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Não Existem Direitos, sem Erradicar Violências: Estudo Sobre Feminicídios no Brasil

2024, Análise crítica dos direitos humanos

Nas últimas décadas, entre dinâmicas e agendas políticas, verificou-se a mobilização do Estado brasileiro para a promoção da igualdade de gênero, a fim de possibilitar o exercício e a garantia dos direitos humanos das mulheres, através de iniciativas institucionais e a construção de marcos legais. Tomando um contexto temporal do Tempo Presente, em 2015, foi promulgada a Lei nº 13.104/2015, definindo feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio cometido contra mulheres, em razão do sexo. Um mecanismo que revela intenções e está inscrito no processo de constituição de políticas públicas e ajustes feitos após a Lei Maria da Penha (2007). No entanto, os números continuam alarmantes, então, através da abordagem metodológica de cariz qualitativo e com uso de documentação oficial institucional, tanto para contexto internacional quanto para nacional, revelando procedimentos de coleta de dados a partir de revisão de literatura e bancos de dados governamentais, propõe-se apresentar como resultados novos procedimentos de recolha entre os setores de Segurança Pública, analisando o aumento significativo nos casos de feminicídios nos Estados selecionados (São Paulo, Bahia e Pernambuco), especialmente com o recorte temporal que envolve a crise sanitária e processos de isolamento vivenciados entre 2020 e 2021.

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Any other forms of assignment of use of the work, without the prior written authorization of the copyright holders, are considered prohibited. Process of evaluation is the system of double-blind peer review The original selection procedure adjusts to specific research criteria, in which it is indicated that the admission of published papers responds to quality criteria comparable to those required by scientific journals, namely double-blind peer review evaluation by the Scientific Committee composed of doctorates that they evaluate in accordance with the expertise of the matter. 3 Ficha Técnica © 2024 Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos– IBEROJUR Título: Análise Crítica dos Direitos Humanos Coordenadores: Fábio da Silva Veiga e João Proença Xavier Edição e Diagramação: Larissa de Souza Cunha Ouchi Capa: Bruna Peres © [Autores vários] Suporte: Electrónico; Formato: PDF/ PDF/A. ISBN: 978-989-35342-6-7 1ª edição: Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos e Coimbra Business School. Rua de Avilhó, 214, Matosinhos (Porto) - Portugal. Janeiro, 2024 Depósito Legal - Biblioteca Nacional de Portugal n˚: 524560/23 Citação: VEIGA, Fábio da Silva; XAVIER, João Proença. Análise crítica dos direitos humanos, Porto-Coimbra: Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos e Coimbra Business School, 2024, 467 págs. ISBN: 978-989-35342-6-7 4 Apresentação O Coimbra Business School e o Instituto Iberoamericano de Estudos Jurídicos IBEROJUR uniram esforços para realizar com sucesso o III Congresso Internacional sobre os Novos Desafios dos Direitos Humanos (III CINDHU). Este evento, dedicado ao tema "Direitos Humanos na Agenda Ibero-americana", teve lugar em formato híbrido, permitindo a participação tanto presencial quanto online, nas instalações da Coimbra Business School, em Coimbra, Portugal, em 18 de julho de 2023. O tema central desse congresso, "Direitos Humanos na Agenda Ibero-americana", foi abordado de maneira aprofundada por diversos pesquisadores e acadêmicos, cujas contribuições fundamentais agora são compiladas na obra que temos o privilégio de apresentar: "Análise Crítica dos Direitos Humanos". Este livro não apenas reflete a qualidade e a diversidade das discussões promovidas durante o III CINDHU, mas também oferece uma visão abrangente sobre as complexidades e desafios contemporâneos que permeiam o cenário dos direitos humanos. Ao reunir o conjunto dos trabalhos dos investigadores participantes, a obra proporciona uma análise crítica e aprofundada, enriquecendo nosso entendimento sobre um dos temas mais cruciais da atualidade. Nossos agradecimentos sinceros aos organizadores, participantes e colaboradores que tornaram possível a concretização deste congresso e a publicação desta obra notável. Convidamos todos a explorar as páginas deste livro e a se envolverem nas reflexões e insights valiosos que certamente encontrarão ao longo desta jornada intelectual. João Proença Xavier Fábio da Silva Veiga 6 Sumário Migration and Human Rights: an Analysis of Cooperation between Morocco, Spain and Portugal………………………………………………………………………………...11 Ibtissam Ghaich Cambio Climático, Inseguridad Alimentaria y Migraciones: Breve Aproximación Criminológica ......................................................................................................... 23 Ana Isabel García Alfaraz A Cultura Política nas Sociedades Ibero-Americanas: Tradições Autoritárias e os Esforços de Democratização no Brasil ................................................................... 38 Alisson Eugênio Onde Reside a Saúde Pública? Uma Pesquisa Documental sobre a Relação entre o Direito à Moradia e a Pandemia de Covid-19 no Brasil........................................... 70 Ana Carolina Campara Verdum Vulnerabilidade e Direito ao Cuidado do Idoso em Portugal: Análise do Regime do Acompanhamento de Maiores ................................................................................ 85 Ana Carvalho Isabel Restier Poças Violação aos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes em Situação de Refúgio Desacompanhados ou Separados, Diante da Negativa de Solicitação Direta de Reconhecimento da Condição de Refugiado Junto à Polícia Federal Brasileira 97 André Viana Custódio Johana Cabral Direitos Esterilizados e Preconceitos Compulsórios: Efetividade do Direito à Parentalidade Adotiva por Pessoas com Deficiência Mental e Intelectual............. 112 Bruna de Moraes Costa Larissa Isijara Valentim Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza Direitos Humanos e Reprodução Assistida no Contexto Europeu: O Uso da Tecnologia Reprodutiva como Direito Fundamental à Saúde ............................... 128 Bruna Guesso Scarmagnan Pavelski Luna Stipp Os Desafios Dos Educadores Frente Às Demandas De Abuso Sexual De Crianças e Adolescentes Junto À Rede De Proteção ............................................................... 134 Camila Sanchez Granemann O Controle Preventivo de Convencionalidade no Legislativo Brasileiro: uma Análise de sua (IN)Aplicação na Reforma Trabalhista de 2017 .......................................... 141 Daniel Cavalcanti Magalhães Thiago Oliveira Moreira 7 Direitos Humanos e Sociedade de Informação: Perspectivas para a Proteção dos Indivíduos nos Contratos Digitais ......................................................................... 156 Daniel Marinho Corrêa Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador Controvérsias do Caso Belo Sun no Brasil sob a Perspectiva dos Direitos Humanos e Atividade Empresarial ......................................................................................... 171 Elisa Alberini Roters Gisele Jabur “Pós-Verdade, Fake News e a Influência da Desinformação nas Últimas Eleições Brasileiras” ............................................................................................................ 186 Elizeu de Oliveira Santos Sobrinho Mayara Martins Klem Pamela Kafka Racismo no Brasil, Mercado de Trabalho, Favoritismo de Grupo e o Desrespeito à Constituição de 1988 da República Federativa do Brasil ........................................200 Felipe da Silva Corralo Chagas Caio Leonardo Corralo Tornicasa Guilherme Schmidt Hayama Reflexões sobre a Concepção Coletiva da Reparação Integral às Vítimas de Violência do Estado ............................................................................................... 210 Fernanda Andrade da Rocha Isabella Arruda Pimentel Zilda Letícia Correia Silva Desmatamento da Floresta Amazônia: da Necessidade de Meios de Promoção A um Meio Ambiente Saudável .................................................................................223 Franciele Barbosa Santos Indyanara Cristina Pini Daniela Braga Paiano Não Existem Direitos, sem Erradicar Violências: Estudo Sobre Feminicídios no Brasil ......................................................................................................................235 Gabriela Maria Pinho Lins Vergolino Isabela Vince Esgalha Fernandes Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti A Tutela Jurisdicional Efetiva como Direito Humano e o Desafio da Execução Trabalhista no Brasil: a Juridicidade da Utilização das Medidas Executivas Atípicas ...............................................................................................................................248 Jeaneth Nunes Stefaniak Maria Carolina Dal Prá Campos 8 Transparência Empresarial: Um Paradigma Necessário para a Efetividade dos Direitos Humanos nas Relações Privadas. ............................................................ 261 João Emilio de Assis Reis Direitos Humanos na América Latina e a importância da Corte Interamericana de Direitos Humanos .................................................................................................276 João Proença Xavier Giovana de Morais Figueiredo Cruz A Justiça Restaurativa e a Mediação como Promotores do Exercício da Cidadania e sua Principal Aplicabilidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro.........................284 Júlia Gomes Pereira Maurmo Mariana Carvalho Sampaio Victória de Oliveira Terra Violências de Gênero no Âmbito do Trabalho Sob à Ótica da Convenção 190 da OIT: uma Análise Estrutural da Organização das Relações de Trabalho no Brasil ...............................................................................................................................298 Marcela Bittencourt Brey Mayara Pereira Amorim A Dignidade da Pessoa Humana e a Prova no Processo Penal Português ............309 Marco Miguel Pereira Rodrigues Patrícia Anjos Azevedo A Lei 13/2016 de 23 de maio – Uma Análise Jurisprudencial .................................323 Maria de Fátima Gonçalves Braga Tendências e Desafios no Controle de Convencionalidade: Uma Análise do Supremo Tribunal Federal Brasileiro .....................................................................337 Melina Girardi Fachin Yago Paiva Pereira A Cidade Educadora como Agente Emancipatório no Exercicio da Cidadania Participativa ...........................................................................................................352 Nathalia Viana Lopes Joel Bombardelli O Notariado brasileiro na execução da política pública de acesso à justiça – casamentos de pessoas do mesmo sexo nos Cartórios de Registro Civil ...............367 Orlando de Souza Padeiro Filho A Responsabilidade dos Estados nas Causas e na Erradicação da Apatridia no Século XXI ............................................................................................................. 381 Ricardo Cotrim Chaccur Alice Bordignon 9 A Teoria Geral dos Precedentes à Luz dos Sistemas Regionais de Direitos Humanos ...............................................................................................................396 Sérgio Assunção Rodrigues Júnior Lucas Ramos Krause dos Santos Rocha Pessoas Transgêneras e a Materialidade de Direitos Formalmente Conquistados: O Papel das Empresas no Brasil ................................................................................409 Silvia Turra Grechinski Uma Resposta Decolonial à Crise dos Direitos Humanos ..................................... 416 Silvia Turra Grechinski Ramon Gabriel Conti A Fiscalidade Verde como Garante do Direito a um Meio Ambiente Saudável .....429 Susana Aldeia Envelhecer no Constitucionalismo Digital: Facilitação dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas ou Condicionamento da Garantia de Direitos? .............................437 Tatiana Tomie Onu A Necessidade de Releitura do Direito Real de Habitação face à Tutela Constitucional dos Vulneráveis ..............................................................................453 Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza Clarice Vieira Pádua 10 Migration and Human Rights: an Analysis of Cooperation between Morocco, Spain and Portugal Ibtissam Ghaich1 Abstract: Given its important geographical location, Morocco is an actual link between Europe and Africa, and it is not only considered a transit country to Europe but also a host country for migration. Although this "strategic" geographical position is often seen as a privilege, the country faces at the same time significant socio-economic and political challenges. In this context, migration presents one of the significant regional challenges. Morocco, aware of the complexity of the migration phenomenon, is constantly working with its close partners, in this case Spain and Portugal, to enable better migration management based on the principles of respect for fundamental rights, and addressing challenges linked to migration, such as human trafficking and border violence. This cooperation focuses primarily on strengthening protection mechanisms, raising awareness and implementing human rights-respecting policies. However, despite all these efforts, challenges remain. A qualitative approach based on the analysis of official documents will be used to address this issue in two parts: Firstly, the advances made by Morocco in the field of migrants' rights. Secondly, Cooperation between Morocco, Spain and Portugal in the field of migration. Keywords: human rights; migration; cooperation; security; Morocco; Spain; Portugal. Introduction: “Migration is a crucial global issue for Our Continent, and one that needs to be brought back to its real proportions, far removed from the myths that project a scandalously distorted image. It deserves a new Afro-centric approach that reconciles realism, tolerance and the primacy of reason over fears. (...) Since 2015, more than 6,200 African migrants have lost their lives in the Mediterranean. So that the deaths of women, children and men in Lampedusa and the filthy practices in Libya have not been in vain, it is our duty to act!” 2 Morocco, Spain and Portugal, neighboring states in the Mediterranean region, are directly concerned by migratory flows, given their strategic geographical position as transition points between Africa and Europe. They attach great importance to the issue of migration, and share a common ambition to cooperate towards better migration management based on respect for fundamental rights. Their cooperation aims to tackle specific migration challenges, such as human trafficking and border violence, by adopting a collective and coordinated approach. Despite the efforts, these challenges remain, confirming the need for ongoing collaboration to achieve lasting solutions. PhD. Student at the university Mohammed V – Rabat (Morocco). [email protected] / [email protected] 2 Extract from the Speech by His Majesty King Mohammed VI on the 30th African Union Summit, January 29, 2018, in Addis -Ababa. 1 11 This study examines two findings that raise significant concerns about implementing of migration law. On the one hand, international law calls for the adoption of political measures to guarantee the protection of migrants' rights, in particular their right to life, dignity and non-discrimination. On the other hand, many countries invoke economic and/or political motives to uphold the right to security and national sovereignty, which makes them reluctant to welcome migrants. This position significantly complicates the implementation of migration law in a way that fully respects migrants' fundamental rights. Therefore, with this in mind, we can ask this question: “How are Morocco, Spain and Portugal working to reconcile human rights imperatives with political and economic concerns in the management of migratory flows?” A qualitative approach based on the analysis of official documents will be used to answer this question in two parts: Firstly, the advances made by Morocco in the field of migrants' rights. Secondly, cooperation between Morocco, Spain and Portugal in the field of migration. I. Morocco’s Achievements in the Field of Human Rights and Migration Morocco has made significant progress in human rights and migration, demonstrating its commitment to promoting a more inclusive and just society. The country has taken proactive measures to address the challenges of migration. It has adopted a comprehensive approach that prioritizes the well-being of migrants and refugees. By working with international organizations and regional initiatives, Morocco has sought to create safer and more humane migratory pathways, while also combating the trafficking of human beings and promoting socioeconomic integration. 1. Respect of Human Rights “The special relationship between Morocco and the countries of sub-Saharan Africa is not just political and economic. They are, at heart, age-old human and spiritual ties. Given the situation prevailing in some of these countries, many of their citizens immigrate to Morocco, legally or illegally. Once a gateway to Europe, our country has become a destination of residence. In view of the significant increase in the number of immigrants from Africa and Europe, we have invited the government to draw up a new global policy on immigration and asylum, based on a humanitarian approach in line with our country's international commitments and respectful of immigrants' rights”3. Extract from the Speech of His Majesty the King addressed to the nation on the 38th anniversary of the Green March. Rabat, November 6, 2013. 3 12 Morocco has always asserted its interest in managing migration issues linked to Europe, while respecting the human rights and international laws to which it is a party. The aim is to positively regulated migratory flows in order to build a shared social space and promote the well-being of people in the Mediterranean region. Of course, respect for human rights in handling migration issues is fundamental, and in line with Morocco's ongoing commitment to democratization. Morocco's 2011 Constitution reaffirms its commitment to the universally recognized human rights principles. In its preamble, the Constitution states: "The Kingdom of Morocco...reaffirms its commitment to human rights as universally recognized, as well as its determination to continue working to preserve peace and security in the world"4. In addition, article 30 states that: "Foreigners enjoy the fundamental freedoms accorded to Moroccan citizens, in accordance with the law. Those residing in Morocco may participate in local elections by virtue of the law, the application of international conventions or reciprocal practices"5. Morocco has ratified several international human rights instruments, including the: International Convention on the Protection of the Rights of All Migrant Workers and Members of Their Families (1990), or during the World conference of human rights in Vienna (1993). The Convention on the Rights of the Child (1989), the Convention against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment (1984), and finally the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (1979). The rights stated in these conventions apply to all migrants, whether legal or illegal, voluntary or involuntary. 1.1 Morocco's Actions to Protect Migrants' Rights Morocco has made significant achievements in the field of migrants' rights, demonstrating its commitment to the protection and promotion of these fundamental rights. Firstly, Morocco supports international and regional efforts in migration governance, including the Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration. The conference to adopt this pact was held in Marrakech in December 2018 under the auspices of the United Nations. On the African scene, Morocco's efforts and initiatives were recognized by the appointment of King Mohammed VI as the African Union's champion on the issue of migration. These efforts also led to the creation of the African Migration Observatory, officially inaugurated in Rabat in 2020, aiming to "improve overall migration governance in 4 5 Royaume du Maroc, Secrétariat Général du Gouvernement, (2011), Constitution, préambule. Ibid. article 30. 13 Africa, working to fill gaps in migration data and guiding African countries in developing effective migration policies"6. Since 2014, Morocco has had a national migration and asylum strategy, which aims to ensure better integration of migrants and refugees while promoting their access to rights and public services without discrimination. This strategy is based on implementing programs covering key sectors such as education, health, employment, legal and social assistance, border management, and strengthening of international cooperation and partnerships. By adopting a participatory approach, this strategy has achieved four main objectives. These are to facilitate the integration of regular immigrants, improve the legal framework, establish an appropriate institutional structure and manage migratory flows with due respect for human rights7. Since the implementation of the National Immigration and Asylum Strategy, significant measures have been put in place, leading to the regularization of thousands of irregular migrants, equal access for migrants and refugees to public services with Moroccan citizens, and improvements to the regulatory framework. In this context, Morocco has undertaken an exceptional process to "regularize the situation of nearly 50,000 migrants present on its territory between 2014 and 2017"8. Morocco is committed to managing migration in an inclusive and dignified manner. Law No. 02-03 of 20039 on the entry and residence of foreigners in the Kingdom of Morocco, emigration and illegal immigration is entirely in line with the international conventions to which Morocco is a party. In other words, this law aims to ensure that the entry and residence of foreigners in Morocco is in accordance with national law and the country's international commitments, and to establish a clear and coherent legal framework for the management of migratory flows. The most important provisions concern entry requirements, visa and residence authorization, the regularization of aliens, the rights and obligations of aliens, the expulsion of aliens on grounds of national security and criminal penalties. Morocco has also adopted the Moroccan Nationality Code 10, Article 11 of which Statut de l’observatoire africain des migrations, Adopté par la trente-troisième Session ordinaire de la Conférence, tenue à Addis-Abeba, Ethiopie, le 10 février 2020, article 3. 7 Royaume du Maroc, ministère chargé des marocains résidant à l’étranger et des affaires de la migration, Stratégie Nationale d’Immigration et d’Asile, 2013. 8 Nations Unies, « Maroc : le Comité des travailleurs migrants porte son attention sur l'incident de l'été dernier qui a fait plusieurs morts parmi des migrants qui tentaient de passer la frontière entre le Maroc et l'enclave espagnole de Melilla » :https://www.ohchr.org/fr/news/2023/03/dialogue-morocco-experts-committeemigrant-workers-commend-migration-policy#:~:text=%C3%80%20cet%20%C3%A9gard%2C%20le% 20pays,des%20%C3%AAtres%20humains%20en%202016. (consulted on 10/07/2023). 9 Dahir n° 1-03-196 du 16 ramadan 1424 (11 novembre 2003) portant promulgation de la loi n° 02-03 relative à l'entrée et au séjour des étrangers au Royaume du Maroc, à l'émigration et l'immigration irrégulières. 10 Dahir n° 1-58-250 du 21 safar 1378 (6 septembre 1958) portant code de la nationalité marocaine. 6 14 lays down the conditions under which foreigners may apply for Moroccan nationality by naturalization. The country also adopted anti-trafficking law 27.14 in September 2016, which prohibits all forms of human trafficking. This law imposes penalties ranging from five to thirty years' imprisonment, which are sufficiently strict, in line with the United Nations Convention against Transnational Organized Crime, and proportionate to those imposed for other serious crimes, such as rape. On the institutional front, the National Commission for the Coordination of Measures to Combat and Prevent Human Trafficking recently adopted the National Plan to Combat and Prevent Human Trafficking 2023-2030, as well as the National Referral Mechanism for Victims of Human Trafficking. This testifies to the country's commitment to combating this phenomenon and putting in place an integrated and effective national response to this crime. Finally, Morocco has consolidated its international partnerships by strengthening its cooperation with organizations such as the International Organization for Migration (IOM) and the Office of the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR). The country is currently playing an active role in regional and international migration initiatives, which facilitates the coordination of efforts and the sharing of best practices. For example, Morocco has worked closely with the IOM to set up programs for the voluntary return and integration of migrants. "In 2020, 3,693 migrants (2,699 men, 994 women) requested assisted voluntary return. IOM and its partners were able to organize the safe and dignified return of 796 of them to 23 countries, depending on the financial resources available"11. It has also cooperated with the UNHCR to improve the protection of refugees and asylum seekers on its territory. Moreover, "The Minister of Foreign Affairs, African Cooperation and Moroccans Residing Abroad (MAEC) is the UNHCR's main contact. The UNHCR also works with key ministries, law enforcement agencies and other institutions"12. II. Cooperation between Morocco, Spain and Portugal in the Field of Migration Spain and Portugal are both members of the European Union (EU), which means that the policy of cooperation between Morocco and the EU on immigration matters has a direct impact on their states. That said, Portugal and Spain are bound by common immigration and border management policies and regulations. Decisions taken within the framework of 11 12 OIM, ONU Migration, assistance au retour volontaire et à la réintégration au Maroc, rapport annuel 2020. UNHCR, FACT SHEET, « Maroc - UNHCR Global Focus », September 2021. 15 cooperation between Morocco and the EU can have repercussions on migratory flows between Morocco and these countries. Morocco's cooperation policy with the EU on immigration aims to promote a comprehensive and balanced approach to the management of migratory flows, paying particular attention to the protection of migrants' rights, border security and development cooperation. Policies and measures taken within this framework can influence Portugal's and Spain's national immigration policies, as well as their ability to manage migratory movements effectively and in line with EU principles. As part of this cooperation, the EU finances programs focusing on the socio-economic integration of migrants, border management and migration governance. In particular, it supports Morocco's National Strategy for Immigration and Asylum (SNIA). Results achieved through this cooperation include helping 3,072 migrants return to their countries of origin. In addition, 4,513 participants, including migrants as well as staff from local authorities and regional councils, took part in learning and training events, such as the management of migration policy at a national level and migrants' rights. In addition, 19,289 people received medical assistance and 10,156 basic social services were provided13. These concrete examples demonstrate the positive impact of cooperation between Morocco and the EU in the field of immigration, contributing to the protection of migrants, their social and economic integration, and the provision of essential services. 1. Bilateral Cooperation with Spain Moroccan-Spanish relations in terms of migration go back a long way, due to the existence of a large Moroccan community in Spain, numbering some 759,999 people14. It should be noted that the two countries share common concerns regarding migration management, being both located in the Mediterranean area, marked by large migratory flows, mainly from sub-Saharan Africa, thus generating major security challenges linked to border control. Morocco, the gateway to Africa, is a strategic partner for Spain on many levels. This partnership includes guaranteeing security and managing immigration to Spain and the European continent in an orderly fashion. In April 2022, Spain and Morocco established a roadmap with clearly defined objectives, notably with the signing of the Joint Declaration in April 202215, marking the start of a new phase of cooperation between the two countries. UE, Soutien de l’UE au Maroc en matière de migration, volet « Afrique du nord » du fonds fiduciaire d’urgence de l’UE pour l’Afrique, Février 2022. 14 Royaume du Maroc, ministère délégué auprès du ministre des affaires étrangères, de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, 1er Forum Hispano-Marocain sur l’Immigration et l’Intégration. 15 Royaume du Maroc, Ministère des affaires étrangères de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, déclaration conjointe adoptée au terme des discussions entre SM le roi Mohammed VI et le président du gouvernement espagnol Pedro Sanchez, https://www.diplomatie.ma/fr/d%C3%A9claration-conjointe13 16 Indeed, the efforts made by Morocco and Spain over the past year in their bilateral cooperation on migration management have produced highly encouraging results, ushering in a new era on solid foundations. In this context, the President of the Spanish Government pointed out that "the Atlantic route, which links Morocco to the Canary Islands, is the only route in Europe where arrivals of irregular migrants have fallen, while the figures have risen significantly in Greece and Italy. In the first quarter of 2023, irregular migrant arrivals to the Canary Islands thus fell by 63%, while they rose by 95% in Greece and 300% in Italy" 16. These figures, therefore, underline the effectiveness of the measures taken by both countries to manage migratory flows in a coordinated manner. Morocco and Spain have signed several bilateral agreements on the protection of migrants' rights, demonstrating their close cooperation on a major issue such as migration. These agreements aim to facilitate the management of migratory flows, strengthen police cooperation and combat human trafficking networks. Indeed, on February 02, 2023 in Rabat, on the 12th High-Level Meeting between the two countries, numerous cooperation agreements in different sectors were signed, notably in the establishment of a cooperation framework to share experiences in the fields of migration policy management. Within this framework, Morocco and Spain have agreed to jointly engage in "the fight against irregular migration, border control, the fight against networks and the readmission of people in irregular situations"17, while providing their support for greater cultural, social and educational inclusion of immigrant communities in both countries. They also pay particular attention to supporting greater cultural, social and educational inclusion of immigrant communities in both countries. Since 2015, the two countries have set up a forum for exchange and consultation known as the "Moroccan-Spanish Forum on Immigration and Integration". This forum has provided a permanent platform for dialogue on various migration issues, with a particular focus on integration-related aspects. One of the main objectives of this initiative is to "Build mechanisms for collaboration and initiate forums and groups of influence on the issue of 'Living Together'"18. adopt%C3%A9e-au-terme-des-discussions-entre-sm-le-roi-mohammed-vi-et-le-pr%C3%A9sident-dugouvernement-espagnol-pedro-s%C3%A1nchez (consulted on 08/07/2023). 16 Royaume du Maroc, « Pedro Sanchez : Le Maroc, un pays "ami" et un "allié fondamental" pour la sécurité et le développement de l'Espagne », https://www.maroc.ma/fr/actualites/pedro-sanchez-le-maroc-un-pays-amiet-un-allie-fondamental-pour-la-securite-et-le (consulted on 08/07/2023). 17 XIIème réunion de haut niveau Maroc-Espagne, déclaration- conjointe, 1 er et 2 février 2023. 18 Royaume du Maroc, ministère délégué auprès du ministre des affaires étrangères, de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, 1er Forum Hispano-Marocain sur l’Immigration et l’Intégration. 17 Finally, economic and development cooperation between Morocco and Spain is also of prime importance in their overall approach to migration management. Both countries recognize that creating economic opportunities and improving living conditions in migrants' countries of origin can help reduce forced migration flows. With this in mind, socioeconomic development initiatives and projects have been launched to address the factors underlying migration notably the signing of the strategic partnership agreement between Morocco and Spain. This document aims to establish "a Strategic Partnership Council and identifies actions to promote Spanish investment in Morocco and bilateral cooperation"19 as well as Spain's support for Morocco's Industrial Development Plan, which aims to strengthen the country's industrial capacities and promote job creation. 2. Bilateral Cooperation with Portugal Like Moroccan-Spanish relations, relations between Morocco and Portugal have developed significantly in recent years, both bilaterally and in areas of common interest such as migration. The two countries cooperate closely on migration issues, seeking to strengthen the management of migratory flows in a way that is both effective and respectful of migrants' rights. This cooperative relationship is based on a mutual commitment to promoting a comprehensive approach to migration management, paying particular attention to protecting migrants' rights, border security and development cooperation. Indeed, cooperation between Morocco and Portugal in the field of migration is focused on combating illegal migration and promoting legal migration, while respecting the fundamental rights of migrants. The signing of an agreement on the employment and residence of Moroccan workers between Morocco and Portugal is a concrete example of this cooperation. This agreement is "the culmination of a multi-sectoral coordination effort in both countries, and is of great political significance, enabling the deepening of historic and rich bilateral relations, through the promotion and protection of the dignity and human rights of migrant workers" 20. Its aims is to facilitate the regular employment of Moroccan workers in Portugal, by offering them safe and legal working conditions. It also contributes to the regularization of Moroccan workers already present in Portugal. In this context, Morocco and Portugal recently strengthened their partnership in the field of employment with "the signing of a Royaume du Maroc, ministère des affaires étrangères, de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, « le Maroc et l’Espagne œuvrent à faire de leur relation un modèle de partenariat entre deux pays voisins », 25 Janvier 2020, https://www.diplomatie.ma/fr/le-maroc-et-lespagne-%C5%93uvrent-%C3%A0faire-de-leur-relation-un-mod%C3%A8le-de-partenariat-entre-deux-pays-voisins (consulted on 10/07/2023). 20 Ambassade du Portugal au Maroc, ministère des affaires étrangères, https://rabat.embaixadaportugal.mne.gov.pt/fr/l-ambassade/actualites/accord-relatif-%C3%A0-l-emploi-etle-s%C3%A9jour-des-travailleurs-marocains-au-portugal-2 19 18 memorandum of understanding for the implementation, later this year, of a pilot project aimed at recruiting 400 Moroccan workers to meet Portugal's labor needs in the agricultural sector, in particular for the 2023 agricultural campaigns"21. It is also worth mentioning that in July 2022, and as a strategy to address labor shortages in tourism and construction, Portugal simplified its legislation by adopting "Law 23/2007 (known as the Foreigners Law)"22. This new immigration law, as passed by the Portuguese Parliament, aims to attract foreign workers, including Moroccan workers, by simplifying administrative procedures linked to employment and residence. This strategy of promoting legal immigration can also help reduce illegal immigration by offering legal and secure channels for unemployed Moroccan youth and immigrants of sub-Saharan origin currently residing in Morocco. However, it has to be said that Moroccan-Portuguese relations are currently experiencing unprecedented dynamism. Therefore, we will likely see greater commitment and cooperation in many areas of common interest, and new career opportunities for the Moroccan workforce in Portugal and vice-versa. In this very context, and at the 14th HighLevel Meeting held in Lisbon on May 12, 2023, the Moroccan Head of Government and the Portuguese Prime Minister welcomed the richness and diversity of Moroccan-Portuguese cooperation in many sectors of common interest. Adding that the two countries share a mutual desire to promote regular, organized and safe migratory flows, they stressed the importance of the Agreement on the Employment and Permanence of Moroccan Workers in the Portuguese Republic, signed on January 12, 2022 23, to create mutually beneficial opportunities for labor mobility. Conclusion: By way of conclusion, it should be pointed out that in countries affected by this migratory phenomenon, such as Morocco, Spain and Portugal, the protection of migrants' rights faces several challenges. To limit this, the professional integration of migrants is crucial to their social integration, but they often face difficulties in the labor market. Some employers Prime Minister, Government of the Portuguese Republic, Portugal and Morocco move forward with a pilot project to recruit workers, 2022-09-28, https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i =portugal-e-marrocos-avancam-com-projeto-piloto-para-recrutamento-de-trabalhadores(consultedon 03/08/2023) 22 Prime Minister, Government of the Portuguese Republic, Assembly of the Republic approves amendments to the «Foreigners Law», 2022-07-21 https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i =assembleia-da-republica-aprova-alteracoes-a-lei-dos-estrangeiros (consulted on 04/08/2023). 23 MEDIAS24, ouverture à Lisbonne de la 14ème Réunion de Haut Niveau Maroc-Portugal, https://medias24.com/2023/05/12/ouverture-a-lisbonne-de-la-14e-reunion-de-haut-niveau-marocportugal/ (consulted on 11/07/2023). 21 19 take advantage of their vulnerability to exploit them or keep them in deplorable situations. These illegal and unfair practices jeopardize the fundamental rights of migrant workers. Protecting their rights therefore depends not only on migration governance, but also on labor legislation, labor inspection and the defense of human rights. In addition, access to healthcare for migrants faces several challenges that can hinder their ability to receive adequate healthcare. These include administrative, language and cultural barriers, high healthcare costs and lack of health insurance. All these factors can affect the health of all migrants, regardless of their age or initial state of health. Morocco, Spain and Portugal, as countries located along maritime migration routes, face specific challenges when it comes to saving migrants shipwrecked at sea. Delays in rescue operations can have tragic consequences, resulting in the loss of many lives. Migration is undeniably a transnational challenge requiring close cooperation between Morocco, Spain and Portugal. This reality is particularly highlighted by the passage of subSaharan migrants through Moroccan territory in their quest to reach Europe. This transnational dimension of the challenge underlines the urgent need for effective cooperation between these nations. Cooperation between Morocco, Spain and Portugal in recent years has made commendable progress, playing a significant role in reducing the number of migrants. Thanks to joint efforts and strengthened collaboration, these countries have put in place mechanisms to better manage migratory flows and respond to the associated challenges. Based on the figures, illegal immigration has fallen, and the decrease has been particularly marked for arrivals by sea. "A total of 220 people crossed irregularly in the first quarter of 2023, compared with 1,122 in the same period last year. This drastic drop was most pronounced at Melilia, where the number of entries fell from 915 to 21, a 98% decline" 24. This confirms the effectiveness of cooperation between Morocco and Spain in dealing with irregular arrivals. Cooperation between Morocco, Spain and Portugal in the field of migration must not be limited to security aspects alone, but must also pay prime attention to human rights. It is essential to ensure that the policies and actions put in place respect the fundamental rights of migrants and people seeking international protection. Finally, Morocco takes a humanist view of migration management, and is a reliable partner both multilaterally with the European Union and bilaterally with Spain and Portugal. The Elimane Sembène, « Maroc-Espagne: baisse de plus de 50% du flux migratoire irrégulier au 1er trimestre 2023 », https://fr.le360.ma/societe/maroc-espagne-baisse-de-plus-de-50-du-flux-migratoire-irregulier-au-1ertrimestre-2023_VW6GJRLKBBA6ZE3H6TF3HXGFKA/ (consulted on 08/07/2023). 24 20 country is making significant efforts to protect the rights of migrants and to promote an approach based on cooperation, solidarity and respect for human rights. Cooperation includes joint initiatives, such as joint maritime patrols and resettlement programs, aimed at ensuring the safety of migrants, combating human trafficking and fostering economic and social development. Bibliography: Extract from the Speech by His Majesty King Mohammed VI on the occasion of the 30th African Union Summit, January 29, 2018, in Addis -Ababa. Extract from the Speech of His Majesty the King addressed to the nation on the occasion of the 38th anniversary of the Green March. Rabat, November 6, 2013. Royaume du Maroc, Secrétariat Général du Gouvernement, (2011), Constitution, préambule. Royaume du Maroc, Secrétariat Général du Gouvernement, (2011), Constitution, Art. 30. Statut de l’observatoire africain des migrations, Adopté par la trente-troisième Session ordinaire de la Conférence, tenue à Addis-Abeba, Ethiopie, le 10 février 2020, article 3. Royaume du Maroc, ministère chargé des marocains résidents à l’étranger et des affaires de la migration, Stratégie Nationale d’Immigration et d’Asile, 2013. Nations Unies, « Maroc: le Comité des travailleurs migrants porte son attention sur l'incident de l'été dernier qui a fait plusieurs morts parmi des migrants qui tentaient de passer la frontière entre le Maroc et l'enclave espagnole de Melilla »: https://www.ohchr.org/fr/news/2023/03/dialogue-morocco-experts-committee-migrantworkers-commend-migration-policy#:~:text=%C3%80%20cet%20%C3%A9gard%2 C%20le%20pays,des%20%C3%AAtres%20humains%20en%202016. Dahir n° 1-03-196 du 16 ramadan 1424 (11 novembre 2003) portant promulgation de la loi n° 02-03 relative à l'entrée et au séjour des étrangers au Royaume du Maroc, à l'émigration et l'immigration irrégulières. Dahir n° 1-58-250 du 21 safar 1378 (6 septembre 1958) portant code de la nationalité marocaine. OIM, ONU Migration, assistance au retour volontaire et à la réintégration au Maroc, rapport annuel 2020. UNHCR, FACT SHEET, « Maroc - UNHCR Global Focus », Septembre 2021. UE, Soutien de l’UE au Maroc en matière de migration, volet « Afrique du nord » du fonds fiduciaire d’urgence de l’UE pour l’Afrique, Février 2022. Royaume du Maroc, ministère délégué auprès du ministre des affaires étrangères, de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, 1er Forum Hispano-Marocain sur l’Immigration et l’Intégration. Royaume du Maroc, ministère des affaires étrangères de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, déclaration conjointe adoptée au terme des discussions entre SM le roi Mohammed VI et le président du gouvernement espagnol Pedro Sanchez, https://www.diplomatie.ma/fr/d%C3%A9claration-conjointe-adopt%C3%A9e-au-termedes-discussions-entre-sm-le-roi-mohammed-vi-et-le-pr%C3%A9sident-du-gouvernementespagnol-pedro-s%C3%A1nchez 21 Royaume du Maroc, « Pedro Sanchez: Le Maroc, un pays "ami" et un "allié fondamental" pour la sécurité et le développement de l'Espagne », https://www.maroc.ma/fr/actualites/pedro-sanchez-le-maroc-un-pays-ami-et-un-alliefondamental-pour-la-securite-et-le XIIème réunion de haut niveau Maroc-Espagne, déclaration- conjointe, 1 er et 2 février 2023. Royaume du Maroc, ministère délégué auprès du ministre des affaires étrangères, de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, 1er Forum Hispano-Marocain sur l’Immigration et l’Intégration. Royaume du Maroc, ministère des affaires étrangères, de la coopération africaine et des marocains résidant à l'étranger, « le Maroc et l’Espagne œuvrent à faire de leur relation un modèle de partenariat entre deux pays voisins », 25 Janvier 2020, https://www.diplomatie.ma/fr/le-maroc-et-lespagne-%C5%93uvrent-%C3%A0-faire-deleur-relation-un-mod%C3%A8le-de-partenariat-entre-deux-pays-voisins Ambassade du Portugal au Maroc, ministère des affaires étrangères, https://rabat.embaixadaportugal.mne.gov.pt/fr/l-ambassade/actualites/accord-relatif%C3%A0-l-emploi-et-le-s%C3%A9jour-des-travailleurs-marocains-au-portugal-2 Prime Minister, Government of the Portuguese Republic, Portugal and Morocco move forward with a pilot project to recruit workers, 2022-09-28, https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=portugal-e-marrocosavancam-com-projeto-piloto-para-recrutamento-de-trabalhadores Prime Minister, Government of the Portuguese Republic, Assembly of the Republic approves amendments to the «Foreigners Law», 2022-07-21 https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=assembleia-da-republicaaprova-alteracoes-a-lei-dos-estrangeiros MEDIAS24, ouverture à Lisbonne de la 14ème Réunion de Haut Niveau Maroc-Portugal, https://medias24.com/2023/05/12/ouverture-a-lisbonne-de-la-14e-reunion-de-hautniveau-maroc-portugal/ Elimane Sembène, « Maroc-Espagne : baisse de plus de 50% du flux migratoire irrégulier au 1er trimestre 2023 », https://fr.le360.ma/societe/maroc-espagne-baisse-de-plus-de-50-duflux-migratoire-irregulier-au-1er-trimestre2023_VW6GJRLKBBA6ZE3H6TF3HXGFKA/ 22 Cambio Climático, Inseguridad Alimentaria y Migraciones: Breve Aproximación Criminológica Ana Isabel García Alfaraz Sumario: 1. El cambio climático; 2. La inseguridad alimentaria; 3. Migraciones climáticas; 4. Abordaje criminológico de las migraciones climáticas; Consideraciones finales. Resumen: El cambio climático es una realidad incuestionable cada vez más presente en la agenda política y en las reivindicaciones sociales. Provoca efectos globales, pero desiguales. Los Estados y personas más vulnerables son también los que sufren una mayor exposición a los riesgos. Así, se encuentran más comprometidos ante la presencia de dos fenómenos interrelacionados: la inseguridad alimentaria y las migraciones climáticas. Sorprendentemente, la respuesta que se brinda a tan relevantes cuestiones desde los Estados del Norte global es injusta e insolidaria, ya que prioriza los intereses económicos, niega o minimiza los daños derivados del cambio climático e ignora a las víctimas. En estas páginas, se ofrece una aproximación a los grandes retos existentes en la actualidad: el cambio climático, la inseguridad alimentaria y las migraciones, destacando el vínculo existente entre ellos, a la par que pone de manifiesto la importancia de adoptar un enfoque criminológico. Palabras clave: cambio climático; migraciones; inseguridad alimentaria; derechos humanos; Criminología Abstract: Climate change is an unquestionable reality that is increasingly present on the political agenda and in social demands. Climate change has global but uneven effects. The most vulnerable states and people are also the most exposed to the risks. Thus, they are more exposed by the presence of two interrelated phenomena: food insecurity and climate migration. Surprisingly, the response to such relevant issues from the Global North is unfair, as it prioritises economic interests, denies or minimises the damage caused by climate change, and ignores the victims. These pages offer an approach to today's major challenges: climate change, food insecurity and migration, highlighting the link between them, while emphasizing the importance of adopting a criminological approach. Keywords: climate change; migrations; food insecurity; human rights, criminology 1. El Cambio Climático El clima nunca ha sido estático, sino que ha estado sometido a variaciones a lo largo de la historia. Las glaciaciones del cuaternario son un buen ejemplo de esos cambios naturales. Igualmente, durante las estaciones se asiste a modificaciones de los fenómenos meteorológicos; cambia la temperatura, el patrón de lluvias o los vientos. No obstante, en las últimas décadas y cada vez con más frecuencia presenciamos pérdida de biodiversidad, inundaciones, olas de calor, largos periodos de sequía, alto riesgo de incendios forestales, etc. Claras consecuencias todas ellas del denominado cambio climático. Bajo esta expresión se hace referencia a «un cambio de clima atribuido directa o indirectamente a la actividad humana que altera  Universidad de Salamanca. Profesora asociada de Derecho penal. E-mail: [email protected] 23 la composición de la atmósfera mundial y que se suma a la variabilidad natural del clima observada durante períodos de tiempo comparables» 1. No obstante, a partir de 2018, con la publicación del informe del Panel Intergubernamental para el Cambio Climático (IPCC) son también habituales las expresiones: “crisis climática” y “emergencia climática”, las cuales evidencian un nuevo discurso. Así, el término crisis climática insiste en el alcance y los efectos del cambio climático provocados por la actividad antropogénica, enmarcándola en un contexto de crisis ecosocial global, la cual engloba otros cambios socioambientales que amenazan con transformar profundamente las condiciones esenciales para la conservación de la vida humana; mientras que la expresión emergencia climática insiste en la situación de emergencia, en la necesidad de adoptar urgentemente medidas enérgicas contra el cambio climático. Nos encontramos, por tanto, ante una emergencia global fruto de la acción humana2, el desarrollo industrial, la automatización de los procesos de producción, la mercantilización de la naturaleza, la combustión de los recursos fósiles, la transformación de los hábitos de consumo, el “sobreconsumo” del Norte global3, etc. Una emergencia que ha determinado en muy poco tiempo una modificación sustancial del nivel de concentraciones de GEI (Gases de Efecto Invernadero) alcanzando los valores más altos de la historia. Hasta el punto de que resulta imposible volver a la situación anterior al cambio climático e incluso se considera que la mayoría de sus efectos perdurarán durante siglos, aunque la emisión de GEI cesara hoy4. Los efectos del cambio climático no se limitan a un área geográfica concreta, sino que están presentes en todo el planeta. Son globales, pero también desiguales, es decir, algunos países, regiones o colectivos presentan una mayor probabilidad de exposición 5. Lógicamente, no todas las zonas presentan el mismo riesgo de inundaciones ni los mismos recursos para afrontarlos6. En general, la mayoría de los impactos negativos se concentran en el Sur global 7, porque son más vulnerables8, por ejemplo, porque su economía se basa fundamentalmente en el sector primario; o porque disponen de menos recursos, infraestructuras o de la tecnología necesaria para prevenir o neutralizar los daños. Pero no sólo los efectos son Art. 1.2 de la Convención Marco de las Naciones Unidas sobre el cambio climático de 1992. IPCC. Climate change 2023. Longer Report, 2023, p. 6. 