que os procedimentos para reduzir a pressão na rede não eram decisões que pudessem ser tomadas no âmbito das rotinas estabelecidas nos escritórios regionais da empresa, voltou a dirigir-se a posições mais centrais da companhia: as lideranças passaram a exigir a redução de pressão na rede e a instalação de válvulas redutoras de pressão, VRPs. Em nossa pesquisa, pudemos comprovar que a aplicação das VRPs nessa situação pontual serviu como piloto para a empresa. Passou por posterior aprimoramento e adaptação 14 na Sabesp para serem implantadas em escala metropolitana, e resolver complexidades e dificuldades de controle na expansão da rede como um todo. O resultado não poderia ser mais contraditório: a tecnologia que surgiu para resolver uma situação de precariedade generalizou-se visando eficiência econômica da expansão das redes e do sistema de abastecimento. No entanto, os problemas de abastecimento das áreas precárias resistem, se reproduzem, e repetem certas qualidades espaciais já conhecidas: forma e uso precários, apesar de toda elaboração técnica que possa haver na interação política. Os funcionários ‘Comunitários da Sabesp são tecnologia recente que, assim como as VRPs, procuram corrigir e uniformizar o que é desigual. Eles são a forma de controle possível que a Sabesp conseguiu empreender e consistem em um controle sobre redes que possui a dispersão espacial mais heterogênea na RMSP: atuam somente nas áreas precárias, em que o aspecto da universalização que está em risco é o da segurança (oficialidade) no acesso. Seu objetivo é controlar e regularizar pressões políticas. A ação política que reivindica a universalização de certos padrões espaciais é fragmentada e fragmentária, assim como a racionalidade que os produz, e as funções econômicas e agentes políticos que constituem instituições do fundo público. Nas estratégias desta luta real, índices irreais e critérios abstratos entram no pacto, enquanto problemas concretos são negligenciados. A tarifa fixa, direito conquistado em 1984, foi revogada. Hoje a empresa promove, por meio dos funcionários ‘Comunitários’, a oficialização das ligações e economias de água com cadastramento em massa para o benefício da tarifa social. Esta nova modalidade tarifária estabelece critérios para conceder o subsídio, que consiste na isenção de metade do valor consumido em determinada ligação. Os critérios para esse benefício são exigentes: limite de área máxima da residência, consumo máximo em kw e consumo máximo de água. Enquanto estruturas institucionais remanescentes do percurso de formação institucional e declínio de um fundo público específico para saneamento - o Planasa, representado na Sabesp - buscam sua reprodução e permanência no tempo acelerado das fronteiras financeiras do capital, as carências sociais são representadas como forças políticas frágeis, que fragmentam cada vez mais sua ação política e mantém sua mobilização latente, mas em um tempo lento e desinformado dos processos econômicos. Essa economia acelerada impõe margens às possibilidades políticas. 15 CRISE E DIFERENÇAS, CRISE E MUDANÇA Na história da urbanização, a generalização necessária das diversas funções de serviços urbanos revela, inicialmente, uma imposição aos aspectos da vida cotidiana. Posteriormente, a função adquire status de necessidade, vivida e reivindicada como direito, como universalização desejada. Mas a universalização completa é, ao mesmo tempo, limite e risco do próprio sistema ou função urbana. Os elementos que orientam a compreensão da atual crise de abastecimento por que passa a Região Metropolitana de São Paulo têm composição complexa, e que extrapolam os objetivos deste artigo. A crise é ambiental, política, institucional, e técnica: do sistema, da gestão da oferta - dos sistemas produtores, da gestão da demanda, e das diferentes formas que estruturaram tal rede. Mais do que compreender as razões da crise e as ações de seu contingenciamento, as análises traçadas até aqui permitem levantar indícios de como a crise é vivida diferentemente na cidade. Quem sofre mais e por que? Essas diferenças têm relação com a forma da rede? Pelo histórico traçado até aqui, tudo indica que sim. Como vimos, em zonas que se estruturaram por processos informais, ainda que regularizadas, predomina a configuração de redes não setorizadas, ou com setores grandes e abertos. Por contar com poucos dispositivos de controles e manobras, essas áreas são as que mais sofrem com as medidas de contingenciamento, pois não existem alternativas a manobrar. A universalização precária cobra seu preço. Estas áreas correspondem a zonas com alto índice de fraudes ou usos sociais e, provavelmente, altos índices de vazamento junto aos pontos fraudados. Perdas reais ou físicas (vazamentos) e aparentes ou não físicas (volumes consumidos e não faturados) se misturam. As ações planejadas para controle de perdas da empresa envolvem fases distintas: primeiro, com poucos resultados imediatos, a implementação de setorização na rede, com instalação de controles de medição e macro-medição e dispositivos de controle da pressão e manobras. Posteriormente pode-se entrar com rotinas para controle dos vazamentos, da água que é produzida e efetivamente perdida. Do total de perdas, em torno de 40% do que é produzido, aproximadamente 10% corresponde a fraudes, 10% corresponde a usos sociais (autorizados e não faturados), e 20% corresponde a vazamentos de fato. Da mesma forma, em zonas com poucas redundâncias (interligação entre sistemas produtores) as alternativas de socorro ficam prejudicadas. Atualmente, as zonas abastecidas pelos sistemas Cantareira e Alto Tietê que podem ser abastecidas também pelo sistema 16 Billings Guarapiranga, Rio Claro ou Alto e Baixo Cotia sofrem menos que aquelas que tem redundância apenas entre os dois primeiros sistemas (caso das zonas leste e norte da metrópole). Sofrem porque a medida de contingenciamento tem sido a redução geral de pressão na rede. E, nestas condições, uma última diferença no espaço da rede pode ser explicitada, e que independe da região em que se encontra, mas tão somente da tecnologia empregada nas instalações da edificação. Com a adoção das medidas de gestão da pressão, sofrem, na crise, aqueles imóveis que não possuem sistema de reservação próprio, ou adequadamente ligado a todos os pontos de consumo. Um dado é curioso: desde o fim do racionamento da década de 90, com a oferta de água relativamente estável, as caixas d´água, que marcavam a paisagem das periferias informais, foi relativamente reduzida, e desapareceram de algumas casas. Outra questão é que a pressão mínima estabelecida por norma para o abastecimento público é menor em 5mca em relação à pressão mínima considerada nas normas para abastecimento domiciliar. Em situações de crise, aquilo que estava encoberto tende a sair da condição de invisibilidade. A compreensão técnica dos sistemas pode auxiliar tanto nas formulações institucionais como nos regulamentos e procedimentos de controle da atividade e para a prestação de um bom serviço. A exposição do processo histórico de estruturação da rede de distribuição aqui apresentado pretende ser uma contribuição nesse sentido. Enquanto o tema tende a ser revivido na situação de colapso atual, convivemos com um cenário de desinformação constrangedora. Com quem está o controle? Como se chega a esta crise sem que a empresa enfrente, com a mesma ordem de transtorno, os retornos aos acionistas? Quem detém o conhecimento da eficiência e como o interesse do município é resguardado? O conhecimento técnico das redes e seus processos de constituição pode ser um aliado importante para formular respostas a estas perguntas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRITO, S. F. R. 1943. Obras completas de Saturnino de Brito, Volumes III, XVII e XIX. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. BORBA Jr., MEIER, E., MARINCEK, C. E. & HIORI, H. 1969. Sistema de Adução de Água Potável para a Grande São Paulo. Revista DAE, n. 72, jun - ano 29. 17 COMASP-ASPLAN. 1970. 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