3 GOYES, D. Southern green criminology: A science to end ecological discrimination. Emerald, 2019, p. 8. 4 IPCC, Cambio climático 2014. Informe de síntesis, p. 13. 5 AGNEW, R. Dire forecast: A theoretical model of the impact of climate change on crime. Theoretical Criminology, 16 (1), 2011, p. 26; WHITE, R. & HECKENBERG, D. Green Criminology. Routledge, 2014, p. 178. 6 Piénsese, por ejemplo, en los Países Bajos que, a pesar de tener la mitad de su territorio por debajo del nivel del mar han sido capaces de construir ciudades donde antes no había terreno para ello. 7 Los términos “Sur global” y “Norte global” se refieren a la división del mundo atendiendo a criterios económicos, considerando que en general las economías más enriquecidas se sitúan en el hemisferio norte; mientras que las más empobrecidas se encuentran en el sur. 8 FELIPE PÉREZ, B. Las migraciones climáticas ante el ordenamiento jurídico internacional. Thomson Reuters – Aranzadi, 2019, p. 75. 1 2 24 globales, sino que éstos son consecuencia de amenazas y crisis globales, que interactúan entre sí. La pobreza, la inseguridad alimentaria, los conflictos armados, los conflictos sociales, la falta de acceso a la educación o a la salud, las desigualdades de género, el etnocentrismo cultural, etc. constituyen sólo algunas muestras de estas crisis globales que se amplifican con el cambio climático9. El cambio climático provoca consecuencias repentinas (huracanes, inundaciones, etc.) o lentas como el aumento de la temperatura media, el aumento del nivel del mar, cambios en la salinidad, el deshielo de las capas polares, cambios en los patrones de precipitación, sequías, desertificación, pérdida de biodiversidad, extinción de plantas y animales, escasez de recursos (con repercusión económica pero también social), conflictos bélicos y/o sociales, pérdida de identidad cultural o desplazamientos. Igualmente, influye en la salud humana de forma directa (debido a temperaturas demasiado altas o bajas, pérdida de vidas y lesiones en huracanes, inundaciones…) pero también indirectamente, modificando el alcance de los vectores de enfermedades, como los mosquitos, y de los patógenos transmitidos por el agua, así como la calidad del aire, la calidad del agua, o la calidad y disponibilidad de los alimentos (seguridad alimentaria). Evidentemente, el efecto concreto del cambio climático en la salud humana no es uniforme, sino que dependerá del entorno, es decir, de las condiciones ambientales locales, económicas, sociales, políticas o tecnológicas, y cómo se afronte la estrategia para prevenir los posibles riesgos para la salud humana10. Los recursos disponibles por cada Estado y su gestión resultan esenciales para impedir o mitigar las consecuencias del cambio climático. En este sentido, se constata que el cambio climático afecta considerablemente al sector primario: la agricultura, la ganadería y la pesca, que se erigen como un pilar esencial del sistema económico de los países en desarrollo, pero también, por ejemplo, de determinadas comunidades indígenas, que presentan una mayor dependencia y vinculación con la naturaleza. Los profesionales de este sector económico dependen en todo momento de las condiciones meteorológicas. Necesitan agua en la siembra y crecimiento de las cosechas, la ausencia de granizo o heladas que las destruya, temperaturas adecuadas al ciclo de los cultivos, etc. La aparición de fenómenos meteorológicos adversos, inundaciones, sequía, desertificación, el agotamiento de los acuíferos, la contaminación del agua, el empleo masivo de herbicidas, la degradación y los cambios de uso del suelo, etc. influyen enormemente en la producción, el rendimiento y la FELIPE PÉREZ, B. Migraciones climáticas. Sobre desigualdades, mitos y desprotección. Mra ediciones, 2022, p. 19; SOLÀ PARDELL, O. Desplazados medioambientales. Una nueva realidad, Universidad de Deusto, Cuadernos Deusto de Derechos Humanos nº 66, 2012, p. 23. 10 OMS. Cambio climático y salud, 2021. 9 25 rentabilidad de las actividades vinculadas al sector primario, agravando aún más esta relación de dependencia existente entre este sector y el clima, y coloca a estos países, así como a las personas dedicadas al sector primario en una clara situación de vulnerabilidad, siendo, por tanto, más proclives a la conflictividad asociada a los impactos del cambio climático (por la escasez de recursos), a los procesos de inseguridad alimentaria o de migración. 2. La Inseguridad Alimentaria La inseguridad alimentaria se define, normalmente, de forma negativa: cuando no existe seguridad alimentaria. Esta expresión, seguridad alimentaria, surge en la Cumbre Mundial sobre la Alimentación (CMA) de 1974 y hacía referencia exclusivamente al suministro de alimentos. Así, la seguridad alimentaria consistía simplemente en asegurar la disponibilidad y la estabilidad nacional e internacional de los precios de los alimentos básicos. Así, conforme a esta definición, la inseguridad alimentaria consistía, por lo tanto, en la falta de acceso a alimentos. Posteriormente la CMA de 1996, tomando como punto de partida los trabajos anteriores, formula un concepto amplio, vigente en la actualidad 11. Así, existe seguridad alimentaria cuando todas las personas tienen en todo momento acceso físico, social y económico a suficientes alimentos inocuos y nutritivos para satisfacer sus necesidades alimenticias y sus preferencias en cuanto a los alimentos a fin de llevar una vida activa y sana». Esta definición de seguridad alimentaria comprende distintas dimensiones: la disponibilidad de alimentos12, la calidad13, la accesibilidad14 y la sostenibilidad15. Lógicamente, la seguridad alimentaria es un concepto dinámico. Depende de cada país, adaptándose en función de los objetivos y necesidades de cada sociedad. Con la creación en los años 50 de la actual UE, la seguridad alimentaria se centraba en el temor a no tener suficientes alimentos para alimentar a las poblaciones europeas. Posteriormente, las crisis alimentarias (la Colza, la enfermedad de las “vacas locas”, etc.) focalizaron la atención en la calidad e inocuidad de los alimentos y sus efectos sobre la salud de los consumidores. El continuo incremento de la población y, por ende, el aumento de la actividad antropogénica, del consumo de alimentos y recursos energéticos ha sido una de las grandes Simplemente, ha sufrido una leve modificación con la inclusión del acceso social. Relaciona la cantidad de alimentos con la proporción y las necesidades nutricionales de la población en un marco geográfico y demográfico determinado. Obviamente, la disponibilidad de alimentos en un país está fuertemente determinada por el volumen de la producción interior, la capacidad de importación, la existencia de reservas y/o la ayuda alimentaria. 13 Se resume en tres aspectos: la cualidad gustativa, la riqueza nutricional y la inocuidad de los alimentos. 14 Es la posibilidad de obtener el alimento. Entonces, la seguridad alimentaria debe ser entendida como el acceso de todas las personas, en todo tiempo, a cantidades de alimentos suficientes para una vida activa y saludable, que precisa en dos dimensiones: la accesibilidad física y la accesibilidad económica. 15 En cuanto que el acceso a los alimentos tiene que ser continuo y estable en el tiempo. 11 12 26 preocupaciones de la humanidad, que, sin duda, se ha agravado con el cambio climático. Este fenómeno supone un desafío para la seguridad alimentaria. Algunas especies no serán capaces de adaptarse, se extinguirán, reduciendo la biodiversidad y teniendo importantes consecuencias sobre la cadena alimentaria de otras especies, pero también del ser humano. Además, efectos como las inundaciones, las sequías o la erosión del suelo han reducido la superficie fértil y el rendimiento de los cultivos, han alterado las temporadas de cultivo, la selección y rotación de cultivos, etc., afectando a la producción, y, por lo tanto, a la disponibilidad de alimentos, comprometiendo aún más la seguridad alimentaria. De hecho, la inseguridad alimentaria crece y lamentablemente, seguirá aumentando. Alrededor de 258 millones de personas de 58 países padecieron inseguridad alimentaria aguda en 2022, 65 millones más que en 202116, y las previsiones no son alentadoras. El carácter irreversible del cambio climático, la inacción o el escaso compromiso existente (piénsese, en la prevalencia de instrumentos de soft law) dificultan la consecución del ODS 2: «Poner fin al hambre, lograr la seguridad alimentaria y la mejora de la nutrición y promover la agricultura sostenible». Como se ha apuntado, las crisis globales no son uniformes, sino desiguales. En los países desarrollados, la seguridad alimentaria en su sentido más estricto está procurada, es decir, el problema del hambre está superado y la sociedad considerada en conjunto tiene acceso a los alimentos. Si bien, primero, existen problemas de inseguridad alimentaria vinculados a la obesidad, el sobrepeso o los hábitos alimentarios insanos, y segundo, los consumidores más “pudientes” cuentan con más recursos para elegir los alimentos más saludables, menos adulterados, etc.; mientras que los más vulnerables no. No obstante, la inseguridad alimentaria de los habitantes de los países del Sur global se agrava con los efectos del cambio climático, pero también con la acción de las grandes multinacionales. Estas empresas no sólo sobreexplotan sus recursos (y aceleran el cambio climático), sino que imponen una determinada forma de producción y la propia política agrícola y alimentaria de los países. Basta pensar en la imposibilidad de reutilizar las semillas recogidas como simientes en la siguiente cosecha por ser estériles, la venta de herbicidas específicos para cada cultivo, etc. Se aprecia, por tanto, la necesidad de abordar el problema de la inseguridad alimentaria y del desarrollo en general desde la soberanía alimentaria, centrándose en un modelo económico más justo, en el que cada pueblo tiene derecho a definir su política agraria y alimentaria sin dumping frente a terceros países17. Resulta imprescindible, por tanto, adoptar una perspectiva basada en los derechos humanos, es decir, priorizando los derechos de los pueblos a la alimentación y a la producción de alimentos FSIN and Global Network Against Food Crises. Global Report on Food Crises, 2023. En este sentido, el Foro Internacional de la Soberanía Alimentaria en su Declaración de Nyeleni, del 27 de febrero de 2007, define la soberanía alimentaria como: «el derecho de los pueblos a alimentos nutritivos y culturalmente adecuados, accesibles, producidos de forma sostenible y ecológica, y su derecho a decidir su propio sistema alimentario y productivo». 16 17 27 frente a los intereses del mercado o los beneficios económicos de las empresas que comercializan las semillas, productos, etc., porque no debemos olvidar que la alimentación no sólo condiciona otros derechos fundamentales como la vida, la salud o la dignidad humana, sino que también es una manifestación social y cultural clave en la construcción de la identidad cultural. En resumen, el cambio climático no sólo afecta negativamente a la disponibilidad y el acceso a alimentos adecuados, agua potable, vivienda, etc., especialmente en regiones y comunidades ya vulnerables, sino que también aumenta el riesgo de degradación de los derechos humanos, de inestabilidad política y de desplazamiento de personas18. 3. Las Migraciones Climáticas Los flujos migratorios son un fenómeno connatural a los seres vivos, que se desplazan en búsqueda de alimento o un mejor clima19. Desde siempre los flujos migratorios han actuado y actúan como un mecanismo de adaptación a los cambios políticos, económicos, sociales o ambientales que se producen en el entorno. No obstante, fenómenos como la globalización, el capitalismo, las crisis económicas, las guerras, los conflictos sociales o, recientemente, el cambio climático, contribuyen decisivamente a que se realicen desplazamientos dentro de un país o cruzando sus fronteras20. El cambio climático se traduce en una alteración del ecosistema a escala planetaria: reducción de la biodiversidad, agotamiento de las reservas de agua dulce, fuertes presiones sobre los sistemas terrestres y marinos productores de alimentos, diseminación de contaminantes persistentes, degradación medioambiental, etc. Aspectos éstos que motivan que el elemento ambiental adquiera cada vez más importancia en la movilidad humana 21 en particular aquélla ligada al cambio climático22. Así, la presencia de inundaciones, incendios forestales, prolongadas sequías o cambio en la salinidad del mar despojan de los medios de HALLENBERG, K. M. Crime, harm and climate change nexus. In Leal Filho, W.; Azul, A.M.; Brandli, L.; Lange Salvia, A.; Özuyar, P.G. & Wall, T. (ed.). Peace, Justice and Strong Institutions. Springer, 2021, p. 9. 19 BERGALLI, R. Inmigración y globalización. En Flujos migratorios y su (des)control. Puntos de vista pluridisciplinarios. OSPDH y Anthropos, 2006, p. XII. 20 CAMPILLO, A. Las fronteras del aire: cambio climático, migraciones y justicia global. Revista Internacional de Filosofía, nº 87, 2022, pp. 67 y ss; MCLEMAN, R.A.; DUPRE, J.; FORD, L.B.; FORD, J.; GAJEWSKI, K. & MARCHILDON, G. (2014). What we learned from the Dust Bowl: lessons in science, policy, and adaptation. Population and Environment, 35(4), 2014, pp. 418 y ss; CATTANEO, C.; BEINE, M.; FROEHLICH, C.J.; KNIVETON, D.; MARTINEZ-ZARZOSO, I.; MASTRORILLO, M.; MILLOCK, K.; PIGUET, E. & SCHRAVEN, B. (2019). Human migration in the era of climate change. Review of Environmental Economics and Politics, 13(2), 2019, pp. 190 y ss. 21 HUNTER, L.M.; LUNA, J.K. & NORTON, R.M. Environmental dimensions of migration. Annual Review of Sociology, 41, 377-397, 2015, p. 378. 22AFIFI, T.; GOVIL, T.; SAKDAPOLRAK, P. & WARNER, K. Climate change, vulnerability and human mobility, UNU-EHS, 2012, pp. 9 y ss; passim. FELIPE PÉREZ, B. Las migraciones climáticas ante el ordenamiento jurídico internacional, ob.cit. 18 28 subsistencia y obligan a las personas a tener que buscar un nuevo hogar 23. La mayoría de los afectados se desplazarán dentro del propio país a zonas más seguras o a grandes ciudades; otros, en cambio, emigrarán hacia países considerados más prósperos; y los más desafortunados se verán atrapados en un lugar sin futuro, sin recursos, contaminado, etc. 24 En este sentido, se prevé que, si no se adoptan medidas urgentes, el cambio climático provocará en 2050 el desplazamiento interno de 216 millones de personas 25. Igualmente, se estima que en 2050 más de mil millones de personas se encontrarán sujetas a riesgos climáticos propios de las costas y, por lo tanto, cientos de millones de personas se verán obligadas a dejar su hogar26. El mundo globalizado imperante prioriza los intereses económicos y potencia las desigualdades económicas y sociales entre países y personas. Así, a nivel internacional se facilita la libre circulación de capitales y mercancías, pero, irónicamente, se restringen los movimientos de personas. Las políticas migratorias adoptan una perspectiva basada en la idea de seguridad con el objetivo de lograr una migración ordenada y regular, que organiza y cataloga a los inmigrantes en diferentes categorías y les asigna un diferente estatus jurídico: desplazamientos forzados o voluntarios, internacionales o internos, legales o ilegales, etc. Así, se plantea la cuestión de a qué categoría pertenecen las personas que como consecuencia del cambio climático abandonan su hogar con carácter temporal o permanentemente. Para designarlos se emplean multitud de expresiones: migrantes climáticos, climigrantes, desplazados climáticos, personas desplazadas por el clima, refugiados climáticos, refugiados de los desastres naturales, ecorefugiados, etc 27. La Organización Internacional para las Migraciones (OIM) opta por una concepción amplia: migración climática28, que define como el: «movimiento de una persona o grupo de personas que, principalmente debido a un cambio repentino o gradual en el medio ambiente como consecuencia del cambio climático, se ven obligadas a abandonar su lugar de residencia habitual, o deciden hacerlo, con carácter temporal o permanente, dentro de un país o a través de una frontera internacional»29. En principio, lo lógico sería deducir que los migrantes climáticos AGNEW, R. Dire forecast, ob. cit., p. 24. GARCÍA RUIZ, A. Del ecocidio y los procesos migratorios a la opacidad de la victimización ecológica. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, 20-11, 2018, p. 32. 25 CLEMENT, V., RIGAUD, K.K.; DE SHERBININ, A.; JONES, B.; ADAMO, S.; SCHEWE, J.; SADIQ, N., SHABAHAT, E. Groundswell Part 2: Acting on Internal Climate Migration. World Bank, 2021, p. 80. 26 IOM. World Migration Report 2022, 2021, p. 239. 27 BORRÁS, S. y FELIPE, B. Las Migraciones Ambientales: Un Análisis de las Actualizaciones Jurídicopolíticas. En L. Lyra Jubilut, E. Pires Ramos, C. Claro, y F. de Salles Cavedoncapdeville (Eds.), Refugiados Ambientais. Boa Vista, 2018, p. 113. 28 Esta categoría se engloba en otra más amplia: la migración ambiental, referida a cualquier degradación ambiental no relacionada con el cambio climático, por ejemplo, los desplazamientos por la construcción de procesos de desarrollo: presas, centrales eléctricas, autovías... 29 OIM. Glosario de la OIM sobre Migración, 2019, p. 129. 23 24 29 integran la categoría de los desplazamientos forzados porque «se ven obligadas a abandonar su lugar de residencia habitual»; sin embargo, se considera que están fuera de la categoría de desplazados forzados, de refugiados y solicitantes de asilo. Se les niega esta condición porque no cumplen los requisitos establecidos por la Convención de Ginebra de 1951: perseguido por motivos de raza, religión, nacionalidad, pertenencia a un determinado grupo social u opiniones políticas30. Se estima, por tanto, que estamos ante desplazamientos voluntarios. Pero ¿se puede afirmar que es voluntario cuando uno se ve en la obligación de abandonar el hogar? ¿Tienen realmente el poder de decidir? Migrar raramente es la primera opción, por lo general, se exploran otras opciones, y cuando se carece de alternativas, se toma la decisión de abandonar el hogar, de desplazarse, de emigrar. Igualmente, no se debe olvidar que, si bien las migraciones climáticas pueden producirse en cualquier lugar del planeta, éstas predominan en el Sur global, donde el cambio climático interactúa con otros factores y los amplifica31 32. La migración es un fenómeno multicausal y complejo. Entonces, es complicado reducirlo a una única causa para integrarlo en una categoría y dispensar un tratamiento jurídico diferenciado. Por este motivo, Castillo propone reconducir las migraciones a una categoría genérica. Todos los migrantes son migrantes del capitalismo 33, puesto que, en último término, tienen que migrar debido a las consecuencias del capitalismo. De hecho, el cambio climático al igual que otras amenazas globales o las propias migraciones no son sólo consecuencia del Antropoceno, de la era forjada por los impactos antrópicos34; sino que lo son del Capitaloceno, una nueva era marcada por el capitalismo, por la concentración del capital en un grupo de países y, concretamente, de personas que poseen las empresas multinacionales que son las principales responsables de la emisión de GEI. Es más, esta perspectiva económica es la que motiva las transformaciones ambientales, el cambio climático o las desigualdades económicas, sociales y políticas 35. 4. Abordaje Criminológico de las Migraciones Climáticas No obstante, existen algunas excepciones. Estados como Suecia o Finlandia reconocen en sus leyes de extranjería el estatus de refugiado (temporal) a los migrantes climáticos, aunque en la actualidad se está restringiendo su aplicación. 31 OXFAM. Desarraigados por el cambio climático. La necesidad de responder al aumento del riesgo de desplazamientos, 2017. 32 Conviene apuntar la existencia de dos grandes corrientes: maximalistas y minimalistas. En general, los maximalistas sostienen que la degradación ambiental es la principal causa y origina directamente y por sí sola los desplazamientos, mientras que los minimalistas consideran que simplemente es una causa más y, por ende, la relevancia de este factor depende del contexto socioeconómico y ambiental de la persona, en FELIPE PÉREZ, B. Las migraciones climáticas ante el ordenamiento jurídico internacional, ob. cit., pp. 65 y ss. 33CASTILLO, J. Migraciones ambientales: Huyendo de la Crisis Ecológica en el siglo XXI. Virus editorial, 2011, p. 88. 34 FERNÁNDEZ-DURÁN, R. El Antropoceno. La expansión del capitalismo global choca con la biosfera. Virus Editorial, 2011, pp. 9 y 47. 35 ULLOA, A. Dinámicas ambientales y extractivas en el siglo XXI: ¿es la época del Antropoceno o del Capitaloceno en Latinoamérica? Desacatos, (54), 2017, pp. 59 y ss. 30 30 La mayoría de las actividades que propician el cambio climático son lícitas y muy lucrativas para las empresas y los países desarrollados. Sin embargo, provocan importantes consecuencias negativas. Millones de personas mueren o resultan seriamente afectadas por el hambre, la desnutrición, enfermedades curables o catástrofes naturales. Se trata en definitiva de millones de víctimas del desarrollo industrial insostenible y del cambio climático que son claramente subestimadas al negar o minimizar el daño derivado del cambio climático36. Esta tendencia a la negación del daño y al menosprecio de la víctimas exigiría un replanteamiento de la situación actual, de la permisividad y autorización de actividades que provocan importantes daños. Evidentemente, no se reclama una penalización automática de dichas actividades, porque la intervención penal no es, ni debe ser la única respuesta al cambio climático. Si bien su tipificación como delitos podría desempeñar una importante función de prevención general positiva (porque informando a la colectividad de lo que se prohíbe, se refuerza la confianza en el ordenamiento jurídico a la par que se promueve una actitud de respeto a las normas y de integración social) y negativa (la prevención se logra intimidando, amenazando con la imposición de una pena a quien cometa los conductas prohibidas), a la par que constataría una “condena” a las desigualdades estructurales de poder en las causas y consecuencias del cambio climático. En estas páginas no se abordará la problemática inherente a la posible tipificación de diversas conductas como delitos de ecocidio, o su inclusión dentro de los crímenes contra la humanidad, temas propios del Derecho penal (internacional), sino desde el ámbito criminológico, desde la denominada Criminología verde o green criminology. La Criminología verde se concentra en el estudio no sólo de los delitos contra el medio ambiente, sino en los daños ocasionados al medio ambiente procedentes tanto de comportamientos delictivos como de conductas lícitas, examinando el nexo entre los problemas ambientales 37, así como de las víctimas (especies humanas y no humanas, incluyendo también ecosistemas, ecological segments como marismas, bosques, aire, etc.), los delincuentes (también víctimas), etc. Se trata de una corriente crítica centrada en explorar los distintos planteamientos que pueden afectar e implicar un riesgo para el medio ambiente a través de las ciencias sociales38. Así, la Criminología verde intenta dar respuesta a las injusticias derivadas de la distribución no equitativa del poder mientras se destruye la vida humana, generando hambre, desarraigo, devastación ambiental 39. La ZAFFARONI, E.R. y DIAS, I. La nueva crítica criminología. Tirant lo Blanch, 2020, p. 70. STRETESKY, P. B.; LONG, M. A. & LYNCH, M.J. The treadmill of crime. Political economy and green criminology. Routledge, 2014, p. 2. 38 MORELLE HUNGRÍA, E. Ecocriminología, la necesaria visión ecosistémica en el siglo XXI. Revista Electrónica de Criminología, 03-02, 2020, p. 4. 39 LYNCH, M. Reflections on green criminology and its boundaries. In N. South y A. Brisman (ed.). Routledge International Handbook of Green Criminology, 43-57, 2013. 36 37 31 Criminología verde presenta una amplia gama de orientaciones teóricas 40. En este sentido, White enuncia distintas perspectivas41: radical42, conservativa43, medioambiental 44, constructivista45, especista46 y global, si bien, no se trata de una clasificación definitiva, y evidentemente, dadas las limitaciones de espacio de este artículo, únicamente se podrá hacer referencia brevemente a una de ellas: la Criminología global. Últimamente se observa un crecimiento de la preocupación de la academia y las instituciones por la gestión de los bienes comunes y los intereses colectivos, así como por la adopción de un enfoque a largo plazo en el que tengan cabida los derechos de las generaciones futuras o la justicia intergeneracional. Esta apuesta por una estrategia prospectiva encuentra su fundamento en el cambio climático, que se erige como una amenaza sin parangón para la conservación de la naturaleza y de la propia humanidad. Se reclama así la presencia de una Criminología global, dirigida fundamentalmente a la naturaleza transnacional del daño ambiental, los modos en los que las transgresiones contra los seres humanos, los animales y los ecosistemas se manifiestan a nivel global, el cambio climático, la justicia ambiental transnacional y la justicia ecológica47. Para Zaffaroni48, una Criminología global «debe anteceder e impulsar la transformación del poder hacia una justicia global», hacia una distribución equitativa de las cargas y los beneficios. Resulta imprescindible avanzar hacia una mayor justicia global, capaz de derrotar las dinámicas de exclusión causadas por las crisis globales y las desigualdades basadas en la etnia, el género, el estatus económico, etc. La conquista de una mayor justicia global también significa lograr una justicia climática, económica, de género, etc. La Criminología, por tanto, está capacitada para intervenir siempre que estén involucrados los derechos humanos y los bienes comunes, tanto por la intervención de los Estados como de los mercados, aunque dichas conductas no vengan sancionadas por el Derecho penal, porque, la Criminología no es una ciencia auxiliar del SOUTH, N.; BRISMAN, A. & BEIRNE, P. A guide to a green criminology. In South y Brisman (ed.). Routledge International Handbook of Green Criminology, 2013, p. 28. 41 WHITE, R. & HECKENBERG, D. Green Criminology. Routledge, 2014, pp. 17 y ss. 42 Adopta una perspectiva radical de los temas relacionados con los delitos medioambientales y el daño ambiental, criticando el status quo, el capitalismo, el antiantropocentrismo, etc. 43 Centrada en la conservación y la gestión de los recursos naturales y el análisis y la evaluación de riesgos. 44 Se ocupa esencialmente del tratamiento de los delitos medioambientales desde la perspectiva de la prevención situacional del delito. 45 El estudio de los delitos medioambientales y el daño ambiental se realiza desde las etiquetas y categorías que se construyen socialmente en base a las relaciones de poder y los procesos de etiquetamiento, y que determinan qué conductas son delitos, quiénes son los delincuentes o las víctimas. 46 Dirige su investigación al especismo, al hecho de que las especies y los miembros de las especies tienen derechos intrínsecos, por lo que resultan temas claves la discriminación, el abuso de animales (por ejemplo, en las macrogranjas), el tráfico ilegal de especies, etc. 47 WHITE, R. & HECKENBERG, D. Green Criminology. Routledge, ob. cit., p. 18. 48 ZAFFARONI, R.E. Presentación. En W. Morrison, Criminología, civilización y nuevo orden mundial. Anthropos, 2012, p. XVI. 40 32 Derecho penal, sino una ciencia autónoma con sus propios objetos de estudio. Entonces, la Criminología está legitimada para ocuparse de las catástrofes humanitarias y ecológicas, de los millones de víctimas que cada año mueren o resultan afectadas por la inseguridad alimentaria, las devastaciones ambientales, el aumento del desempleo, de la pobreza o la exclusión social. Y ello porque estamos ante comportamientos que vulneran derechos humanos y/o bienes comunes. Ferrajoli emplea el término crímenes de sistema (equivalente a crímenes contra la humanidad o crímenes globales) para hacer referencia a «un conjunto de actividades políticas y/o económicas, llevadas a cabo por una pluralidad indeterminada y a la vez indeterminable de sujetos» 49 y que afectan a los derechos humanos y/o los bienes comunes. Su ausencia de tipificación no puede ser óbice para poder efectuar un análisis criminológico. No obstante, se reivindica la introducción del ecocidio como quinto crimen contra la humanidad50, o bien, su tipificación autónoma, fuera del Estatuto de Roma, así como la creación de una Corte Penal Internacional del Medio Ambiente. Es más, se cuestiona si realmente estas catástrofes son naturales, o si, por el contrario, son el resultado de «delitos» imputables a los poderes salvajes del mercado, responsables de la producción de daños incalculables, aunque ni siquiera se aborde su tipificación como delitos por falta de interés. Es más, si existiera voluntad, se podría plantear la presencia de una omisión del deber de socorro. Una omisión frente a aquellas personas o colectivos que se encuentran desamparadas o en peligro manifiesto y grave por un desarrollo industrial insostenible, por el cambio climático, el neoliberalismo ambiental, etc. En realidad, se estaría ante un doble crimen. De una parte, por las acciones que originan las catástrofes y/o los daños derivados que resultan impunes; y, de otra parte, por la omisión de socorro a las personas afectadas por los daños. Igualmente, sería factible sugerir la presencia de responsabilidad de los Estados y/o las empresas por las consecuencias del cambio climático en los supuestos de migración. Cada vez más frecuentemente las migraciones humanas son consecuencia del cambio climático. Las modificaciones sobre el entorno repentino o de desarrollo lento motivan transformaciones económicas, sociales, culturales, políticas, etc. El cambio climático ha transformado los suelos, los ciclos y la selección de los cultivos (algunos no soportan el estrés hídrico), se pierde el medio de supervivencia, se generan conflictos por la escasez de recursos como el agua, alimentos, tierras… y las personas que viven allí se ven obligadas a abandonar FERRAJOLI, L. (2013). Criminología, crímenes globales y Derecho penal: El debate epistemológico en la Criminología contemporánea. Revista Crítica Penal y Poder, 4, 2013, p. 7. 50 Passim. HIGGINS, P. Eradicating Ecocide. Exposing the corporate and political practices destroying the planet and proposing the laws to eradicate ecocide (2ª Ed). Shepheard-Walwyn, 2015. 49 33 su entorno, no apto para la supervivencia. Conociendo esta problemática -la migración es una de las consecuencias del cambio climático-, y que el cambio climático es imparable, será necesario adoptar medidas urgentes para contrarrestar sus efectos. Igualmente, sería lógico pensar que los países y empresas responsables en mayor medida del cambio climático mostraran su solidaridad con los países y personas que sufren las consecuencias del cambio climático y no que promovieran y aprobaran leyes anti-inmigración aún más draconianas51. Los países del Norte global, principales receptores de la inmigración, no estiman la existencia de un desplazamiento forzado en los supuestos de migraciones climáticas (restringiendo así su protección); no consideran a los migrantes climáticos ni personas vulnerables, ni víctimas de la acción de las empresas y los Estados desarrollados, sino que se les aplica una lógica precautoria. Los migrantes son tratados como una amenaza. Se refutan sujetos peligrosos para la seguridad o para el mantenimiento del Estado del bienestar existente. Asimismo, tampoco se asume la responsabilidad por los miles de personas que desaparecen o mueren52 en su huida de los efectos del cambio climático, en la búsqueda de un hogar más seguro. Estos hechos tampoco deberían ser valorados como meros desastres naturales, porque, en realidad, son consecuencia de las actuaciones guiadas por el beneficio económico, la pretensión plutocrática del poder financiero, las políticas y leyes existentes. De hecho, como se ha apuntado, la mayoría de las actividades que contribuyen al cambio climático se consideran lícitas, prima su carácter eminentemente lucrativo para las empresas y países del Norte global frente al daño ambiental, económico y social de los países del Sur 53. La impunidad consolida una criminalidad estructural del poder, ya que afecta a las personas, países que consideramos inferiores, legitimando la erosión de derechos humanos, la desigualdad de las víctimas y su exclusión. Resulta imprescindible una reevaluación de lo que es socialmente aceptable, primando el respeto a los derechos humanos y a un desarrollo sostenible y justo. La consideración de los efectos del cambio climático como desastres naturales, la ausencia de sanciones está justificando su perpetuación hasta el punto de poner en peligro el planeta, los ecosistemas o la propia existencia de los seres humanos. Consideraciones Finales El cambio climático provoca consecuencias medioambientales, económicas, sobre la salud, pero también políticas, demográficas, sociales y culturales. Afecta al ejercicio y KLEIN, N. This changes everything: Capitalism vs. the climate. Simon & Schuster, 2014, p. 363. Desde 2014 se han registrado las muertes y desapariciones de 48.200 personas, en Portal de datos sobre migración. 53 CROCK, M.; SHORT, D. & SOUTH, N. Ecocide, genocide, capitalism and colonialism: Consequences for indigenous peoples and glocal ecosystems environments. Theoretical Criminology, Vol. 22 (3), 2018, pp. 300 y ss. 51 52 34 desarrollo de los derechos humanos. La presencia de un medio ambiente adecuado condiciona derechos tan importantes como la vida, la salud, la identidad cultural, la vivienda, el trabajo, etc. De la exposición realizada se puede advertir claramente que el cambio climático intensifica las desigualdades. Los efectos son globales, pero dispares. Paradójicamente, el mayor impacto lo sufren los países y habitantes del Sur global y, sin embargo, son los que menos provocan el cambio climático. Estas páginas se centran en dos consecuencias del cambio climático que a su vez también se encuentran interrelacionadas: la inseguridad alimentaria y los flujos migratorios. Se trata de crisis globales que exigen un enfoque glocal e interdisciplinar. Requieren el compromiso de todos, pero, atendiendo a la “deuda climática”, el mayor esfuerzo lo deben realizar los países desarrollados y no los emergentes o en vías de desarrollo. Estos fenómenos complejos y globales no pueden abordarse exclusivamente desde la perspectiva del Norte54, caracterizada fundamentalmente por cuatro aspectos. Primero, la minimización del daño ambiental. Segundo, el etnocentrismo, la división del mundo y los seres humanos en Norte/Sur, de forma que los países y/o habitantes del Sur son considerados de segunda categoría, sujetos al expolio de sus recursos y subordinados a los deseos e intereses de los Estados del Norte. Tercero, la impunidad, la ausencia de sanciones a lo que se denomina criminalidad estructural del poder, basándose en que las conductas afectan a colectivos o países que se consideran inferiores y que, por tanto, legitiman la desigualdad, el trato discriminatorio, la deshumanización de las víctimas, e incluso su exclusión. Y cuarto, la securitización, consistente en concebir a los migrantes (víctimas del neoliberalismo ambiental, del capitalismo, del cambio climático, etc., las cuales hemos obligado a abandonar su hogar) como sujetos peligrosos, como enemigos. Los países, las empresas transnacionales, los ciudadanos en general tenemos que asumir la responsabilidad para revertir la primacía de la economía y del desarrollo industrial insostenible. Debemos romper «el nexo entre la impotencia de la política frente a la economía y su renovada omnipotencia frente a las personas y la erosión de sus derechos constitucionales establecidos» 55. El respeto a los derechos humanos debe funcionar como un límite infranqueable. Así, garantizar su ejercicio con independencia de la procedencia Norte/Sur de las personas debe convertirse en el objetivo primordial. Referencias Bibliográficas 54 Por este motivo, autores como GOYES reclaman una Southern green criminology, un enfoque criminológico caracterizado por y desde el Sur, centrándose en los intereses, derechos, costumbres y experiencias del Sur, de los marginados y oprimidos, en GOYES, D. Southern green criminology, ob. cit., p. 11. 55 FERRAJOLI, L. Criminología, crímenes globales y Derecho penal, ob. cit., 2013, p. 9. 35 AFIFI, T.; GOVIL, T.; SAKDAPOLRAK, P. & WARNER, K. Climate change, vulnerability and human mobility, UNU-EHS, 2012. AGNEW, R. Dire forecast: A theoretical model of the impact of climate change on crime. Theoretical Criminology, 16 (1), 21-42, 2011. BERGALLI, R. Inmigración y globalización. En Flujos migratorios y su (des)control. Puntos de vista pluridisciplinarios. OSPDH y Anthropos, VII-XX, 2006. BORRÁS, S. y FELIPE, B. Las Migraciones Ambientales: un Análisis de las Actualizaciones Jurídico-políticas. En L. Lyra Jubilut, E. Pires Ramos, C. Claro, y F. de Salles Cavedoncapdeville (Eds.), Refugiados Ambientais. Boa Vista, 102- 142, 2018. CAMPILLO, A. Las fronteras del aire: cambio climático, migraciones y justiciar global. Revista Internacional de Filosofía, nº 87, 65-81, 2022. CASTILLO, J. Migraciones ambientales: Huyendo de la Crisis Ecológica en el siglo XXI. Virus editorial, 2011. 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Diante disso, este artigo visa a pontuar alguns aspectos marcantes da formação do autoritarismo político brasileiro, para compreender como ele se reproduziu no tempo e, principalmente, discutir como ele foi reatualizado na atual conjuntura histórica brasileira e como ele está sendo enfrentado pelas instituições democráticas e por setores da sociedade civil. Palavras-Chave: Brasil, cultura política, autoritarismo e democratização Abstract: There are many political problems to be faced in Brazil. One of them is the consolidation of its young and fragile democracy, which has suffered increasingly more attacks after the impeachment crisis of 2016, when the critical conditions derived from this crisis began to favor the manifestation of the authoritarian political culture of our society, creating serious risks to the stability of its democratic institutions. In light of this, this article aims to punctuate some striking aspects of the formation of Brazilian political authoritarianism, to understand how it has reproduced itself over time and, mainly, to discuss how it has been re-updated in the current Brazilian historical conjuncture and how it is being faced by democratic institutions and sectors of civil society. Keywords: Brazil, political culture, authoritarianism and democratization Esclarecimentos Teóricos É a partir da cultura (compreendida como sistema de valores compartilhados) que são elaboradas as ideias políticas e as teorias delas derivadas usadas pelas sociedades para, por meio das relações dialéticas entre os seus indivíduos, estruturarem seus modos de conceber o poder e apoiarem as formas, sistemas e regimes políticos que determinam os modos como o Estado que a governa e ela mesma são configurados constitucionalmente. De acordo com a classificação clássica formulada por Platão e Aristóteles, as maneiras como o poder foi concebido deram origem a três formas de organização do Estado: monarquia, aristocracia e democracia, as quais podem se degenerar, respectivamente, em tirania, oligarquia e demagogia (MONDIN: 1980, p. 121). Delas, ou de suas combinações, surgiram os sistemas (parlamentarismo, no seu formato monárquico ou republicano, e 38 presidencialismo) e os regimes (democráticos, autoritários e totalitários), que vêm sendo adotados, em diferentes arranjos ao longo do tempo, conforme a cultura política predominante nas sociedades e as opções feitas com base nela a partir dos consensos resultantes dos conflitos de cada situação histórica. Seja qual delas for a opção, em tese, a tradição ocidental (na qual a nação brasileira foi politicamente fundamentada), construída a partir da formulação clássica acima apresentada, define que o fim da sociedade, por meio do Estado, é o de proporcionar as condições essenciais para a satisfação do bem comum (considerados essenciais à satisfação da vida social e do bem-estar dos indivíduos), visando à promoção da felicidade coletiva (SILVA: 2003). Porém, na prática, há muitos complicadores para essa finalidade tornar-se realidade. A primeira delas é o fato de que a ideia de felicidade tem muitas variações no tempo, no espaço, e de um indivíduo ao outro, embora seja possível identificar uma concepção geral do que possa significar tal ideia no plano coletivo em algumas sociedades ao longo do tempo, como tentaram fazer Delumeau, Farge e Sponville em um ensaio histórico-filosófico sobre esse assunto (2006). A segunda delas é o fato de que as formas originais de organização do Estado podem se degenerar e, quando isso acontece, os governos derivados das degenerescências tendem a restringir, ou a perturbar, o alcance social deste fim, como a experiência histórica das governanças tirânicas, oligárquicas e demagógicas revelam, apesar de que a finalidade de se atingir o bem-comum, em tese, muitas vezes continua a vigorar. A terceira é o fato de que toda formação social é configurada por formas diversas de relações sociais de produção, estruturadas a partir de meios de produção que dividem os indivíduos, os grupos e classes de acordo com a posição que nelas ocupam, de modo que seja qual for a relação social que determina a sua dinâmica, as sociedades disso resultantes são propensas ao conflito, principalmente àqueles relacionados à distribuição das riquezas socialmente produzidas. Por esse motivo, como a política é um meio de se discutir a solução dos problemas de interesse público e de orientar as decisões dos poderes constituídos para isso, razão pela qual foi definida por Weber (2011, p. 67) como “conjunto de esforços feitos com vistas a participar do poder ou influenciar a divisão do poder” no âmbito do “Estado,” então ela é o espaço no qual os conflitos são, em situações de normalidade política, controlados e arbitrados por normatizações estabelecidas pelos poderes legitimados. 39 Assim, uma das palavras-chave para pensar a política é o conflito, afinal, a razão moderna, ao refletir sobre a razão clássica, segundo a qual o ser humano, guiado pelo conhecimento, é capaz de encontrar respostas às questões concernentes à busca pelo bemcomum, e concluir, com base na experiência histórica, que ele também pode ser motivado a procurar a satisfação individual e, para isso, é capaz de agir de modo extremamente competitivo e gerar ideias e práticas violentas, a referida razão concebe a política como meio de administrar a proliferação dos litígios para evitar instabilidades que possam colocar em risco toda sociedade. Por isso, tal palavra é fundamental para compreensão do que se entende por política nas sociedades modernas, pois, como esclarece Reis (2007, p.457), “a ênfase analítica e genérica nos conflitos e em sua acomodação permite que se conceba de maneira adequada a própria ideia de construção de instituições políticas,” para uma “apropriada articulação dos aspectos formais do Estado com o substrato correspondente aos focos sociais de conflitos e solidariedade, aos interesses e às normas, de tal modo que ele se torne capaz de regular com eficácia” os confrontos políticos “e que estes, em vez de levar ao enfrentamento violento, possam ser mantidos “por meio dos formalismos institucionais” dentro dos limites civilizados. Enfim, com base nessas considerações, doravante sempre que a palavra política for utilizada, ela será compreendida como espaço do dissenso, da confrontação de ideias e propostas por elas orientadas, na busca pela formação de uma maioria consensual para a tomada de decisões, no âmbito do Estado, que possam controlar os diversos tipos de conflitos que dialetizam as relações sociais, oferecendo soluções provisórias aos problemas de interesse público. O Problema Partindo da noção de política acima apresentada, e tendo em mente que ela é um fenômeno cuja natureza é essencialmente dialética, a opção de uma nação pela consolidação da sua democracia é relativa, porque ela mesma, a escolha, depende dos pontos de vista derivados das percepções ideológicas que impulsionam os dissensos e as consequentes tensões da vida social. Desse modo, em um país com a experiência histórica como a nossa, como construir um consenso máximo possível capaz de sustentar a opção democrática? Em outras palavras, como superar o desafio da persistência autoritária na sua cultura política, que vem se 40 revelando de forma cada vez mais ameaçadora no modo de pensar e agir de boa parte de seus habitantes, nos assuntos políticos, desde a última campanha eleitoral para a presidência? Essa superação depende, entre outros fatores, da transformação dos valores que fundamenta o modo como a população compreende a política, da maneira como compreende a sociedade e como lida com as informações que ajudam a formar a opinião pública, o que demandará grande acúmulo de experiência e muito aprendizado histórico. É importante reiterar que a democracia é uma escolha, baseada na experiência e na educação cívica da comunidade política, para a legitimação do Estado, a organização das suas instituições e o exercício do poder político, dentro dos marcos constitucionais, de seus agentes e dos cidadãos em geral. E como tal é um ideal, um imperativo político, essencial à sustentação dos direitos que fundamentam a moderna concepção de cidadania, a qual a todos, identificados com seus valores, competem lutar visando a impedir perigosos retrocessos que possam revalidar a desoladora afirmação de Sérgio Buarque de Holanda, registrada em uma clássica publicação de 1936, de que “a democracia no Brasil é um lamentável mal-entendido. ” Pois, foi importada por uma elite “aristocrática e semifeudal, ” que a acomodou aos seus privilégios, para “incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns lemas e valores que pareciam os mais acertados para época” (1997, p. 160). Esse artifício, utilizado para dar legitimidade ao sistema republicano presidencialista inaugurado em 1889, já havia sido adotado em relação ao liberalismo, como mostrou Bosi (1995, p. 221), para adaptar-se à manutenção do direito de propriedade escrava, permitindo a conclusão, como a sintetizada por Souza (2012, p. 185), de que no Brasil as ideologias modernas foram transplantadas do exterior obedecendo a um pragmatismo destinado a funcionar “como uma espécie de graxa simbólica,” durante processos de mudanças, quando foram introduzidos por elites apegadas a valores tradicionais pela sua necessidade de adaptação às novas estruturas históricas, que demandavam a introdução dos contratos nas relações de trabalho e da representação no sistema político. Foi como se um edifício de ideais modernas tivesse sido construído em uma base social arcaica, gerando limitações estruturais ao processo de modernização política, como a que O’Donnel chamou de democracia delegativa (1999), isto é, reduzida a uma mera função legitimadora, e a que Santos definiu cidadania regulada, quer dizer, fundamentada apenas no exercício de ocupações profissionais ou que somente é reconhecida pelo Estado a quem ocupa alguma função no processo produtivo. 41 Um edifício social erguido com tais limitações, junto com outros fatores, acabou criando condições favoráveis para a inércia histórica favorável à permanência do que Cândido batizou de dialética da malandragem (1970) e do tipo social denominado por Sérgio Buarque de Holanda de homem cordial (1997). Embora essas noções conceituais sejam muito questionadas, sobretudo porque o seu alcance para explicar o comportamento social brasileiro é limitado, tanto na sua aplicação antropológica, quanto na histórica, ainda assim elas podem nos ajudar a identificar alguns padrões de conduta que, inegavelmente, ainda estão presentes no Brasil atual. No caso da primeira noção, ela nos ajuda a compreender como a ordem e a desordem, numa relação ambivalente, se comunicam dando impulso a um padrão comportamental pendular entre o lícito e ilícito que dificulta, entre outras coisas, o enraizamento das leis e o ordenamento social que dela resulta. No caso da segunda, ela é uma marca estrutural típica de sociedades nas quais o espaço público tem dificuldade de impor sua autonomia em relação ao espaço privado, de forma que a fronteira entre estes dois espaços é transgredida, dando lugar a uma promiscuidade motivadora de obstáculos à consolidação da impessoalidade e da universalidade das leis (da aplicação do princípio republicano da igualdade jurídica) necessárias ao funcionamento das instituições modernas. Enfim, a malandragem e a cordialidade, como traços estruturais da sociedade brasileira e, consequentemente, como fatores condicionadores de parte da cultura política vivenciada por muitos de seus cidadãos, atuam para que, como argumenta Roberto da Matta no seu ensaio teórico (1997, p. 90-95), haja entre nós uma dificuldade estrutural de projetar na rua a solidariedade e o respeito às normas da casa, a não ser quando, no espaço púbico, conseguimos recriar o mesmo ambiente familiar onde os indivíduos estão conectados em uma rede de reciprocidade que sustenta a relação entre eles. Para exemplificar esse traço comportamental problemático, segue documento, 1 de 1946, no qual está registrada uma reclamação de Oduwaldo Braune, domiciliado na capital do país, ao Tribunal de Justiça da Comarca de Mariana, sobre o procedimento do escrivão Daniel Carlos Gomes, a quem o reclamante acusou de negligenciar a sua petição de certidão para escrituração do imóvel Fazenda Ponte Alta, por ele comprado na sede de tal comarca, alegando que o acusado lhe informou que a certificação solicitada em abril de 1945 não havia 1 Documento datado em 5 de junho de 1946 e de localização não identificada porque foi copiado em setembro de 2017 durante o processo, do qual participei, de avaliação de descarte/seleção de material procedente do Fórum de Mariana recebido pelo Arquivo da Casa Setecentista da mesma cidade. 42 sido emitida devido ao extravio da petição, gerando atraso demasiado que o prejudicava financeiramente, razão pela qual buscava solução judicial. O juiz enviou ao escrivão acusado um pedido de esclarecimento sobre o caso e pronta providência para solucioná-lo. Eis o que ele respondeu referindo-se ao seu acusador: O indivíduo entrou há tempos em meu cartório dizendo “que a justiça é uma máquina emperrada que para funcionar precisa ser untada” e dirigindo à minha mesa foi sacando do bolso uma cédula de duzentos cruzeiros e depois de abri-la, com um sorriso revoltante, a enrolou-a como se fosse um charuto e segredou ao meu ouvido, ao mesmo tempo que metia a tal cédula por debaixo de uns autos que eu trabalhava: “Leva essa vitamina amigo, que isso melhora as condições do funcionário mal remunerado, pois preciso de um negocinho aqui em seu cartório e rápido.” Imediatamente revoltou-me a consciência de homem honesto e cumpridor dos meus deveres e enojado daquele tipo asqueroso que queria diminuir e aviltar minha dignidade, levantei-me e dei um grito com o mesmo atirando-lhe, ao mesmo tempo, a cédula aos pés, dizendo-lhe: leva teu miserável dinheiro, porque não me vendo, não preciso de dinheiro, isso não me seduz, vivo honestamente com minha família, não tenho dívida, recebo o estritamente prescrito pelo Regimento de Custas, mas o citado indivíduo, cínico e habituado a essas aventuras, deu uma risada e disse: Estrilou em hein, então és um homem folgado, nesta época.” Mas eu já com as vistas escuras, convidei-o a se retirar antes que fosse obrigado a partir-lhe a cara. Para sustentar sua versão, ele arrolou duas testemunhas e ainda se valeu de um jornal em cuja crônica policial o seu acusador figura como personagem principal (de uma matéria escrita sob título: “Mais uma do chantagista Oduwaldo Braune”) para mostrar ao juiz que a atuação “malandra” e “cordial” do seu acusador era costumeira e pedi-lo absolvição da acusação de negligência na prestação de serviço cartorial, a qual obteve após emissão do documento solicitado pelo reclamante. Um dos resultados desse quadro geral de problemas é o fato de a cultura política brasileira ser caracterizada por forte autoritarismo, que recorrentemente se expressa desde o “sabe-se com que está falando” até as ameaças de rompimento institucional, ou golpes que instauram estado de exceção governados por ditaduras sombrias, como a nossa experiência histórica testemunha. Tal característica acaba dificultando a criação de uma consciência cidadã fundamentada em valores políticos democráticos, a partir dos quais a sociedade possa lutar por conquistas que 43 garantam certo nível de estado de bem-estar social, permitindo ao Estado, conforme esclarece Thélène (1999, p. 13), tornar-se uma comunidade promotora de vínculos de solidariedade entre os cidadãos. Por essa razão, um dos maiores desafios que a nação precisa enfrentar, para a realidade acima ser concretizada, é a consolidação da sua democracia e a consequente superação do autoritarismo, ainda presente no quadro de valores políticos de grande parte de seus cidadãos, que se torna mais expressivo em momentos de instabilidade política. Genealogia da Cultura Política Autoritária Brasileira Como se sabe, toda sociedade é resultado da sua formação histórica, pois a maneira como é formada condiciona o modo como seus indivíduos configuram a sua vida social, o seu sistema produtivo, as suas relações de poder, etc. Por essa razão, é na experiência colonial que se encontra o impulso inicial das características estruturantes do autoritarismo tão marcante da cultura política brasileira. Quando o processo de colonização começou, após a chegada de Colombo (1492) a esse continente, os ibéricos transportaram “o quadro cênico medieval” para cá (THEODORO: 1992, p. 23), com tudo que este implicava em relação às formas de concepção da vida e do mundo. Isso quer dizer que, embora cronologicamente a Idade Média havia sido encerrada em 1453 (com a tomada de Constantinopla pelos otomanos), a cultura medieval ainda norteava ao menos em parte os valores que embasavam a mentalidade dos colonizadores. Assim, inicialmente, tenderam a ver a terra “descoberta, ” conforme explica Holanda (2000, p. XVIII), como um paraíso “feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que a eles se oferecia sem reclamar labor maior, ” e quando o reclamou optaram por forçar povos aqui encontrados e, posteriormente, povos africanos ao trabalho escravo. Afinal, completa Caio Prado Jr. referindo especificamente aos portugueses (2000, p. 17), dada as condições naturais da porção tropical do “Novo Mundo” por eles conquistada e do fato de que, quando isso aconteceu, Portugal estava em ascensão, o colono daí originário “não traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço,” sobretudo porque o espaço que se procurava territorializar foi dividido em enormes lotes, conhecidos como capitanias hereditárias, e repartidos entre descendentes da elite portuguesa para impulsionar a ocupação territorial. Ocupação que, depois de vários fracassos, acabou impulsionada com a criação do Governo Geral e a intensificação da guerra, ao estilo feudal, que possibilitou não apenas a conquista do espaço, mas também a de gente; de populações indígenas das quais se serviram 44 como mão de obra as primeiras famílias senhoriais formadas na Colônia e de cujo trabalho foi originado a primeira acumulação de capital, que deu suporte à elitização de seus membros e do seu exercício do poder local, como mostra Fragoso (2001, p. 36-44). Isso quer dizer que a escravidão foi a principal relação social de produção sobre a qual se estruturou a formação social do Brasil colonial (GORENDER: 1978) e, como tal, é uma das principais fontes de grande parte de nossos males, principalmente o autoritarismo. Pois, a partir dela, na violência que a fundamenta e estimula a obediência servil, as elites escravistas configuraram as relações de poder autoritárias no Novo Mundo. Embasada dessa maneira, tais relações criaram as condições para a formação da cultura política autoritária, ao proporcionar o exercício de poder na esfera social de produção apoiado não apenas na ideologia escravista, da qual jesuítas, como o Padre Vieira, foram os principais formuladores (VAINFAS: 1986), mas também na violência física e simbólica como reiteradamente mostraram os especialistas no estudo deste tema, como Goulart (1971) e Lara (1988). Desse modo, a ideologia escravista (no seu sentido original, isto é, uma deturpação politicamente orientada da maneira de ver a realidade para justificar o modo de agir no mundo, tal como formulada por Marx na Ideologia alemã) e a violência (instauradora da escravidão, da conversão do outro, no sentido antropológico do termo, a ela e explicitamente ostentada, como ameaça permanente, para manter a ordem) acabaram propiciando, ao longo de séculos de escravidão, o enraizamento (por meio da assimilação cultural) de formas autoritárias de exercer o poder na sociedade brasileira. Tal enraizamento é inerente à construção da mentalidade que presidiu o comportamento da casa-grande, símbolo do complexo social, econômico e político cuja dinâmica deu os primeiros e duradouros impulsos à formação da nossa sociedade colonial que, de acordo com Gilberto Freyre (1998, p.17-18), ao ser configurada “patriarcal e aristocraticamente à sobra das grandes plantações de açúcar,” pela iniciativa particular e no vácuo de poder proporcionado por um sistema administrativo que atuava a distância, acabou gerando uma situação favorável ao mandonismo e ao patrimonialismo, dos quais erigiu-se, nas palavras do mesmo autor (1998, p. 52), “a tradição conservadora no Brasil,” que “sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em princípio da Autoridade ou defesa da Ordem.” A esse quadro geral acrescenta-se o fato de que, devido à dificuldade das autoridades de se fazerem onipresentes em um território imenso e ao fato de em boa parte a colonização 45 ter sido feita pela iniciativa particular, as fazendas, e seu entorno, funcionavam, cada uma delas, quase como uma república. Nelas surgiu um modelo de organização familiar, a família patriarcal, que moldou (ao estender sua influência sobre o comportamento social) uma das formas de conceber o exercício do poder na sociedade colonial conhecida como patriarcalismo, caracterizado pela concentração de poder na figura masculina (o patriarca) e pelo seu exercício despótico. Esse despotismo foi reforçado pela capacidade de o senhor patriarcal oferecer proteção aos que estavam sob a sua esfera de influência. Na ausência do Estado, era ele, por exemplo, quem socorria as pessoas (por ele consideradas merecedoras) em momentos de necessidade (doença, penúria financeira, etc.) na região onde atuava. Desse modo, ao longo do período colonial, poder arbitrário e assistencialismo informal se conjugaram na formação da cultura política autoritária brasileira, gerando a disposição de parte da população a obedecer às lideranças autoritárias, à medida que estas se constituíram como referência moral de um conjunto de costumes que, ao serem enraizados na sociedade, influenciaram a forma de pensar e de se comportar politicamente de grande parte de seus indivíduos. As condições para que tal cultura se expandisse e consolidasse está ligada ao fato de que quando a administração colonial foi organizada, na sua base de poder estava a câmara municipal comandada por membros da elite senhorial. Atuando com enorme autonomia, até pelo menos a criação dos juízes de fora (escolhidos pela Coroa para tentar servir-lhe como seus olhos e representar a sua lei) no final do século XVII, a ela cabia várias funções políticas e administrativas, a arrecadação de impostos por exemplo, como informa Bicalho (2001, p. 191-200). E foi no exercício dessas funções que se originou o que Faoro (2000) chamou de “os donos do poder” e o seu mandonismo (o exercício da autoridade senhorial que se impunha, como se fosse dotado de uma ordem natural, a todas as pessoas que estavam no território submetido à influência da casa-grande) e o patrimonialismo (uma prática fundamentada “na relação viciada entre a sociedade e o Estado, quando o bem público é apropriado privadamente”) conforme sintetizou Schwarcz (2019, respectivamente p. 45 e p. 65). À medida que as instituições do Estado foram alargando as suas fronteiras, aos poucos os poderes quase absolutos dos mandatários locais foram diminuindo, mas a cultura autoritária e patrimonialista já estava tão enraizada que se perpetuou ao longo do tempo, adaptando-se às novas circunstâncias produzidas pelas vicissitudes históricas. Por exemplo, com a formação do complexo minerador no século XVIII, quando a Coroa se fez mais 46 presente no território colonial, particularmente em Minas, os senhores desta nova conquista foram obrigados a acomodar o seu poder na sombra dos representantes do Estado, com os quais muitas vezes souberam negociar para preservar seus poderes e, consequentemente, seus interesses. Mas a Colônia não se resumia às minas e o território da capitania delas originada, como os das demais, era muito extenso dificultando a presença do Estado que, mesmo quando conseguia se impor em uma determinada área incorporada ao espaço colonial, corria o risco de seus representantes reproduziram as práticas autoritárias e corruptas estimuladas pelo mandonismo e pelo patrimonialismo no âmbito da sua administração. A perpetuação dessas práticas até a Independência formou “uma das principais barreiras encontradas pelos construtores do Estado” brasileiro: “A extrema dificuldade de o poder público em transpor as porteiras das fazendas e impor-se ao poder privado, ” conforme palavras de Dolhnikoff (2000, p 9). Essa dificuldade foi diminuindo lentamente com a consolidação do Estado brasileiro e a extensão de seu poder no território nacional, mas a cultura política autoritária, gerada ao longo dos três séculos no berço do mandonismo, do patrimonialismo e da escravidão durante nossa experiência colonial, resistiu por meio de novas adaptações. Desse modo, a partir da Independência, um dos primeiros desafios políticos da recém-inaugurada nação foi a organização de seus poderes públicos e a necessidade de elaboração de um sistema eleitoral que pudesse legitimar a escolha de seus representantes nos cargos eletivos. Mas tal legitimação ficou comprometida, na sua essência, porque as eleições, além de serem frequentemente tumultuadas e violentas, eram marcadas por um conjunto de práticas definidas por Carvalho (2001, p. 34) como “malandragens eleitorais. ” Os votantes (como eram chamados os detentores do direito ao voto após serem alistados no rol de eleitores elaborado pelo critério da renda) eram cooptados (pelo clientelismo), senão coagidos (por diversos tipos de ameaça), a apoiar candidatos (geralmente representantes das famílias mais poderosas do município) pelos capangas dos “donos do poder” local, levando à distorção do significado original do voto e, consequentemente, ao sentido da cidadania. Pois, conforme reflexão do mesmo autor (2001, p. 35), referindo-se ao ato de votar: “Não se tratava do exercício do autogoverno, do direito de participar da vida política do país. Tratava-se de uma ação estritamente relacionada com as lutas locais. ” Porque “o votante” era levado a agir “não como parte de uma sociedade política, mas como dependente de um chefe político local, ao qual obedecia com maior ou menor fidelidade. ” E assim, o voto foi transformado em 47 “mercadoria a ser vendida pelo melhor preço, ” fazendo com que a eleição, para o eleitor, se tornasse a oportunidade de ganhar um dinheiro fácil, uma roupa, um chapéu novo, um par de sapatos, ” ou “no mínimo uma boa refeição. ” Esse comportamento das elites locais e dos votantes, claro, não era universal, mas generalizado e foi se perpetuando no tempo, com novas adaptações de acordo com as exigências das mudanças históricas. Com o advento da República, ele encontrou condições favoráveis para seguir dominando as práticas eleitorais, até a criação da justiça eleitoral já no tempo de Vargas que deu um passo, posteriormente interrompido pela ditadura do Estado Novo, para lhe opor obstáculos. Durante toda a nossa primeira experiência republicana, quando se destacou a figura dos coronéis, em sua maior parte descentes dos antigos senhores da terra da época colonial, aquele comportamento vicejou embalado pelo coronelismo, isto é, uma “forma peculiar de manifestação” do mandonismo,” conforme argumenta Leal (1997, p. 40), “em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado tem conseguido coexistir com um regime político de base representativa,” pelo fato de formas modernas de representação política terem sido estruturadas em uma base social e econômica arcaicas, quando o poder público ainda não era forte o suficiente para prescindir dos chefes locais, e estes já não serem tão poderosos devido à progressiva expansão estatal no espaço nacional. Tal figura estava na base compromisso político que sustentou o pacto da governabilidade oligárquica vigente na Primeira República, devido a sua capacidade de influenciar o voto dos eleitores, pelo clientelismo (concessão de favores em troca de apoio político) ou pela truculência (recorrentemente banalizada), por causa do poder econômico exercido em suas localidades (as quais convertiam em currais eleitorais) que lhes permitiu controlar as eleições. Afinal, como as eleições não eram protegidas pelo sigilo do voto (o que favorecia a fraude generalizada), os coronéis mais poderosos, normalmente sob a liderança de um deles, reuniam os eleitores e os conduziam às urnas, com o apoio intimidador de jagunços, para garantir a vitória contra os adversários; prática que ficou conhecida voto de cabresto. Assim, nesse período, o autoritarismo era praticado ao abrigo de um quadro institucional legitimado, nas aparências, por um sistema representativo deturpado pelo abuso do poder econômico e pela violência política, que o transformaram em um rito formal para validar eleições de cartas marcadas, configurando desse modo um simulacro democrático. Após a crise derradeira da nossa primeira e conturbada experiência republicana, que culminou no movimento conhecido como Revolução de 1930, os embates políticos (cuja 48 expressão mais violenta é a Guerra Civil de 1932) levaram ao consenso sobre o qual foi erigida a Constituição de 1934. Parecia que o autoritarismo tão entranhado em nossa cultura começaria a ser desconstruído com os limites constitucionais, como a criação da Justiça Eleitoral, a instituição do voto secreto e sua extensão às mulheres, etc. Com isso, um raio de esperança brilhou no horizonte. Mas, não passou de um brilho fugaz. A cultura autoritária brasileira revelou-se forte demais. Bastou uma situação histórica favorável, alguns acontecimentos que serviram de pretexto e, mais uma vez, o decisivo aval militar para o então presidente Getúlio Vargas, em 1937, dar um golpe, rasgar a Constituição, suspender as eleições do ano seguinte e se manter no poder até que, no final da Segunda Guerra Mundial, foi pressionado, já sem o apoio dos quartéis, a sair. Nesse período, o exercício autoritário do poder político, agora concentrado, sem a necessidade de simulacro, na presidência da República, acabou estimulando o reforço da cultura autoritária da sociedade brasileira, porque os valores, o estilo e a forma de atuação do presidente servem como referência do modo de se comportar das pessoas mais susceptíveis à assimilação cultural de práticas de quem elas são induzidas a cultuar. E o culto cívico a Vargas foi muito estimulado ao ponto da sacralização, como mostrou Lenharo (1986), porque, como informa Skdimore (1976, p. 60), “ele conseguiu se transformar em símbolo, aos olhos de muitos da nova geração, de um senso de objetivo nacional. ” Desse modo, se o comportamento político dos que exercem cargos eletivos, por um lado, é expressão da cultura política das sociedades nas quais são eleitos, por outro, ele também é um fator de reforço dos valores compartilhados na comunidade nacional que o elegeu. E é por esse motivo que a ditatura civil do Estado Novo e a dos militares, inaugurada em 1964 e prolongada até 1985, acabaram fortalecendo ainda mais o autoritarismo neste país que, embora esteja sendo governado, desde 1988, a partir de uma nova Constituição sobre a qual está alicerçada nossa atual democracia, ainda é assombrado pelo fantasma do golpismo, sobretudo depois da conjuntura de crise inaugurada após o impeachment de 2016 que criou as condições para a formação de um ambiente hostil contra algumas de suas instituições democráticas. Tal ambiente foi favorecido pelos resultados das eleições de 2018, principalmente após as dificuldades encontradas pelo atual governo para aprovar medidas de sua pauta ideológica, o que motivou a sua base de apoio a incentivar movimentos de rua favoráveis a intervenção militar e a praticar atos de hostilidade contra membros da imprensa, do Congresso e do Supremo. 49 Esses acontecimentos recentes, observados a partir da história da cultura política brasileira, reafirmam nossa tradição autoritária, revelando sua face reacionária, a qual tem sido cada vez mais alimentada pela sensação de que a violência e a corrupção parecem não ter solução devido aos níveis alarmantes por elas atingidos. E quando tudo isso é somado aos problemas sociais (como o desemprego, baixos salários, precariedade dos serviços urbanos e dos de saúde e educação públicas) que transformam os indivíduos mais pobres em subcidadãos, gerando um sentimento de insolúvel exclusão, as camadas populares e a classe média empobrecida, ou temerosa de empobrecimento, tendem a descrer das instituições e, consequentemente, podem torna-se mais propensas à sedução dos apelos emocionais da propaganda extremista, que tem se mostrado historicamente muito eficiente na exploração dos afetos negativos em tempos de crise. Enfim, escravismo, patriarcalismo, mandonismo e patrimonialismo geraram, entre outros fatores, as condições sociais para a estruturação da cultura política autoritária da sociedade brasileira, ao consolidarem valores sobre os quais se apoiaram, ao longo da nossa formação histórica, que há tempo tem embasado a concepção do exercício do poder político neste país. O Autoritarismo na História Política Brasileira Sabe-se que “em uma sociedade marcada por relações autoritárias, ” como a nossa, “as condições para lograr uma democracia ampla e profunda são escassas” (ASSIES et al: 2002, p. 74), razão pela qual neste país, onde o autoritarismo está fortemente enraizado em sua cultura política, até a Constituição de 1988 a experiência democrática foi exceção, pois limitada ao período de 1946 a 1964. Um dos motivos disso, afirmou Holanda em 1936 (1997, p. 160), é “que os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, partiram quase sempre de cima para baixo. ” Se confrontarmos essa afirmação com os mais marcantes períodos de transição política de nossa experiência histórica, inclusive após a data na qual ele a formulou, ela continua sendo válida. Assim, para compreendê-la, as considerações teóricas de Barrington Moore Jr. são de grande utilidade, não obstante as suas generalizações e simplificações comuns a todo modelo explicativo. Segundo ele, em obra dedicada ao estudo das origens da ditadura e da democracia (1983), foram experimentados três caminhos revolucionários para impulsionar os processos de 50 modernização das sociedades que condicionaram de forma distinta os seus regimes políticos: o democrático, o socialista e o autoritário. Grosso modo, no primeiro deles houve um confronto revolucionário entre a burguesia, apoiada por proletários, e a nobreza que culminou na destruição desta última (França). No segundo, a revolução dos proletários urbanos e rurais derrotou os burgueses (Rússia). No terceiro, a burguesia, por não ter força suficiente para superar revolucionariamente a nobreza, associou-se a esta que aceitou tal associação por não ser mais capaz de sustentar sozinha a ordem social (Alemanha). Nesse último, como o processo modernizador não resultou de uma ruptura de classe, e sim do acordo entre a antiga classe dominante e a emergente burguesia, ele acabou apresentando um caráter reacionário, porque foi orientando para acomodar velhos interesses oligárquicos na nova estrutura econômica fomentada pelo capitalismo e viabilizar a industrialização controlando os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores. Dessa maneira, a transição derivada desse modelo é considerada autoritária porque foi impulsionada pelo alto, com o objetivo de manter o controle das instituições políticas pelas velhas e novas elites, para conduzir as transformações na estrutura econômica sem mudanças na estrutura social. Em outras palavras, trata-se de uma modernização conservadora que permitiu o estabelecimento de um pacto político sobre o qual foram estabelecidas novas bases institucionais, responsáveis, por um lado, pela promoção da expansão do capital com concentração de renda no topo da pirâmide social, por outro, pela reprodução das desigualdades sociais e da pobreza delas originadas. Quando o modelo autoritário é adaptado ao caso brasileiro, ele pode ajudar a compreender o porquê de grande parte dos seus processos de ruptura histórica se identificar com o tipo de transição acima definido. A começar pela Independência, por meio da qual seus protagonistas buscaram garantir a manutenção do fim das restrições comerciais com a abertura dos portos às nações amigas, decretada em 1808, quando a corte portuguesa se transferiu para o Rio de Janeiro, encerrando na prática o estatuto colonial. Conforme explica Viotti da Costa (1985, p. 52), atingido o objetivo, por meio de uma negociação somente concluída em 1827, grande parte da população foi excluída da participação no poder, cuja concentração no alto da escala social garantiu a reprodução da escravidão e da estrutura econômica colonial. Apesar dos desentendimentos entre as elites econômicas e o D. Pedro I, que culminaram na dissolução da Assembleia Constituinte em 1823 e na abdicação do imperador em 1831, os grandes proprietários conseguiram manter seus interesses de classe e consolidá51 los após as tensões do Primeiro Reinado e da Regência, reafirmando a sua opção pela monarquia parlamentarista, inspirada no modelo inglês, por eles considerada mais adequada aos seus anseios. Afinal, conforme reitera Souza (1998, p. 185), além da experiência das independências na América Hispânica, que geraram repúblicas instáveis e, por isso, politicamente perigosas para as classes dominantes, havia “o perigo que representava, numa sociedade escravocrata, a afirmação da liberdade e da igualdade” como princípios do sistema de governo. Passadas as turbulências políticas entre a dissolução da Assembleia Constituinte e o encerramento das revoltas regenciais, ao longo da década de 1840 as elites econômicas empenharam-se para elaboração do que Dolhnikoff (2005, p. 14) chamou de pacto imperial, isto é, um arranjo institucional por meio do qual essas elites se acomodaram no poder, ao negociarem entre si acordos, como a significativa autonomia para administração de suas províncias, que permitiram a governabilidade. Apesar das tensões entre elas, o monopólio que exerceram sobre o acesso à representação na Câmara dos Deputados, por meio das restrições ao direito de voto apenas aos homens livres e capazes de comprovar certo nível de renda, lhes possibilitou o que Parron (2011, p. 287) chamou de “nova política da escravidão, que consistiu, antes do mais, em manter ou induzir, mediante ações e discursos, condições para a reprodução da instituição no tempo como meio de desenvolvimento econômico do Estado nacional,” usando como estratégia a conciliação entre os partidos opositores para garantir a governabilidade e a acomodação dos interesses partidários, de forma a evitar maiores tensões que pusessem em risco a estabilidade do pacto imperial e, consequentemente, a prosperidade por elas concentradas por meio da forma como estavam organizadas as atividades produtivas. Ou seja, a incipiente cidadania política estava limitada ao direito de voto a um círculo restrito de votantes, geralmente controlados pelas frações da classe senhorial que não havia assimilado “a noção da igualdade de todos perante a lei,” o que contradiz “o próprio sentido de cidadania,” como argumenta Carvalho (201, p. 21), que vinha sendo construída, no Ocidente, entre avanços e recuos, pelas lutas e pelos movimentos políticos desde a Revolução Francesa, como mostra Losurdo (2004, p. 17-25), até atingir na Inglaterra, segundo Marshall (1967) seu melhor modelo. A Proclamação da República também foi conduzida por um processo de transição conservadora. O Império, como nos mostra Costa (1985, p. 341-361), estava mergulhado em um conjunto de crises, particularmente depois da dissolução do Gabinete Zacarias (1868), responsável pela radicalização de uma parte do partido liberal que, revoltada com o modo 52 como se deu a queda de tal ministro, apoiou-se no ideário republicano para fazer oposição ao governo, impulsionando a criação de partidos republicanos regionais que passaram abrigar parte considerável dos críticos à Monarquia. Tal impulso, decorrente das crises que começaram a abalar o Império, está relacionado com as transformações econômicas e sociais em curso no país após o fechamento dos portos brasileiros à importação de africanos e o gradual processo de transição do trabalho escravo ao assalariado. Essas transformações começaram a criar as condições para a expansão, mesmo que lenta, mas progressiva, dos grupos ligados a investimentos urbanos, a consolidação do poder econômico dos produtores de café, especialmente os do oeste paulista, durante o enfraquecimento da antiga oligarquia do Nordeste açucareiro, gerando novas expectativas e, com elas, novos conflitos de interesse. Essa situação demandou um conjunto de reformas, a Abolição foi uma delas, que ampliou ainda mais as tensões, culminado em quedas precoces de gabinetes ministeriais e, por fim, na dissolução da Câmara, depois de uma tentativa frustrada em julho de 1889 de aprovação de uma reforma geral, incompleta para uns, ameaçadoras para outros, que acabou agravando a situação política do país, de modo que ficou claro para os grupos ansiosos por mudanças favoráveis aos seus anseios que seria politicamente inviável conduzir o reformismo no quadro institucional monárquico. Estava aberto o caminho da ruptura, que ocorreu em 15 de novembro pela acão militar derivada da articulação promovida pelos propagandistas da república, ao abrigo de seus partidos regionais, de boa parte dos grandes fazendeiros de café, de setores atuantes economicamente em atividades urbanas e de altos oficiais das forças armadas, cada qual com suas aspirações e convicções que, passada a Proclamação, logo se revelaram conflitantes inaugurando longo período de perturbações políticas e sociais. Dessa maneira, inaugurou-se no país uma nova tradição, da utilização da força militar para solucionar impasses políticos, que fundamentou até o final da ditadura militar (1985) ações políticas durante nossa experiência republicana, sobretudo quando as elites econômicas sentiram que seus interesses de classe estavam ameaçados. Assim, como se trata de um evento histórico, cujo processo se deu de cima para baixo na escala social, as mudanças, nos esclarece Costa (1985, 360-361), ficaram contidas nos limites das ambições dos grupos integrantes do movimento que o protagonizaram, os quais promoveram “apenas as modificações institucionais necessárias à sua ascensão ao poder e à realização de uma política econômica e administrativa propícia aos seus interesses. ” Desse modo, a condição de vida da maioria da população não foi alterada, sobretudo dos 53 trabalhadores rurais, porque na essência foram mantidos “o sistema de produção e o caráter colonial da economia. ” Consequentemente, não surpreende que a República Brasileira acabaria traindo suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade, ao não estender estes ideais ao campo das questões sociais, pois o que se observa após a sua proclamação é a reprodução de uma história de exclusão social, sob o véu de um liberalismo darwinista no qual, de acordo com Capelato (1988, p. 54), mesmo em condições desiguais, todos eram levados a competir pela riqueza socialmente produzida com o aval de um Estado oligárquico insensível aos problemas do povo. Claro que estas não assistiram a tudo bestializadas. No dia 15 de novembro até pode ter assistido, segundo testemunho do Senador Aristides Lobo (CARVALHO: 1996, p. 9). Mas, posteriormente, há diversos indicadores de sua atuação ativa para combater abusos, como a Revolta da Vacina (1904) e a Revolta da Chibata (1910), para reivindicar direitos, como as greves, particularmente as greves gerais de 1917 e 1918 na capital federal, para se organizar politicamente, como a criação do PCB (1922), e até para promover atos revolucionários, como a Coluna Prestes (1924-1927). Além disso, também se mostraram ativos em pequenos protestos sobre problemas que afetavam sua vida cotidiana, como o feito por um morador da freguesia de São Joaquim da Serra Negra, distrito de Alfenas, no dia18 de outubro de 1924, que enviou a seguinte carta ao poder legislativo local: Excelentíssimo Senhor Presidente e demais membros da Câmara Municipal de Alfenas. Eduardo Daniel Ferreira Dias, professor, brasileiro, residente nesta Freguesia, por si e como representante da população pobre da sede, vem à presença da ilustrada Câmara protestar contra a enorme exportação de suínos e cereais para outros municípios circunvizinhos, deixando esse abuso formidável os habitantes de São Joaquim sem recursos e alimentos. A comprovação deste fato está no elevado preço aqui atingido os gêneros de primeira necessidade: a saca de arroz de 58 quilos a 90$00 e 100$000, feijão a 55$000 e 60$000 o alqueire de 40 litros (mal medido), toucinho a 38$000 a arroba e, ainda a ser encontrado à venda, ao passo que, diariamente, seguem para a Estação grandes partidas em prejuízo do povo. O comércio é livre, mas tem seus limites na proibição de certos abusos, como este. Por que em zonas menos produtivas, como Barro Preto, encontram-se gêneros pela metade ou terça parte do preço? Espera o suplicante que a Câmara não deixará de tomar providências, à semelhança do Rio, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Belo Horizonte, etc., 54 crescendo impostos pesados àqueles que na ganância de grandes lucros não se incomodam com a fome e a miséria do povo. 2 Esses e outros conflitos, inclusive entre as próprias elites econômicas, mostram o quanto a primeira experiência republicana brasileira foi tensa, desde sua proclamação até o movimento político conhecido como Revolução de 1930 que a encerrou. Deste movimento, até a ditatura militar, os movimentos reformistas continuaram sendo predominantemente feitos de cima para baixo e na maior parte do tempo em regimes autoritários. Desse modo, partir 1930, o pacto político sobre o qual se sustentou o que Weffort (1978) chamou de “estado de compromisso,” (isto é, um Estado cuja governabilidade fundamentou-se em uma coalizão assimétrica formada por frações das classes dominantes, setores das classes médias e de trabalhadores urbanos, especialmente os operários, devido à redução da hegemonia das oligarquias e à dificuldade de uma classe substituí-la) criou uma nova situação política na qual as camadas populares tiveram algumas reivindicações atendidas. No entanto, em primeiro lugar, os trabalhadores rurais não foram incluídos neste pacto. Em segundo lugar, boa parte das demandas dos empregados urbanos, principalmente o operariado, como as leis trabalhistas, foram apenas em parte atendidas e, mesmo assim, sob um regime de tutela direcionado para constranger a sua livre organização política. Inclusive, conforme esclarece Fausto (1972, p. 107-108), após 1930, o Estado, principalmente a partir da ditadura Vargas, “manteve o papel fundamental de desorganizador político da classe operária, reprimindo duramente a sua vanguarda e suas organizações partidárias, ” ao mesmo tempo que se apresentava a ela como seu protetor, reatualizando dessa maneira o clientelismo no contexto da política de massas e criando as condições para o fomento do populismo. A derrubada do Estado Novo, no final da Segunda Guerra Mundial, vencida pelo bloco de países defensores do liberalismo político, abriu novas perspectivas para o processo de construção de um ambiente favorável ao fortalecimento da democracia no Ocidente. No caso brasileiro, tal processo foi conduzido “pela mesma elite política que comandava o regime deposto, ” de acordo com observação de Campello de Souza (1983, p. 64). Por isso, algumas limitações estruturais para o funcionamento da democracia não foram superadas, como o hipertrofismo (a expansão da margem de arbítrio) do poder executivo, 2 Requerimentos, PMA 34.1, 1909-1924. Centro de Documentação História da Universidade Federal de Alfenas. 55 construído ao longo do Estado Novo, que, ao ser conservado pela nova Constituição, concorreu para a supervalorização do cargo da presidência e para inibição do adequado revigoramento da cultura partidária, que até então, ainda estava empacada entre nós. Afinal, o país tinha acabado de sair de uma ditadura, e seus partidos, antes da supressão do simulacro democrático, da democracia formal ou protocolar, da Primeira República, não passavam de agremiações regionais que, geralmente, congregavam as elites estaduais (o PCB não conta porque, exceto curtíssimo período, atuou na clandestinidade). Assim, a experiência democrática nacional de 1946 a 1964 foi limitada, em primeiro lugar, pela fragilidade institucional dos partidos em um quadro político marcado pela força hipertrófica do Executivo e da dificuldade de criação de partidos, que expressassem os interesses das camadas populares, pelos próprios trabalhadores (o PCB foi em 1947 outra vez considerado ilegal). Além disso, exceto a UDN (de orientação conservadora, mas opositora ao legado de Vargas), os dois grandes partidos de projeção nacional deste período (PSD e PTB) foram criados sob inspiração do governo Vargas; o primeiro pelas oligarquias ligadas à burocracia estatal e o segundo diretamente pelo ex-presidente para defender interesses trabalhistas (o PSP não passava de uma agremiação paulista, criada por Ademar de Barros em 1946, ainda marcada pela feição regional da cultura partidária da Primeira República). Em segundo lugar, a democracia no mesmo período foi limitada pela política de massas originada da ampliação do sufrágio universal, em um contexto político de hipertrofismo do poder executivo e de fragilidade da cultura partidária e em um contexto econômico de industrialização e crescimento urbano. A esse respeito, Ianni (1968, p. 57) nos esclarece o seguinte: Com as migrações internas, no sentido das cidades e dos centros industriais _ particularmente intensas a partir de 1945_ aumenta bastante e rapidamente o contingente relativo de trabalhadores sem qualquer tradição política. O seu horizonte cultural está profundamente marcado por valores e padrões do mundo rural. Neste, predominam formas patrimoniais ou comunitárias de organização do poder, de liderança e de submissão. Em particular, o universo social e cultural do trabalhador agrícola (...) está limitado pelo misticismo, a violência e o conformismo, como soluções tradicionais. O personagem Fabiano da obra Vida secas de Graciliano Ramos pode ser considerado uma boa representação do tipo social traçado acima por Ianni. Gente como ele foi atraída para as áreas urbanas, sobretudo as industriais, em busca de melhores condições de vida, 56 onde se tornou presa fácil para as lideranças populistas, que a seduziam com seus discursos diretos, personalistas, nos quais prometiam ou divulgavam realizações de seu interesse como se fossem graças, visando controlá-la e conquistar o seu apoio político. A política de massas nas cidades e a permanência do arcaísmo político oligárquico no campo atuaram como fator limitante da construção da cultura democrática no período, à medida que elas dificultaram o fortalecimento das instituições partidárias, da formação da consciência de classe por parte das camadas populares e, consequentemente, do desenvolvimento crítico da opinião pública. Devido a isso, o período de 1946 a 1964 foi marcado por grande instabilidade política, cuja maior expressão é a ocorrência de uma série de ameaças de golpes, sendo alguns deles executados, e todos com participação militar, como os motivados pela eleição de JK em 1955, pela renúncia de Jânio Quadros em 1961 e pela crise do governo Goulart em 1964, permitindo concluir que o fantasma do golpismo ainda continuava a assombrar a República brasileira (TOLEDO: 2004, p. 17). Apesar do seu caráter político instável, em tal período estava em curso um avanço considerável da cultura democrática. Aos poucos, os partidos começavam a construir uma identidade de classe e a ganhar maior projeção nacional. A opinião pública vivenciava um processo de amadurecimento pois, em seu seio, desenvolvia-se um intenso debate sobre diversas questões de interesse nacional. As manifestações culturais, seguindo a tendência inaugurada pelo Modernismo, cada vez mais abordava temas que provocavam ricas discussões na imprensa, nas universidades, nos bares, nos salões, entre outros lugares de sociabilidade. Com isso, estava sendo criada uma situação favorável para o processo de construção de uma consciência crítica sobre o país, sua sociedade e seus problemas, o que poderia ter contribuído para o fomento de uma cultura cívica favorável ao incremento da noção de cidadania e da necessidade de reformas que pudessem, por exemplo, contemplar interesses de grupos sociais até então excluídos do pacto populista, como os trabalhadores rurais, cuja organização contra as extremas desigualdades e a violência estrutural do campo ganhavam força. O golpe de 1964 interrompeu bruscamente esse processo e, dessa maneira, em relação aos valores democráticos, ele representou um duro e longo retrocesso que, muito lentamente, vem sendo superado com a promulgação em 1988 da Constituição Cidadã. A partir dele, o Estado, apoiado na doutrina da segurança nacional, militarizou-se, reprimiu os que o criticavam, praticou a censura nos diversos meios de expressão, sufocou os 57 movimentos populares e, no seu período mais sombrio, torturou e até matou aqueles que considerou seus inimigos. Nesse contexto, a cultura política brasileira experimentou enorme reforço e ampliação do seu caráter autoritário, ao aprofundar a opressão e a violência, em particular, de acordo com Pinheiro (1986, p. 55), contra os extratos mais fragilizados da sociedade para conformá-la à nova política econômica e seus mecanismos de concentração de renda. Dessa forma, a ditadura militar promoveu o que Emir Sader (1986, p. 134) chamou de “amplo processo de despolitização, ” ao produzir o enfraquecimento dos valores sobre os quais estão fundamentados os ideais de cidadania e, assim, atrasando a modernização da cultura política nacional necessária para aprimoramento das instituições e, consequentemente, para a construção de um país melhor. As crises econômicas, como nos mostra fartamente a experiência histórica, contribuem para a criação de uma conjuntura favorável à mudança no modo de grande parte da população avaliar os governos. No caso dos governos militares, os efeitos nefastos da crise do petróleo de 1973/4 na vida cotidiana motivaram aos poucos uma parte da população a revelar sua insatisfação. Entre ela e a segunda e mais avassaladora crise desta fonte de energia fóssil, precipitada em 1979, as pressões contra a ditadura, tanto no plano interno quanto no externo, foram crescendo até ao ponto de sua permanência no poder torna-se inviável. Era hora de voltar para os quarteis. O povo pedia democracia, mobilizando-se nas ruas para escolher seu futuro presidente em um amplo movimento cívico conhecido como Diretas Já. Mas a eleição direta para a presidência em 1984 lhe foi negada, mesmo com a reinstitucionalização em curso do regime democrático feita por meio de uma “transação” na qual o regime autoritário, com o apoio dos setores mais conservadores da sociedade, procurou moderar o processo, o que, como normalmente ocorre em algumas circunstâncias, implicou, conforme análise de Marenco (2007, p. 89), em “elevada continuidade de elites, estruturas e instituições políticas” que limitaram a transição. Uma das limitações diz respeito à defesa da ordem pública. Sobre isso, Lins (2011, p. 187-188) mostra que, apesar de avanços importantíssimos, “as amarras da permanência autoritária se fazem sentir na Carta Constitucional de 1988, ” particularmente em relação ao “conteúdo jurídico do direito fundamental à segurança pública, no Capítulo III (art. 144,) do Título V da Constituição Federal, no qual a disciplina constitucional se limita a estabelecer o rol de atribuições de cada organização policial – estadual e federal – no território brasileiro. ” Dessa maneira, segundo ele, “o Texto Constitucional assume um teor pouco denso, 58 semântica e ideologicamente, ” pois “o Constituinte, em tal passagem, não optara com precisão desejável por um modelo securitário pautado numa ruptura democrática, ” ao fazer uma “mera reprodução, diga-se de passagem, do modelo autoritário descrito nos regulamentos emitidos ainda sob a égide do regime de exceção, como o Dec.-lei 667, de 02.07.1969 e o Dec. 2.010, de 12.01.1983. Assim, conclui que, em matéria de segurança pública, essa postura é uma “evidência de que a continuidade autoritária no Brasil não se opera apenas no campo da prática institucional, mas também através da permanência legislativa, ainda que incorporada por instrumentos marcadamente democráticos,” uma vez que, ao reproduzir o art. 1.º do já citado Dec. 667/1969, enunciando “que as polícias militares são “forças auxiliares, reservas do Exército” (art. 144, § 6.º, CF), acaba evidenciando também “que o corpo policial responsável pela gestão repressiva da segurança pública nas cidades brasileiras se confunde com uma instituição que tem como objetivo primordial a guerra e o aniquilamento do inimigo externo.” A associação disso com o fato de, entre frações das elites econômicas e da classe média, as camadas populares ainda serem vistas como classes perigosas pode contribuir para compreender o porquê de pobres e, normalmente, afrodescendentes serem ainda hoje a maior parte das vítimas da truculência policial. Outra permanência da ditadura militar na Constituição é a Lei da Segurança Nacional, criada pelo regime ditatorial para punir manifestações e atos dos que seus representantes consideravam seus inimigos. Essa lei não havia sido usada desde o fim de tal regime, até ser acionada de forma abusiva e distorcida pelo governo Bolsonaro para intimidar seus críticos, o que levou o Congresso entre maio e agosto de 2021 a revogá-la. Além de os constituintes de 1986 não terem eliminado esse “entulho autoritário,” também não aprovaram nenhuma lei específica para punir rigorosamente ataques contra a democracia, o que foi finalmente corrigido com a aprovação da Lei nº 14.197, instituída em 1º de setembro de 2021, que acrescentou o título XII, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, ao Decreto Lei n. 2848 de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e revogou a Lei n. 7170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional). O seu capítulo II, “dos crimes contra as instituições democráticas”, define o seguinte a respeito da “abolição violenta do estado democrático de direito” no art 359 L: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o estado democrático de direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais, pena de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.” Define também, sobre “golpe de estado,” no art 359 M: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo 59 legitimamente constituído, pena de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.” Apesar da herança autoritária e das ausências acima comentadas, os trabalhos da assembleia constituinte concluídos em 1988 representam um passo importantíssimo para o processo de construção de uma sociedade democrática entre nós. Desde sua promulgação, aos poucos, o país vem acumulando significativa experiência política, fundamental para o amadurecimento das suas instituições e, com efeito, para o fortalecimento de nossa democracia. Mas, ainda há um longo caminho a percorrer. Embora esse novo período de Estado Democrático de Direito tenha transcorrido sem maiores sobressaltos, é inegável que uma certa instabilidade política o acompanhou, como as crises do impeachment de Collor e Dilma exemplificam. Sobre isso, Liñan (2008, p. 110) nos lembra de que no presidencialismo “os protestos públicos frente a atos de corrupção, abuso de poder e crises econômicas se dirigem contra o presidente”, de forma que, quando tais problemas são persistentes, geram crises que “se convertem em crise de governo. ” Quando os referidos problemas se conjugam em uma situação na qual os governos não têm uma maioria ideológica no poder Legislativo, contando com apoio de uma coalização geralmente multipartidária fragilmente fundamentada na troca de interesses, há a tendência para o desencadeamento de uma crise política (se a população se mobilizar contra o chefe do Executivo) que pode culminar em impeachment, como em 1992 e 2016. Se, por um lado, a cassação de dois mandatos presidenciais em curto espaço de tempo revela o instável caráter político da sociedade brasileira, por outro, ela revela também que isso, ao ocorrer sem colocar em risco a continuidade do nosso processo democrático, acabou contribuindo para fortalecer nossa jovem democracia. Porém, a crise gerada após a reeleição de Dilma, somada à situação internacional favorável à emergência do ideário neofascista, criou uma situação propícia para manifestações nas ruas e nas redes sociais de grande parte da população em defesa de valores políticos autoritários. Tais manifestações foram crescendo, como uma onda, alimentada por sentimentos de revolta contra os efeitos da redução do PIB e aumento da dívida pública na vida cotidiana, bem como contra a enorme corrupção apurada pelas investigações da Lavajato, que geraram uma frustração de expectativas de ascensão social e uma descrença generalizada na política tradicional, das quais candidatos identificados com ideais da extrema direita se aproveitaram para impulsionar suas campanhas eleitorais. 60 Muito do resultado das eleições de 2018, particularmente para a presidência da República, se deve a essa onda. De suas movimentações, emergiu uma militância mais radical, incentivadora de atos contra o Supremo Federal e o Congresso (com explícitas ameaças a alguns de seus integrantes), motivada pela dificuldade do atual presidente formar uma maioria ideológica no Congresso para implementar sua política de governo sem maiores resistências. Um deles, evidenciando grave afronta às leis e descrença nas instituições sinalizadoras de soluções dogmáticas que se apresentaram como salvadoras da pátria, conforme observou Schwarcz (2019, p. 232), consistiu em uma agitação política destinada a desencadear um movimento que pedia intervenção militar com Bolsonaro presidente, utilizando o slogan: “Eu autorizo, presidente. ” Tal militância acabou sendo acuada, porque as instituições democráticas deram respostas duras aos seus atos, com abertura de inquéritos e até prisões de seus integrantes mais explícitos e exaltados, como a do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) e a do ex-deputado e presidente do PTB Roberto Jeferson, que defenderam abertamente nas redes sociais o fechamento do STF. Esse último acabou sendo solto condicionalmente, mas como continuou as ações que o levaram à prisão, teve sua condicional revogada às vésperas do segundo turno das eleições de 2022. Quando a PF chegou à sua residência, para executar o novo mandato de prisão, foi por recebida ele com tiros e granada. Esse acontecimento foi o ápice de um processo tenso para o qual o chefe do Executivo do último governo deu muitas contribuições. Em agosto de 2021, por exemplo, diante da sua vertiginosa queda de popularidade, reiterou sua desconfiança nas urnas eletrônicas, criando nova polêmica envolvendo os Três Poderes da República e com significativo impacto na opinião pública. Segundo matéria do jornal O Estado de São Paulo, o ministro da Defesa, o general da reserva Braga Neto, teria declarado que se não houver voto impresso não haverá eleições em 2022. A repercussão foi enorme, as críticas dos principais representantes das instituições republicanas, da mídia e de diversas entidades foram imediatas, levando o citado ministro a ser convocado a dar explicações à Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara. Apesar disso, o presidente manteve os ataques às urnas eletrônicas e investiu-se contra o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, devido à resistência deste de ceder às pressões para a volta do voto impresso. E o pior, em um flagrante impulso arbitrário, ameaçou resolver a questão fora dos marcos constitucionais. Consequentemente, uma comissão especial da Câmara foi formada para julgar a possibilidade da volta do voto impresso e decidiu pela rejeição dessa possibilidade, o que foi confirmado pelo plenário da 61 Câmara em meio às pressões do presidente da República que, no dia da votação, recebeu uma tanqueata (desfile de tanques militares na Praça dos Três Poderes em Brasília) com a justificativa de receber a entrega de um convite para acompanhar o treinamento de 2.500 militares em Formosa, no Estado de Goiás. A esse respeito, Levitsky e Ziblatt (2018, p. 34), ao analisarem como as democracias morrem, apresentam um quadro de indicadores do comportamento autoritário que contribui para o diagnóstico da atual situação política do país, sendo uma delas a tentativa de “minar a legitimidade das eleições. ” Assim, o questionamento do método de votação revela-se temerário porque sou como um o pretexto para rejeitar o resultado eleitoral, gerando o temor de que aqui ocorresse algo semelhante nos EUA, na véspera da posse de Joe Biden, onde grupos radicais invadiram o Capitólio, praticando uma série de vandalismos, na tentativa de impedir a confirmação da vitória do atual presidente sobre o populista de direita Donald Trump, que não reconheceu a sua derrota alegando fraude na votação. Para reforçar a convicção da inviolabilidade das urnas eletrônicas, o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, criou no dia nove de setembro de 2021 a Comissão de Transparência das Eleições, formada por especialistas em tecnologia, órgãos de fiscalização e representantes de entidades civis, destinada a acompanhar os procedimentos de preparação das urnas eletrônicas para as eleições de 2022, como forma de responder aos ataques do último ex-presidente a esse sistema de votação. Essa criação foi anunciada, dois dias após as manifestações bolsonaristas no dia da Independência, como resposta ao discurso presidencial no palanque diante de mais de cem mil apoiadores na av. Paulista, no qual ele reiterou seus ataques à democracia, particularmente ao STF, em especial ao ministro do Supremo Alexandre de Morais que, em quatro de agosto, incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito da fake news (divulgação de notícias falsas). Sabemos que as respostas ao referido discurso foram muito duras e veio de todos os lados, até da base governista, inclusive até cogitou-se a abertura de impeachment contra o presidente, levando-o, três dias depois, a se retratar por meio de uma carta dirigida à nação elaborada com a ajuda do ex-presidente Temer: As coisas pareciam ir bem, até que em doze de fevereiro deste ano (2022), durante entrevista ao ex-governador Antony Garotinho na Rádio Tupi, o atual presidente reiterou suas desconfianças às urnas eletrônicas. E não foi só isso. Em data próxima a esse dia, em uma live nas redes sociais, ele havia dito que o Exército enviou perguntas ao TSE por 62 suspeitar da segurança no sistema eleitoral brasileiro, afirmando que tal segmento das Forças Armadas havia identificado possíveis vulnerabilidades nele. Além disso, no dia 31 de março, aniversário do Golpe de 64, durante cerimônia de oficialização da saída de ministros para a disputa das eleições de ano 2022, o último expresidente elogiou tal golpe ao perguntar: “O que seria do Brasil sem as obras do governo militar? Não seria nada! Seríamos uma republiqueta. ” 3 Esse elogio foi reforçado por Braga Neto, ministro da Defesa, que publicou nota na página do referido ministério afirmando, entre outras coisas, que a mencionada data foi “um marco histórico da evolução política brasileira” que “respondeu aos anseios” da sociedade, deixando um “legado de paz, de liberdade e de democracia. ” 4 Uma das atitudes elencadas por Levitsky e Ziblatt (2018, p. 34), no quadro de indicadores de comportamentos autoritários do estudo dedicado à análise de como as democracias morrem, é o elogio “de medidas repressivas tomadas por outros governos no passado, ” como os que se estabeleceram no Brasil a partir de 1964, responsáveis por brutal repressão aos adversários ideológicos. Depois das reações ao referido elogio, as tensões políticas ora eram abrandadas, ora eram novamente impulsionadas por declarações do ex-chefe do Executivo, culminando no caso da segunda prisão de Roberto Jeferson anteriormente comentada. Apesar de tudo isso, as eleições foram tranquilas, apesar de no segundo turno, o chefe da PRF, Silvinei Vasques (explícito apoiador do então candidato Bolsonaro à reeleição para presidente), ter comandado uma operação no dia do segundo turno das eleições em estados nordestinos, acusado de reter veículos com declaração de apoio ao candidato da oposição, criando dificuldades que tumultuaram o processo eleitoral em cidades do Nordeste. Apesar disso e de todo o esforço (como a PEC da “reeleição”) para reeleger o último presidente, seu opositor venceu as eleições, desencadeando no dia seguinte o bloqueio de estradas em diversos pontos do país e concentração em frente aos quartéis pedindo intervenção militar, além dos atos de vandalismo (queima de oito carros, destruição de uma delegacia de polícia, e tentativa de invadir a sede da Polícia Federal.) em Brasília no dia 12/12/2022 após a prisão de uma liderança indígena bolsonarista e até a tentativa de ato terrorista com o planejamento da explosão de uma caminhão-tanque em frente ao aeroporto 3https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/03/31/bolsonaro-obras-ditadura-militar.htm. Acesso em 01/04/2022 4https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/com-elogio-ao-golpe-de-64-general-asseguravaga-de-vice-de-bolsonaro. Acessado em 01/04/2022. 63 dessa mesma cidade, descoberto na véspera do Natal, culminando na prisão do empresário George Washington de Oliveira Sousa. Ainda na capital do país, no dia oito de janeiro de 2023, milhares de bolsonaristas radicais, vindos de diversas partes do país, invadiram as sedes dos Três Poderes Federais, promovendo vandalismo jamais visto na capital nacional desde sua inauguração. Trata-se de um gravíssimo atentado contra instituições democráticas brasileiras, o maior após o final da ditadura militar, revelando que há grupos políticos (apoiadores do ex-presidente derrotado nas eleições de 2022) dispostos a destruir a nossa democracia para fazer valer sua vontade política, numa clara demonstração de golpismo. Inclusive, durante as investigações na casa do ex-ministro da Justiça do governo anterior, Anderson Torres, exonerado do cargo de secretário da Segurança Pública do DF sob a acusação de ter tomado medidas administrativas que facilitaram a invasão das sedes dos Três Poderes Federais, foi encontrado um documento com o seguinte conteúdo revelador de uma clara intenção de planejamento de golpe de Estado: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso de suas atribuições que lhe conferem os artigos 84, inciso IX, 136, 140 e 141 da Constituição, DECRETA: Art. 1° Fica decretado, com fundamento nos arts. 136, 140, 141 e 84, inciso IX, da Constituição Federal, o Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília, Distrito Federal, com o objetivo de garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022, no que pertine à sua conformidade e legalidade, as quais, uma vez descumpridas ou não observadas, representam grave ameaça à ordem pública e a paz social. 5 Tudo isso para tentar espalhar o caos no país, visando à criação de uma crise que pudesse ser o princípio de um estado de anomia social capaz de gerar uma situação favorável à intervenção militar tão almejada pelos grupos radicais responsáveis por tais ações antidemocráticas. Por isso, não resta dúvida de que nossa democracia vem sendo perigosamente ameaçada desde a crise do governo Dilma, com recrudescimento durante o governo Bolsonaro quando a ameaça passou a se manifestar de dentro das instituições. Não resta dúvida também de que o reconhecimento institucional do resulto do segundo turno da eleição presidencial e a consequente posse do novo presidente da República não foram 5https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/13/integra-documento-golpista-casa- anderson-torres.htm. Acesso em 13/01/2023. 64 suficientes para o fim das manifestações de extremistas bolsonaristas, como os acontecimentos na capital federal indicam. Será necessário que a Lei nº 14.197, instituída em 1º de setembro de 2021, que acrescentou o título XII, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, ao Decreto Lei n. 2848 de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), seja aplicada enérgica e exemplarmente para, junto com uma campanha de promoção dos valores democráticos nas mídias e nas escolas, servir de antídoto contra futuros ataques semelhantes. Por essa razão, a pergunta “democracia em risco?” (uma angustiante expressão intelectual da preocupação com o futuro do Estado Democrático de Direito no Brasil), utilizada como título do livro escrito por Abranches e outros vinte e um autores, 6 após as eleições de 2018, pode ser respondida com um lamentável sim diante de tudo que testemunhamos até agora neste país. Mas, nem tudo pairou como trevas nessa conjuntura entre a crise do impeachment de 2016 e o processo de sucessão presidencial de 2022 que, pelos atos extremistas ocorridos no dia oito de janeiro deste ano em Brasília, parece ainda não ter acabado; pelo menos para a parte mais radical dos apoiadores do último ex-presidente. Pois a cultura democrática no Brasil mostrou força suficiente para resistir aos ataques contra ela. Ocorreram várias reações de pessoas, entidades e instituições. Uma delas, de forma mais concreta, foi da Lei nº 14.197, instituída em 1º de setembro de 2021, que acrescentou o título XII, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, ao Decreto Lei n. 2848 de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e revogou a Lei n. 7170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional). Outra, de forma mais simbólica, é a Carta pela Democracia, lançada por juristas e pela Faculdade de Direito da USP no dia 26/07 e lida no dia 11/08 quando contava com mais de um milhão de assinaturas (autoridades políticas, artistas, banqueiros, centrais sindicais, diversas entidades classistas, empresários, esportistas, intelectuais, jornalistas, etc.), que representa o compromisso, de grande parte do eleitorado esclarecido deste país, de lutar para ele continuar trilhando o caminho da consolidação de sua democracia. E outras mais agora recentemente, como resposta aos atos extremistas em Brasília, quando o governo da União ordenou intervenção na segurança pública do Distrito Federal, o ministro do STF, Alexandre de Morais, decretou afastamento do governador de tal Distrito (sob a acusação de responsabilidade pela falha na segurança da capital federal, em particular na praça dos Três Poderes, e sob a suspeita de omissão ou até conivência), a Justiça determinou a prisão em fragrante de aproximadamente 300 pessoas durante a repressão aos 6 ABRACHES, S. et al. Democracia em risco? São Paulo: Cia das Letras, 2019 65 referidos atos e a abertura de investigação para descobrir os demais participantes que se evadiram e seus financiadores, além do desmonte autorizado pelo Supremo dos acampamento de golpistas em frente às unidades do Exército em todo país, resultando na condução pela polícia de outras centenas de radicais para prestar depoimento, como na capital do DF, onde foi necessário dezenas de ônibus para isso. A ver os desdobramentos Considerações Finais Vivemos em um país cuja experiência histórica favoreceu a formação de uma cultura política autoritária, que fundamentou predominantemente o comportamento político de grande parte da população e da maioria dos governos republicanos até o final da ditadura militar em 1985. Com a nova chance de construção de uma sociedade democrática, simbolizada pela Constituição Federal de 1988, aos poucos estamos edificando nossa democracia com o fortalecimento de nossas instituições de Estado, amadurecimento da nossa opinião pública e valorização dos princípios democráticos e sua disseminação pelas escolas, imprensa, entidades de classe, as artes em geral, etc. Mas há longo caminho a percorrer... pois, embora a democracia no Brasil já não seja mais um lamentável mal-entendido, como frustradamente observou Sérgio Buarque de Holanda em 1936 (1997, p. 160), ela ainda está inacabada, uma vez que precisa ser consolidada como valor fundamental da nossa vida civil e de nossas relações políticas. Para isso acontecer, a sua valorização precisa ser intensificada, o que demanda uma sinergia de todas as partes da sociedade (indivíduos, entidades e instituições) convictas da necessidade de buscar solução para os problemas de uma nação de forma dialógica e civilizada. Precisa também acionar severa e exemplarmente a Lei nº 14.197, instituída em 1º de setembro de 2021, que acrescentou o título XII, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, ao Código Penal de 1940, contra qualquer manifestação contrária ao Estado Democrático de Direito, para intimidar a sanha autoritária que se popularizou nas redes sociais e tomou as ruas do país após os efeitos nefastos do impeachment de 2016 e ganhou força durante o governo Bolsonaro. Com a eleição do novo presidente, um novo ciclo de reforço da cultura democrática pode ser inaugurado, porque a sua experiência pessoal e a dos seus mandatos anteriores indicam que ele tem compromisso com os valores democráticos, inclusive no seu discurso de posse, deixou muito claro tal compromisso quando fez uma defesa enfática da democracia. 66 Assim, sua eleição poderá ser considerada um passo essencial para vencermos um de nossos maiores desafios políticos: a superação do autoritarismo e a consequente consolidação dos valores democráticos como fundamento da nossa cultura política, se seu governo for coerente com o seu discurso de posse, se nenhum escândalo do nível que vimos nos seus dois mandatos anteriores e no de Dilma se repetir, evitando a criação de nova situação de deflagração de um crise de descrença na política e nas instituições e se seus governo der resposta dura contra atos, como os ocorridos no dia oito de janeiro em Brasília, de pessoas que insistam em não reconhecer sua vitória nas urnas. 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Nesse sentido, tem-se como objetivo principal analisar o direito humano à moradia em intersecção com a saúde pública no Brasil, a partir de análise documental sobre a pandemia de covid-19. Para tanto, adota-se a abordagem pragmática para o Direito Global e os procedimentos de pesquisa bibliográfica e documental em fontes primárias, sobretudo nos documentos da Organização das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde (OMS) e em dados empíricos sobre o cenário brasileiro. Conclui-se, que essa crise sanitária desvela crises preexistentes de habitação e de saneamento, decorrentes da não concretização do direito humano à moradia adequada. Desse modo, o déficit habitacional e a carência de acesso à água tratada e coleta de esgoto no Brasil constituem empecilhos à prevenção e ao tratamento da doença. Ademais, os impactos sofridos em decorrência da pandemia de covid-19 e os recursos disponíveis para lidar com a situação diferem entre a população, demandando que o Poder Público dirija especial atenção a grupos em situação de vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua, as comunidades indígenas e os imigrantes. A partir de maio de 2023, com a ênfase dada pela OMS ao gerenciamento de longo prazo da covid-19, deve-se atentar para a moradia adequada como determinantes social da saúde. No contexto de crises sanitárias, a concretização do direito humano à moradia, já componente da noção de “mínimo existencial”, torna-se vital, no sentido mais literal desse termo. Palavras-chave: Direitos humanos; direito à moradia; saúde pública; pandemia de covid-19; Brasil. Abstract: This research focuses on the problem: “how does the realization of the human right to housing in Brazil impact health crises, such as covid-19?”. In this regard, the main objective is to analyze the right to housing in intersection with public health in Brazil, based on documental analysis of the covid-19 pandemic. For this purpose, a pragmatic approach to Global Law is adopted, as well as bibliographic research and document analysis of primary sources, especially documents of the United Nations, World Health Organization (WHO) and empirical data on the Brazilian scenario. It is concluded that this health crisis reveals preexisting housing and sanitation crises, resulting from the non-realization of the human right to adequate housing. Thus, the housing deficit and the lack of access to treated water and wastewater treatment in Brazil constitute obstacles to the prevention and treatment of the disease. In addition, the impacts suffered as a result of the covid-19 pandemic and the resources available to deal with the situation differ between the population, demanding that Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, na área de concentração “Direitos Emergentes na Sociedade Global”. Bolsista CAPES-DS. Especialista em Direitos Humanos e em Direito Constitucional. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Integrante do Núcleo de Pesquisa e Práticas em Direito Internacional – NPPDI (CNPq/UFSM). E-mail: [email protected] 1 70 the government pay special attention to vulnerable groups, such as the homeless, indigenous communities and immigrants. As of May 2023, with the emphasis given by the WHO to the long-term management of covid-19, attention must be paid to adequate housing as a social determinant of health. In the context of health crises, the realization of the human right to housing, already a component of the notion of “basic conditions of life”, becomes vital, in the most literal sense of that term. Keywords: Human rights; right to housing; public health; covid-19; Brazil. Introdução Iniciou em 2019 uma crise que afetou a saúde global, sendo declarada, em 2020, Emergência Sanitária de Importância Internacional (ESPII) pela Organização Mundial da Saúde (OMS): a pandemia do vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19. Se as principais diligências para evitar o contágio por covid-19 consistem na higienização constante das mãos, no distanciamento físico e no autoisolamento2, a quem é garantido o direito à prevenção? A recomendação à população dessas medidas de prevenção e contenção da doença lastreia-se no pressuposto de que haveria moradia adequada para todos. Contudo, como seguir essas medidas quando não há casa na qual ficar ou não se tem acesso à água encanada para lavar as mãos? Diante disso, a presente pesquisa documental aborda o problema: “de que modo a concretização do direito humano à moradia no Brasil impacta crises sanitárias, como a de covid-19?”. Nesse sentido, tem-se como objetivo principal analisar o direito humano à moradia em intersecção com a saúde pública no Brasil, a partir de análise documental sobre a pandemia de covid-193. Para tanto, adota-se a abordagem pragmática para o Direito Global e os procedimentos de pesquisa bibliográfica e documental em fontes primárias, sobretudo nos documentos da Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS) e em dados empíricos sobre o cenário brasileiro. A pertinência da pesquisa é reforçada quando, em 05 de maio de 2023, declarou-se o fim da referida ESPII com a ressalva de que a covid-19 continua constituindo uma ameaça à saúde pública. Considerando-se que a OMS, a partir de 2023, preocupa-se mais com o gerenciamento de longo prazo da covid-19, consolida-se um terreno fértil para o debate sobre “Para prevenir a infecção e retardar a transmissão do COVID-19, faça o seguinte: [...] Fique a pelo menos 1 metro de distância dos outros, mesmo que não pareçam estar doentes. [...] Escolha espaços abertos e bem ventilados em vez de fechados. Abra uma janela se estiver dentro de casa. Lave as mãos regularmente com água e sabão ou limpe-as com álcool em gel. Se você se sentir mal, fique em casa e se isole até se recuperar.” (WHO, 2023a, tradução livre). 3 O foco, aqui, não são as ações e muitas omissões na gestão da pandemia de COVID-19 no Brasil, mas sim a moradia como determinante dos processos de saúde-doença. Outra pesquisa, produzida pela autora, ainda no prelo, mapeia as políticas públicas emergenciais adotadas em matéria de moradia adequada nos primeiros meses de pandemia e as repercussões desse "habitar emergencial", como denominado pela autora (Verdum, no prelo). 2 71 os fatores da crise sanitária e os determinantes sociais da saúde, dentre os quais ressalta-se a habitação. Na primeira parte do artigo, analisa-se como o direito à moradia é tutelado pelas principais normas de direitos humanos no contexto da ONU e do Brasil. Já na segunda parte, esboça-se a cronologia da pandemia de covid-19, com base em documentos da OMS, e discutem-se dados empíricos sobre o cenário sanitário e habitacional brasileiro, do que resultam conclusões sobre como o direito humano à moradia impacta a saúde pública no Brasil. 1. A Tutela do Direito Humano à Moradia e suas Implicações Sanitárias Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consignou dentre os denominados direitos econômicos, sociais e culturais, o direito à moradia. Desse modo, o artigo 25 (1) da Declaração estabelece que: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (ONU, 1948) Tal preceito é parcialmente reproduzido no artigo 11 (1) do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado e incorporado ao direito interno brasileiro, em consonância com o artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal. Nesse instrumento, reafirma-se também a necessidade de os Estados adotarem medidas apropriadas para assegurar a consecução do direito à moradia. O Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no que tange ao referido artigo do Pacto, repele a atribuição de sentidos restritivos ao direito à moradia – equiparando-o, por exemplo, ao “abrigo provido meramente pela existência de um teto sobre a cabeça dos indivíduos” -, porquanto a dignidade inerente à pessoa humana e a necessária interdependência entre os direitos fundamentais impõe a compreensão do direito à moradia muito mais como um “direito a viver em algum lugar com segurança, paz e dignidade” (OHCHR, 1991, p. 2, tradução nossa)4. Nessa contextura, o direito à moradia deve ser adjetivado pela adequação, conceito que, embora relativamente determinado por fatores sociais, econômicos, culturais e ecológicos, compreende elementos essenciais em qualquer contexto, quais sejam: i) segurança legal da posse; ii) disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura; No original: “the shelter provided by merely having a roof over one’s head” (OHCHR, 1991, p. 2); “right to live somewhere in security, peace and dignity” (OHCHR, 1991, p. 2). 4 72 iii) custo acessível; iv) habitabilidade; v) acessibilidade; vi) localização; e vii) adequação cultural (OHCHR, 1991). Outrossim, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais recomenda que os Estados deem a devida prioridade aos grupos sociais que vivem em condições desfavoráveis, de modo que “um declínio geral nas condições de vida e habitação, diretamente atribuíveis a decisões políticas e legislativas pelos Estados-partes e à falta de medidas compensatórias que se façam acompanhar, seria inconsistente com as obrigações assumidas no Pacto” (OHCHR, 1991, p. 5, tradução nossa)5. Isso, porque, durante períodos de contração econômica, os deveres consolidados pelo Pacto de 1966 continuam vigentes e tem sua imprescindibilidade, inclusive, reforçada. A preocupação com o crescente processo de urbanização e seus impactos sociais fomentou, ademais, a realização de conferências globais adeptas às pautas urbanas. Desse modo, a Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos, Habitat I, considerando a expansão desordenada da cidade, a inadequação da infraestrutura urbana, a desigualdade socioeconômica e o aumento da pobreza, consolidou, em 1978, a necessidade de assentamentos humanos e cidades sustentáveis, mediante a melhoria da qualidade de vida urbana, a consecução do pleno emprego e a participação dos habitantes no planejamento municipal. Contudo, as recomendações desse encontro praticamente não se concretizaram, eis que presidido num período em que a Guerra Fria fomentava a bipolaridade mundial e privilegiava o estatismo, de modo que “[o]s governos, suposta e pretensiosamente autossuficientes, muitas vezes dissociados das aspirações das respectivas sociedades, arrogavam-se o direito e o poder de determinar sozinhos os caminhos do desenvolvimento” (ALVES, 2018, p. 300). Não obstante, dentre as inciativas prósperas advindas da Conferência de Vancouver, estabeleceu-se a, hoje denominada, Agência ONU-Habitat, cujo escopo é o desenvolvimento urbano social, econômico e ambientalmente sustentável. Já a partir da Segunda Conferência Mundial Sobre os Assentamentos Humanos, HABITAT II, realizada em Istambul, em 1996, reconheceu-se a pauta urbana como problemática global, sistêmica e prioritária – o que, se proposto outrora, cingir-se-ia de evidente artificialidade. Nessa senda, adotou-se um plano de ação global (Agenda Habitat), cujo preâmbulo salienta os dois temas principais da Conferência, “Moradia adequada para todos” e “Desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos em um mundo que se urbaniza”. No original: “a general decline in living and housing conditions, directly attributable to policy and legislative decisions by States parties, and in the absence of accompanying compensatory measures, would be inconsistente with the obligations under the Covenant”. (OHCHR, 1991, p. 5) 5 73 O compromisso global de assegurar a plena e progressiva realização do direito à moradia adequada é endossado no parágrafo 39 da Agenda, de acordo com o qual, os Estados devem “permitir que as pessoas obtenham abrigo e para proteger e melhorar as habitações e bairros” (UN, 1976, tradução livre)6. Tal preceito, entretanto, reflete a enorme complexidade da geopolítica das cidades, que marcou a constituição da Agenda, ao envolver interesses públicos e privados diversos. Acerca disso, José Lindgren-Alves (2018, p. 311-312 e p. 316) rememora a influência norte-americana sobre a referência à progressividade da concretização do direito à moradia – em detrimento de sua aplicação imediata -, como forma de repulsão a sua acionabilidade (justiciability). Inobstante os dilemas do processo preparatório e das negociações oficiais do plano de ação, ressaltável é a adjetivação do direito à moradia como adequada ao longo de todo a Agenda, o que endossa componentes essenciais a tal direito, como a segurança, o saneamento e os serviços básicos, sem os quais o bem-estar físico, psicológico, social e econômico se torna impossível. Essa perspectiva também reforça a compreensão da universalidade, indivisibilidade e inter-relação de todos os direitos humanos. Já a Nova Agenda Urbana adotada na Conferência das Nações Unidas para Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), em 2016, resulta de um amplo processo colaborativo, que incluiu também organizações sociais e especialistas internacionais, fator que tornou mais democrático e contextual o documento construído (ALOMAR, 2017, p. 5). A Nova Agenda reconheceu importantes elementos para a garantia do direito à cidade, como a função social e ecológica da terra, bem como a participação e engajamento civil nas cidades e assentamentos humanos, além da concretização do sentimento de “pertença e apropriação” por parte de todos os citadinos (ONU-HABITAT, 2016, p. 5). Ademais, para a mudança do paradigma urbano, a Nova Agenda reconhece e estimula o protagonismo de governos subnacionais e locais. Esse avanço, que atenua as fronteiras entre o local e o global (JUNQUEIRA, 2017, p. 59), é reforçado em diversos âmbitos. A título exemplificativo, cite-se que a Nova Agenda Urbana é comprometida com o desenvolvimento a níveis subnacional e local no que tange à “migração internacional”, à “promoção de serviços sociais e básicos”, à “concretização progressiva do direito à moradia adequada” e ao “incremento da segurança da posse para todos” (ONU-HABITAT, 2016, p. 13-15). No original: “to enable people to obtain shelter and to protect and improve dwellings and neighbourhoods” (UN, 1976). 6 74 Nesse sentido, a Nova Agenda Urbana, das Nações Unidas, promove “[u]m novo urbanismo, o das cidades saudáveis” (FREITAS, 2019, p. 36), que compreende medidas como: “a remoção negociada de pessoas de áreas de risco”, para que chuvas de omissão não continuem as matando (FREITAS, 2019, p. 37); e “o reconhecimento do direito subjetivo oponível ao Poder Público de obter o saneamento ambiental, a reordenação urbana, o tratamento de resíduos, o esgotamento e tudo o mais que se impõe como precípuo para tornar o meio sadiamente habitável” (FREITAS, 2019, p. 389-390). O paradigma onusiano penetra o direito doméstico. Na Constituição Federal de 1998 (CF/88), o direito à moradia é assegurado dentre os direitos sociais previstos no artigo 6º, por força da Emenda Constitucional n° 26, de 2000. Além disso, o artigo 7º, IV, da Carta Magna estabelece como direito dos trabalhadores um salário mínimo capaz de assegurar moradia para suas famílias. A promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em razão do artigo 23, IX, da Constituição Federal. Especificamente à União compete instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos, conforme o art. 21, XX, da Constituição. Ademais, destaca Raquel Rolnik: Há vasta legislação voltada à proteção da moradia e da posse sobre bens imóveis, amparada na Constituição Federal de 1988, que assegura como princípios fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III). [...] Há proteção constitucional especificamente voltada para indígenas (art. 231) e quilombolas. O capítulo sobre política urbana da Constituição Federal dispõe sobre a função social da propriedade urbana (art. 182 e 183) (ROLNIK, 2013, p. 1). Por fim, dentre os direitos e garantias fundamentais, assegura-se, com igualdade a todos: a casa como asilo inviolável do indivíduo (art. 5º, XI, CF/88); o direito à propriedade (art. 5º, XXII, CF/88); a função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF/88); procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, salvo exceções (art. 5º, XXIV, CF/88); o uso da propriedade particular por autoridade no caso de iminente perigo público, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano (art. 5º, XXV, CF/88); e a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família, para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva. O direito humano à moradia adequada é também tutelado infraconstitucionalmente, em instrumentos como o Código Civil – no que tange à posse e propriedade de imóveis, por exemplo – e o Estatuto da Cidade, o qual, em seu artigo 2º, consagra a política urbana 75 nacional orientada à “garantia de condições condignas de acessibilidade, utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas, inclusive nas destinadas à moradia” (BRASIL, 2001). Nesse sentido, como ressalta o artigo 3º, inciso III, do Estatuto da Cidade, compete à União “promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais”, assim como “de saneamento básico” (BRASIL, 2001). Diante disso, insta analisar, a partir de procedimento documental, o caso da pandemia de covid-19 a fim de identificar suas inter-relações com o direito humano à moradia. 2. Habitação e Crises Sanitárias: uma Análise da Pandemia de Covid-19. Deisy Ventura (2009, p. 159) esclarece que as epidemias permeiam a história da humanidade de modo cíclico, variando apenas quanto a sua amplitude e às circunstâncias em que ocorrem. A emergência desses fenômenos desorganiza a cidade, de modo que Élisabeth Sledziewski (2014) propõe a reflexão das crises de saúde como crises morais e políticas. Nesse sentido, “a vocação de qualquer crise sempre foi desnudar as fraquezas de uma ‘cidade’ ao levantar o véu que acoberta suas insuficiências, a peste [alusão à metáfora de Albert Camus para referir-se a epidemias] põe radicalmente à prova a sociedade democrática, seus princípios, sua viabilidade histórica e seu sentido” (VENTURA, 2009, p. 160). Historicamente, crises sanitárias causadas pela emergência de novas doenças e pela reemergência de outras já controladas desafiaram a sociedade e influenciaram o habitar humano. A relação entre os processos de saúde-doença e a moradia também se dá na via contrária: as condições habitacionais influenciam a promoção da saúde e o desenvolvimento de enfermidades. A epidemiologia multicausal reconhece que múltiplos fatores podem afetar a ocorrência de doenças. Os determinantes sociais de saúde enfatizam a inter-relação entre as condições de vida do indivíduo – dentre elas, a habitação – e sua situação de saúde (BUSS, PELLEGRINI FILHO, 2007). Consoante Eliseu Alves Waldman e Ana Paula Sayuri Sato (2016), nas últimas décadas, o Brasil foi assolado por grandes epidemias – como a da doença meningocócica na década de 1970 -, bem como pela emergência da AIDS e pela reemergência de doenças como a dengue nos anos 1980 e a cólera nos anos 1990. Em 2019, uma pandemia afetou a saúde global, sendo declarada a mais recente Emergência Sanitária de Importância Internacional (ESPII) pela OMS: a pandemia do vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19. A análise dessa última crise sanitária enfrentada pelo Brasil permite a reflexão sobre sua inter-relação com o direito à moradia adequada, como via de mão dupla: de um lado, a influência da doença no 76 processo de reconfiguração social do espaço; de outro, a intersecção entre a moradia e as determinantes da doença. Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) foi informada de casos de pneumonia com etiologia desconhecida detectados na cidade de Wuhan, na China (WHO, 2020i, p. 1). Logo mais, reconheceu-se a emergência de uma nova cepa de coronavírus, a qual foi isolada em 07 de janeiro de 2020 e posteriormente denominada novo coronavírus-2019 (nCoV-2019 ou covid-19) (WHO, 2020i). De acordo com a OMS (2020i, p. 2), em 20 de janeiro de 2020 já haviam 282 casos confirmados de covid-19 (sendo 278 na China e dois casos de lá exportados para a Tailândia, um para o Japão e um para a República da Coreia) e seis mortes reportadas. Em pouco tempo, o vírus disseminou-se, sendo que o relatório da OMS de 24 de janeiro de 2020 reportava 846 casos confirmados e 25 mortes decorrentes de covid-19 em todo o mundo. Passados dois dias desse relatório, o novo informe contabilizou 56 óbitos e um total de 2.014 casos confirmados do novo coronavírus no mundo, distribuídos pela China, Japão, República da Coreia, Vietnam, Singapura, Austrália, Malásia, Tailândia, Nepal, Estados Unidos e França (WHO, 2020j). Diante disso, a Organização Mundial de Saúde, em 30 de janeiro de 2020, declarou que a difusão da covid-19 constituía uma Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), demandando ações de enfrentamento urgentes (WHO, 2020l). Deisy Ventura (2016, p. 2-3) elucida sobre a criação da figura jurídico-política da ESPII: Trata-se de "um evento extraordinário" que constitui, para outros Estados, um risco à saúde pública em virtude da propagação internacional de doença ou agravo – independentemente de origem ou fonte, que represente ou possa representar um dano significativo para seres humanos – e potencialmente exige uma resposta internacional coordenada. [...] Logo, os elementos definidores de uma ESPII não são gravidade e letalidade efetivas, mas, sim, seu potencial alcance internacional. [...] Com efeito, cada declaração de ESPII se faz acompanhar de um conjunto de recomendações da OMS, endereçadas ao público em geral e a diferentes categorias de atores, em especial aos Estados e ao setor de transporte. Essas recomendações permitem coordenar a resposta à doença, racionalizando meios e providências. Trata-se, indubitavelmente, de soft law, pois elas são "orientações de natureza não-vinculante", permanentes ou temporárias, emitidas pela OMS "com referência a riscos para a saúde pública específicos existentes, e relativa às medidas de saúde apropriadas, de aplicação rotineira ou periódica, necessárias para prevenir ou reduzir a propagação internacional de doenças e minimizar a interferência com o tráfego internacional". Nesse sentido, adverte-se para a necessidade de que as resposta às emergências internacionais não fiquem adstritas ao prisma da segurança global (VENTURA, 2016, p. 3). Para além disso, é imprescindível o enfrentamento das causas das crises sanitárias, vinculadas aos determinantes sociais da saúde. No caso da pandemia de covid-19, e considerando-se o escopo deste artigo, enfatiza-se a importância da efetivação das promessas não cumpridas da 77 modernidade, com a concretização dos direitos humanos à habitação adequada, dada a interrelação deste com a saúde pública. Quando, em 11 de março de 2020, a disseminação do novo coronavírus atingiu o marco de 118.319 casos confirmados em todo o mundo, acometendo 114 países, territórios ou áreas e dando causa a 4.292 óbitos em uma escala de tempo muito curta, a Organização Mundial de Saúde elevou o estado da contaminação de covid-19 à condição de pandemia (WHO, 2020b). Todavia, enfatizou que a atual pandemia seria a primeira passível de ser controlada (WHO, 2020m). Para tanto, a Organização recomendou que os países tomassem medidas preventivas urgentes, bem como ativassem e ampliassem seus mecanismos de resposta a emergências (WHO, 2020m). Dentre as políticas recomendadas a todos as nações para a contenção da covid-19, destacaram-se o isolamento e o tratamento de infectados, bem como o rastreamento de seus contatos, o uso de máscara para indivíduos sintomáticos e a conscientização social das medidas de higiene (WHO, 2020k). O primeiro caso de covid-19 no Brasil foi registrado oficialmente em 26 de fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo (BRASIL, 2020). Até essa data, 81.109 casos, distribuídos por 38 países, já haviam sido reportados à OMS, com 2.762 mortes (WHO, 2020a). Em 19 de março de 2020, “o número de casos confirmados em todo o mundo ultrapassou 200.000. Demorou mais de três meses para atingir os primeiros 100.000 casos confirmados e apenas 12 dias para atingir os próximos 100.000” (WHO, 2020c, tradução nossa) 7. A exponencial disseminação do vírus prosseguiu, ultrapassando 300.000 casos em 23 de março de 2020 (WHO, 2020d), 400.000 casos dois dias depois (WHO, 2020e), 500.000 casos em 27 de março (WHO, 2020f) e 600.000 casos dois dias depois. Posteriormente, em apenas vinte e quatro horas, o número de contaminados subiu de 750.890, no último dia de março (WHO, 2020g), para 823.626, em 01 de abril de 2020, sendo já contabilizadas 40.598 mortes pelo novo coronavírus nessa data (WHO, 2020h). Durante esse período, o epicentro da pandemia transitou da China, à Europa e aos Estados Unidos. A imprevisibilidade do itinerário do vírus tornou vital a adoção de medidas preventivas por todas as nações. Não obstante os primeiros casos tenham acometido potências econômicas e os indivíduos “mais conectados”, o temor era que o próximo foco da infecção sejam os países do sul global e as populações mais pobres. E, de fato, o foi. Considerando a incessante difusão comunitária de casos de covid-19, medidas mais severas foram sugeridas pela Organização Mundial de Saúde, como o fechamento temporário No original: “[t]he number of confirmed cases worldwide has exceeded 200 000. It took over three months to reach the first 100 00 confirmed cases, and only 12 days to reach the next 100 000” (WHO, 2020c) 7 78 de escolas, transportes e locais de trabalho, a quarentena pública e o isolamento de indivíduos, a serem aplicadas de acordo com as realidades nacionais (WHO, 2020k). Essa recomendação foi corroborada por inúmeros estudos comprobatórios da eficácia da implementação de medidas restritivas na China na redução do número de reprodução efetiva da covid-19 (média de casos secundários que um caso infeccioso gera) e da taxa de crescimento de casos (BATISTA, 2020; TANG, 2020). Ademais, o Imperial College (WALKER, 2020) estimou que, na ausência de intervenções desse tipo, a covid-19 geraria, ainda em 2020, sete bilhões de infecções, sobrecarregando os sistemas de saúde e ocasionando 40 milhões de mortes globalmente nesse ano, mas, se as estratégias de supressão (isolamento e intenso distanciamento social) fossem implementadas precocemente e mantidas, 38,7 milhões de vidas poderiam ser salvas. Conforme dados empíricos, de 2020 até 06 de janeiro de 2023, o Brasil relatou à OMS um total de 36.423.138 de casos confirmados de covid-19 e 694.411 mortes pela doença (WHO, 2023). Proporcionalmente à população total, o Brasil registrou, em 2020, mais mortes por covid-19 do que 89,3% de um conjunto de 178 países com dados compilados pela Organização Mundial de Saúde (HECKSHER, 2021, p. 13). Ademais, a desigualdade social determinou os rumos da pandemia no Brasil: “entre os adultos brasileiros internados com Covid-19, os pacientes pretos e pardos apresentaram maior mortalidade dentro do hospital e utilizaram menos recursos hospitalares” (WERNECK; BAHIA; MOREIRA; SCHEFFER, 2021, p. 49). Em novembro de 2020, “as pessoas situadas na faixa de renda acima de quatro salários mínimos consumiram quatro vezes mais testes do que o segmento populacional que vive com menos de meio salário mínimo” (WERNECK; BAHIA; MOREIRA; SCHEFFER, 2021, p. 49). E, a título exemplificativo, em “São Paulo, o risco de morte por Covid foi maior nas áreas com piores condições sociais” (WERNECK; BAHIA; MOREIRA; SCHEFFER, 2021, p. 49). Nesse contexto, ações constitucionais – como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) com pedido liminar nº 672 DF e a Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 770 DF – foram ajuizadas face a ações e omissões do Poder Público. Ocorre que a concretização do distanciamento, do isolamento e da quarentena em âmbito domiciliar é pouco factível se considerado o déficit habitacional no Brasil de 5.876.699 domicílios, à época da eclosão da covid-19 (FEITOSA, 2022, p. 38). Até a instrução mais básica para a contenção da covid-19 – lavar as mãos – soa irônica aos ouvidos dos quase 35 milhões de brasileiros sem acesso à água tratada e dos 100 milhões sem acesso à coleta de esgoto no Brasil, em 2020 (TRATA BRASIL, 2022). Como seguir as principais 79 recomendações contra o coronavírus, quando não há casa na qual ficar ou não se tem acesso à água potável para lavar as mãos? Assim como a pandemia expõe a natureza coletivas das cidades e a interdependência dos habitantes, também proporciona uma urgente reflexão sobre a dificuldade de aplicação dos direitos sociais e difusos ligados ao espaço urbano. A atual crise sanitária desvela, pois, crises preexistentes de distribuição de riquezas, de habitação e de saneamento. É indubitável que essa emergência em saúde pública afeta a todos, assim como a contaminação por sars-cov ameaça a todos, mas os impactos sofridos em decorrência disso e os recursos disponíveis para lidar com a situação diferem para parcela da população. Nesse sentido, “o surto da pandemia de Covid-19, especialmente pelo rápido contágio e pela mortalidade do vírus dentro das grandes cidades, tem mostrado correlação com a superlotação domiciliar, entre outras carências habitacionais e de equipamento” (LUCO, 2022, p. 116). Por tais razões, quando da adoção de medidas de contenção ou gerenciamento da covid-19, é fundamental que se dirija especial atenção à garantia dos direitos de grupos em situação de vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua, as comunidades indígenas e os imigrantes. A mitigação do impacto diferencial sofrido por essas coletividades pressupõe o desenvolvimento de políticas de caráter habitacional e urbanístico. Assim também concluiu Camilo Luco (2022, p. 120-121): a pandemia de Covid-19 tem demonstrado a enorme vulnerabilidade sanitária implicada pela superlotação, pela densidade e pela precariedade habitacional, reforçando a exigência prática de uma gestão habitacional mais precisa e oportuna mediante programas focados territorialmente em áreas carentes e de déficit qualitativo que comprometem a agenda social. Em 05 de maio de 2023, foi declarado o fim dessa Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional com a ressalva de que a covid-19 continua constituindo um risco à saúde pública (WHO, 2023a). A partir desse marco, a OMS preocupa-se menos com respostas emergenciais e mais com o gerenciamento de longo prazo da covid-19. Considerando isso, mais do que nunca, há um terreno fértil para o debate sobre as causas da crise sanitária e os determinantes sociais da saúde. Essa discussão deve considerar as implicações sanitárias da concretização do direito à moradia adequada no Brasil, a partir de dados empíricos. Destarte, o gerenciamento da covid-19 requer a adoção de um plano de medidas abrangentes. À luz do estado de calamidade decorrente da pandemia, a concretização de condições mínimas de habitabilidade deve constituir meta urgente e vital, no sentido mais literal desse termo, para todos – por ser um direito universal – e por todos – na 80 medida em que o número de reprodução efetiva da covid-19 baseia-se na contaminação de indivíduos singulares e a capacidade de atendimento do sistema de saúde é limitada. “Para responder eficazmente à escala e complexidade cada vez maiores das emergências sanitárias no século XXI, os países e outros intervenientes em emergências sanitárias devem adotar uma mudança estratégica”, visando à preparação e resiliência para ameaças sanitárias emergentes (WHO, 2023a, tradução livre). Em tempos extraordinários, como o de crises sanitárias, o direito à moradia, já componente da noção consensuada de mínimo existencial, ingressa em uma esfera ainda mais delineada de mínimo vital, que lastreia o dever do Poder Público em assegurá-lo. Conclusão O direito humano à moradia adequada é consolidado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, pelas três conferências mundiais sobre assentamentos humanos das Nações Unidas (Habitat I, II e III) e pela Constituição Federal de 1998, dentre outras normas. Sob essa perspectiva, a moradia, para ser adequada, pressupõe a conjugação de elementos como segurança, acessibilidade, saneamento básico e infraestrutura. O direito humano à moradia relaciona-se intrinsecamente com a saúde pública. O estudo intensivo da pandemia de covid-19 permite concluir que, no Brasil, o déficit habitacional de 5.876.699 domicílios, à época da eclosão da covid-19, e a carência de acesso à água tratada por 35 milhões de brasileiros e coleta de esgoto por 100 milhões de brasileiros, em 2020, são empecilhos à prevenção, ao tratamento e à contenção da doença. Nesse sentido, a crise sanitária desvela crises pré-existentes de habitação e de saneamento, decorrentes da não concretização do direito humano à moradia. Os impactos sofridos em decorrência da pandemia de covid-19 e os recursos disponíveis para lidar com a situação diferem entre a população, demandando que o Poder Público dirija especial atenção a grupos em situação de vulnerabilidade, como as pessoas em situação de rua, as comunidades indígenas e os imigrantes. Outrossim, no contexto de crises sanitárias, a concretização do direito à moradia adequada, já componente da noção consensuada de mínimo existencial, torna-se vital, o que lastreia o dever do Poder Público em assegurá-lo. Referências ALOMAR, JS.C. O Direito à Cidade e a Nova Agenda Urbana da ONU Perspectivas para a inovação urbanística no contexto do fortalecimento do neoliberalismo. Anais do XVII 81 ENANPUR, São Paulo, 2017. Disponível em: https://anais.anpur.org.br/index.php/ anaisenanpur/article/view/2198/2177. 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Acesso em: 01 set. 2022. 84 Vulnerabilidade e Direito ao Cuidado do Idoso em Portugal: Análise do Regime do Acompanhamento de Maiores Vulnerability and the right to care for the elderly in Portugal: analysing the regime for accompanying adults Ana Carvalho1 Isabel Restier Poças2 Sumário: 1. Introdução. 2. Breve panorama sobre a proteção das pessoas idosas vulneráveis no ordenamento jurídico português e análise do regime de acompanhamento de maiores. 3. Considerações finais. Resumo: A vulnerabilidade constitui um conceito complexo. Inicialmente, parece referir-se à ideia de fragilidade física enquanto resultado de alguma característica biológica ou psicológica do indivíduo. Consequentemente, a idade constitui aqui um fator essencial. A velhice (pelo menos nalguns casos) ou a infância tornam-nos seres potencialmente vulneráveis. A essa dimensão física ou biológica, é preciso referirmo-nos também a uma dimensão socioeconómica. A posição social dos indivíduos na infância e na velhice determina, em grande medida, o seu grau de vulnerabilidade. Esta possui também uma dimensão política e económica que pode acrescentar ou limitar a vulnerabilidade que afeta determinados grupos sociais. Os grupos vulneráveis são essencialmente grupos em risco. E se esse risco se concretizar passam a estar em perigo de sofrer um dano social como, por exemplo, no caso das pessoas idosas, a pobreza, a exclusão social, a falta de cuidados necessários ou a violência. Embora, em alguns ordenamentos jurídicos existam normas específicas, como é o caso do Estatuto do Idoso no Brasil, o tratamento jurídico das pessoas idosas não é diferente nos seus aspetos essenciais relativamente aos demais cidadãos, sendolhes reconhecidos os mesmos direitos. Assim, não existem enquanto categoria jurídica, pelo menos no que diz respeito à ordem jurídica portuguesa, objeto deste artigo. Para responder a situações em que a pessoa maior de idade veja a sua capacidade diminuída, por situações físicas ou mentais e não possa exercer por si só os seus direitos e cumprir os seus deveres, o sistema português prevê um regime de acompanhamento. Este assume muita importância, porque há situações e doenças associadas ao envelhecimento que implicam uma perda de capacidade para o autogoverno, envolvendo um estado de vulnerabilidade da pessoa idosa, devendo tal questão ser devidamente acautelada pelo ordenamento jurídico. Igualmente importante, é a previsão na lei do exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a liberdade de celebração de negócios da vida corrente. A importância deste regime jurídico em Portugal decorre da implementação efetiva da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2006), por meio da Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2015 de 25 de agosto que aprovou a Estratégia de Proteção ao Idoso e previu “assumir como missão prioritária a revisão do Código Civil, no que tange ao regime das incapacidades e seu suprimento, em alinhamento com as tendências internacionais”, tendo Portugal sido dos seus primeiros signatários e constitui uma forma de concretização do sentido lato do direito ao cuidado. Palavras-chave: idoso; vulnerabilidade; acompanhamento de maior. 1 Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Mestre em Direito Tributário e Fiscal pela Universidade do Minho. Juíza dos Tribunais Administrativos e Fiscais, atualmente a exercer funções no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto. E-mail: [email protected] 2 Licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa - Porto, Pós-graduada em Direito do Património Cultural e em Teoria e Prática de Contencioso Administrativo e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogada. E-mail: [email protected] 85 Summary: Vulnerability is a complex concept. Initially, it seems to refer to the idea of physical fragility because of some biological or psychological characteristic of the individual. Consequently, age is an essential factor here. Old age (at least in some cases) or childhood make us potentially vulnerable beings. In addition to this physical or biological dimension, there is also a socio-economic dimension. The social position of individuals in childhood and old age largely determines their degree of vulnerability. This also has a political and economic dimension that can add to or limit the vulnerability affecting certain social groups. Vulnerable groups are essentially groups at risk. And if that risk materialises, they are in danger of suffering social harm, for example, in the case of the elderly, poverty, social exclusion, lack of necessary care or violence. Although in some legal systems there are specific rules, such as the Statute of the Elderly in Brazil, the legal treatment of the elderly is no different in its essential aspects from that of other citizens, and they are recognised as having the same rights. As such, they do not exist as a legal category, at least as far as the Portuguese legal system is concerned, which is the subject of this article. In order to respond to situations in which the person of legal age finds their capacity diminished, due to physical or mental situations, and is unable to exercise their rights and fulfil their duties on their own, the Portuguese system provides for an accompanying regime. This is very important because there are situations and illnesses associated with ageing that imply a loss of capacity for selfgovernment, involving a state of vulnerability for the elderly person, and this issue must be duly safeguarded by the legal system. Equally important is the provision in the law for the accompanied person to exercise personal rights and the freedom to conclude everyday business transactions. The importance of this legal regime in Portugal stems from the effective implementation of the Convention on the Rights of Persons with Disabilities (New York, 2006), by means of Resolution of the Council of Ministers no. 63/2015 of 25 August. This approved the Strategy for the Protection of the Elderly, foresaw “assuming as a priority mission the revision of the Civil Code, with regard to the regime of incapacities and their supply, in line with international trends”, with Portugal being one of its first signatories, and constitutes a way of concretising the broad sense of the right to care. Key words: elderly; vulnerability; accompanying adults. 1. Introdução A vulnerabilidade constitui um conceito complexo que precisa, para a sua adequada compreensão, de ir além do senso comum. A que nos referimos quando falamos em vulnerabilidade ou grupos vulneráveis? Num primeiro momento, parece referir-se à ideia de fragilidade física enquanto resultado de alguma característica biológica ou psicológica do indivíduo. Consequentemente, a idade constitui aqui um fator essencial. A velhice (pelo menos nalguns casos) ou a infância tornam-nos seres potencialmente vulneráveis. Juntamente com essa dimensão física ou biológica, é preciso referirmo-nos também a uma dimensão socioeconómica. A posição social dos indivíduos na infância e na velhice determina, em grande medida, o seu grau de vulnerabilidade. De acordo com Gustavo Busso, a vulnerabilidade surge da interação entre um conjunto “de fatores internos e externos que convergem num indivíduo, lar ou comunidade num tempo e num espaço determinados”. Assim sendo, “as condições de falta 86 de defesa, fragilidade e desamparo, em combinação com a falta de respostas e as fragilidades internas podem conduzir a que o indivíduo, o lar ou a comunidade sofram uma deterioração no seu bem-estar como consequência de estarem expostos a certos tipos de risco.”3 Portanto, a vulnerabilidade possui também uma dimensão política e económica que pode acrescentar ou limitar a vulnerabilidade que afeta determinados grupos sociais. Este alargamento da vulnerabilidade, percecionada como maior propensão ao dano (físico, psicológico ou social), quer quantitativamente (grupos especialmente afetados), quer qualitativamente (grupos cujos elementos sofrem as consequências agravadas de certas situações), está estreitamente ligado ao conceito de risco. Aliás, os grupos vulneráveis são essencialmente grupos em risco. E se esse risco se concretizar passam a estar em perigo de sofrer um dano social como, por exemplo, no caso das pessoas idosas, a pobreza, a exclusão social, a falta de cuidados necessários ou a violência.4 Embora em alguns ordenamentos jurídicos existam normas específicas como é o caso do Estatuto do Idoso no Brasil,5 o tratamento jurídico das pessoas idosas não é diferente nos seus aspetos essenciais relativamente aos demais cidadãos, sendo-lhes reconhecidos os mesmos direitos. Portanto, em relação às pessoas idosas, diferentemente dos menores, não existem enquanto categoria jurídica, pelo menos no que diz respeito à ordem jurídica portuguesa, objeto deste artigo. Desta forma, se excetuarmos questões que têm a ver com a vida laboral6 temos uma situação de igualdade formal que, todavia, tem sido historicamente compatível com situações de desigualdade material e discriminação provocadas de forma indireta. De facto, ao referirmo-nos à construção social da vulnerabilidade das pessoas idosas, é inevitável falar na discriminação que as afeta como grupo, que se caracteriza por não ser BUSSO, G. “Vulnerabilidad Social: nociones e implicancias de políticas para América Latina y el Caribe a comienzos del Siglo XXI”, Trabajo presentado al Seminario Internacional sobre las diferentes expresiones de la vulnerabilidad social en América Latina y el Caribe. [Em linha]. CEPAL/CELADE, Santiago de Chile 2001. [Consult. Em 1 de agosto de 2023]. Disponível na Internet: <URL: https://docplayer.es/1715443-Vulnerabilidad-socialnociones-e-implicancias-de-politicas-para-latinoamerica-a-inicios-del-siglo-xxi.html>. 4 Para maiores desenvolvimentos sobre o conceito de vulnerabilidade consultar CARVALHO, Ana Sofia, IBÁÑEZ, J,G. POÇAS, I.R. - Medidas e Políticas de proteção ao idoso em Portugal e Espanha. Vulnerabilidade e direito ao cuidado in Cuidado e Cidadania: Desafios e Possibilidades-Coordenadores: PEREIRA, Tânia da Silva, DE OLIVEIRA, Guilherme, COLTRO António Carlos Mathias, Editora rags.com.br. 1.ª Edição. 2019. ISBN:97885-9524-069-8, pp. 29-46. 5 CARVALHO, A. O Estatuto do Idoso no Brasil. In MONTE, Mário et al. (org.). Direito na Lusofonia. Cultura, direitos humanos e globalização. Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016. pp. 29 a 36 e PEREIRA, Tânia. Cuidado e Afetividade na Velhice: a importância da convivência familiar e social para o idoso. PEREIRA, Tânia da Silva DE OLIVEIRA, G. e COLTRO, A.C.M. (org.). Cuidado e Afetividade. 1.a ed. São Paulo. Atlas, 2017. ISNB 9788597009170, pp.609 a 638. 6 Cf. CARVALHO, A. - The prohibition of age discrimination in labour relations: international and legal framework in USA, EU and Portugal. In TREZUBOV. Ye. S. (org). Legal education. Civil society. Equitable state. Collection of papers of the VI (XIII) International scientific conference of students and junior researchers. [Em linha]. Kemerovo: Kemerovo State University, 2012. [consult. em 1 de agosto de 2023]. Disponível na Internet: <URL: https://uf.kemsu.ru/files/Sbornik_trudov_UF_2012.pdf>. 3 87 muito visível e ter tendência a tornar-se natural. Essa discriminação dirigida aos idosos é conhecida como idadismo. Por causa dos estereótipos negativos que moldam a perceção da velhice, os idosos sofrem discriminação da sociedade por causa da sua idade avançada, bem como pelo funcionamento discriminador dos modelos dominantes de política económicosocial para as pessoas idosas.7 Por outro lado, se nos focarmos numa abordagem específica de direitos humanos, no caso das pessoas idosas, podemos falar de uma condição física e biológica que, como acontece no caso das crianças, as coloca numa situação de inferioridade nas relações sociais. Obrigaria, portanto, a uma proteção especial acrescida, no entanto, não vinculada ao valor de igualdade, mas ao valor da solidariedade ou fraternidade. No seio da sociedade idadista os direitos das pessoas idosas encontram-se continuamente expostos a violações, quer por preconceitos, mitos, estereótipos, quer simplesmente pelo desconhecimento dos traços que caraterizam este período da vida. De facto, ainda não temos uma Convenção Internacional que poderia permitir uma mudança de paradigma que viesse substituir a conceção historicamente predominante das pessoas idosas, no entanto a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2006) abriu caminho para a sua proteção. Com efeito, no seu seguimento, foi publicada a Estratégia de Proteção ao Idoso, por meio da Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2015 de 25 de agosto8 que aprovou e previu “assumir como missão prioritária a revisão do Código Civil, no que tange ao regime das incapacidades e seu suprimento, em alinhamento com as tendências internacionais”. Nesse sentido, prevê-se como “Medida 2.1: Alterar o Código Civil, em sede de regime das incapacidades e seu suprimento – Objetivo - Reforçar a autonomia e a dignidade das pessoas com capacidade diminuída, Medida 2.2: Alteração ao Código Civil - Objetivo: Adequar o Código Civil ao novo regime das incapacidades e seu suprimento e Medida 2.3: Alteração ao Decreto -Lei n.º 319 -A/76, de 3 de maio, à Lei n.º 14/79, de 16 de maio, à Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto, alterada pelas Leis Orgânicas n.ºs 5-A/2001, de 26 de novembro, 3/2005, de 29 de agosto, 3/2010, de 15 de dezembro, e 1/2011, de 30 de novembro, ao Decreto -Lei n.º 267/80, de 8 de agosto, à Lei Orgânica n.º 1/2006, de 13 de fevereiro, alterada pela Lei Orgânica n.º 1/2009, de 19 de janeiro, à Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto, alterada pelas Leis Orgânicas n.ºs 3/2010, de 15 de dezembro, e 1/2011, de 30 de 7 CARVALHO, A.S.; GRACIA, J. Os maus-tratos a idosos em contextos familiares Proposta para uma abordagem ecológico-crítica, in PEREIRA, T.S., GUILHERME DE OLIVEIRA e COLTRO, A.C.M. (org.). Cuidado e Afetividade. 1.a ed., São Paulo. Atlas. 2017. ISNB 9788597009170, pp. 45-76. 8 Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2015 de 25 de agosto. Diário da República, 1.ª série - N.º 165. https://www.pgdlisboa.pt/docpgd/files/1441188745_estrategia_protecao_idoso_25082015.pdf. 88 novembro, à Lei n.º 66 -A/2007, de 11 de dezembro, alterada pela Lei n.º 29/2015, de 16 de abril, à Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, alterada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro e à Lei n.º 25/2012, de 16 de julho. Objetivo: Adequar a legislação avulsa ao novo regime das incapacidades e seu suprimento.” Em sede de enquadramento, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2015 de 25 de agosto “salienta a enunciação dos princípios que devem ser observados em sede de aplicação das medidas de proteção: dignidade da pessoa humana, audição e participação, informação, necessidade e proporcionalidade, flexibilidade e preservação patrimonial.”. O Código Civil viria a ser efetivamente alterado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto que introduziu o regime de acompanhamento de maiores, que analisaremos de forma detalhada na seção seguinte. 2. Breve Panorama Sobre a Proteção das Pessoas Idosas Vulneráveis no Ordenamento Jurídico Português e Análise do Regime de Acompanhamento de Maiores A pessoa humana viva tem o estatuto jurídico de pessoa jurídica (cf. n.º 1 do artigo 66.º do Código Civil, 9 10 doravante C.C.), consistindo a personalidade jurídica na “aptidão para ser titular autónomo de relações jurídicas”.11 Esta afirmação básica e simples não é descabida de intencionalidade. Na verdade, dada a existência de diversas capacidades mentais e físicas, vemos, no dia-a-dia, alguns serem tratados não como sujeitos de direito,12 mas como verdadeiros objetos de direito,13 o que não é compatível com o seu estatuto jurídico de pessoa, devendo ser tomadas medidas nesta matéria. À personalidade jurídica “é inerente a capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos”14 - cf. artigo 67.º do C.C.15 Além da capacidade de gozo de direitos, a pessoa tem também a capacidade de exercício dos mesmos, também chamada capacidade de agir, que se traduz na “idoneidade para actuar juridicamente, exercendo direitos ou cumprindo deveres, Nos termos deste artigo, a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida. n.º 47344/66, de 25 de novembro. Diário do Governo, 1.ª série N.º 274. https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-lei/1966-34509075. 11 PINTO, C. Teoria Geral do Direito Civil. 4.ª ed. Coimbra: Almedina. 2005. ISBN: 9789723221022, p. 201. 12 PINTO, C. Op. cit., p. 193 - “Sujeitos de direito são os entes susceptíveis de serem titulares de direitos e obrigações, de serem titulares de relações jurídicas. São sujeitos de direito as pessoas, singulares e colectivas.” 13 PINTO, C. Op. cit., p. 189 - “Objeto da relação jurídica é aquilo sobre que incidem os poderes do titular activo da relação.” 14 PINTO, C. Op. cit., p. 220. 15 Nos termos deste artigo, a capacidade jurídica consiste na possibilidade de ser sujeito de quaisquer relações jurídicas, salvo disposição legal em contrário. 9 10Decreto-Lei 89 adquirindo direitos ou assumindo obrigações, por acto próprio e exclusivo ou mediante um representante voluntário ou procurador, isto é, um representante escolhido pelo próprio representado”.16 Para dar resposta a situações em que a pessoa maior de idade veja a sua capacidade diminuída, nomeadamente por situações físicas ou mentais e não possa exercer por si só os seus direitos e cumprir os seus deveres, atualmente o sistema português prevê um regime de acompanhamento. Este regime assume muita importância, nomeadamente porque há situações e doenças associadas ao envelhecimento que implicam uma perda de capacidade para o autogoverno, o que implica um estado de vulnerabilidade da pessoa idosa, devendo tal questão ser devidamente acautelada pelo ordenamento jurídico. Com efeito, o artigo 138.º do C.C. dispõe que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”. O preceito evita referir anomalias psíquicas, surdez-mudez e cegueira; ficam as razões de saúde, a indagar e a valorar pelo Tribunal. As razões comportamentais podem abranger o alcoolismo, a tóxico-dependência ou a prodigalidade. Também aqui qualquer enumeração, que seria sempre insuficiente ou delicada (pense-se na dependência de jogos de vídeo, na adesão a seitas ilegais com práticas perigosas para o próprio ou a radicalização políticomilitar), surge dispensável. Também não se vê como exigir “habitualidade” ou “durabilidade”: tudo depende de cada situação.17 Por exemplo, em muitas doenças mentais, inclusivamente em situações graves como a esquizofrenia ou a doença bipolar, observa-se um curso flutuante, com períodos de exacerbação, onde a capacidade de governar a sua pessoa e bens pode estar seriamente comprometida, e períodos de estabilização, onde a doença pode não interferir decididamente e de um ponto de vista médico com a capacidade de gestão do próprio e do seu património.18 Parece assim ter sido ultrapassada a não inclusão das situações em que a capacidade diminuída era transitória, o que consubstanciava uma dificuldade da anterior legislação vigente em Portugal nesta matéria. PINTO, C. Op. cit, p. 221. Da situação jurídica do maior acompanhado – Estudo de política legislativa relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores. [Em linha]. 2017. [consult. em 2 de agosto de 2023]. Disponível na Internet: <URL:https://www.smmp.pt/wp-content/uploads/Estudo_Menezes-CordeiroPinto-MonteiroMTS.pdf>, pp. 117 e 118. 18 MARQUES, S. e VIEIRA, F. - Proteção da autonomia na incapacidade — novas exigências ao regime jurídico português. Julgar, n.º 34. 2018. ISBN: 9781646685295, pp. 67 e 68. 16 17 90 “O acompanhamento é apresentado como um benefício e nunca como uma sujeição”,19 é decidido pelo Tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas, nos termos do artigo 139.º do Código Civil. Entende-se que “(…) apenas o Tribunal pode optar pelo acompanhamento, seja qual for o seu grau. (…) O juiz deve ter um contacto com o visado; se este não puder falar e /ou não se puder deslocar ao Tribunal, o juiz visitá-lo-á onde quer que esteja. Esse contacto é decisivo (…)”,20 o que se veio a prever especificamente no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.), que assim dispõe: “Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.” O acompanhamento destina-se a assegurar o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os direitos do maior necessitado e o cumprimento dos seus deveres nos termos do n.º 1 do artigo 140.º do Código Civil. Não deve ter lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e assistência que no caso caibam, consagrando-se assim a regra da supletividade, prevista no n. º 2 do artigo 140.º do Código Civil. Têm-se aqui em vista, em primeira linha, os artigos 1674.º e 1675.º do Código Civil; mas, admite-se que eles possam resultar de outra fonte; seria ideal que estivessem em causa as situações das pessoas que vivam em economia comum (Lei n.º 6/2001, de 11 de maio) e em união de facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio); infelizmente, os competentes regimes não consagram expressamente os deveres de cooperação e de assistência, embora se chegue lá pela boa-fé.21 Segundo Diogo Leite de Campos, os deveres de assistência e cooperação integram o ser para com os outros, traduzindo a comunhão de vida, a disponibilidade constante de cada um para com os outros, colocando em comum a vida, o tempo e o espaço, no fundo ser com os outros .22 Sobre o dever de auxílio, este é parte integrante do conceito de cooperação, na aceção dada pelo artigo 1672.º do Código Civil, pelo que um dos desdobramentos do dever de cooperação, a par da assunção das responsabilidades inerentes à vida familiares por ambos os cônjuges, é a obrigação de socorro e auxílio mútuo. No que concerne a esta obrigação, uma primeira distinção de ordem literal cumpre ser feita, reportando-se o socorro às situações de crise, urgentes e anómalas, e os auxílios mútuos às adversidades do quotidiano, Da situação jurídica do maior acompanhado. Op. cit., pp. 117 e 118. Da situação jurídica do maior acompanhado. Op. cit., pp. 117 e 118. 21 Da situação jurídica do maior acompanhado. Op. cit., p. 119. 22 CAMPOS, D. - Eu-Tu: o amor e a família (e a comunidade) (eu-tu-eles). Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977. Volume I. Coimbra: Coimbra Editora. 2004. ISBN: 9789723212563, p. 47. 19 20 91 como a doença ou as vulnerabilidades decorrentes da velhice. O dever de cooperação traduz ainda a obrigação de zelar pela vida e saúde do familiar, implicando uma postura ativa, de prevenção e proteção face àquele.23 Quanto ao dever de assistência, este tem uma natureza patrimonial, correspondendo à obrigação de prestação de alimentos e à obrigação de contribuição para os encargos familiares (neste último caso, será necessária a coabitação dos familiares, pertencentes ao mesmo agregado familiar).24 Uma questão a pensar, em geral, é a das consequências jurídicas da violação dos deveres de auxílio e assistência. Embora se possa pensar, desde logo, em responsabilidade civil e criminal, nem sempre a violação dos deveres em relação a ascendentes ou equiparados se afigura tão líquida, não sendo sequer debatida doutrinalmente, como lembra Andreia Mendes.25 Nesta matéria e para reflexão posterior, é importante ter por base, desde logo, a Lei n.º 61/2008, de 31 de outubro, permitindo a aplicação das regras gerais da responsabilidade civil às relações conjugais, verificada a rutura do vínculo, em razão da violação de deveres familiares, nos termos do artigo 1792.º do Código Civil, assim como a criminalização da violação da obrigação de alimentos. Deve-se problematizar ainda a questão relacionada com o uso abusivo da figura da gestão de negócios em nome da pessoa com capacidade diminuída, quando poderia ser importante fixar medidas próprias de acompanhamento. Cumpre perguntar: será que com o atual regime jurídico as pessoas necessitadas de apoio ficarão à mercê dos seus familiares atendendo ao regime supletivo do acompanhamento? O Conselho Superior de Magistratura chamou a atenção para o facto de que a supletividade prevista parece esquecer a posição jurídica daqueles que se relacionam juridicamente com o necessitado de assistência, quer familiares quer terceiros contratantes. Por outro lado, tal supletividade não pode fazer esquecer que, muitas vezes, não são cumpridos aqueles deveres de cooperação e de assistência, sem que a generalidade da sociedade e especificamente, as instituições de segurança social e os tribunais (aqui em sentido lato) se apercebam desse incumprimento. Os conflitos e divergência de interesses dentro de cada família, muitas vezes agudizados pela existência de património mais ou menos elevado e pelo aumento do período 23MENDES, Andreia - Direito ao Envelhecimento – perspectiva jurídica dos deveres familiares relativamente a entes idosos. Dissertação de Mestrado em Direito Judiciário [Em linha]. Braga. 2012. [consult. em 2 de agosto de 2023]. Disponível na Internet: :<URL:https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/20662/ 1/Andreia%20Joana%20Morris%20Mendes.pdf>, p. 60. 24 MENDES, A. Op. cit., p. 64. 25 MENDES, A. Op. cit., p. 73. 92 de vida dos cidadãos, melhor serão resolvidos em sede judicial, onde, com a calma do tempo e com a seriedade do profissionalismo, se acautelam e garantem os direitos do beneficiário do acompanhamento.26 O n.º 1 do artigo 141.º do C.C. prevê que o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público. Este consentimento poderá ser suprido pelo Tribunal, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o que nos parece uma solução razoável atendendo a que haverá casos em que o maior não o poderá prestar atendendo à sua incapacidade de facto. O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente (n.º 1 do artigo 143.º do C.C.). Aqui importa também ter em consideração que o artigo 156.º, n.º 1 do C.C. permite que o maior, prevenindo uma eventual necessidade de acompanhamento, celebre um mandato para a gestão dos seus interesses, com ou sem poderes de representação. Neste caso, no momento em que é decretado o acompanhamento, o tribunal aproveita o mandato, no todo ou em parte, e tem-no em conta na definição do âmbito da proteção e na designação do acompanhante (n.º 3 do mesmo artigo). Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário (n.º 2 do artigo 143.º do C.C.), nomeadamente à pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado [n.º 2, al. g) do mesmo artigo], podendo ademais ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um (n.º 3 do referido artigo). O artigo 145.º é o artigo mais importante deste regime, traduzindo a mudança de paradigma e instituindo a regra básica da proporcionalidade, assente no minimum necessário.27 Passamos agora a transcrevê-lo: “Artigo 145.º - Âmbito e conteúdo do acompanhamento 1. O acompanhamento limita-se ao necessário. 2. Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes: a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias; 26 Parecer do Conselho Superior de Magistratura sobre a proposta de Lei nº 110/XIII que estabelece o regime do maior acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabilitação. [Em linha]. 2018. [Consult. em 3 de agosto de 2023]. Disponível na Internet: <URL: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/ DetalheIniciativa.aspx?BID=42175>, pp. 34 e 35. 27 Da situação jurídica do maior acompanhado. Op. cit., p. 123. 93 b) Representação geral ou representação especial, com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária; c) Administração total ou parcial de bens; d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos; e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas. 3. Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica. 4. A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família. 5. À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.” Na interpretação deste artigo deve-se ter em conta que: “Mau grado a opção pelo regime do acompanhamento, não há como evitar a substituição, pelo poder parental, pela tutela ou por representações seletivas: recordamos os deficientes profundos, as pessoas em coma dépassé ou os dementes terminais; insistir, aí, num “mero acompanhamento” seria uma fachada dispensável. (…) A administração de bens pode ser útil quando esteja em causa a gestão complexa de patrimónios. (…) Nas intervenções de outro tipo podem conter-se, de acordo com as realidades atuais, o acesso a informação bancária, a intervenção para certas operações bancárias ou mobiliárias e a guarda de objetos valiosos ou preciosos. (…) Em todos os casos, como é da natureza das coisas, cabe ao tribunal decidir, sempre com a maior prudência.”28 Com efeito, caberá à prática judiciária o desafio de moldar todos os dias as medidas de suprimento da incapacidade de maiores, apuradas as especificidades de cada situação. Os julgadores devem apreciar os pontos exatos em que o beneficiário necessita de acompanhamento. Extremamente importante é também o artigo 147.º do C.C. que prevê que o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres, salvo disposição da lei ou decisão judicial em contrário, sendo pessoais, entre outros, os direitos de casar ou de constituir situações de união, de procriar, de perfilhar ou de adotar, de cuidar e de educar os filhos ou os adotados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar. Este preceito pretende acolher com visibilidade os termos da Convenção de Nova Iorque29. 3. Considerações Finais Não podemos associar diretamente velhice e vulnerabilidade. É preciso reconhecer, no entanto, que a velhice é uma das circunstâncias que pode conduzir à vulnerabilidade social. Assim, o regime jurídico aplicável às pessoas idosas é da maior importância para evitar os 28 29 Da situação jurídica do maior acompanhado. Op. cit., p 123. Da situação jurídica do maior acompanhado. Op. cit., p. 124. 94 efeitos negativos desta eventual vulnerabilidade. Este entendimento, relaciona-se com o desenvolvimento doutrinal e normativo dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas. Nesse sentido, são de especial interesse as medidas de proteção às pessoas idosas adotadas em Portugal, em especial o regime jurídico do acompanhamento que procura dar resposta a situações, nas quais a pessoa maior de idade vê a sua capacidade diminuída, nomeadamente por situações físicas ou mentais e não pode exercer por si só os seus direitos e cumprir os seus deveres. Este regime assume muita importância, nomeadamente porque há situações e doenças associadas ao envelhecimento que implicam uma perda de capacidade para o autogoverno, o que implica um estado de vulnerabilidade da pessoa idosa, devendo tal questão ser devidamente acautelada pelo ordenamento jurídico. Igualmente importante é a previsão na lei do exercício pelo acompanhado de direitos pessoais e a liberdade de celebração de negócios da vida corrente. A importância deste regime jurídico em Portugal decorre da implementação efetiva da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova Iorque, 2006), por meio da Resolução do Conselho de Ministros n.º 63/2015 de 25 de agosto que aprovou a Estratégia de Proteção ao Idoso a qual previu “assumir como missão prioritária a revisão do Código Civil, no que tange ao regime das incapacidades e seu suprimento, em alinhamento com as tendências internacionais”, tendo Portugal sido dos seus primeiros signatários e constitui uma forma de concretização do sentido lato do direito ao cuidado. Referências Bibliográficas: BUSSO, G. - “Vulnerabilidad Social: nociones e implicancias de políticas para América Latina y el Caribe a comienzos del Siglo XXI”, Trabajo presentado al Seminario Internacional sobre las diferentes expresiones de la vulnerabilidad social en América Latina y el Caribe. [Em linha]. CEPAL/CELADE. Santiago de Chile 2001. [consult. Em 1 de agosto de 2023]. 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Cuidado e Afetividade na Velhice: a importância da convivência familiar e social para o idoso. PEREIRA, T.S., DE OLIVEIRA, G e COLTRO, A.C., MATHIAS (org.). Cuidado e Afetividade. 1.a ed.. São Paulo. Atlas. 2017. ISNB 9788597009170. PINTO, C. Teoria Geral do Direito Civil. 4.ª ed. Coimbra: Almedina. 2005. ISBN: 9789723221022. 96 Violação aos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes em Situação de Refúgio Desacompanhados ou Separados, Diante da Negativa de Solicitação Direta de Reconhecimento da Condição de Refugiado Junto à Polícia Federal Brasileira André Viana Custódio1 Johana Cabral2 Sumário: Introdução; 1. O instituto do refúgio e a distinção entre crianças e adolescentes desacompanhados ou separados; 2. A Resolução Conjunta nº 01/2017/CONANDA/CONARE/CNIG/DPU e o procedimento para a determinação da condição de refugiado a crianças e/ou adolescentes desacompanhados ou separados; 3. A violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes desacompanhados ou separados, diante da negativa de solicitação direta de refúgio à autoridade fronteiriça; Considerações Finais; Referências. Resumo: Este trabalho objetiva analisar, a partir da teoria da proteção integral, a violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de refúgio desacompanhados ou separados, diante da negativa, por parte da Polícia Federal brasileira, em receber solicitação direta de refúgio apresentada por criança e/ou adolescente. Os objetivos específicos, por sua vez, são: contextualizar o instituto do refúgio, além da distinção entre crianças e adolescentes desacompanhados ou separados; apresentar a Resolução Conjunta CONANDA/CONARE/CNIG/DPU nº 01, de 09 de agosto de 2017 e o procedimento para a determinação da condição de refugiado a crianças e/ou adolescentes desacompanhados ou separados; e analisar a violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes desacompanhados ou separados, diante da negativa de solicitação direta de refúgio à autoridade fronteiriça. Foram utilizados o método de abordagem dedutivo, o método de procedimento monográfico e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. As principais conclusões foram de que crianças e adolescentes em situação de refúgio, que ingressam no território brasileiro desacompanhados ou separados, não podem formalizar, diretamente, solicitações de refúgio à Polícia Federal – órgão que, no Brasil, exerce a autoridade de fronteira e é responsável por processar os pedidos administrativos de refúgio, que serão analisados pelo Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE. A negativa, pela Polícia Federal, em aceitar os pedidos de refúgio por crianças e adolescentes está embasada em uma interpretação civilista, da ausência de capacidade jurídica de crianças e adolescentes Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com Pós-doutorado na Universidade de Sevilha (US/Espanha); Coordenador adjunto e Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGD/UNISC); Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social e do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e Políticas Públicas do PPGD/UNISC; Coordenador do projeto de pesquisa "Articulação intersetorial para proteção de crianças e adolescentes contra a violação de direitos", financiado pelo CNPQ e do projeto institucional de pesquisa "Violação de direitos de crianças e adolescentes: articulação intersetorial de políticas públicas de atendimento, proteção e justiça; Consultor em políticas públicas. Email: [email protected]. 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (PPGD/UNISC); Mestre em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense; Integrante do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social e do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens do PPGD/UNISC; Bolsista PROSUC/CAPES; Integrante do projeto de pesquisa "Articulação intersetorial para proteção de crianças e adolescentes contra a violação de direitos", financiado pelo CNPQ. Email: [email protected]. 1 97 – a falta de capacidade processual. Assim, a Resolução Conjunta nº 01/2017 estabeleceu o procedimento de identificação preliminar, atenção e proteção para crianças e adolescentes desacompanhados ou separados. Após a identificação pela autoridade de fronteira e o registro de entrada no controle migratório, notifica-se a Defensoria Pública da União – além do Conselho Tutelar, Promotoria e Juízo da Infância e Juventude –, a qual é responsável pela entrevista inicial da criança e/ou adolescente e o preenchimento do Formulário para Análise de Proteção – FAP. Referida ação ignora o reconhecimento constitucional das crianças e dos adolescentes como sujeitos de direitos e viola o direito de que seus pedidos de refúgio sejam anotados e processados de imediato, para então ser acionado o Sistema de Garantias de Direitos e aplicadas as medidas de proteção necessárias. A exigência de prévia regularização de guarda ou representação retarda a obtenção do reconhecimento da condição de refugiado, violando, assim, os direitos humanos das crianças e dos adolescentes desacompanhados ou separados no Brasil. Palavras-chave: Adolescente; Criança; Solicitação de Refúgio; Violação aos Direitos Humanos. Introdução O número de deslocados à força tem aumentado, a cada ano, no mundo. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR, no final do ano de 2022, foi estimado em 108.4 milhões. São pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas e países de origem, em virtude de perseguições, guerras, violências, conflitos, violações dos direitos humanos ou por eventos que perturbam seriamente a ordem pública. A estimativa é de que mais de 1 em 74 pessoas, no mundo, permaneceram deslocadas à força, no ano, sendo que, mais de 90%, em países de renda média ou baixa (UNHCR, 2023). No fluxo forçado de pessoas, encontram-se os refugiados. Em 2022, o número global de pessoas em situação de refúgio atingiu a marca dos 35.3 milhões. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR destaca que 52% de todos os refugiados – bem como de outras pessoas que necessitam de proteção internacional –, vieram de apenas três países: Síria, Ucrânia e Afeganistão. Por sua vez, são os países de renda média e baixa que têm hospedado expressiva parte desse fluxo migratório, consubstanciado em 76% do total global (UNHCR, 2023). As crianças e os adolescentes integram os movimentos migratórios forçados atuais. O relatório “Global Trends: forced displacement in 2022” (UNHCR, 2023) aponta que eles não apenas representam 30% da população mundial, como também 40% das pessoas deslocadas à força no mundo. Em 2022, foram registrados 51.700 crianças e adolescentes que migraram desacompanhados ou separados, configurando um aumento de 89% em relação ao ano de 2021. Verifica-se, portanto, a situação de grave violação dos direitos por que passam crianças e adolescentes migrantes, no mundo. 98 Crianças e adolescentes desacompanhados ou separados também chegam ao Brasil em situação de refúgio. Contudo, contrariando os fundamentos da teoria da proteção integral e a previsão das diretrizes e normativas da área – a exemplo das Diretrizes sobre Proteção Internacional nº 08, de 22 de dezembro de 2009, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR e da Opinião Consultiva nº 21, de 19 de agosto de 2014, da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH, eles não podem realizar o pedido direto do refúgio à autoridade competente, devido à alegada ausência de capacidade jurídica. Precisam, primeiro, passar pela regularização da guarda ou representação, para então efetuar o procedimento de reconhecimento da condição de refugiado. Ou seja, após a identificação pela autoridade de fronteira e o registro de entrada no controle migratório, notifica-se a Defensoria Pública da União – além do Conselho Tutelar, da Promotoria de Justiça e do Juízo da Infância e Juventude –, a qual é responsável pela entrevista inicial da criança e/ou adolescente e o preenchimento do Formulário para Análise de Proteção – FAP. Só depois de concretizada a regularização, é então iniciado o procedimento de refúgio. A presente pesquisa trata da violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de refúgio, que chegam ao Brasil desacompanhados ou separados. Seu objetivo geral é o de analisar, a partir da teoria da proteção integral, a violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de refúgio desacompanhados ou separados, diante da negativa, por parte da Polícia Federal brasileira, em receber solicitação direta de refúgio apresentada por criança e/ou adolescente. Os objetivos específicos, são: contextualizar o instituto do refúgio, além da distinção entre crianças e adolescentes desacompanhados ou separados; apresentar a Resolução Conjunta CONANDA/CONARE/CNIG/DPU nº 01, de 09 de agosto de 2017 e o procedimento para a determinação da condição de refugiado a crianças e/ou adolescentes desacompanhados ou separados; e analisar a violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes desacompanhados ou separados, diante da negativa de solicitação direta de refúgio à autoridade fronteiriça. Para tanto, formulou-se o seguinte problema de pesquisa: considerando os fundamentos da teoria da proteção integral, sob quais formas a negativa de solicitação direta de refúgio por crianças e/ou adolescentes desacompanhados ou separados junto à Polícia Federal, viola os seus direitos humanos? A hipótese aventada, foi a de que a exigência de prévia regularização representativa para então conferir-se o acesso de crianças e adolescentes desacompanhados ou separados aos procedimentos migratórios ou de refúgio – conforme a previsão contida na Resolução Conjunta nº 01/2017, viola os direitos humanos de crianças e adolescentes, contrariando os fundamentos da teoria da proteção integral, da Convenção 99 Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, das Diretrizes sobre Proteção Internacional nº 08/2009 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR e, ainda, da Opinião Consultiva nº 21/2014 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A metodologia utilizada foi o método de abordagem dedutivo, o método de procedimento monográfico e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados demonstraram que a negativa, pela Polícia Federal, em reconhecer os pedidos de refúgio por crianças e adolescentes, sob o fundamento da ausência de capacidade processual, ignora o reconhecimento constitucional de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e viola o direito de que o seu pedido de refúgio seja anotado e processado de imediato, para então ser acionado o Sistema de Garantias de Direitos e aplicadas as medidas de proteção necessárias. A exigência de prévia regularização representativa retarda a obtenção do reconhecimento da condição de refugiado, violando os direitos humanos das crianças e dos adolescentes desacompanhados ou separados no Brasil. 1. O Instituto do Refúgio e a Distinção entre Crianças e Adolescentes Desacompanhados ou Separados Sobre o panorama do refúgio no Brasil, o relatório “Refúgio em números 2023”, cuja publicação fora promovida pelo Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE e pelo Departamento de Migrações da Secretaria Nacional de Justiça, bem como elaborada pelos/as pesquisadores/as do Observatório das Migrações Internacionais – OBMigra, contribui de maneira bastante significativa. Segundo o documento, a situação do refúgio no país tem sido marcada por um maior dinamismo nos últimos anos. O Brasil tem se consolidado como um país de destino para os solicitantes de refúgio, provenientes de diferentes lugares. Também foi observado o incremento, nos fluxos de refugiados para o Brasil, da presença de mulheres e crianças (CARVALHO, 2023). “A maior presença de mulheres, crianças e adolescentes na composição demográfica dos solicitantes de refúgio reforça a necessidade de um olhar mais específico para as questões de gênero e de idade na formulação de políticas públicas” (CARVALHO, 2023, p. 4). A partir dos dados do Sisconare – o sistema de tramitação de processos de refúgio no Brasil –, em 2022, o Brasil recebeu 50.355 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado. Verifica-se um aumento de 21.248 solicitações, em comparação ao ano de 2021, quando foram contabilizadas 29.107 solicitações de reconhecimento, configurando-se uma variação positiva de cerca 73% em relação ao ano anterior, demarcando a dinâmica brasileira 100 do refúgio no contexto de superação do período mais grave da pandemia da COVID-19. A maior parte das solicitações em 2022, foram de pessoas de nacionalidade venezuelana ou que tinham, na Venezuela, o país de residência habitual (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023). Das 50.355 solicitações de refúgio registradas em 2022, os principais países de origem e/ou residência habitual dos/as solicitantes, foram: Venezuela, com 33.753 solicitações; Cuba, com 5.484 solicitações; e Angola, com 3.418 solicitações. Na sequência, sobrevieram os seguintes países: Colômbia, China, Nigéria, Afeganistão, Peru, Líbano, Guiana, Marrocos, Irã, Gana, Paquistão, Haiti, República Dominicana, Rússia, Camarões, Suriname, Senegal e outros (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023). Sobre a distribuição por nacionalidade e sexo, com exceção do Haiti e da República Dominicana, os principais países de nacionalidade ou de residência habitual registraram uma participação maior de homens, embora existentes importantes variações nos percentuais de distribuição por sexo, nos diferentes países (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023). Já a análise da distribuição por nacionalidade e grupos de idade das pessoas que solicitaram reconhecimento da condição de refugiado em 2022 [...] revela que a maior parte dos solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado tinha entre 25 e 39 anos de idade (15.643), seguida imediatamente pelo grupo com menos de 15 anos (15.084) e pelas pessoas solicitantes com idade entre 15 e 24 anos de idade (10.579). Somados, estes três grupos de idade concentraram 82,0% do total de pessoas que solicitaram reconhecimento da condição de refugiado em 2022, o que reforça a caracterização de um perfil majoritariamente jovem dessa população, conforme observado ao longo de toda série histórica. (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023, p. 15) Outro dado importante, na dinâmica do refúgio no Brasil, diz respeito aos processos apreciados pelo Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE, em 2022. Assim, dentre as decisões de mérito proferidas pelo CONARE e as decisões sem análise de mérito exaradas pela Coordenação-Geral do CONARE, foram apreciadas 41.297 solicitações de refúgio, no ano de 2022. Do total das solicitações apreciadas em 2022, verifica-se que 50,2%, foram de solicitantes venezuelanos – seguidas das solicitações: de haitianos, com 10,9%; de cubanos, com 6,6%; de bengalis, com 3,5%; de chineses, com 3,1%; e de angolanos, com 3,0%. Vale pontuar, ainda, a diversidade dos países de origem ou residência habitual, que tiveram suas solicitações apreciadas em 2022: foram pessoas provenientes de 141 diferentes países, o que aponta para o espalhamento geográfico do grupo solicitante de refúgio no Brasil. Também sobressai, dentre as unidades federativas de registro das solicitações apreciadas em 2022, a importância da região Norte para a dinâmica contemporânea do refúgio no Brasil (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023). “Ademais, é preciso 101 destacar as solicitações para crianças e adolescentes de nacionalidade venezuelana, que somam mais da metade das solicitações totais” (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023, p. 22). O terceiro dado relevante, trata das decisões do Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE, relativas aos processos analisados em 2022. Portanto, das 41.297 solicitações analisadas – das quais 95,6% foram relativas a processos iniciados entre 2014 e 2021 –, o Comitê deferiu 4.081 pedidos de reconhecimento da condição de refugiado, o que representa apenas 9,9% do total das decisões do CONARE no ano de 2022 (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023). “Quanto às decisões de extensão dos efeitos da condição de refugiado, no ano de 2022 o Conare deferiu 1.714 processos (4,2%), o que significa que, naquele ano, o Comitê reconheceu 5.795 pessoas refugiadas no Brasil, [...]. ” (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023, p. 23). Os países de nacionalidade ou de residência habitual mais expressivos, dentre os reconhecidos em 2022, foram Venezuela e Cuba, totalizando, juntos, 82,2% das decisões de deferimentos (SILVA; CAVALCANTI; OLIVEIRA; SILVA; TONHATI; COSTA, 2023). O instituto do refúgio busca proteger todas as pessoas que foram obrigadas a sair de seus países de origem ou residência habitual, em virtude de perseguições. A definição clássica de refúgio encontra-se na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, a qual estabeleceu os direitos de proteção das pessoas em situação de refúgio e as responsabilidades das nações relativas à proteção pelo refúgio. O Brasil ratificou a Convenção de Genebra de 1951 – através do Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961 – e elaborou sua própria legislação sobre o assunto, a qual recebera influência, inclusive, da Declaração de Cartagena de 1984, criada no âmbito do sistema regional de proteção dos direitos humanos (CABRAL; SOUZA, 2019). Ou seja, “[e]m 1997, quando implementa sua legislação do refúgio, o Brasil incorpora aspectos da Declaração de Cartagena, perdendo, porém, a oportunidade de adotar a totalidade da definição expandida” (SARTORETTO, 2018, p. 168). A Lei nº 9.474/ 1997 – também conhecida como Estatuto dos Refugiados – traz, em seu artigo 1º, a definição de refugiado: Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL, 1997) 102 Portanto, configurada a condição ensejadora da proteção pelo refúgio, a pessoa que solicitou a proteção terá reconhecido o seu status de refugiado. O instituto do refúgio protege as pessoas em situação de refúgio, sendo a principal garantia, a da proibição de expulsão ou rechaço. Ou seja, pelo princípio do non-refoulement ou princípio da não-devolução, a pessoa, uma vez que tenha ingressado no país de destino e solicitado a proteção pelo instituto do refúgio, já não poderá mais ser devolvida ao país onde antes sua vida ou liberdade estavam sendo ameaçadas (CABRAL; SOUZA, 2019). As crianças e os adolescentes integram os fluxos migratórios da contemporaneidade e vivenciam, tal qual os adultos, a situação do refúgio. Dependendo da condição migratória – como no caso dos desacompanhados ou separados –, podem acumular situação de dupla ou tripla vulnerabilidade: pela condição de ser criança ou adolescente; pela condição de estar em situação de refúgio; e pela desproteção na trajetória migratória – o que os tornam muito mais expostos a violências e violações de direitos (CABRAL; SOUZA, 2019). Importa frisar que: “[c]rianças sem cuidados parentais correm maior risco de violência, abuso e exploração. Quando essas crianças atravessam fronteiras, os riscos são multiplicados” (UNHCR, 2022, tradução nossa)3. Na definição do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, as crianças e os adolescentes desacompanhados são todos aqueles que chegam ao país de destino sem a tutela de um adulto. Chegam sozinhos. Já as crianças e os adolescentes separados são aqueles que estão acompanhados de alguma pessoa que não é o seu guardião legal (UNICEF, 2021). Para Cabral e Souza (2019), as crianças separadas são aquelas que foram separadas de seus pais, mas se deslocam na companhia de terceiros – os quais podem ser pessoas do grupo ou os próprios coiotes/atravessadores. Já “[a]s crianças desacompanhadas são aquelas que, além de estarem separadas de seus pais ou parentes, viajam sem a companhia de qualquer outro adulto legal ou costumeiramente responsável” (CABRAL; SOUZA, 2019, p. 107). Sobre o tema, a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1989, dispõe, no artigo 22, que os Estados deverão adotar todas as medidas adequadas para que a criança – que, pela definição da Convenção, compreende toda pessoa abaixo dos 18 anos – que tenta obter a condição de refugiada ou seja considerada refugiada segundo o direito e os procedimentos internacionais ou internos correspondentes, “receba, estando sozinha ou acompanhada por seus pais ou por qualquer outra pessoa, a proteção e a assistência humanitária adequadas” (ONU, 1989). No original: “Children without parental care are at a heightened risk of violence, abuse and exploitation. When these children are moved across borders, the risks are multiplied”. 3 103 2. A Resolução Conjunta nº 01/2017/CONANDA/CONARE/CNIG/DPU e o Procedimento para a Determinação da Condição de Refugiado a Crianças e/ou Adolescentes Desacompanhados ou Separados, no Brasil O número de crianças e adolescentes migrantes e em situação de refúgio que chegam ao Brasil desacompanhados ou separados vem aumentando regularmente. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, ao longo do ano de 2020, foram identificadas 1.577 crianças separadas, desacompanhadas ou sem documentos. Contudo, apenas nos três primeiros meses de 2021, esse número chegou a 1.071 (UNICEF, 2021). Por sua vez, a Defensoria Pública da União – DPU, no 6º informativo de atuação na Missão Pacaraima, relativo ao 2º semestre de 2022, reiterou o aumento da chegada de crianças e adolescentes separados e/ou desacompanhados, no país, no ano de 2022: Em 2022, foram atendidos 1.494 crianças e adolescentes acompanhados (36,5% do total de atendimentos), 415 desacompanhados (10,2%) e 2.182 separados (53,3%). Comparando o fluxo entre o 1º e o 2º semestre, observou-se que houve uma pequena oscilação de 4,3% nos atendimentos de crianças e adolescentes separados (de 1.115 para 1.067 atendimentos). No entanto, houve o substancial aumento de 191,5% no número de atendimentos de crianças e adolescentes desacompanhados (de 106 para 309), e um aumento de 41,7% no número de atendimentos dos acompanhados (de 618 para 876). (DPU, 2023, p. 13) No Brasil, a Polícia Federal – órgão responsável por receber e processar os pedidos de refúgio no país – não aceita, ao argumento da ausência de capacidade jurídica, a solicitação direta de refúgio por crianças e adolescentes. Sobreveio, então, resolução conjunta, elaborada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, pelo Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE, Conselho Nacional de Imigração – CNIg e pela Defensoria Pública da União – DPU, estabelecendo a possibilidade de o/a Defensor/a Público/a Federal realizar pedido administrativo de refúgio, relativo a crianças e adolescentes desacompanhados e/ou separados (SILVA, 2019). Trata-se da Resolução Conjunta CONANDA/CONARE/CNIG/DPU nº 01, de 09 de agosto de 2017. Assim, referida resolução estabeleceu os procedimentos de identificação preliminar, atenção e proteção para crianças e adolescentes desacompanhados ou separados. No artigo 1º, caput, delimita sua aplicação a crianças e adolescentes de outras nacionalidades ou apátridas, os quais se encontrem desacompanhados ou separados em ponto de fronteira (BRASIL, 2017). Ao tratar dos princípios e das garantias, estabelece a aplicação integral e sem qualquer discriminação, da política de atendimento a toda criança e adolescente apátrida ou de outra nacionalidade, em ponto de fronteira brasileiro – conforme o artigo 2º. No artigo 3º, dispõe que os processos administrativos de crianças e adolescentes desacompanhados ou separados 104 tramitarão com absoluta prioridade e agilidade, observado o princípio do interesse superior da criança e do adolescente. Nos artigos 4º e 5º, assegura, respectivamente, que não serão aplicadas medidas de retirada compulsória para territórios em que suas vidas ou liberdades estejam ameaçadas, e que não serão criminalizados em razão de sua condição migratória no país. O artigo 6º estabelece que as crianças e os adolescentes desacompanhados ou separados deverão participar, ser consultados e mantidos informados ao longo do processo, acerca dos procedimentos e das decisões tomadas em relação a si ou aos seus direitos, respeitada a etapa de desenvolvimento em que se encontrem (BRASIL, 2017). Já o artigo 7º, estatui: “[c]rianças e adolescentes desacompanhados ou separados, devidamente representados, deverão ter acesso a procedimentos migratórios ou de refúgio” (BRASIL, 2017). Verifica-se, portanto, a necessidade de prévia representação para o acesso ao procedimento de refúgio. Em seguida, a Resolução Conjunta nº 01/2017 trata da identificação no controle migratório e do ingresso em território nacional, nos artigos 8º e 9º. Nos termos do artigo 8º, ao ingressar em território brasileiro, será realizada a identificação imediata da criança ou do adolescente desacompanhado ou separado. Esse atendimento deverá ser feito em linguagem compreensível e adequada à idade e identidade cultural da criança e/ou do adolescente. Já o artigo 9º, elenca as ações que a autoridade de fronteira que receber a criança ou o adolescente com indícios de estar desacompanhado ou separado, deverá realizar, no controle migratório: Art. 9º A autoridade de fronteira, no momento do controle migratório, que receber a criança ou adolescente com indícios de estar desacompanhado ou separado, deverá: I – registrar a ocorrência; II – realizar identificação biográfica preliminar que compreenderá o nome, gênero, data de nascimento, filiação e nacionalidade, extraídos dos documentos que a criança ou adolescente portar ou mediante declaração; III – realizar a identificação biométrica para fins de consulta a órgãos internacionais de investigação criminal e a bancos de dados visando localização dos responsáveis legais; IV – proceder ao registro de entrada no controle migratório; V – notificar a Defensoria Pública da União; VI – notificar representação do Conselho Tutelar para adoção das medidas protetivas cabíveis; e VII – notificar o Juízo e a Promotoria da Infância e Juventude. (BRASIL, 2017) Verifica-se, assim, que a autoridade de fronteira, após registrar a ocorrência e realizar as identificações biográfica e biométrica da criança e/ou do adolescente desacompanhado ou separado, deverá notificar determinados órgãos do Sistema de Garantias de Direitos: Conselho Tutelar, Defensoria Pública da União, Juízo e Promotoria da Infância e Juventude. O § 1º do artigo 9º dispõe que o processo deverá ser conduzido de maneira segura, evitandose o risco de violação às integridades física ou psicológica, respeitando-se a dignidade humana da criança e do adolescente. O § 3º, estabelece a necessidade de envidar esforços para a 105 preservação dos vínculos de parentesco ou afinidade, especialmente nos processos de acolhimento institucional ou familiar das crianças e dos adolescentes desacompanhados ou separados. O § 4º assegura que, em casos de urgência, o Conselho Tutelar será acionado para apoiar a autoridade de fronteira na tomada de medidas protetivas (BRASIL, 2017). A Resolução Conjunta nº 01/2017, na sequência, dispõe sobre a entrevista individual e a análise da proteção, nos artigos 10 a 14. Seguindo o processo de identificação, o membro da Defensoria Pública da União – DPU iniciará a entrevista, a ser conduzida em forma e linguagem adequadas à idade da criança ou adolescente, onde serão analisadas, dentre outras questões: as razões pela qual a criança ou o adolescente está desacompanhado ou separado; a saúde física, psicossocial, material e outras necessidades de proteção; informações sobre a exposição à exploração sexual, adoção ilegal, tráfico de pessoas e outros; e a necessidade de proteção internacional, pelo instituto do refúgio (BRASIL, 2017). Nos termos do artigo 12, caput, da Resolução Conjunta nº 01/2017, a Defensoria Pública da União – DPU é responsável pelos pedidos de regularização migratória, solicitação de documentos e os demais atos de proteção, acompanhando as crianças e os adolescentes desacompanhados ou separados nos demais atos subsequentes à identificação preliminar. O artigo 13 estatui que, após a entrevista inicial com a criança ou o adolescente, o/a Defensor/a Público/a responsável realizará o preenchimento do Formulário para Análise de Proteção, o qual deverá indicar a possibilidade de: retorno à convivência familiar; aplicação de medida de proteção por reunificação familiar; proteção como vítima de tráfico de pessoas; ou outra medida de regularização migratória ou proteção como refugiado ou apátrida (BRASIL, 2017). Portanto, para que crianças e adolescentes desacompanhados ou separados tenham acesso ao procedimento de refúgio, precisam, primeiro, regularizar sua representação, por intermédio da Defensoria Pública da União – DPU. 3. A Violação aos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes Desacompanhados ou Separados, Diante da Negativa de Solicitação Direta de Refúgio à Autoridade Fronteiriça O Direito da Criança e do Adolescente é o ramo jurídico que sustenta as normativas de atendimento, proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Na qualidade de ramo autônomo do direito, tem por base a teoria da proteção integral, a qual orienta toda ação e decisão relativas a crianças e adolescentes. A teoria da proteção integral parte do reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e compreende que, por encontrarem-se em processo de desenvolvimento, crianças e adolescentes devem 106 receber uma proteção especializada, diferenciada e integral (VIEIRA; VERONESE, 2006; CUSTÓDIO, 2008; REIS; CUSTÓDIO, 2017). A teoria da proteção integral encontra-se manifesta tanto na Constituição Federal de 1988 quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao listar os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, no artigo 227, caput, o constituinte determinou que sua aplicação se dará com absoluta prioridade. Também elencou a família, a sociedade e o Estado como os principais responsáveis pela garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, os quais devem ser postos a salvo de “toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BRASIL, 1988). Já o Estatuto da Criança e do Adolescente, além de reforçar a adoção da teoria da proteção integral no artigo 1º, pontuou, no artigo 3º, caput, que as crianças e os adolescentes “gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” (BRASIL, 1990). Por sua vez, o Comitê Temático Especializado Pacaraima da Defensoria Pública da União – DPU, na Nota Técnica Nº 3, emitida em 31 de janeiro de 2022, relativa à Resolução Conjunta CONANDA/CONARE/CNIG/DPU nº 01, de 09 de agosto de 2017, destacou, a partir dos conhecimentos e da experiência adquirida no atendimento em região de fronteira, os principais problemas identificados na aplicação da Resolução Conjunta nº 01/2017. Inicialmente, assinala que a função da Defensoria Pública da União – DPU, frente a crianças e adolescentes separados ou desacompanhados é a de “curadoria especial para fins migratórios”, de maneira que a Resolução Conjunta nº 01/2017 “não transforma a DPU em tutora, curadora ou guardiã da criança” (DPU, 2022, p. 2). Pontua que, não obstante os esforços da Resolução Conjunta nº 01/2017 em efetivar a proteção e o enfrentamento ao tráfico de pessoas, a experiência da DPU, no trabalho junto ao fluxo migratório venezuelano no Estado de Roraima demonstrou que, ao invés de proteger, a resolução, quando dissociada das medidas de proteção e garantias de direitos de crianças e adolescentes, agrava a situação de hipervulnerabilidade das crianças e dos adolescentes separados ou desacompanhados. Isso porque, essa resolução não foi pensada para ser aplicada em um contexto de intenso fluxo de migrantes, de modo que não há estrutura física, nem recursos humanos e financeiros ou técnicos capacitados para realizar, de maneira qualificada e adequada, a entrevista individual às crianças e aos adolescentes separados e/ou desacompanhados. Por tal razão, na prática, o Formulário de Análise de Proteção se restringe à mera etapa burocrática, com pouca eficácia no que tange à identificação das situações relativas ao tráfico de pessoas (DPU, 2022). Assim, “[a]o atender uma criança ou adolescente desacompanhado ou separado mediante formulário 107 de proteção, se essa/e não for acompanhado por autoridade judicial, corre sério risco de sofrer violações de direitos e garantias” (DPU, 2022, p. 6). Desse modo, para a Defensoria Pública da União – DPU, o Formulário para Análise de Proteção não configura instrumento hábil para regularizar a guarda ou aplicar medida de proteção a crianças e adolescentes desacompanhados ou separados (DPU, 2022). Extrai-se da Nota Técnica: Além disso, para protocolar o pedido de autorização de residência ou solicitação de refúgio, o próprio guardião, com base no art. 33, do ECA, possui poderes para tanto, o que pode ser feito diretamente na Polícia Federal. No caso de crianças ou adolescentes acolhidos, esse poder-dever é conferido ao/à dirigente da entidade de acolhimento (art. 92, §1º, ECA). Em hipótese subsidiária, por se tratar de medida humanitária e de proteção à criança ou o adolescente, a regularização migratória poderia ser realizada pela autoridade de fronteira de ofício, com base no relatório psicossocial. A medida seria futuramente apreciada pelo Juízo da Infância e da Juventude para consolidação após a fixação da guarda ou, no caso de retorno assistido da criança ou do adolescente, seria revogada junto com o expediente arquivado. (DPU, 2022, p. 8) Verifica-se, portanto, que a própria Defensoria Pública da União – DPU, responsável pela curadoria de crianças e adolescentes migrantes ou em situação de refúgio no Brasil, está convencida de que poderia haver a regularização de ofício da situação migratória de crianças e adolescentes, por parte da autoridade de fronteira. No que tange aos direitos e à proteção de crianças e adolescentes migrantes ou em situação de refúgio, cabe ainda colacionar dois importantes documentos. As Diretrizes sobre Proteção Internacional nº 08, de 22 de dezembro de 2009, elaborada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – em inglês UNHCR –, apresentam orientações aos Estados, para a realização da determinação da condição de refugiado, de maneira sensível às crianças e aos adolescentes. O documento destaca que, apesar da definição de refugiado/a contida na Convenção de 1951 se aplicar a todas as pessoas, independentemente da idade, a forma como é interpretada prevalece com viés adultocêntrico, de modo que as condições de subordinação a que crianças e adolescentes são submetidos em muitas sociedades fazem com que suas solicitações de refúgio sejam amplamente ignoradas pelas autoridades pertinentes. No entanto, as crianças podem vivenciar formas e manifestações específicas de perseguição. O documento frisa que “[t]oda criança tem o direito de fazer uma solicitação independente para obter o reconhecimento da condição de refugiado, sem importar se está acompanhada ou desacompanhada” (UNHCR, 2009, p. 4) e que “[m]esmo sendo muito nova, uma criança ainda pode ser considerada a principal solicitante de refúgio” (UNHCR, 2009, p. 5). O segundo documento, trata da Opinião Consultiva nº 21, de 19 de agosto de 2014, emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH, no âmbito do Sistema 108 Interamericano de Direitos Humanos. O pedido foi apresentado, no dia 7 de julho de 2011, por quatro Estados-partes do Mercado Comum do Sul: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, com o objetivo de que o Tribunal determinasse, com maior precisão, as obrigações dos Estados no que tange à adoção de medidas para crianças e adolescentes, relacionadas à sua condição migratória ou à condição migratória de seus pais (CORTDEIDH, 2014). “Foram nove pontos ou consultas, os quais foram detalhadamente abordados nas mais de 100 páginas do relatório do Parecer Consultivo OC-21/14, [...]. ” (CABRAL; SOUZA, 2019, p. 119). Sobre os procedimentos para garantir o direito de crianças e adolescentes a buscar e receber asilo, sobretudo as características que deverão incorporar os procedimentos quando se identifica potencial solicitação de asilo ou de reconhecimento da condição de refugiado por crianças e adolescentes migrantes, a Corte IDH afirmou que os Estados devem realizar procedimentos justos e eficientes, os quais considerem que as definições de refúgio contêm elementos subjetivos e objetivos, razão pela qual devem ser promovidos individualmente, examinando o possível risco de afetação aos direitos mais básicos do/a solicitante, como: a vida, a integridade e a liberdade pessoal. Quando solicitantes, as crianças e os adolescentes devem fruir de garantias gerais e especiais, observados, inclusive, os princípios da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989. Também reforça a necessidade da prioridade na tramitação dos pedidos das crianças e dos adolescentes desacompanhados ou separados de suas famílias de origem (CORTEIDH, 2014). Considerações Finais O presente estudo buscou analisar, a partir da teoria da proteção integral, a violação aos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de refúgio desacompanhados ou separados, diante da negativa, por parte da Polícia Federal, em receber solicitação direta de refúgio apresentada por criança e/ou adolescente. Para a realização do presente estudo, formulou-se o seguinte problema de pesquisa: considerando os fundamentos da teoria da proteção integral, sob quais formas a negativa de solicitação direta de refúgio por crianças e/ou adolescentes desacompanhados ou separados junto à Polícia Federal, viola os seus direitos humanos? Obteve-se, ao final, a confirmação da hipótese de pesquisa, uma vez que a exigência de prévia regularização representativa por crianças e adolescentes desacompanhados ou separados, contraria os fundamentos da teoria da proteção integral, assim como a previsão da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, das Diretrizes sobre Proteção Internacional nº 08/2009 do Alto Comissariado das Nações 109 Unidas para os Refugiados – ACNUR e, ainda, da Opinião Consultiva nº 21/2014 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Portanto, a negativa, pela Polícia Federal brasileira em formalizar a solicitação direta de refúgio por crianças e adolescentes desacompanhados ou separados, ao argumento da ausência de capacidade processual, viola os seus direitos humanos e os expõe a maiores riscos de violações dos direitos. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 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Florianópolis: OAB/SC, 2006. 111 Direitos Esterilizados e Preconceitos Compulsórios: Efetividade do Direito à Parentalidade Adotiva por Pessoas com Deficiência Mental e Intelectual Sterilized rights and compulsory prejudices: effectiveness of the right to adoptive parenting by people with mental and intellectual disabilities Bruna de Moraes Costa1 Larissa Isijara Valentim2 Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza3 Sumário: 1. Introdução; 2. Trajetória da percepção da deficiência; 3. O processo de adoção sob a ótica do direito brasileiro; 4. O processo de adoção por pessoas com deficiência mental e intelectual; 5. Considerações Finais. Resumo: A presente pesquisa científica, desenvolvida com a temática educação, inovação e inclusão, teve como objetivo a análise e a identificação dos obstáculos enfrentados pelas pessoas com deficiência quanto ao direito à parentalidade via adoção, principalmente para aquelas que possuem deficiência mental e intelectual, ao passo que se buscou preservar também o melhor interesse da criança e do adolescente. O estudo realizado objetivou descobrir se o sistema de justiça se encontra estruturado e preparado para as demandas parentais realizadas por pessoas com deficiência e definir quais critérios e métodos devem ser utilizados para a viabilidade desses requerimentos. A pesquisa se desenvolveu de forma teórica e documental, a partir da leitura e análise das informações contidas em livros, artigos científicos, normas jurídicas e decisões judiciais, as quais foram relevantes para a construção do histórico evolutivo sobre as pessoas com deficiência até a compreensão ampla e integral de seus direitos. Ao mesmo tempo, com base na teoria emancipatória das pessoas com deficiência, buscou-se fixar os critérios que devem informar a possibilidade jurídica de um pedido de adoção por esse grupo, sem afastar a finalidade de preservar os cuidados pelas crianças e adolescentes, igualmente vulneráveis, credoras de amparo jurídico e de proteção aos seus direitos. Palavras-chave: Pessoa com deficiência; inovação; parentalidade; adoção; inclusão. Abstract: The present scientific research, developed with the theme education, innovation and inclusion, aimed to analyze and identify the obstacles faced by people with disabilities regarding the right to parenthood through adoption, especially for those people who have mental and intellectual disabilities, while it was also sought to preserve the best interest of the child and adolescent. The study aimed to find out if the justice system is structured and prepared for the parental demands made by people with disabilities and to define which criteria and methods should be used for the viability of these requirements. The research was developed in a theoretical and documentary way, from the reading and analysis of the information contained in books, scientific articles, legal norms and Jewish decisions, which Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]. 3 Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professora Associada de Direito Civil do Departamento de Direito, Humanidades e Letras do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Endereço eletrônico [email protected]. 1 112 were relevant to the construction of the evolutionary history. These people with disabilities until the broad and integral understanding of their rights, at the same time, sustain the emancipatory theory of people with disabilities to, therefore, to establish the criteria. That should inform the legal possibility of an application for adoption by this group, in addition to preserving the care of children and adolescents, who are equally vulnerable, in need of legal support and protection of their rights. Keywords: Person with disabilities; innovation; Parenting; adoption; inclusion. 1. Introdução O percurso traçado pela presente pesquisa baseou-se nos avanços legislativos que acompanharam o desenvolvimento do Brasil em aspectos sociais e inclusivos, evidenciando o direito fundamental relacionado à família contemporânea e seus desdobramentos, visto que o conceito e as estruturas familiares não são as mesmas da década de 80, cuja inspiração se encontrava no século XIX. Para compreender como se alcançou o presente cenário de discussões sobre garantias e inclusão para as pessoas com deficiências, é necessário evidenciar a trajetória estrutural da sociedade e da legislação até o presente momento. Após ser considerada como um castigo divino, por muito tempo as pessoas com deficiência foram praticamente consideradas como objetos por seus familiares e pelo próprio Estado, que tinha como política pública o incentivo aos sanatórios e a esterilização compulsória como medida velada para impedir que aquelas pessoas pudessem exercer seus direitos reprodutivos, sexuais e familiares. Sem autonomia e liberdade ao próprio corpo, tiveram seus direitos violados repetidas vezes. Um dos marcos mais significativos na legislação deu-se com o Código Civil de 1916, que confirmou as raízes preconceituosas com a expressão “loucos de todo o gênero”, utilizada para estabelecer a incapacidade absoluta das pessoas com deficiência, não sendo nenhuma surpresa a posterior necessidade de alterar essa expressão em conformidade com os avanços médicos e sociais da época. Mas, tão somente a partir da promulgação da Constituição Federal em 1988, os avanços se manifestaram de maneira mais perceptível, na medida em que temáticas sociais ocuparam maior espaço e, juntamente com a proteção da pessoa humana, se inseriram no escopo axiológico do sistema jurídico (art. 1º, III). Sendo assim, a presente pesquisa tem por objetivo tratar dos direitos das pessoas com deficiência em suas especificidades, sobretudo no acesso à parentalidade adotiva, levando-se em conta, nessa classificação - cujo foco recai sobre a deficiência mental e intelectual – , que a deficiência não pode ser considerada como fator impeditivo para o exercício de ampla capacidade, sendo necessário, por vezes, tão somente algumas adaptações por meio de sistema de apoios e/ou outras salvaguardas. 113 Como bem está demonstrado no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n° 13.146/2015), em seu art. 6°, inciso VI, a deficiência não afeta o exercício da capacidade civil quanto ao exercício do direito à adoção (BRASIL, 2015), mas, ao se analisar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/1990), encontra-se em seu art. 197-A, inciso VI, a exigência de apresentação de atestado de sanidade física e mental (BRASIL, 1990) como documento necessário ao pedido da adoção. A capacidade legal, o direito de acesso à parentalidade e a falta de referência a esse documento no Estatuto da Pessoa com Deficiência fazem crer que não há qualquer fator impeditivo para ser adotante, salvo aqueles que possam ser identificados dentro do próprio sistema axiológico. Assim, ao mesmo tempo, vale ressaltar que no instituto da adoção prevalece o melhor interesse da criança e do adolescente, que necessitam concordar ou demonstrar aprovação ao novo lar e ao núcleo familiar, tendo em vista que muitas dessas crianças e adolescentes já passaram por um período de rejeição e abandono traumáticos. Ao longo do desenvolvimento será pontuada a trajetória legislativa que assegurou direitos e garantias às pessoas com deficiência, possibilitando o exercício da parentalidade, inclusive a adotiva, como forma de superar as vulnerabilidades. Assim, busca-se demonstrar o equilíbrio entre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o Estatuto da Criança e do Adolescente, impedindo que se faça uma interpretação jurídica que considere os direitos de maneira absoluta ou estanque, mas que analise o caso concreto à luz de suas peculiaridades. 2. Trajetória da Percepção da Deficiência Inicialmente, será necessário traçar uma breve linha temporal com o percurso trilhado pelas pessoas com deficiência na sociedade ao longo do tempo, evidenciando os avanços sociais e legislativos que foram fundamentais e pontuais para a expansão de seus direitos. Como bem se sabe, a deficiência não é algo novo, mas suas formas de percepção, de tempos em tempos, foram alteradas, de modo a acompanhar, quase sempre, os valores e interesses do próprio Estado e da sociedade. A começar pelo período da Antiguidade, cuja base se encontra no Modelo da Prescindência4, o qual associava a origem da deficiência a um motivo religioso, sendo vista como um tipo de castigo divino pelos pecados praticados por seus pais e, por isso, as pessoas eram consideradas como dispensáveis e sem utilidade para a sociedade. Consequentemente, PALACIOS, A: El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. CERMI. Madrid Ediciones. Cinca, p. 25, 2008. 4 114 o nascimento de crianças com deficiência resultava na prática de homicídio e na sua marginalização, evidenciando o desprezo dessas pessoas pelos seus próprios familiares. Com a chegada do período Moderno, dentro de um contexto de pós-Guerra Mundial e um número significativo de soldados que estavam física e psicologicamente feridos, a deficiência foi encarada como uma patologia, sendo possível através dos avanços da medicina uma intervenção que pudesse “consertar” essas pessoas, inaugurando assim o “Modelo Reabilitador ou Médico”5. Sob uma outra perspectiva, as pessoas com deficiência passaram a ser identificadas e a possuir uma chance de sobrevivência, o que consequentemente disfarçou a necessidade capitalista de dar para aquelas pessoas alguma utilidade ou função. Posteriormente, no período Contemporâneo, o ativismo das próprias pessoas com deficiência impulsionou mudanças políticas e legislativas, iniciando um novo modelo denominado, por Agustina Palácios, de Modelo Social6. Identificou-se, assim, que o problema é estrutural sendo, portanto, diferente dos outros modelos, que indicavam as pessoas com deficiência como o problema a ser solucionado. A premissa nesse novo paradigma é potencializada pela inclusão social, a qual propõe uma equiparação de oportunidades e adequação do espaço para melhor adaptar essas pessoas. No Brasil, a primeira menção visível e significativa à capacidade das pessoas com deficiência pela legislação ocorreu no Código Civil de 1916, art. 5°, atualmente revogado: Art. 5. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I. Os menores de dezesseis anos. II. Os loucos de todo o gênero. III. Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade. IV. Os ausentes, declarados tais por ato do juiz7. Evidentemente, serviu somente para confirmar as raízes de um passado discriminatório, impossibilitando que fossem praticados quaisquer atos da vida civil em razão da classificação de incapacidade absoluta e a denominação genérica de “loucos de todo gênero”, como se todas as deficiências se resumissem a uma única classe. A autonomia e a liberdade sobre próprio corpo também foram retiradas através do “tratamento especial” conhecido como esterilização compulsória, método utilizado para BARBOZA, H.H.; ALMEIDA JUNIOR, V.A.. Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direito Civil [S. l.], v. 13, n. 03, p. 17–38, 2018. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/150. Acesso em: 7 ago. 2023. 6 PALÁCIO, 2008, p. 25 apud BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direito Civil – RBD Civil, Belo Horizonte, vol. 13, p. 26, jul./set. 2017. 7 BRASIL, 1916. Revogada pela Lei n° 10.406 de 2002. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 10 ago. 2023. 5 115 privar o exercício da reprodução, à sexualidade e o direito de constituir família. Como bem demonstrado por Miriam Ventura, os direitos reprodutivos estavam sendo violados através das práticas de esterilização e de aborto nas pessoas com deficiência mental e intelectual pelo mundo todo8. No Brasil, em 1996 entrou em vigor a Lei do Planejamento Familiar, a qual possibilitou os procedimentos de esterilização cirúrgica somente por meio de processo judicial e autorização do magistrado, conforme previsto em seu art. 10, §6° 9. Saindo de um contexto de pós-segunda Guerra Mundial, foi instituída a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, com sua declaração sobre “novo humanismo”, e que trouxe no seu preâmbulo a instituição de normas comuns e gerais de proteção aos direitos das pessoas humanas: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”10. Vale ressaltar que a partir da década de 60, ocorreu um processo de formulação do conceito da deficiência e, dez anos depois, a OMS (Organização Mundial da Saúde) a identificou como “uma perda ou anormalidade de uma parte do corpo (estrutura) ou função corporal (fisiológica), incluindo as funções mentais” 11 (CIDDM-2), assim, a limitação passou a ser compreendida como uma dificuldade no desempenho pessoal, contrariando o entendimento vigente durante muito tempo, que estabelecia a incapacidade como uma desqualificação social. Essa classificação teve a intenção de criar uma interação entre a pessoa com deficiência, os fatores externos socioeconômicos e ambientais, e ainda as limitações em desempenhar certas atividades. O Brasil, em meio a um contexto de mudanças valorativas, promulgou a Constituição Federal de 1988, a qual teve como premissas a inclusão, a igualdade e a liberdade: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; VENTURA, M. Direitos Reprodutivos no Brasil - Capítulo 3: A Lei Constitucional e os Direitos Reprodutivos; Capítulo 5: Planejamento Familiar e Direitos Reprodutivos. Brasília, 2009. 9 BRASIL. Lei 9263/1996. Art. 10, §6°: § 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei. Disponível em www.planalto.gov.br. Acesso em 10 ago. 2023. 10 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 07 ago. 2023. 11 OLIVEIRA, F; MIRANDA DA SILVA, S. Manual de Legislação em Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência / Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 10. 8 116 V – o pluralismo político12. Dessa maneira, não seria apresentável para o país possuir um Código Civil tão ultrapassado e discriminatório em relação às pessoas com deficiência, violando a premissa central da Constituição Federal, que era a proteção à dignidade da pessoa humana. Tornouse necessário, então, modificar o instituto da capacidade, principalmente por se considerar as pessoas com deficiência ('loucos’) incapazes de forma indiscriminada. Assim, o Código Civil de 2002 trouxe em seus artigos: Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos13. Em 2007, ocorreu a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual reuniu 192 países membros da ONU, em razão da ausência de normativa que assegurasse direitos para as pessoas com deficiência, reconhecendo a necessidade de integrá-los, promovendo acessibilidade e inclusão, palavras de conhecimento popular, mas que precisavam ser inseridas concretamente no meio social. Assim foi instituída a Convenção, visando proteger as pessoas com deficiência e assegurar o exercício pleno de seus direitos com base no princípio da dignidade, autonomia individual, liberdade, igualdade e da acessibilidade, promovendo também o reconhecimento como indivíduo perante a lei, adquirindo assim sua capacidade. Sua adoção pelo Estado brasileiro (Decreto n° 6.949/2009) impulsionou a criação da Lei 13.146/2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) ou Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que trouxe para o Código Civil de 2002 drásticas mudanças, sobretudo pelo aumento da visibilidade das pessoas com deficiência através do art. 113, que revogou os arts. 3°, incisos I, II e III e o 4°, incisos I e IV, do CC/2002, e ainda tratou da capacidade em seu art. 6°: BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 07 ago. 2023. 13 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 07 ago. 2023. 12 117 A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas14. Através do EPD, a definição da palavra “deficiência” também foi alterada, sendo notório o avanço por meio de determinantes modificações estruturais, certificação de direitos e atribuição de deveres, recebendo, assim, um novo conceito: Art. 2°: impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas15. Vale ressaltar que a terminologia também se tornou inclusiva, caindo em desuso termos como “pessoa com necessidades especiais” ou “pessoa portadora de deficiência”, que associavam a pessoa a sua condição, restringindo seu potencial, sendo definido atualmente que o termo de referência às pessoas deve colocá-las à frente de sua deficiência. Logo, a inclusão social também perpassa pela linguagem, pois através dela é possível expressar o respeito ou até mesmo a discriminação. Parte-se, então, de notória e significativa mudança na percepção da pessoa com deficiência, atualmente sujeito capaz e detentor de direitos e obrigações. Sobre a sua inclusão no meio social, ainda há muito a ser feito para efetivamente cumprir com o que está previsto na legislação, tanto no campo do direito público, mediante a implementação de políticas, quanto no setor privado e sua adequação às prescrições normativas. Quanto ao Poder Judiciário, exige-se o detalhamento sobre o acesso a alguns direitos, por exemplo, à adoção de crianças e adolescentes, já que identificado conflito que envolve dois grupos classificados como vulneráveis e que precisam ter seus direitos assegurados sem que um seja anulado em detrimento do outro. 3. O Processo de Adoção sob a Ótica do Direito Brasileiro BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. 15 ________. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 07 ago. 2023. 14 118 O instituto da adoção objetiva ofertar à criança e ao adolescente, previamente desvinculado dos seus genitores, a garantia da convivência familiar através da figura dos adotantes, e como meio para o cumprimento de todos os seus direitos. Diante disso, e em conformidade com o que Caio Mário da Silva Pereira aponta, a adoção “é o ato jurídico pelo qual uma pessoa recebe outra como filho, independentemente de existir entre elas qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim”16. Com a vigência da Lei 8.069/90, foi estabelecido o rito processual juntamente com as exigências necessárias para a instauração do processo, havendo influência de dois princípios, o da dignidade da pessoa humana e o do melhor interesse da criança e do adolescente, ambos com previsão legislativa: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão17. Art. 3°. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade18. Inicialmente, ressalta-se a importância da Carta Magna, visto que desde a sua vigência19, a prioridade deixou de ser o interesse do adulto para ser a devida e integral proteção da criança ou adolescente, sobretudo dos inseridos em processos de adoção, sendo esse valor reafirmado mediante detalhamento do seu trâmite processual. Com isso, os postulantes deverão apresentar a petição inicial endereçada à Vara da Infância e Juventude, juntamente com toda a documentação exigida, conforme o disposto no art. 197-A do ECA20. Num segundo momento, dando seguimento ao procedimento para inclusão de adotantes no Sistema Nacional de Adoção, o Ministério Público efetuará a análise dos PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. V, 11ª edição, Forense, p. 213 e 214. BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 07 ago. 2023. 18 BRASIL. Lei nº 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 07 de agosto de 2023. 19 BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 07 ago. 2023. 20 ______. Lei nº 8.069/90. Art. 197-A: Os postulantes à adoção, domiciliados no Brasil, apresentarão petição inicial na qual conste: I - qualificação completa; II - dados familiares; III - cópias autenticadas de certidão de nascimento ou casamento, ou declaração relativa ao período de união estável; IV - cópias da cédula de identidade e inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas; V - comprovante de renda e domicílio; VI - atestados de sanidade física e mental; VII - certidão de antecedentes criminais; VIII - certidão negativa de distribuição cível. 16 17 119 documentos e, em alguns casos, esse órgão solicita uma complementação de informações para que o parecer possa ser proferido. Nesse contexto, e também em sua função institucional de garantir o melhor interesse da criança e do adolescente, o Poder Judiciário, por intermédio de uma equipe técnica, fará todas as avaliações necessárias para identificar a motivação daqueles que estão postulando, assim como certificar-se da capacidade dos candidatos de cuidar da criança ou adolescente de forma plena. Nota-se que documentos pessoais elencados nos incisos I, II, III, IV e V do art. 197-A do ECA21, são de fácil acesso, em contrapartida, nos incisos VI, VII, VIII 22, são solicitados os atestados de sanidade física e mental, assim como certidões que requerem certo esforço, já que em um dos casos será necessário recorrer a médicos e, no outro, aos órgãos competentes, respectivamente. Para que os requerentes adquiram os atestados de sanidade física e mental, é necessário que passem por consulta médica, não sendo determinado que sejam emitidos por profissionais especialistas. Ocorre que, mesmo com o laudo, ainda existem chances de a solicitação ser frustrada, tendo em vista que os indivíduos que têm a pretensão de adotar precisam passar por curso de preparação psicossocial e jurídica e, posteriormente, serão submetidos a avaliação com entrevistas e a visitas domiciliares efetuadas pela equipe técnica interprofissional. Portanto, o que busca ser debatido recai sobre a efetividade do direito à parentalidade, de forma a proteger o interesse da criança ou adolescente, sem que haja violação do direito das pessoas com deficiência, dotados de capacidade civil, com ênfase num histórico de impedimentos ao exercício parentalidade tão somente por sua condição. 4. O Processo de Adoção por Pessoas com Deficiência Mental e Intelectual A priori, destaca-se a relevância quanto à terminologia utilizada – pessoas com deficiência mental e intelectual – sendo feito uso das duas expressões pelo entendimento de que, apesar do termo deficiência intelectual ser mais técnico e condizente ao quadro desse grupo, o termo “mental” ainda é muito discutido na literatura especializada, e, por isso, BRASIL. Lei nº 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l8069.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. 22 _______. Lei nº 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l8069.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. 21 120 permanece inserido na expressão para que o mundo jurídico não realize escolhas que nem a área médica efetuou. Vale ressaltar que a deficiência, seja ela intelectual ou mental, é evidenciada por Joyceane Bezerra como um fato complexo que “transcende os impedimentos naturais (fisiopsíquicos) da pessoa, sendo imperativo considerar o agravamento imposto pelas diversas barreiras sociais, institucionais, jurídicas e ambientais” 23. Sua análise é interdisciplinar, relacionando conceitos da medicina com os jurídicos. Nessa seara, os dois grupos sociais que estão atrelados ao processo de adoção encontram-se em uma posição de vulnerabilidade, o que demanda um tratamento diferenciado, mas não discriminatório, visto que a pessoa com deficiência mental ou intelectual pode ser dotada de capacidade civil, tem garantido o direito de constituir família, bem como o direito à adoção, com fulcro no art. 6º, VI do Estatuto da Pessoa com Deficiência24. A capacidade deve ser considerada como gênero composto por duas espécies: a capacidade de direito e a capacidade de fato. De acordo com os ensinamentos de Orlando Gomes, a capacidade de direito equipara-se à personalidade quanto ao seu significado, enquanto a de fato “é a aptidão para exercer direitos”25. A pessoa passa a ser dotada de personalidade civil desde o momento em que ocorre o nascimento com vida, o que esclarece que todos são possuidores da capacidade de direito, entretanto, nem todos têm a plena capacidade de fato, haja a vista que a capacidade poderá ser suprimida ou restringida por meio de situações apontadas pela lei26. Nesse contexto, apesar de o Estatuto da Pessoa com Deficiência trazer consigo avanços significativos para o processo de inclusão, percebe-se que isso não foi acompanhado por algumas normas, haja vista não ser suficiente atribuir autonomia para esse grupo sem que o ordenamento jurídico brasileiro faça adaptações e correções em todo seu corpo legislativo, assim como, devem ser apresentados meios para que esses indivíduos possam acessar e exercer seus direitos. MENEZES, J.B.. O direito protetivo após a Convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência, o novo CPC o Estatuto da pessoa com deficiência. In: Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas–Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 535. 24 BRASIL. Lei n° 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Art. 6°, inciso IV. Acesso: 07 ago. 2023. 25 GOMES, O.. Introdução ao Direito Civil. Atualizador Humberto Theodoro Junior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p.165-166. 26 BARBOZA, H.H.; ALMEIDA, V.. A (in)capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual e o regime das invalidades: primeiras reflexões. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no direito civil brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 214. 23 121 No que tange às pessoas com deficiência mental e intelectual, observa-se que existe a compreensão de que, em regra, a incapacidade está restrita aos direitos patrimoniais e negociais, no qual ficariam submetidos, se necessário, ao instituto da curatela, conforme disposto no art. 85 do EPD27. Além disso, identifica-se que, eventualmente, em sentença, pode ocorrer a autorização ao curador para efetuar determinados atos existenciais, para que seja promovida a execução das vontades da pessoa com deficiência, já que, de fato, nem todos conseguem expressar sua vontade de alguma maneira, haja vista a gravidade de alguns graus de deficiência intelectual ou mental. Caso não haja autorização ao curador, deverá o juiz realizar tais escolhas, sempre, em qualquer caso, à luz daquela que poderia ser considerada a vontade do curatelado ou, quando isso não for possível, à luz de seu melhor interesse. Sob essa perspectiva, fica clara a necessidade de analisar cada caso concreto com atenção e cuidado, sendo levado em consideração o estado do indivíduo, seu comprometimento e possível discernimento, ao invés de simplesmente presumir sua incapacidade de escolha autônoma, com base em tratamento discriminatório enraizado na sociedade. De fato, conforme observam Heloisa Barboza e Vitor Almeida, “a incapacidade de pessoa com deficiência mental ou intelectual, quando admissível, será sempre relativa, mas não pela deficiência em si, mas pelo fato objetivo de impossibilitar a expressão da vontade de forma consciente e autônoma”28. No tocante à adoção, o estudo do procedimento normativo disposto no ECA levanta alguns questionamentos, sendo um destes referente à avaliação psíquica do indivíduo que figura como possível adotante. Inicialmente, cabe até mencionar a possibilidade de arguição de inconstitucionalidade dessa exigência, haja vista a determinação de capacidade às pessoas com deficiência, com fundamento na Convenção, que, por cumprir todas as exigências da Carta brasileira (art. 5º, §3º), tem natureza de norma constitucional. Caso assim não se considere, é solicitado que seja fornecido um atestado de sanidade mental, mas é sabido que um documento médico sozinho não é suficiente para garantir a existência de habilidade e capacidade para o exercício do poder familiar. Diante disso, são feitas avaliações pela equipe interprofissional do Poder Judiciário para averiguar se o candidato possui condições de cumprir com responsabilidade a função parental. BRASIL. Lei n° 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. 28 BARBOZA, H.H; ALMEIDA, V.. A (in)capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual e o regime das invalidades: primeiras reflexões. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no direito civil brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 225. 27 122 Apesar de todo o procedimento ser feito por profissionais especializados, surge a discussão quanto aos métodos utilizados para atestar a capacidade ou não de adoção pelas pessoas com deficiência mental ou intelectual, haja vista a relevância de existir uma equipe com pleno conhecimento e livre de preconceitos, para que não sejam criados empecilhos ao exercício desse direito, que pode ser considerado como forma de emancipação pessoal. Ou seja, exige-se olhar atento para que a prática judiciária se ajuste aos direitos de um “novo grupo” – pais com deficiência – mas, ao mesmo tempo, garantir que sejam preservados os interesses e os direitos das crianças e adolescentes. O art. 227 da Constituição Federal de 1988 29 estabelece que crianças e adolescentes são prioridade, sendo “... dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Com isso, para garantir a proteção integral desse grupo vulnerável, são feitas inúmeras análises para efetivar a adoção, e mesmo com todo o procedimento, ainda existem casos de devolução ou de negligência. Por conta disso, aqueles que possuem deficiência mental e intelectual podem representar um grupo com maior dificuldade para o exercício da parentalidade, todavia, não pode ser presumida a incapacidade para exercer a adoção de crianças e adolescentes, tendo em vista que o fato de possuírem esse quadro clínico não gera certeza de que haverá danos aos direitos dos adotados. O que torna nítida a necessidade de reestruturação do entendimento de que a análise realizada pela equipe psicossocial deve, em qualquer caso, para qualquer pretendente à adoção, buscar o cumprimento do melhor interesse, sem préjulgamentos e considerações subjetivas que não digam respeito exclusivamente à capacidade de desempenhar adequada e responsavelmente o poder familiar. A deficiência mental e intelectual não é sinônimo de perda total do discernimento ou incapacidade de manifestar e exercer vontades. Entretanto, ao falar sobre um déficit na parte intelectual identifica-se que possivelmente essa pessoa encontrará dificuldades para exercer determinados atos de forma plena, mas não necessariamente o torna inapto para cuidar de uma criança ou adolescente. Infere-se, portanto, a necessidade de analisar cada caso concreto de forma individual e livre de preconceitos, para, de fato, sentenciar se o indivíduo pode ou não exercer o seu direito sem falhar com os cuidados que demandam a criação e educação BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 07 ago. 2023. 29 123 dos infantes. Caso exista prévia curatela, seus limites devem ser analisados, pois é possível que as restrições anteriormente estabelecidas não afetem a possibilidade de exercer o poder familiar, assim como, à luz das previsões do EPD, não devem dizer respeito aos interesses de natureza existencial. Insta salientar que somente médicos especializados e demais profissionais que estudam a deficiência mental e intelectual podem de fato atestar sobre as possibilidades ou não de um indivíduo com perdas de funcionalidade poder cuidar de outro. O que demonstra a necessidade de as equipes técnicas multidisciplinares serem treinadas para a conjuntura inclusiva e protetiva, para que a decisão não seja tomada com fundamentos preconceituosos, e sim com justificativas condizentes e plausíveis para o caso em questão. 5. Conclusão O presente trabalho buscou tratar do direito à parentalidade para pessoas com deficiência intelectual e mental, que procuram a adoção como forma de constituir uma família, discussão que se manifesta sobretudo em torno do instituto da capacidade civil, amplamente assegurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, e do atestado de sanidade mental, ainda solicitado legalmente como documento fundamental para o requerimento da adoção. Todavia, o maior questionamento estaria em torno do significado de sanidade mental nos anos 90, momento de publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, e a viabilidade de sua aplicação nos dias atuais, tendo em vista o longo espaço temporal e suas mudanças axiológicas. Os obstáculos enfrentados pelas pessoas com deficiência mental e intelectual são evidentes, principalmente levando em consideração o rótulo da incapacidade estabelecido com a vigência do Código Civil de 1916, que retirou a autonomia e a liberdade sobre seus corpos, o poder de decisão sobre constituir uma família ou exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. Assim, foi demonstrado que, com os avanços legislativos e a mudança de pensamento, direitos fundamentais puderam ser assegurados e garantidos, apesar de ainda ser necessário sanar algumas incompatibilidades entre normas jurídicas. Desse modo, a pessoa com deficiência tornou-se titular de capacidade legal e detentora de diversas prerrogativas que incluem expressamente o exercício de direitos sexuais e o exercício da parentalidade. Mas o direito de constituir família, principalmente mediante adoção, apesar de ser uma garantia legal, está marcado por preconceitos ainda enraizados na sociedade contemporânea, às vezes por desconhecimento, outras por simples discriminação. É certo que a gravidade da deficiência mental ou intelectual interfere na análise do direito, 124 vez que o exercício do poder familiar demanda cuidados e decisões sobre a vida da pessoa dos filhos, exigindo que o melhor interesse da criança e do adolescente seja cumprido. Portanto, os direitos referentes ao exercício da parentalidade não devem ser interpretados de forma absoluta, pois devem considerar a própria pessoa com deficiência e, sobretudo, os filhos – crianças e adolescentes – envolvidos nesse projeto parental. Trata-se, in casu, de um conflito que põe em confronto dois tipos diversos de vulnerabilidade, ambas com justificativa constitucional e que requerem análise do caso concreto para que possa, à luz de suas peculiaridades, ser devidamente resolvido. Vale ressaltar o princípio constitucional do melhor interesse da criança, atribuído à família, e especificamente direcionado aos pais enquanto detentores do poder familiar, e que deve nortear o conteúdo e os limites para o exercício da parentalidade por pessoas com deficiência - nesse ponto, o laudo médico pode contribuir de maneira relevante para a determinação dos atos que podem ser compreendidos e, portanto, realizados pela pessoa com deficiência. A Lei 8.069/90 não deve criar empecilhos ao requerimento da adoção por pessoa com deficiência, devendo haver treinamento dos profissionais da equipe técnica social que realiza as entrevistas e organiza os cursos a serem frequentados por aqueles que buscam cadastrar-se como pretendentes à adoção. O trabalho da equipe social é avaliar a condição para o exercício do poder familiar, sem atribuir automaticamente incapacidade pela simples presença de deficiência. Assim, considerados esses critérios, torna-se possível materializar o equilíbrio necessário de maneira a fomentar a emancipação pessoal dos envolvidos mediante a superação de parte da vulnerabilidade das pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em que preservada a necessidade de cuidados pelas crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento, igualmente consideradas vulneráveis. Referências Bibliográficas BARBOZA, H.H. A importância do CPC para o Novo Regime de Capacidade Civil. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 209 - 223, jan./abr. 2018. BARBOZA, H.H.; ALMEIDA, V. A (in)capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual e o regime das invalidades: primeiras reflexões. In: EHRHARDT JR., Marcos (Coord.). Impactos do novo CPC e do EPD no direito civil brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 214-224. BARBOZA, H.H.; ALMEIDA, V. O direito de constituir família da pessoa com deficiência intelectual: requisitos e limites. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (org.). Cuidado e o direito de ser: respeito e compromisso. Rio de Janeiro: Editora GZ, pp. 229-242, 2017. 125 BARBOZA, H.H; ALMEIDA JUNIOR, V.A.. Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direito Civil [S. l.], v. 13, n. 03, p. 17–38, 2018. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/150. Acesso em: 7 ago. 2023. BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 07 ago. 2023. BRASIL. Lei nº 8.069/90. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. BRASIL. Lei nº 9.263/96. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 15 jan. 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. BRASIL. Lei n° 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 07 ago. 2023. CONVENÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2007. Disponível em:https://www.inr.pt/documents/11309/44742/Conven%C3%A7%C3%A3o+sobre+o s+Direitos+da+Pessoas+com+Defici%C3%AAncia/7601dc72-a4a6-4631-b9a2b37b11fe571e. Acesso 07 ago. 2023. CORREGEDORIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Como adotar uma criança no Brasil passo a passo. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/passo-a-passoda-adocao/. Acesso em: 07 ago. 2023. GOMES, O. Introdução ao Direito Civil. Atualizador Humberto Theodoro Junior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense 1994. MENEZES, J.B.; MENEZES, H.J.B.; MENEZES, A.B. A abordagem da deficiência em face da expansão dos direitos humanos. R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 17, n. 2, p. 551-572, jul./dez. 2016. MENEZES, J.B. O direito protetivo após a Convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência, o novo CPC e o Estatuto da pessoa com deficiência. In: Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas–Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 249274. MENEZES, J.B.; RODRIGUES, F.L.L.; BODIN DE MORAES, M.C. A capacidade civil e o sistema de apoios no Brasil. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 10, n. 1, 2021. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitoshumanos>. Acesso em: 07 ago. 2023. PALACIOS, A: El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. CERMI. Madrid Ediciones. Cinca, 2008. 126 PEREIRA, C.M.S. Instituições de direito civil: direito de família / Volume V – 26. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. VENTURA, M. Direitos Reprodutivos no Brasil - Capítulo 3: A Lei Constitucional e os Direitos Reprodutivos; Capítulo 5: Planejamento Familiar e Direitos Reprodutivos. Brasília, 2009. 127 Direitos Humanos e Reprodução Assistida no Contexto Europeu: O Uso da Tecnologia Reprodutiva como Direito Fundamental à Saúde Human rights and assisted reproduction in the European context: the use of reproductive technology as a Fundamental health right Bruna Guesso Scarmagnan Pavelski1 Luna Stipp2 Sumário: 1. Direitos Humanos. 2. Tecnologia Reprodutiva: no contexto Europeu. 3. Reprodução humana assistida como direito fundamental à saúde. Considerações Finais. Referências. Resumo: O presente artigo visa trazer reflexões sobre os direitos humanos e sua respectiva correlação com o uso da reprodução assistida como meio de concretização do direito fundamental à saúde. No contexto Europeu, tratados internacionais, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos fornece a base legal para a proteção de direitos fundamentais, nomeadamente, o direito à saúde, além das disposições previstas na Resolução do Parlamento Europeu de 2021, um documento que considera a importância dos direitos sexuais e reprodutivos como componentes essenciais dos direitos humanos na União Europeia. Todavia, a aplicação destes institutos diverge entre os países europeus, com diferenças significativas nas políticas e regulamentações relacionadas à reprodução assistida, promovendo desigualdades atinentes a acessibilidade. Neste contexto, por meio do método hipotético-dedutivo, mediante revisões normativas e bibliográficas, aventa-se a necessidade de mensurar o uso da tecnologia reprodutiva, como um direito fundamental à saúde, requerendo uma abordagem holística que leve em consideração os direitos dos indivíduos à autonomia reprodutiva e a promoção da equidade no acesso aos tratamentos. Assim, concluise que, é crucial uma discussão contínua entre os países europeus para promover a harmonização das políticas e regulamentações relacionadas à reprodução assistida, garantindo desta maneira, o respeito aos direitos humanos nesta esfera. Palavras-chave: Contexto Europeu. Direitos Humanos. Saúde. Tecnologia Reprodutiva. Abstract: This article aims to reflect on human rights and their respective correlation with the use of assisted reproduction as a means of realizing the fundamental right to health. In the European context, international treaties such as the European Convention on Human Rights provide the legal basis for the protection of fundamental rights, namely the right to health. In addition to the provisions set out in the 2021 European Parliament Resolution, a document that considers the importance of sexual and reproductive rights as essential components of human rights in the European Union. However, the application of these institutes differs between European countries, with significant differences in policies and Doutoranda em Direito na área de concentração: Teorias da Justiça (justiça e exclusão); linha de pesquisa: direito e vulnerabilidades - Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Bolsista CAPES/PROSUP. Doutoranda em Cotutela - Universidad Pública de Navarra - UPNA. Mestra em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM (2018). Graduada em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília - UNIVEM (2015). Professora Pesquisadora na Universidad Pública de Navarra - UPNA. Advogada. E-mail: [email protected] Lattes: CV: https://lattes.cnpq.br/9701756143903023. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1881-3961. 2 Doutora em Direito na área de concentração: Teorias da Justiça (justiça e exclusão) - Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. 1 128 regulations related to assisted reproduction, promoting inequalities regarding accessibility. In this context, through the hypothetical-deductive method, through normative and bibliographic reviews, the need is suggested to measure the use of reproductive technology, as a fundamental right to health, requiring a holistic approach that takes into account the rights of individuals to reproductive autonomy and the promotion of equity in access to treatments. Thus, it is concluded that a continuous discussion between European countries is crucial to promote the harmonization of policies and regulations related to assisted reproduction, thus guaranteeing respect for human rights in this sphere. Keywords: European context. Human rights. Health. Reproductive Technology. 1. Direitos Humanos Inicialmente, imperioso consignar que os direitos humanos são aqueles que correspondem a liberdade e a igualdade, estando positivados no plano internacional. As normas a título de direitos humanos reconhecem e resguardam a dignidade de todos os seres humanos, albergando o modo como indivíduos se correlacionam em sociedade e entre si, abrangendo sua relação com o Estado e as obrigações deste em relação àqueles. Os direitos humanos são considerados direitos fundamentais. O princípio dos direitos humanos sustenta que todos os indivíduos têm os mesmos direitos e liberdades básicos, independentemente de sua nacionalidade, raça, sexo, religião ou qualquer outra característica. Os direitos humanos são universais e se aplicam a todas as pessoas em virtude de sua dignidade e valor inerentes (ONU, 1948). O conceito de igualdade é central para os direitos humanos. Afirma que todos os indivíduos devem ser tratados com justiça, respeito e dignidade, e que ninguém deve ser discriminado ou negado seus direitos com base em quaisquer fatores arbitrários. Os direitos humanos abrangem uma ampla gama de direitos fundamentais, como o direito à vida, liberdade, segurança, privacidade, igualdade perante a lei, liberdade de expressão e proteção contra tortura ou tratamento cruel, entre outros. Corroborando, Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 46) argumenta os direitos humanos não são conceitos abstratos, mas instrumentos práticos para a promoção da dignidade humana. Ele afirma que a dignidade humana requer não apenas a ausência de violações, mas também o cumprimento de certas condições sociais, econômicas e culturais necessárias para uma vida digna. Embora a realização e proteção dos direitos humanos possam variar na prática em diferentes países e sistemas jurídicos, o princípio fundamental permanece o mesmo: todos os indivíduos têm direito aos mesmos direitos fundamentais. A ideia de direitos humanos iguais serve como base para promover a justiça, a equidade e o bem-estar de todos os indivíduos, independentemente de sua origem ou características. 129 Hannah Arendt a respeito dos direitos humanos em seu livro “A Condição Humana” explora o conceito de direitos humanos no contexto da esfera pública e política. Arendt argumenta que os direitos humanos não são derivados de princípios filosóficos ou morais abstratos, mas estão enraizados na capacidade humana fundamental de ação e na capacidade de aparecer na esfera pública. Ela enfatiza a importância da ação política e do engajamento público como componentes essenciais dos direitos humanos (ARENDT, 2007, p. 78-214). Os direitos humanos refletem um construído axiológico a partir de um ambiente “simbólico de luta e ação social, compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade humana” (PIOVESAN, 2014, p. 32). Por conseguinte, os direitos humanos ocupam-se em zelar pela promoção do ser humano e da coletividade, encarregando-se de resguardá-los e, nesta esfera crava-se o direito à saúde, objeto deste artigo como direito fundamental intrínseco a qualquer sistema vigente de garantias que incorporam o estado de bem-estar social. Assim, passa-se trazer à baila a figura da tecnologia reprodutiva no contexto Europeu, afim de evidenciar os marcos normativos que possibilitam a compreensão e confirmação da hipótese acima ventilada. 2. Tecnologia Reprodutiva: No Contexto Europeu A reprodução assistida é uma das áreas da medicina que tem avançado rapidamente, proporcionando oportunidades para casais e indivíduos com dificuldades de conceber. No contexto Europeu, a questão dos direitos humanos relacionados à reprodução assistida merece destaque, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento do uso da tecnologia reprodutiva como um direito fundamental à saúde. O acesso à reprodução assistida, em geral, é um aspecto central dos direitos reprodutivos e dos direitos humanos. Os tratados internacionais, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, além das disposições previstas na Resolução do Parlamento Europeu de 2021, fornecem uma base legal para a proteção desses direitos. No entanto, a aplicação desses princípios varia entre os países europeus, com diferenças significativas nas políticas e regulamentações relacionadas à reprodução assistida. Em alguns países europeus, como a Espanha e o Reino Unido, existe uma legislação abrangente que garante o acesso à reprodução assistida e estabelece diretrizes claras para sua 130 prática. Essas regulamentações visam equilibrar os direitos dos indivíduos à autonomia reprodutiva e à igualdade de oportunidades, por meio de técnicas de reprodução assistida. Em contrapartida, em outros países europeus, como a Alemanha e a Itália, as restrições legais são mais rigorosas, com proibições de certos procedimentos ou limitações severas ao acesso à reprodução assistida. Essas restrições muitas vezes são baseadas em considerações éticas e culturais, mas, podem ser vistas como uma violação dos direitos humanos à saúde e à autonomia reprodutiva. Além disso, a questão da equidade no acesso à reprodução assistida também é um tema importante. O custo dos tratamentos, juntamente com a ausência de reembolso por parte dos sistemas de saúde, pode criar desigualdades significativas, tornando a reprodução assistida inacessível para muitos casais e indivíduos. Desta maneira, passa-se a abordar a reprodução humana assistida como direito fundamental à saúde. 3. Reprodução Humana Assistida como Direito Fundamental à Saúde A reprodução humana assistida é reconhecida como um direito fundamental à saúde, uma vez que abrange a capacidade dos indivíduos de exercerem controle sobre sua saúde reprodutiva e de terem acesso a tratamentos e tecnologias que possibilitem a realização de seus anseios reprodutivos. Como parte dos direitos humanos, o acesso à reprodução assistida abrange não apenas o direito de buscar assistência médica para superar a infertilidade, mas também o direito de tomar decisões informadas sobre a própria fertilidade, planejamento familiar e escolhas reprodutivas. Garantir o acesso equitativo a serviços de reprodução assistida, independentemente de gênero, orientação sexual, origem étnica ou status socioeconômico, é fundamental para promover a igualdade, a saúde e o bem-estar das pessoas, contribuindo para a construção de sociedades mais justas e inclusivas. Com efeito, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos fornece a base legal para a proteção de direitos fundamentais, incluindo o direito à saúde. Este instrumento internacional, adotado pelo Conselho da Europa em 1950, estabelece padrões mínimos de proteção dos direitos humanos para todos os Estados membros. O direito à saúde é reconhecido como parte integrante dos direitos humanos e é salvaguardado pelo artigo 2º do Protocolo Adicional nº 1 à Convenção, que estabelece que "ninguém pode ser privado da vida intencionalmente, exceto em execução de uma sentença de tribunal". Além disso, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem desempenhado um papel fundamental na interpretação e aplicação desses direitos, assegurando que os Estados membros cumpram 131 suas obrigações de proteger e garantir o direito à saúde de todas as pessoas sob sua jurisdição. Dessa forma, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos desempenha um papel crucial na promoção e proteção do direito à saúde na Europa (CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS, 1950, p. 01). Inobstante, a Resolução do Parlamento Europeu, de 24 de junho de 2021, alberga a situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, se tratando de um documento importante que destaca a importância dos direitos sexuais e reprodutivos como componentes essenciais dos direitos humanos na União Europeia. O Parlamento Europeu reconhece que o acesso à saúde sexual e reprodutiva é fundamental para a promoção da igualdade de gênero, a autonomia das mulheres e a melhoria geral da saúde pública. A resolução enfatiza que todos os indivíduos devem ter o direito de tomar decisões informadas sobre sua saúde sexual e reprodutiva, incluindo o acesso a serviços de contracepção, aborto seguro, tratamento de infertilidade e cuidados de saúde materna (PARLAMENTO EUROPEU, 2021, p. 01). Além disso, a resolução destaca a necessidade de eliminar obstáculos ao acesso a esses serviços, como a falta de informação, estigma, discriminação e restrições legais ou práticas que limitam ou negam os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas. O Parlamento Europeu insta os Estados-Membros a garantir a disponibilidade e acessibilidade de serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade em todo o território da UE, respeitando a autonomia e a privacidade dos indivíduos (PARLAMENTO EUROPEU, 2021, p. 01). A resolução também reconhece os desafios enfrentados por certos grupos vulneráveis, como mulheres jovens, pessoas LGBTI+, migrantes e refugiados, e enfatiza a necessidade de garantir que esses grupos tenham acesso igualitário aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, sem discriminação (PARLAMENTO EUROPEU, 2021, p. 01). A Resolução do Parlamento Europeu destaca a importância dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos fundamentais na União Europeia e insta os EstadosMembros a garantir o acesso igualitário a serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade. Essa inclusão na discussão sobre direitos humanos e reprodução assistida no contexto europeu é relevante, pois reforça o reconhecimento dos direitos reprodutivos como uma preocupação central na política e legislação da UE. Considerações Finais 132 Conclui-se que, o uso da tecnologia reprodutiva como um direito fundamental à saúde no contexto europeu requer uma abordagem holística que leve em consideração os direitos dos indivíduos à autonomia reprodutiva, a proteção dos interesses das crianças e a promoção da equidade no acesso aos tratamentos. É necessária uma discussão contínua entre os países europeus para promover a harmonização das políticas e regulamentações relacionadas à reprodução assistida, garantindo assim o respeito aos direitos humanos nessa área. Referências ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de: Celso Lafer, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitário, 2007. CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS. Roma, 4 nov. 1950. Disponível em: < https://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?ArtID=536 &lID=4>. Acesso em: 28 jun. 2023. PIOVESAN, F. Declaração Universal de Direitos Humanos: desafios e perspectivas. Revista Brasileira de Estudos Jurídicos, v. 9, n. 2, p. 31, 2014. Disponível em: https://s3.us-east1.amazonaws.com/assetssetelagoas.fasa.edu.br/arquivos/old/arquivos/files/RBEJ%20v_9 ,%20n_2_2014.pdf#page=31. Acesso em: 28 jun. 2023. PARLAMENTO EUROPEU. Resolução do Parlamento Europeu, de 24 de junho de 2021, sobre a situação da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na UE, no contexto da saúde das mulheres (2020/2215(INI), 2021. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2021-0314_PT.html ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 28 jun. 2023. SARLET, I.W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011. 133 Os Desafios Dos Educadores Frente Às Demandas De Abuso Sexual De Crianças e Adolescentes Junto À Rede De Proteção The Challenges of Educators In Front Of the Demands Of Sexual Abuse Of Children And Adolescents Within The Protection Network Camila Sanchez Granemann1 Sumário: 1. Introdução; 2. Identificando a Violência Sexual. 3. Considerações Finais. Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo tecer reflexões acerca do papel dos profissionais da educação no tocante a estratégias para prevenção, promoção e defesa de direitos junto à Rede de Proteção para crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Várias são as instituições integrantes da Rede de Proteção, sendo a escola um dos meios em que, diretamente, é possível identificar, notificar, atender e manter uma atitude vigilante frente aos mais variados contextos de vulnerabilidade, sobretudo no que tange a circunstâncias de abuso sexual. Destaca-se que, muito embora a articulação entre órgãos seja necessária, a escola, por vezes, é o único aparelho estatal disponível em muitas localidades do país a qual, por consequência, assume o lugar de outras redes. Sendo assim, a pesquisa norteia-se pela seguinte indagação: como a estrutura escolar e seu funcionamento estão adaptadas para garantir as condições necessárias para acolhimento das demandas de violência sexual sem causar dano adicional à criança e adolescente, acentuando ainda mais o trauma, ou seja, sem que haja sua revitimização? Com a finalidade de examinar tais dinâmicas, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, tendo como método científico o hipotético-dedutivo e, ainda, com abordagem de natureza qualitativa. Apresenta-se o tema explorando os desafios de prevenção e redução de ciclos de violência, mormente à capacitação dos agentes profissionais da educação frente ao caso/situação, contextos e diferentes realidades existentes. Considerando o poder de mobilização junto à comunidade, a escola é uma referência de grande importância no processo de desencadeamento de ações de proteção uma vez que as crianças e adolescentes passam boa parte de seu tempo na unidade educacional, formando suas identidades, valores e aprendendo o exercício de seus direitos. Nesta esteira, considerando os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os quais demonstram que, no ano de 2022, 75,5% de todos os casos de estupros no Brasil aconteceram contra crianças e adolescentes e, 79,6% dos autores dos estupros de vulnerável registrados eram conhecidos ou parentes das vítimas, a escola possui um papel específico e próprio, ou seja, é o lugar em que a violência pode ser mais facilmente enxergada uma vez que é o espaço em que crianças e adolescentes passam a criar vínculos com adultos fora do círculo familiar, sentindo-se um sujeito social, podendo, assim, pedir ajuda. Ainda, estudos desenvolvidos pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo e outros estudos de âmbito nacional brasileiro, indicam que é grande a probabilidade de que o educador já tenha convivido, esteja convivendo ou irá conviver em sua sala de aula ou na escola, com uma vítima de violência sexual que ainda não denunciou seu agressor. Isto posto, identificar as mudanças de comportamento, machucados e outros sinais de violência, realizando a denúncia junto à autoridade respectiva, sem incorrer em revitimização do vulnerabilizado, é o maior desafio desse cenário, haja vista que alguns educadores podem não possuir formação para lidar com as situações e realizar os encaminhamentos. Muitas são as indagações do profissional frente às demandas de abuso sexual, as quais precisam ser respondidas para que Mestranda em Ciências Jurídicas (Direitos e Vulnerabilidades) pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. E-mail: [email protected] 1 134 esses casos saiam do anonimato e sejam devidamente encaminhados. Sugere-se, assim, a divulgação e estudos da legislação vigente sobre o tema, com o propósito de compreender o funcionamento da rede protetiva, bem como refletir sobre o fluxo de encaminhamento a partir das necessidades identificadas. Em outras palavras, os profissionais da educação devem saber observar os sinais, providenciar o acolhimento destas vítimas e jamais se omitirem diante de uma possível situação de abuso sexual infantil. Desse modo, esta pesquisa apresenta uma possibilidade de mitigação desses reveses por meio de reflexões e questionamentos que sejam capazes de compreender a complexidade de problemas jurídico-sociais-educacionais que se apresentam, de modo a estimular uma dogmática extensiva e abrangedora. Palavras-chave: Abuso sexual; ECA; Rede de Proteção; Educação; Escola; Educadores. Abstract: This research aims to reflect on the role of education professionals with regard to strategies for prevention, promotion and defense of rights with the Protection Network for children and adolescents in situations of sexual violence. Many institutions are part of the of the Protection Network, and the school is one of the means in which, directly, it is possible to identify, notify, assist and maintain a vigilant attitude in the face of the most varied contexts of vulnerability, especially with regard to circumstances of sexual abuse. It is noteworthy that, although the articulation between agencies is necessary, the school, sometimes, is the only state apparatus available in many localities of the country, which, consequently, takes the place of other networks. Therefore, the research is guided by the following question: how are the school structure and its functioning adapted to guarantee the necessary conditions to accept the demands of sexual violence without causing additional damage to the child and adolescent, further accentuating the trauma that is without revictimization? In order to examine such dynamics, bibliographical research was used, using the hypothetical-deductive scientific method and a qualitative approach. The theme is presented by exploring the challenges of preventing and reducing cycles of violence, especially the training of professional education agents in the face of the case/situation, contexts and different existing realities. Considering the power of mobilization within the community, the school is a very important reference in the process of triggering protective actions, since children and adolescents spend a good part of their time in the educational unit, forming their identities, values and learning what to do exercise of their rights. In this wake, considering data from the Brazilian Public Security Forum, which show that, in the year 2022, 75.5% of all cases of rape in Brazil, happened against children and adolescents, and 79.6% of the perpetrators of rapes of vulnerable registered were acquaintances or relatives of the victims. The school has a specific and unique role, that is, it is the place where violence can been easily seen it is the space where children and adolescents begin to create bonds with adults outside the family circle. Feeling like a social subject and thus being able to ask for help. Furthermore, studies carried out by the Secretariat of Public Security of the State of São Paulo and other studies of a national scope in Brazil indicate that there is a high probability. That the educator has already lived, is living or will live in his classroom or at school, with a victim of sexual violence who has not yet denounced her aggressor. That said, identifying changes in behavior, injuries and other signs of violence, making the complaint to the respective authority, without incurring in victimization of the vulnerable, is the biggest challenge in this scenario, given that some educators may not have training to deal with situations and make referrals. There are many questions from the professional regarding the demands of sexual abuse, which need to be answered so that these cases leaves anonymity and are properlyed forwarded. It is suggested; therefore, the dissemination and studies of the current legislation on the subject, with the purpose of understanding the functioning of the protective network, as well as reflecting on the referral flow from the identified needs. In other words, education professionals must know how to observe the signs, provide for the reception of these victims and never omit themselves in the face of a possible situation of 135 child sexual abuse. Thus, this research presents a possibility of mitigating these setbacks through reflections and questions that are able to understand the complexity of legal, social and educational problems that arise, in order to stimulate an extensive and comprehensive dogmatic. Keyswords: Sexual abuse; ECA; Protection net; Education; School; Educators. 1. Introdução No Brasil, no ano de 2000, elegeu-se a data de 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual e Comercial de Crianças e Adolescentes, em alusão ao “Caso Araceli”2. Posteriormente, por meio da Lei nº 14.432, de 3 de agosto de 2022, instituiu-se a campanha Maio Laranja, marcando ações, em âmbito nacional, de prevenção e combate à exploração sexual infantojuvenil. De acordo com Maria R. F. Azambuja e Maria H. M. Ferreira (2010, pág. 45) “Atender e acompanhar crianças vítimas de violência sexual intrafamiliar exige condições específicas por parte dos profissionais. (...)”. É diante desse contexto de sensibilização e informação da sociedade que surge a preocupação em divulgar o fluxo de proteção aos profissionais de educação integrantes da Rede de Proteção, haja vista a ausência de formação específica para tratar essa demanda específica e realizar os encaminhamentos cabíveis. O artigo 245, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que é dever do profissional da educação comunicar à autoridade respectiva a prática de maus-tratos contra criança e adolescente que tenha conhecimento, incorrendo em infração administrativa, sujeita à pena de multa, em caso de omissão. Das Infrações Administrativas Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. Veja-se que o dispositivo menciona os fatos que envolvam “suspeita ou confirmação”. Neste viés, ressalta-se que não é preciso que o educador possua, em mãos, provas idôneas sobre a violência, isto é, poder-se-á proceder com a comunicação ainda que se esteja diante “O crime brutal cometido contra uma menina de 8 anos, no Espírito Santo, que chocou o país e inspirou um dia nacional de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, está completando 50 anos. Em 18 de maio de 1973 a pequena Araceli Cabrera Sánchez Crespo não retornou da escola. Dias depois, seu corpo foi encontrado em estado avançado de decomposição em uma mata, na cidade de Vitória. A criança foi sequestrada, estuprada, drogada, morta e teve o corpo queimado.”. Coordenadoria da Infância e Juventude do RS. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/cij/noticias/do-caso-araceli-aoavanco-da-legislacao-crimes-sexuais-contra-criancas-e-adolescentes-sao-desafiosociedade/#:~:text=Em%2018%20de%20maio%20de,e%20teve%20o%20corpo%20queimado. 2 136 apenas de eventual desconfiança, haja vista que o processo investigativo será realizado pela autoridade competente. Maria R. F. Azambuja e Maria H. M. Ferreira (2010, pág. 39), aduzem que “Em geral, os serviços de saúde e as escolas são espaços onde é possível identificar quando uma criança ou adolescente sofreu violência sexual.”. Desta maneira, o preciso encaminhamento tem o potencial de retirar do anonimato tais demandas permitindo, em consequência, a responsabilização do agressor. Importante se faz dar destaque aos principais crimes sexuais contra criança e adolescente segundo a legislação brasileira, a fim de facilitar sua identificação. O artigo 213 do Código Penal dispõe que “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (...)”. Como se depreende, o estupro não consiste apenas em uma conjunção carnal, se estende para atos libidinosos. Em que pese a conjunção carnal diga respeito ao coito vagínico, de acordo com Rogério Greco (2023, p. 13), o estupro é configurado por quaisquer atos de natureza sexual que tenha por objetivo satisfazer a libido do agente, portanto, a lei abrange condutas cometidas contra ambos os sexos. Destaca-se que a doutrina aduz que para a configuração do delito não é necessário o contato físico, a exemplo do indivíduo que se masturba em frente à vítima ou a força a fazêlo. Neste sentido, fala-se do chamado estupro virtual. Veja-se: Poderá ocorrer, inclusive, a hipótese do chamado estupro virtual, ou à distância, em que, por exemplo, o agente, por meio de uma webcam, ou mesmo através de programas de telefones celulares, nos quais se pode efetuar chamadas de vídeo, tal como ocorre com o WhatsApp, constrange a vítima, mediante grave ameaça, a praticar, nela própria, atos libidinosos, forçando-a a se masturbar. (GRECO, 2023, p. 43) Em que pese o dispositivo diga respeito a quaisquer atos de natureza sexual, o beijo lascivo não é compreendido como tal. Referida conduta é abrangida pelo artigo 215-A, tratando-se de uma importunação sexual, o qual aduz: “Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro (...)”. De outro modo, o artigo 217-A diz respeito ao estupro de vulnerável que estabelece que, mesmo havendo o consentimento do indivíduo, em razão de sua idade ou deficiência ou enfermidade, não tenha o necessário discernimento, ou por outra causa não consiga oferecer resistência: “Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. (...) § 1 Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém o que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”. 137 2. Identificando a Violência Sexual O profissional da educação necessita apenas identificar, acolher e encaminhar os relatos, enquanto as medidas legais necessárias serão diligenciadas pela autoridade competente. Os sinais mais comuns são diz respeito ao comportamento e sentimento da criança ou adolescente, a qual pode apresentar mudanças repentinas como tristeza, vergonha excessiva, agressividade, dentre várias outras. Outro aspecto é a vítima que pode passar a ter baixo rendimento ou frequência escolar ou, ainda assiduidade e pontualidades excessivas. Ainda, pode passar a ter repentina de hábito alimentar, uso de álcool e outras substâncias entorpecentes, abandono do comportamento infantil e de laços afetivos, isolamento e dificuldade de manter relacionamentos sociais. Para mais, podem manifestar interesse ou conhecimentos súbitos acerca da sexualidade. Outro ponto importante a ser levando em conta, são crianças e adolescentes que surjam com objetos pessoais, brinquedos, dinheiro e outros bens que eventualmente estejam além de suas possibilidades financeiras, destacando que a criação de vínculos com os alunos é um meio que pode facilitar a observação acerca de seus comportamentos. Constatou-se que os educadores são um instrumento importante no combate ao abuso sexual infantil. A criança quando abusada, apresenta características próprias e por meio de suas observações e registros em sala de aula, o professor pode identificar se o aluno está sendo vítima de violência/abuso sexual. (FELÍCIO, JESUS e LIMA, 2017, p. 20) O principal ponto a ser destacado é que a revelação deve ser sempre espontânea, melhor dizendo, a interação com a suposta vítima nunca poderá força-la ou constrangê-la a partilhar os fatos. Tal conduta visa evitar qualquer mal-estar ou embaraço que possa afastála, quebrando a relação de confiança até então construída. Assim sendo, Luiza Stelle Lichares da Rocha e Cleide Lavoratti (2022, p. 14), aponta a postura a ser adotada para não quebrar o vínculo estabelecido: Acolha a criança, não demonstre espanto ou falas assustadas, não duvide do que está sendo relatado, não faça nenhuma pergunta, apenas deixe o Fato ser contado de forma livre, mesmo que não contenha todas as informações; haverá outros momentos em que serão realizadas perguntas sobre o acontecido. Agradeça a confiança e mostre que ela não está sozinha e que não tem culpa. Com cuidado transcreva o relato, como a criança falou. Não entre imediatamente em contato com os pais para averiguar a veracidade do ocorrido, não exponha o acontecido para mais pessoas, preservando assim a sua identidade. Caso tenha ocorrido na escola e seja pata o professor, merendeira, zeladora ou outro profissional, aquele que ouve o relato deve procurar a diretora, sem alardes, para que seja realizado o procedimento para a denúncia. 138 A maior preocupação, no entanto, consiste no acolhimento da vítima, isto é, sem incorrência de dano quando do colhimento de seu depoimento, situação conhecida como revitimização, que se dá quanto instituições públicas responsáveis pela investigação relacionado ao crime a expõe por meio de constrangimentos. A revitimização ocorre quando a vítima é submetida a processos que levam a reviver a violência ou agressão sofrida. Pode ocorrer, entre outras situações, durante um depoimento na delegacia, na repetição do ato que sofreu diante de órgãos de proteção, diante do juiz ou até mesmo diante da família, que em muitos casos faz com que a criança repita por várias vezes o relato do abuso sofrido, esperando que ela confirme ou negue o que acabara de afirmar. (SILVA, 2016, p. 16) É nesse contexto que surge a Lei nº 13.431/17, estabelecendo um sistema de garantia de direitos da criança e adolescente vítima ou testemunha de violência, dentre elas, a violência sexual, dispondo que se deve respeitar a vontade da vítima, garantindo-lhe o pleno direito de expressar seus desejos e opiniões, inclusive a de permanecer em silêncio se assim o desejar. 3. Considerações Finais Conclui-se que capacitação específica do educador é fundamental para o enfrentamento dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, haja vista que é na escola que a vítima constrói laços de afeto que vão para além de seu ambiente familiar, ressaltando que, muito embora tais violências não possam ser resolvidas dentro do ambiente escolar, diga-se, competem ao Conselho Tutelar, Delegacias de Polícia ou Ministério Público, ou ainda o Disque 100, é por meio do olhar adequado do profissional que tais abusos sairão do anonimato. Referências Bibliográficas BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848/40. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 20 jul. 2023. ______. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Lei nº 13.431/17. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm. Acesso em: 20 jul. 2023. ______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069/1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 20 jul. 2023. AZAMBUJA, M.R.F.; FERREIRA, M. H M. Violência sexual contra crianças e adolescentes. Grupo A, 2010. E-book. ISBN 9788536324869. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788536324869/. Acesso em: 14 ago. 2023. 139 FDLÍCIO, A.G.; JESUS, K.V.; LIMA, S.P. O Papel Da Escola No Enfrentamento Da Violência Sexual Infantil. Faculdade Doctum de Pedagogia da Serra, 2017. Disponível em: /https://dspace.doctum.edu.br/bitstream/123456789/1371/1/O%20PAPEL%20DA% 20ESCOLA%20NO%20ENFRENTAMENTO%20DA%20VIOL%C3%8ANCIA%20SE XUAL%20INFANTIL.pdf. Acesso em: 14 ago. 2023. GRECO, R. Curso de Direito Penal: artigos 213 a 361 do código penal. v.3. Grupo GEN, 2023. ROCHA, L.S.L. LAVORATTI, C. Revelação Espontânea: orientações para a não revitimização de crianças e adolescentes. UEPG-PROEX. Ponta Grossa, 2022. Disponível em: https://www.apucarana.pr.gov.br/site/educadores-discutem-o-acolhimento-dasrevelacoes-espontaneas-de-criancas-e-adolescentes-sobre-crimes-sexuais/.Acesso em: 14 ago. 2023. SILVA, J.A. O processo de revitimização de crianças que vivenciam a violência sexual. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 15 – n. 47, p. 11-52 – jan./jun. 2016. Disponível em: https://escola.mpu.mp.br/publicacoes/boletim-cientifico/edicoes-do-boletim/boletimcientifico-n-47-janeiro-junho-2016. Acesso em: 20 jul. 2023. 140 O Controle Preventivo de Convencionalidade no Legislativo Brasileiro: uma Análise de sua (IN)Aplicação na Reforma Trabalhista de 2017 The Preventive Conventionality Control in Brazilian Legislature: an Analysis of Its (Non) Application in the 2017 Labor Reform Daniel Cavalcanti Magalhães 1 Thiago Oliveira Moreira2 Sumário: 1. Introdução; 2. Aspectos gerais do controle de convencionalidade; 2.1. Controle de convencionalidade interamericano; 2.2 Controle de convencionalidade doméstico; 3. Controle de convencionalidade pelo Poder Legislativo; 4. Controle preventivo de convencionalidade da reforma trabalhista; 4.1 Câmara dos Deputados; 4.2 Senado Federal; 5. Considerações finais; Referências. Resumo: O controle preventivo de convencionalidade, um instrumento crucial para a compatibilidade das leis nacionais com tratados internacionais, é o foco deste estudo aplicado à Reforma Trabalhista brasileira de 2017. Questiona-se, portanto, se o controle preventivo de convencionalidade foi aplicado no processo de criação e de implementação da Reforma Trabalhista de 2017. Este estudo objetiva averiguar se, na reforma trabalhista de 2017, em face da Convenção Americana, foram discutidos em que termos as modificações implementadas atenderiam aos compromissos internacionais que o Brasil pactuou há mais de 30 anos. Metodologicamente, apresenta natureza básica, objetivo descritivo, tipo teórico, abordagem qualitativa, método dedutivo e procedimento técnico bibliográfico e documental. Verifica-se que, embora seja essencial a aplicação do controle de convencionalidade durante a criação e implementação de quaisquer reformas legais significativas, não há evidências claras de que essa prática tenha sido efetivamente aplicada no processo de criação e implementação da Reforma Trabalhista de 2017 no Brasil. Palavras-chave: Controle Preventivo de Convencionalidade; Reforma Trabalhista de 2017; Direitos Trabalhistas; Direito Internacional. Abstract: Preventive control of conventionality, a crucial tool for the compatibility of national laws with international treaties, is the focus of this study applied to the 2017 Brazilian Labor Reform. Thus, it questions whether the preventive control of conventionality was applied in the creation and implementation process of the 2017 Labor Reform. This study aims to ascertain if, in the 2017 labor reform, considering the American Convention, the implemented modifications were discussed in terms that would meet the international commitments that Brazil agreed upon more than 30 years ago. Methodologically, it has a basic nature, descriptive objective, theoretical type, qualitative approach, deductive method, and bibliographic and documental technical procedure. It is verified that, although it is 1 Mestrando em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Anhanguera-Uniderp (UNIDERP). Auditor-Fiscal do Trabalho. Lattes: https://lattes.cnpq.br/2868582703774759. [email protected]. 2 Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do País Basco (UPV/EHU). Mestre em Direito pela UFRN. Doutorando em Direito pela FDUC. Coordenador do PPGD/UFRN. Líder do Grupo de Pesquisa DIDH e as Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Lattes: https://lattes.cnpq.br/8030681636075210. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6010976X. E-mail: [email protected] 141 essential to apply the control of conventionality during the creation and implementation of any significant legal reforms, there is no clear evidence that this practice was effectively applied in the creation and implementation process of the 2017 Labor Reform in Brazil. Keywords: Preventive Control of Conventionality; 2017 Labor Reform; Labor Rights; International Law. 1. Introdução Os direitos trabalhistas representam uma das vertentes mais relevantes da legislação brasileira, protegendo o trabalhador e garantindo a equidade nas relações de trabalho. Nessa conjuntura, a Reforma Trabalhista de 2017 surgiu com o objetivo de modernizar as leis trabalhistas e adaptá-las às novas realidades do mercado de trabalho. Entretanto, sua implementação e aplicação trouxeram à tona diversas discussões sobre a convencionalidade das alterações introduzidas e seu alinhamento com os princípios constitucionais e convenções internacionais. Nesse sentido, o controle preventivo de convencionalidade surge como uma ferramenta para garantir a compatibilidade das leis nacionais com as obrigações internacionais assumidas pelo país. No contexto brasileiro, a observância de tratados internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é imperativa e deve ser levada em consideração na criação e reforma de legislações. Como problemática desta pesquisa, então, questiona-se: o controle preventivo de convencionalidade foi aplicado no processo de criação e de implementação da Reforma Trabalhista de 2017? Socialmente, nota-se que a garantia dos direitos trabalhistas está intrinsecamente ligada à qualidade de vida e à justiça social. Academicamente, percebe-se que esse estudo traz contribuições significativas, ao lançar luz sobre a interface entre a legislação trabalhista, o controle de convencionalidade e os compromissos internacionais de direitos humanos. De modo geral, este estudo objetiva averiguar se, na reforma trabalhista de 2017, em face da Convenção Americana, foram discutidos em que termos as modificações implementadas atenderiam aos compromissos internacionais que o Brasil pactuou há mais de 30 anos. De modo específico, ao seguir a estrutura deste estudo, a qual é dividida em três capítulos, apresentam-se os objetivos específicos, quais sejam: (a) Analisar o conceito e a aplicação do controle de convencionalidade no sistema interamericano e no doméstico; (b) Investigar o papel do Poder Legislativo no exercício desse controle; e (c) Avaliar a aplicação do controle preventivo de convencionalidade na reforma trabalhista de 2017 no contexto da Câmara dos Deputados e do Senado. 142 Metodologicamente, informa-se que esta pesquisa apresenta natureza básica, objetivo descritivo, tipo teórico, abordagem qualitativa, método hipotético-dedutivo e procedimento técnico bibliográfico e documental. A partir dessa perspectiva, busca-se desenvolver uma análise da legislação, das práticas parlamentares e dos tratados internacionais pertinentes. Ademais, no que se refere ao procedimento documental, foi desenvolvido nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a partir da busca de pareceres quanto à reforma trabalhista de 2017 a partir dos seguintes termos: “controle de convencionalidade”, “convenção americana”, “protocolo de San Salvador”, “direitos humanos” e “tratados internacionais”. Ao fim, espera-se trazer uma contribuição para a compreensão do controle preventivo de convencionalidade na legislação brasileira, particularmente no que tange à reforma trabalhista de 2017. Além disso, almeja-se estimular debates acadêmicos e políticos sobre a necessidade de um maior alinhamento das reformas legislativas com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. 2. Aspectos Gerais do Controle de Convencionalidade Inicialmente, aborda-se o controle de convencionalidade interamericano, discutindo sua evolução, relevância e mecanismos de implementação dentro do sistema interamericano de direitos humanos. Posteriormente, apresenta-se o controle de convencionalidade doméstico, analisando como esse princípio é aplicado no âmbito interno, com destaque para o cenário brasileiro. Ao longo deste percurso, busca-se evidenciar as sinergias e tensões existentes entre essas duas dimensões do controle de convencionalidade. 2.1. Controle de Convencionalidade Interamericano O controle de convencionalidade é um conceito jurídico que se tornou especialmente relevante nas jurisdições de direito internacional na América Latina. Contudo, é importante ressaltar que suas raízes históricas remontam à iniciativa do Conselho Constitucional francês, conforme exposto na Decisão n. 74-54 DC, de 15.1.19753.. Embora nesta ocasião o tribunal não tenha efetivamente julgado a legalidade de uma lei em face de um compromisso internacional, optando por controlar apenas a constitucionalidade, tal decisão semeou a possibilidade de tal controle ser efetivamente exercido. 3 BORGES, T.A. O controle de convencionalidade das convenções da OIT como meio de impulsionar o trabalho decente. In: FARIAS, James Magno Araújo (Org.). Trabalho e humanidade: homenagem ao centenário da OIT e aos 10 anos da Escola Judicial do TRT da 16ª Região. São Paulo: LTr, 2019. p. 172. 143 De acordo com Valerio Mazzuoli, essa aferição de convencionalidade é sobretudo o cotejamento da técnica judicial, seja ela internacional ou interna, da compatibilidade vertical das leis com os referidos preceitos internacionais4. Em outras palavras, o controle de convencionalidade se refere à avaliação da compatibilidade vertical material das normas de direito interno com as convenções internacionais de direitos humanos já internalizadas em determinado estado5. No contexto interamericano, o controle de convencionalidade tem uma importância fundamental. Os Estados signatários da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San José) têm a obrigação de garantir que suas leis internas estejam em conformidade com as obrigações estabelecidas neste tratado. Isso implica que, ao se deparar com uma lei nacional que contradiga o disposto na Convenção, os juízes nacionais devem optar pela aplicação da norma convencional em detrimento da norma interna, respeitando assim o princípio da prevalência do direito internacional sobre o direito interno6. A partir de 2006, então, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passou largamente a exercer tal controle7. O marco dessa mudança foi a decisão no caso AlmonacidArellano e outros vs. Chile em que a Corte Interamericana afirmou que todos os órgãos estatais, incluindo juízes e legisladores, têm a obrigação de exercer o controle de convencionalidade ex officio, ou seja, por iniciativa própria, sem necessidade de que as partes solicitem expressamente essa análise8. Nesse sentido, portanto, tem-se que o controle de convencionalidade interamericano é exercido pelo Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH), cuja estrutura inclui a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta última tem 4 MAZZUOLI, V.O. O controle jurisdicional de convencionalidade das leis. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 131. 5 “Realmente, cabe aos Estados, primeiramente, promover e proteger em seu âmbito interno, os direitos humanos e, caso os Estados não se desincumbam plenamente desse ônus, caberá aos órgãos dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos garantir o respeito aos direitos consagrados nos tratados internacionais”. RESENDE, Augusto. A Executividade das Sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. Revista de direito internacional, Brasília, v. 10, n. 2, p. 226-236, out. 2013. p. 224. 6 LOPES, A.M.A; CHEHAB, I.C.V.Bloco de constitucionalidade e controle de convencionalidade: reforçando a proteção dos direitos humanos no Brasil. Revista Brasileira de Direito, v. 12, n. 2, p. 82-94, 2016. p. 86. 7 SANTOS, R.V.A.; MOREIRA, T.O.; DUARTE NETO, B.H. Controle de convencionalidade da reforma trabalhista pelos magistrados de 1º grau do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª região. Inter: Revista de Direito Internacional e Direitos Humanos da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 96-125, 2021. p. 100. 8 “Existe así una plena armonía entre el derecho convencional vigente en Chile en materia de derechos humanos y la Carta fundamental agregando que en tal sentido las leyes valen en la medida que se respeten y se garanticen los derechos humanos, por lo que concluye que los delitos de secuestrodesaparición que constituyen violaciones graves de la Convención de Ginebra no son sujetos a amnistía según el ordenamiento interno chileno”. CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arrellano y otros vs. Chile. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Disponível em: https://t.ly/Lea5. Acesso em: 18 jun. 2023. 144 a autoridade para emitir decisões vinculantes e de monitorar sua implementação pelos Estados membros9. 2.2. Controle de Convencionalidade Doméstico O controle de convencionalidade doméstico10, também conhecido como controle interno de convencionalidade, é um mecanismo de análise que busca assegurar a conformidade das normas de direito interno com as obrigações internacionais assumidas pelo Estado, especialmente no que tange aos direitos humanos11. De fato, é exercido pelos órgãos nacionais, especialmente pelo Poder Judiciário, mas também pelo Legislativo na criação de leis. Esse controle envolve a verificação de que as leis e atos normativos internos estejam em conformidade com as obrigações internacionais assumidas pelo Estado 12. Em países como o Brasil, a Constituição Federal estabelece que os tratados internacionais de direitos humanos têm status equivalente ao das normas constitucionais, reforçando a necessidade desse controle. No Brasil, esse controle assume uma importância crucial, dada a posição dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, § 2º, reconhece que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Isso significa que o Brasil, ao ratificar um tratado internacional de direitos humanos, incorpora esses preceitos no mais alto grau de seu ordenamento jurídico13. O controle de convencionalidade doméstico, nesse sentido, é exercido por todas as autoridades públicas, e, em especial, pelos operadores do Direito, como os juízes, promotores e defensores públicos. Eles têm o dever de verificar se as normas de direito interno estão em conformidade com as convenções internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil. Caso uma norma interna se revele incompatível com um tratado GARNICA SIMINI, D; BLANES SALA, J. O controle de convencionalidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 11, n. 2, p. 364-382, ago. 2021. p. 366. 10 Para um estudo do tema, vide: GUERRA, Sidney; MOREIRA, Thiago Oliveira. Contornos Atuais do Controle de Convencionalidade Doméstico. In: GONÇALVES, Rubén Miranda; VEIGA, Fábio da Silva. Los Desafios Jurídicos a La Gobernança Global: uma perspectiva para los próximos siglos. Brasília-DF: Advocacia-Geral da União, 2017. 11 MOREIRA, T.O. A abertura do estado ao direito internacional e a jurisdição cooperativa: uma análise a partir do pensamento de Peter Häberle. In: MENEZES, W. (Org.). Direito Internacional em expansão. Anais do XIV Congresso de Direito Internacional. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016. v. 8. p. 40-59. 12 TORELLY, M. Controle de Convencionalidade: constitucionalismo regional dos direitos humanos? Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 321-353, 2017. p. 334. 13 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 jul. 2023. 9 145 internacional, deverá ser afastada em favor do tratado, evitando, assim, violações de direitos humanos14. Em relação ao controle de convencionalidade preventivo e a posteriori, eles correspondem a momentos diferentes do processo legislativo. O controle preventivo ocorre antes ou durante o processo de elaboração de uma lei, com o objetivo de evitar que normas contrárias aos compromissos internacionais sejam aprovadas. Esse controle é geralmente exercido pelo Poder Legislativo, embora o Executivo e até mesmo o Judiciário possam ter um papel em alguns contextos15. Tal controle, no entanto, pode ser preventivo ou a posteriori. Porém, o mais comum é que ele seja feito a partir deste, por meio dos tribunais nacionais ou internacionais que aquilatam o respeito e a simetria das novas normas em relação às normas anteriormente pactuadas. Aferir a convencionalidade de determinada lei é bastante semelhante a aferir a constitucionalidade dessa mesma lei16, portanto, as metodologias de aferição são similares e de pronto emprego para qualquer intérprete que se proponha a verificar tal compatibilidade17. O controle de convencionalidade, seja preventivo ou a posteriori, não é à toa. No Brasil, ele existe porque as normas internacionais que tratam de direitos humanos podem ter dois status quando internalizadas no país: status supralegal ou status constitucional. Inicialmente, as normas serão supralegais, localizadas topograficamente acima da legislação infraconstitucional apenas pelo fato de abordarem temas de direitos humanos. No entanto, caso essas normas sejam submetidas ao rito de votação das emendas constitucionais, elas adquirem status constitucional. O fundamento da supralegalidade dessas normas decorre do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 466.343/SP em 2008 18. Pelo referido julgamento, as normas de direitos humanos que seguirem o rito do art. 5º § 3º da CRFB/88 terão status constitucional. Por outro lado, como já mencionado, as mesmas normas de direitos humanos que não seguirem esse trâmite terão status supralegal em relação à legislação ordinária. GUERRA, S. Controle de convencionalidade. Revista Jurídica, v. 1, n. 46, p. 1-21, 2017. p. 8. CEZARIO, P.F.S. Controle internacional de convencionalidade no caso “Fazenda Brasil Verde”: enaltecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo como forma de combater o racismo estrutural. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 86, n. 3, p. 131-147, jul./set. 2020. p. 137. 16 Para um estudo do tema, vide: MARTINS, Leonardo; MOREIRA, Thiago Oliveira. Constitucionalidade e Convencionalidade de Atos do Poder Público: concorrência ou obediência? Uma contribuição em face da situação jurídico-constitucional brasileira. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, Montevideo, n. XVII, p. 463-483, 2017. 17 PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional internacional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 179. 18 STF. Supremo Tribunal Federal. RE 466.343/SP. Tribunal Pleno, 22.11.2006. Disponível em: https://t.ly/LDbL. Acesso em: 26 jul. 2023. 14 15 146 Nesse sentido, novas normas internas de um país que abordem direitos humanos devem ser submetidas a um trâmite mínimo de: a) análise de congruência entre a norma interna e a externa e b) análise de compatibilidade, para verificar se, em face dos tratados internacionais pactuados por aquele Estado, é possível uma harmonização ou ajuste que torne ambos os comandos compatíveis entre si. Esse trâmite serviria minimamente para evitar que normas que desrespeitem tratados internacionais sejam aprovadas e entrem em vigor em franco descumprimento aos compromissos previamente firmados. Considerando o trâmite de uma matéria de direitos humanos no legislativo, uma vez que pode existir frente a essa norma um preceito prévio que garante sua higidez face a modificações posteriores que não a considerem, é essencial verificar previamente essa compatibilidade, daí surge a necessidade de um controle preventivo de convencionalidade. Portanto, pode-se considerar que as duas vertentes do controle de convencionalidade, interamericana e doméstica, e as duas modalidades, preventiva e a posteriori, estão inter-relacionadas e se complementam na proteção dos direitos humanos e no cumprimento das obrigações internacionais assumidas pelos Estados. Ainda assim, é crucial entender a função e o papel específico de cada instância nesse processo. Nesse contexto, o papel do Poder Legislativo se destaca, uma vez que possui uma função significativa na realização do controle de convencionalidade. 3. Controle de Convencionalidade pelo Poder Legislativo Como visto, o controle de convencionalidade tem como finalidade verificar a compatibilidade das leis internas de um país com as obrigações internacionais que ele assumiu, em especial as relacionadas aos direitos humanos19. Nessa linha de raciocínio, verifica-se que o Poder Legislativo desempenha um papel crucial nesse controle. Em primeiro lugar, é o responsável pela aprovação dos tratados e convenções internacionais a serem incorporados no ordenamento jurídico interno. O processo de ratificação de um tratado ou convenção internacional envolve a análise minuciosa pelo Poder Legislativo, garantindo assim que o texto esteja alinhado com as normas e princípios constitucionais. Assim, o Poder Legislativo atua preventivamente, MAZZUOLI, V.O. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista direito e justiça: reflexões sociojurídicas, v. 9, n. 12, p. 235-276, mar. 2009. p. 259. 19 147 impedindo a incorporação de tratados ou convenções que sejam incongruentes com a Constituição e demais leis internas20. Nesse sentido, o Poder Legislativo, inclusive, possui a capacidade de exercer o controle em análise de maneira tanto preventiva quanto corretiva. De forma preventiva, o Legislativo pode decidir não validar leis que não estejam em conformidade, anular aquelas que contrariem o Pacto de São José da Costa Rica e elaborar leis que buscam garantir os direitos estabelecidos nesse mesmo pacto21. Além disso, o Poder Legislativo também desempenha um papel reativo no controle de convencionalidade. Isso ocorre quando, após a incorporação de um tratado ou convenção, surgem dúvidas ou controvérsias quanto à sua compatibilidade com o direito interno. Nessas situações, o Poder Legislativo pode tomar a iniciativa de revisar a legislação questionada e, se necessário, alterá-la para garantir a conformidade com as obrigações internacionais. Este é um processo complexo, que requer não apenas a compreensão dos princípios e normas internacionais, mas também a capacidade de equilibrar essas obrigações com as exigências e prioridades internas22. Adicionalmente, pode-se considerar que o Poder Legislativo tem a função de monitorar a implementação das decisões dos órgãos internacionais, como a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esse monitoramento pode incluir a criação de comissões parlamentares para supervisionar a aplicação das decisões, a realização de audiências públicas para debater a questão com a sociedade civil e a aprovação de medidas legislativas necessárias para implementar as recomendações internacionais. Portanto, o papel do Poder Legislativo no controle de convencionalidade é multifacetado, envolvendo não apenas a criação e revisão de leis, mas também a supervisão da implementação das obrigações internacionais do Estado. Este papel é fundamental para garantir que o país cumpra seus compromissos internacionais, em especial no campo dos direitos humanos, e que as normas internacionais sejam devidamente incorporadas e respeitadas no âmbito interno, especificamente no contexto da reforma trabalhista de 2017, como é tratado a seguir. 4. Controle Preventivo de Convencionalidade da Reforma Trabalhista ALVES, M.S. et al. O Controle de Convencionalidade dos Tratados Internacionais. Ideias & Inovação, Aracaju, v. 1, n. 2, p. 65-71, maio 2012. p. 69. 21 MOREIRA, T.O. A aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos pela jurisdição brasileira. Natal, RN: EDUFRN, 2015. p. 253. 22 MAZZUOLI, V.O. O controle jurisdicional de convencionalidade das leis. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. Passim. 20 148 O controle preventivo de convencionalidade da reforma trabalhista de 2017 se apresenta como um instrumento fundamental para garantir a conformidade da normativa interna com as obrigações internacionais do Estado. Assim, neste tópico, será conduzida uma descrição sobre o papel desempenhado por duas importantes instituições no processo de implementação e de controle preventivo de convencionalidade: a Câmara dos Deputados e o Senado. 4.1. Câmara dos Deputados Examina-se o trâmite legislativo da Lei n. 13.647/2017 na Câmara dos Deputados, especificamente por meio de uma análise textual dos pareceres dos deputados-relatores. O objetivo principal é investigar a presença e o uso de termos relacionados a direitos humanos e tratados internacionais, a saber “controle de convencionalidade”, “convenção americana”, “protocolo de San Salvador”, “direitos humanos” e “tratados internacionais”. A abordagem permite não apenas entender o papel destes conceitos no debate legislativo, mas também avaliar o grau de alinhamento da reforma trabalhista de 2017 com os padrões e obrigações internacionais. O Projeto de Lei n. 6.787 de 2016, que resultou na Lei n. 13.647/2017, foi objeto de parecer favorável emitido pelo relator na Comissão Especial da Reforma Trabalhista 23. A designação de uma comissão especial para o trâmite do projeto, conforme estabelece o art. 34 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, evidencia a complexidade e relevância do tema tratado24. Entretanto, em análise ao parecer do relator, deputado Rogério Marinho, revela-se a ausência de um juízo de convencionalidade. Não foram encontradas menções a qualquer dos termos-chave da pesquisa, nem a referências ao direito internacional. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é mencionada apenas em referência a audiências públicas realizadas pela Comissão Especial25. CÂMARA dos Deputados. Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Disponível em: https://t.ly/ZMXsn. Acesso em: 27 jul. 2023. 24 Art. 34. As Comissões Especiais serão constituídas para dar parecer sobre: [...] II - proposições que versarem matéria de competência de mais de 4 (quatro) Comissões que devam pronunciar-se quanto ao mérito, por iniciativa do Presidente da Câmara, ou a requerimento de Líder ou de Presidente de Comissão interessada. (Inciso com redação dada pela Resolução nº 1, de 2023). CÂMARA dos Deputados. Resolução n. 17, de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados. Acesso em: 27 jul. 2023. 25 CÂMARA dos Deputados. Parecer do Relator – Deputado Rogério Marinho no Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. 2017. Disponível em https://t.ly/FvX5E. Acesso em: 27 jul. 2023. 23 149 A urgência atribuída ao trâmite legislativo pode ter limitado a profundidade da análise e o escopo do debate. Essa observação, aliada à falta de referência aos instrumentos internacionais relevantes, levanta questões sobre a legalidade e a legitimidade do processo. Outro ponto importante é a existência de votos em separado, como o do Partido dos Trabalhadores26 e do deputado Assis Melo27, que destacam a possível violação de normas e tratados internacionais de direitos humanos e trabalhistas por parte do projeto de lei. Esses votos destacam a necessidade de uma análise mais abrangente e cuidadosa da legislação proposta, para garantir a conformidade com os compromissos internacionais do Brasil. No entanto, essas críticas parecem não ter sido devidamente consideradas no processo legislativo, o que realça ainda mais a necessidade de um controle de convencionalidade mais efetivo e sistemático no processo de formação da legislação trabalhista brasileira. 4.2. Senado Federal A tramitação da Lei n. 13.647/2017, denominada no Senado como Projeto de Lei da Câmara n. 38 de 2017, passou por um processo de avaliação em várias comissões: Constituição, Justiça e Cidadania, Assuntos Sociais e Assuntos Econômicos. Cada uma dessas comissões gerou um parecer sobre o projeto, analisando diversos aspectos relacionados à sua legalidade e impacto potencial. Para avaliar a consideração das normas internacionais durante a tramitação do projeto, foi realizada uma pesquisa nos pareceres dos senadores-relatores, à semelhança do que foi feito para a Câmara dos Deputados. A pesquisa buscou menções a termos como “controle de convencionalidade”, “convenção americana”, “protocolo de san salvador”, “direitos humanos” e “tratados internacionais”. No entanto, observou-se que o parecer do Senador Romero Jucá, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, não incluiu quaisquer referências aos termos pesquisados. O texto do senador se concentrou na constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade da matéria, sem abordar sua convencionalidade28. O Partido dos Trabalhadores emitiu voto em separado no qual foi ressaltado que a proposta “ofende Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que instituem parâmetros relacionados à dignidade das relações de trabalho, incorporadas ao ordenamento pátrio regularmente”. CÂMARA dos Deputados. Parecer da bancada do Partido dos Trabalhadores no Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. 2017. Disponível em: https://t.ly/ZMXsn. Acesso em: 27 jul. 2023. 27 “Portanto, a flexibilização da legislação trabalhista proposta pelo substitutivo apresentado à Comissão Especial, além de contrariar os dispositivos constitucionais e normas e tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e direitos trabalhistas ratificados pelo Brasil, o PL 6787/2016 tem o propósito de fragilizar e precarizar as relações de trabalho”. CÂMARA dos Deputados. Parecer do Deputado Assis Melo no Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. 2017. Disponível em: https://t.ly/00aq. Acesso em: 27 jul. 2023. 28 SENADO Federal. Parecer Senador Romero Jucá no PLC 38/2017. Disponível em https://shorturl.at/syzJ2. Acesso em: 27 jul. 2023. 26 150 A Senadora Marta Suplicy, relatora da Comissão de Assuntos Sociais, mencionou que as reformas trabalhistas realizadas em outros países não produziram os benefícios esperados e, em vez disso, “minaram direitos trabalhistas e outros direitos sociais consagrados no direito internacional e nacional”29. Essa observação indica uma consideração das normas internacionais, mas não de uma maneira sistemática ou detalhada 30. Já o parecer do Senador Ricardo Ferraço, da Comissão de Assuntos Econômicos, não abordou qualquer dos termos propostos na pesquisa. Faltou qualquer indicação de que a proposta tenha sido discutida em relação aos tratados internacionais de direitos trabalhistas ratificados pelo Brasil31. Desta forma, chega-se à conclusão de que, assim como na Câmara dos Deputados, o Senado Federal não realizou um efetivo controle de convencionalidade. A despeito de ser uma matéria de ordem pública32, a convencionalidade não é uma opção, mas uma obrigação para aqueles que lidam com normas que produzirão efeitos concretos ou alterarão outras normas já em vigor. Este papel também deveria ser desempenhado pelo Senado enquanto casa revisora. Infelizmente, essa função parece não ter sido devidamente cumprida. Mais ainda, percebe-se que o processo legislativo brasileiro parece negligenciar a relevância dos tratados internacionais no contexto da legislação trabalhista. Essa ausência de consideração não apenas desrespeita as obrigações internacionais do Brasil, mas também pode resultar em normas que não refletem os valores fundamentais de direitos humanos e dignidade do trabalhador, que são centrais para os tratados internacionais de trabalho. Nesse sentido, é crucial que o controle de convencionalidade seja integrado de maneira mais efetiva e sistemática nas práticas legislativas brasileiras, a fim de garantir que a legislação nacional esteja em conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. 5. Considerações Finais Os direitos do trabalhador estão entre os mais importantes aspectos da lei brasileira, fornecendo proteção aos empregados e assegurando uma distribuição justa de direitos e deveres nas relações de trabalho. A reforma trabalhista de 2017 foi introduzida como uma SENADO Federal. Parecer Senadora Marta Suplicy no PLC 38/2017. Disponível em https://shorturl.at/swAJS. Acesso em: 27 jul. 2023. 30 SENADO Federal. Parecer Senadora Marta Suplicy no PLC 38/2017. Disponível em https://shorturl.at/swAJS. Acesso em: 27 jul. 2023. 31 SENADO Federal. Parecer Senador Ricardo Ferraço no PLC 38/2017. Disponível em https://t.ly/gM1Gj. Acesso em: 27 jul. 2023. 32 CASTRO, L.S.; GOMES; A.V.M; GOMES; SL.P. A possibilidade da utilização do recurso de revista no caso de violação de convenções da OIT. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 86, n. 4, p. 169185, out./dez. 2020. p. 172. 29 151 maneira de atualizar as normas trabalhistas existentes para refletir as mudanças na dinâmica do mercado de trabalho. No entanto, sua instauração gerou ampla controvérsia quanto à convencionalidade das mudanças propostas e sua conformidade com os preceitos constitucionais e acordos internacionais. Dessa forma, o controle preventivo de convencionalidade desponta como um mecanismo para assegurar que as legislações nacionais estão em sintonia com os compromissos internacionais que o país assumiu. No cenário brasileiro, a adesão a tratados internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é obrigatória e deve ser refletida na formulação e reformulação das leis. Nesse sentido, para responder à questão de pesquisa, este estudo divide-se em três capítulos, responsáveis por nortear a discussão, os quais tratam (a) dos aspectos gerais do controle de convencionalidade, em âmbito interamericano e em âmbito doméstico; (b) do controle de convencionalidade pelo Poder Legislativo e (c) do controle preventivo de convencionalidade da reforma trabalhista de 2017. Em primeiro lugar, tem-se que o controle de convencionalidade é uma doutrina legal que se refere à verificação da conformidade entre as leis nacionais e as obrigações internacionais de um Estado, especificamente aquelas advindas de tratados internacionais. Esse processo de avaliação é de vital importância para garantir que a legislação interna de um país esteja em sincronia com suas obrigações internacionais. De fato, qualquer lei interna que não esteja em conformidade com um tratado internacional ao qual o país é signatário pode ser declarada inconstitucional ou invalidada. Em segundo lugar, salienta-se que, no contexto do poder legislativo, o controle de convencionalidade desempenha um papel crucial. A responsabilidade do poder legislativo é criar leis que estejam em conformidade com as obrigações internacionais do país. Ao criar uma legislação, o poder legislativo deve garantir que esta não contradiga nenhuma convenção internacional que o país tenha ratificado. Além disso, o poder legislativo pode ter a tarefa de revisar as leis existentes para garantir sua conformidade com os tratados internacionais. Em terceiro lugar, reitera-se que o controle preventivo de convencionalidade na reforma trabalhista se refere à necessidade de garantir que as alterações propostas na legislação trabalhista estejam em conformidade com os tratados internacionais relacionados aos direitos dos trabalhadores. Antes de implementar qualquer reforma trabalhista, é necessário um exame cuidadoso para garantir que as mudanças propostas não violem as obrigações internacionais do país. Isso ajuda a prevenir potenciais conflitos legais e a garantir que os direitos dos trabalhadores sejam devidamente protegidos. 152 Nessa perspectiva de análise, para responder a problemática, portanto, verifica-se que, embora seja essencial a aplicação do controle de convencionalidade durante a criação e implementação de quaisquer reformas legais significativas, não há evidências claras de que essa prática tenha sido efetivamente aplicada no processo de criação e implementação da Reforma Trabalhista de 2017 no Brasil. Esta reforma, consolidada pela Lei n. 13.467, foi alvo de críticas e questionamentos quanto à sua compatibilidade com as convenções internacionais de direitos do trabalho ratificadas pelo Brasil. Essa situação indica que o controle preventivo de convencionalidade, enquanto mecanismo que deveria garantir a aderência à normativa internacional, não foi completamente empregado ou, ao menos, não foi suficientemente eficaz para impedir as controvérsias surgidas em torno da reforma. Referências ALVES, M.S. et al. O Controle de Convencionalidade dos Tratados Internacionais. Ideias & Inovação, Aracaju, v. 1, n. 2, p. 65-71, maio 2012. BORGES, T.A. O controle de convencionalidade das convenções da OIT como meio de impulsionar o trabalho decente. In: FARIAS, James Magno Araújo (Org.). Trabalho e humanidade: homenagem ao centenário da OIT e aos 10 anos da Escola Judicial do TRT da 16ª Região. São Paulo: LTr, 2019. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26 jul. 2023. CÂMARA dos Deputados. Parecer da bancada do Partido dos Trabalhadores no Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. 2017. Disponível em: https://t.ly/ZMXsn. Acesso em: 27 jul. 2023. CÂMARA dos Deputados. Parecer do Deputado Assis Melo no Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. 2017. Disponível em: https://t.ly/00aq. Acesso em: 27 jul. 2023. CÂMARA dos Deputados. Parecer do Relator – Deputado Rogério Marinho no Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. 2017. Disponível em https://t.ly/FvX5E. Acesso em: 27 jul. 2023. CÂMARA dos Deputados. Projeto de Lei n. 6.787, de 2016. Altera o Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Disponível em: https://t.ly/ZMXsn. Acesso em: 27 jul. 2023. CÂMARA dos Deputados. Resolução n. 17, de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados. Acesso em: 27 jul. 2023. CASTRO, L.S.; GOMES; A.V.M.; GOMES; S.L.F. A possibilidade da utilização do recurso de revista no caso de violação de convenções da OIT. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 86, n. 4, p. 169-185, out./dez. 2020. p. 172. CEZARIO, P.F.S. Controle internacional de convencionalidade no caso “Fazenda Brasil Verde”: enaltecer o conceito de trabalho escravo contemporâneo como forma de combater 153 o racismo estrutural. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 86, n. 3, p. 131147, jul./set. 2020. p. 137. CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arrellano y otros vs. Chile. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Disponível em: https://t.ly/Lea5. Acesso em: 18 jun. 2023. GARNICA SIMINI, D; BLANES SALA, J. O controle de convencionalidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. 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Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 321-353, 2017. 155 Direitos Humanos e Sociedade de Informação: Perspectivas para a Proteção dos Indivíduos nos Contratos Digitais Human Rights and the Information Society: Perspectives for the Protection of Individuals in Digital Contracts Daniel Marinho Corrêa1 Rita de Cássia Resquetti Tarifa Espolador2 Sumário: 1. Introdução. – 2. Negócio jurídico, situação jurídica e o plano da validade. – 3. Implicações da era digital nos direitos humanos: das contratações digitais à validade jurídica. – 4. Considerações finais. Resumo: Ao longo das últimas décadas, o avanço rápido da ciência da computação tem exercido uma influência marcante nos contextos sociais, políticos e culturais da sociedade contemporânea. Nessa conjuntura, o direito à privacidade, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem evoluído para se adequar à era moderna, sendo atualmente compreendido como proteção de dados pessoais. Vivemos em uma sociedade digitalizada, em que a tecnologia da informação e a comunicação desempenham um papel central. No entanto, essa realidade também traz consigo desafios significativos para a proteção dos direitos humanos, especialmente no que diz respeito à vulnerabilidade dos consumidores no âmbito da validade. Diante desse cenário, surge a questão sobre a aplicabilidade das regras que regem os vícios do consentimento no direito civil brasileiro aos contratos celebrados eletronicamente. Por meio de uma revisão crítica da literatura, são apresentadas reflexões e recomendações para enfrentar esses desafios e promover a efetiva realização dos direitos humanos na sociedade de informação e comunicação, com foco na proteção da privacidade e validade nos contratos eletrônicos. Palavras-chave: Direitos Humanos; Plano da Validade; Contratos Digitais. Abstract: Over the last few decades, the rapid advancement of computer science has had a marked influence on the social, political and cultural contexts of contemporary society. In this context, the right to privacy, enshrined in the Universal Declaration of Human Rights, has evolved to adapt to the modern era, and is currently understood as the protection of personal data. We live in a digitized society, in which information technology and communication play a central role. However, this reality also brings with it significant challenges for the protection of human rights, especially with regard to the vulnerability of consumers in terms of validity. Given this scenario, the question arises about the applicability of the rules that govern the vices of consent in Brazilian civil law to electronically concluded contracts. Through a critical review of the literature, reflections and recommendations are presented to face these challenges and promote the effective realization of human rights in the information and communication society, with a focus on the protection of privacy and validity in electronic contracts. Keywords: Human Rights; Validity Plan; Digital Contracts. Professor universitário, servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mediador judicial. Doutorando e Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] 2 Professora universitária. Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] 1 156 1. Introdução A temática direitos humanos e sociedade da informação e comunicação traz à tona uma diversidade de situações jurídicas contemporâneas que surgem como resultado dos avanços tecnológicos, trazendo desafios significativos para o campo do Direito. Questões como a falta de segurança nas transações e a vulnerabilidade dos consumidores em relação à privacidade e validade exigem uma análise aprofundada. Diante desse contexto, investiga-se a controvérsia em torno da aplicabilidade das normas que regulam os defeitos no consentimento aos contratos celebrados eletronicamente. Atualmente, vivemos em uma era de transformações profundas e rápidas que afetam nossos comportamentos e surgem de todas as esferas da sociedade. No entanto, o Direito tem um ritmo de mudança lento e burocrático, passando por várias etapas legislativas antes de poder regular efetivamente uma situação social e econômica que já está ocorrendo. Quando ocorrem mudanças nos elementos-chave da sociedade, isso influencia a necessidade de atualização do Direito3. Os avanços tecnológicos ocorridos ao longo das décadas têm causado mudanças no cerne da sociedade, afetando a forma como pensamos, agimos e nos relacionamos. Nessa conjuntura de intercâmbio de dados e tecnologias, a internet desempenha um papel econômico-social significativo, impulsionando o avanço do comércio eletrônico, principalmente devido à redução dos processos de distribuição e à superação das fronteiras nacionais. Isso leva ao aumento do volume de transações comerciais devido à rapidez com que os contratos são celebrados. Essa nova forma de interação entre as partes contratantes nos deixa na incerteza sobre se as normas legais tradicionais são totalmente aplicáveis a essa forma de comércio ou se, ao serem aplicáveis, regulam todos os aspectos que devem ser considerados ao lidar com o comércio eletrônico. Diante disso, surge a necessidade de revisar os métodos tradicionais de realizar essas transações diante das mudanças trazidas devido aos efeitos das tecnologias telemáticas e digitais. Ancorada no método dedutivo, a pesquisa visa contribuir para o desenvolvimento de uma compreensão mais clara e abrangente das questões legais relacionadas aos contratos eletrônicos, oferecendo subsídios teóricos e normativos para a tomada de decisões e o EROS GRAU (2008, p. 64), ao examinar a conexão entre o direito estabelecido e o direito presumido, possui uma perspectiva similar. “Assim, o direito pressuposto brota da (na) sociedade, à margem da vontade individual dos homens, mas a prática jurídica modifica as condições que o geram. Em outros termos: o legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direito positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria base. O direito pressuposto condiciona a produção do direito posto (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base. Isso implica – afirmo-o em termos que o direito pressuposto condiciona a elaboração do direito posto (direito positivo), mas este modifica o direito pressuposto”. 3 157 aprimoramento das regulamentações existentes. Ao fazê-lo, busca-se promover maior segurança e confiabilidade nas transações eletrônicas, bem como a proteção dos direitos dos consumidores no contexto da contemporaneidade tecnológica. 2. Negócio Jurídico, Situação Jurídica e o Plano da Validade No que se refere à metodologia, o campo jurídico adotou uma abordagem caracterizada pela estrutura, dentro dos limites da ciência. Modelos estruturais e até mesmo classificações têm sido objeto de estudo no campo jurídico. A estrutura relata a ocorrência de situações ou relações jurídicas através de institutos, que ultrapassam a diferenciação entre jus pública e jus privada, ou noções como "ação e acordo jurídico; categorização das responsabilidades e acordos; definição analítica de transgressão (teorias bipartidas, tripartidas ou quatripartidas); classificação de procedimento administrativo; separação entre Governo, autoridade e direitos e proteções essenciais na Constituição." 4 No campo da teoria jurídica, o estruturalismo é evidenciado no Brasil pelo positivismo de PONTES DE MIRANDA5, por meio da teoria do fato jurídico, e sua divisão tripartida do negócio jurídico. Dessa forma, ao considerar os aspectos dos planos ponteanos6, podemos compreender como o plano de validade afeta os contratos eletrônicos. Cada plano ponteano possui sua relevância e função específica. Por outro lado, é por meio da integração desses planos que se compreende plenamente a funcionalidade do negócio jurídico. O plano da existência é fundamental na teoria ponteana e estabelece a base do negócio jurídico. Assim, é importante não confundir a noção de que apenas os negócios com forma prescrita têm forma, sem perceber que todos os negócios, inclusive os de forma livre, devem ter uma forma, caso contrário, seriam inexistentes7. Um contrato passa pelo plano da existência quando a vontade das partes é afetada pela norma jurídica. Norma que sobrevém ao fato, 4 FERREIRA, K.P. Responsabilidade civil preventiva: função, pressupostos e aplicabilidade. Tese (doutorado em Direito Civil). Universidade do Estado de São Paulo. São Paulo: 2014. 5 PONTES DE MIRANDA, F.C. Tratado de direito privado. t. 4. 3. ed. Rio de Janeiro: Bosch, 1972. 6 É no prefácio do Tratado de direito privado, por exemplo, que PONTES DE MIRANDA (Tratado, cit., p. 319) propõe a divisão do mundo jurídico nos três planos (existência, validade e eficácia), define o fato jurídico e depois a relação jurídica como os conceitos fundamentais do direito, e revela sua maneira de ver a interpretação do direito. Ainda o autor precisou a ideia de serem os fatos jurídicos os elementos essenciais constitutivos da juridicidade, demonstrando que somente deles pode decorrer qualquer eficácia jurídica (direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações, exceções, as sanções e toda a gama de consequências que ocorrem no mundo jurídico); classificou-os segundo critérios científicos, fundados nos elementos essenciais do seu suporte fático conforme descrito hipoteticamente na norma; distinguiu o mundo dos fatos do mundo jurídico, dividindo este último, de forma lógica, em planos da existência, da validade e da eficácia, mostrando, daí, que existir, valer e ser eficaz são três situações distintas em que se pode encontrar os fatos jurídicos; revelou a relação fundamental entre a norma jurídica, que define o mundo jurídico, o fato jurídico, que o compõe, e a eficácia jurídica, que o integra (MELLO, MARCOS BERNARDES DE, A genialidade de Pontes de Miranda. Revista Getúlio: Revista do GVlaw – Programa de Especialização e Educação Continuada, São Paulo, p. 44-48, mar. 2008). 7 AZEVEDO ,A.. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 126. 158 juridicizando-o, caso todos os elementos essenciais que compõem sua fundamentação fática estejam presentes. 8 Na ausência de um desses elementos, o fato é inexistente, como no caso de um contrato entre animais, um contrato sem objeto ou sem sujeito, ou o exemplo clássico de um casamento celebrado por um árbitro de futebol. O segundo plano apresenta o atributo primordial de exame da vontade dos indivíduos. Além disso, pode-se dizer que os contratos são considerados válidos quando as condições legais são cumpridas, conforme estabelecido pelo artigo 104 do Código Civil: capacidade do agente, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, e forma prescrita ou não proibida por lei. A "vontade negocial" deve ser livre de vícios (erro, coação, lesão, dolo e estado de perigo), pois, caso contrário, não pode ser considerada totalmente livre. Se a vontade do agente estava prejudicada devido a qualquer causa capaz de restringir sua liberdade de escolha, o ato estará viciado 9. Portanto, é possível concluir que a ausência de liberdade e discernimento invalida a vontade, tornando o negócio jurídico ineficaz e inadequado para produzir efeitos jurídicos válidos10. Após o estabelecimento dos elementos fáticos e a verificação da validade da declaração de vontade, chega-se ao momento final de todo fato jurídico: a produção de efeitos. Sem essa concretização, o negócio seria completamente inútil no âmbito jurídico. Logo, a eficácia do acordo de vontades ocorre quando ele produz resultados no ordenamento jurídico, alcançando os efeitos desejados pelas partes envolvidas11. Além disso, o legislador tem cada vez mais condicionado a proteção de situações contratuais ou jurídicas a deveres não apenas patrimoniais. Nesse contexto normativo, o contrato deve ser funcionalizado, levando em consideração esses objetivos estabelecidos12. No que diz respeito ao negócio jurídico, é nesse plano que tudo o que é provocado pelos agentes se concretiza, formando as relações intrajurídicas. No entanto, o espectro efetivo vai além disso, abrangendo também as chamadas "situações jurídicas", uma categoria científica que preenche lacunas em casos não abrangidos pela ideia tradicional de relação jurídica. É importante lembrar que o negócio jurídico unilateral da oferta, por exemplo, não cria uma relação legal em si; o que temos é uma situação jurídica vinculante. No entanto, dado que essa categoria vai além da vontade individual, não há necessidade de interferir nesse aspecto, restringindo nossa análise apenas às relações intrajudiciais13. 8 LEAL, S.R.C.S. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via internet. São Paulo: Atlas, 2009, p. 39. DANTAS, S. Programa de direito civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 270. 10 VELOSO, Z. Invalidade do negócio jurídico. 2. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 313. 11 LEAL, S.R.C.S. Contratos. cit., p. 12. 12 GODOY, C.L.B. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 115. 13 Limita-se a expor a significação observada por MARCOS BERNARDES DE MELLO (Teoria do fato jurídico (Plano da Eficácia), cit., p. 79-80): “(a) em sentido lato, [situação jurídica] designa toda e qualquer consequência que se 9 159 As situações jurídicas são determinadas por uma causalidade jurídica resultante de uma valoração jurídica feita pelo indivíduo em resposta à realidade social. Essas situações são respostas fornecidas pelo ordenamento jurídico a diferentes fatos, que são moldados à medida que ocorrem os fatos jurídicos14. O estudo dos fatos, atos e negócios jurídicos é importante porque os contratos são considerados negócios jurídicos por excelência. Os fatos jurídicos são "todos os eventos e acontecimentos que, direta ou indiretamente, têm efeitos jurídicos"15, "os eventos previstos em norma jurídica, que dão origem, modificam, subsistem ou extinguem as relações jurídicas"16, "termo usado para descrever qualquer fato do mundo real que seja abrangido pela norma jurídica"17. No ato jurídico, quando há a intenção das partes na produção de implicações jurídicas, nasce o negócio jurídico. Para doutrina, ele ocorre quando há "a intenção específica da pessoa de gerar efeitos jurídicos ao adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos"18, é uma "norma concreta estabelecida pelas partes"19, é "a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos desejados pelo agente e reconhecidos pelo direito" 20. Dentre esses três planos apresentados, focamos especificamente no consentimento válido, que é um elemento essencial para a validade dos contratos. Esse consentimento deve abranger três perspectivas: concordância em relação ao objeto do contrato, às cláusulas que o compõem e à existência e natureza contratual 21. Portanto, "considera-se que o contrato está formado quando há uma integração entre a declaração de vontade do proponente e a declaração de vontade do aceitante22". Dessa forma, sendo um negócio jurídico, o contrato eletrônico deve passar por todos esses planos sem ser afetado. A doutrina usa a metáfora de uma escada, em que cada plano é um degrau. Ao cumprir todos os requisitos de cada plano, é possível avançar para o próximo degrau, até chegar a um contrato existente, válido e eficaz. produz no mundo jurídico em decorrência de fato jurídico, englobando todas as categorias eficaciais, desde os mínimos efeitos à mais complexa das relações jurídicas; define, portanto, qualquer posição em que se encontre o sujeito de direito no mundo jurídico. (b) em sentido estrito, nomeia, exclusivamente, os casos de eficácia jurídica em que não se concretiza uma relação jurídica, e, mesmo quando esta exista, os direitos subjetivos que dela emanam não implicam ônus e sujeição na posição passiva, porque seus efeitos se limitam a uma só esfera jurídica.” 14 BETTI, E. Teoria geral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 1969, p. 15 ss. 15 VENOSA, S.S. Direito civil: parte geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 313. 16 DINIZ, M.H.Curso de direito civil brasileiro. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 372. 17 AZEVEDO, A.J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 23. 18 VENOSA, S.S. Direito, cit., p. 315. 19 DINIZ, M.H. Curso de direito civil brasileiro. cit., p. 431. 20 AMARAL, F. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 367. 21 GONÇALVES, C.R. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 18. ed. 3 v. São Paulo: SaraivaJur, 2021, p. 230. 22 LEAL, S.R.C.S. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via internet. São Paulo: Atlas, 2009, p. 49. 160 3. Implicações da Era Digital nos Direitos Humanos: das Contratações Digitais à Validade Jurídica A perspectiva de NORBERTO BOBBIO23 e outros estudiosos destaca a natureza histórica dos Direitos Humanos, evidenciando sua constante evolução e adaptação ao longo da história da sociedade ocidental. Essas transformações ganharam destaque na transição do século XX para o XXI, gerando debates sobre a tradicional classificação em três gerações de direitos e levando muitos autores a questionar a possibilidade do surgimento de uma quarta, e até mesmo uma quinta dimensão dos Direitos Humanos. Essas mudanças estão intrinsecamente ligadas ao desenvolvimento do ambiente virtual, definido pela Lei nº 12.965 de 2014, que estabelece o Marco Civil da Internet. Partindo da análise de ANTÔNIO CARLOS WOLKMER24, percebe-se que sua obra teórica sustenta a existência de uma quarta e quinta dimensão histórica dos direitos. A primeira dimensão está relacionada à evolução da engenharia genética e aos novos direitos ligados à bioética, biotecnologia e ao direito à vida. Por sua vez, a segunda faceta aborda o progresso dos direitos derivados da tecnologia da informação, do espaço cibernético e da realidade simulada. Assim, de acordo com o mencionado autor, os direitos emergentes das tecnologias informáticas, do ciberespaço e da realidade virtual representam uma nova dimensão dos direitos fundamentais. A transição do século XX para a nova era milenar marca uma mudança paradigmática da sociedade industrial para a sociedade da era virtual. O impacto significativo do desenvolvimento da cibernética, das redes computacionais, do comércio digital, das potencialidades da inteligência sintética e da disseminação acelerada da rede mundial de computadores apresenta implicações extraordinárias no âmbito jurídico, na sociedade global e nos patrimônios culturais, com potencial de disseminação em massa no ambiente digital. Nesse contexto, é incontestável afirmar que a disseminação da internet e do espaço digital tem provocado transformações na sociedade, na economia e, por consequência, no campo jurídico. O direito à privacidade é um dos conceitos jurídicos que tem passado por modificações e debates em virtude do surgimento dos elementos digitais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, já reconhecia o direito à privacidade em seu texto afirmando que ninguém será objeto de interferências arbitrárias em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de BOBBIO, N.. A Era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho; apresentação de CelsoLafer. - Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 24 WOLKMER, A.C. Direitos humanos: novas dimensões e novas fundamentações. Revista Direito em Debate, Ijuí, n. 16-17, p. 9-32, jan./jun. 2002. 23 161 ataques à sua honra e reputação. Os princípios de privacidade e liberdade têm passado por uma redefinição diante das profundas transformações sociais resultantes da incorporação de novas tecnologias no cotidiano humano e do aumento do uso da internet como meio de comunicação global. Nesse contexto, a chamada "era da informação" caracteriza-se pelo constante compartilhamento de informações, opiniões, discussões e hábitos de consumo em uma realidade altamente dinâmica. Isso implica em um processamento acelerado de dados, que se reflete na criação de mecanismos e ferramentas cada vez mais ágeis e eficazes para coleta e tratamento das informações disseminadas nas redes. Nesse sentindo, a contratação eletrônica tem se tornado cada vez mais comum nos dias de hoje, impulsionada pelo avanço da tecnologia e pela facilidade de realizar transações online. No entanto, surgem questionamentos sobre a validade jurídica desses contratos celebrados por meios eletrônicos. A validade jurídica na contratação eletrônica refere-se à conformidade legal desses contratos, ou seja, se eles atendem aos requisitos estabelecidos pela legislação para serem considerados válidos. A aceitação do princípio da autonomia privada pelo nosso sistema jurídico implica reconhecer que a vontade das partes contratantes é o elemento principal e a fonte determinante do contrato 25. A formação do contrato e a vinculação lógica dos sujeitos, de acordo com o acordo de seus termos, decorrem da justaposição de suas vontades, o que sugere o consenso contratual 26. O acordo implica na apresentação de duas declarações de vontade distintas, provenientes de dois centros de interesse diferentes27. Ao falarmos sobre a declaração de vontade, usamos essa expressão como uma manifestação de vontade que é socialmente reconhecida como direcionada à produção de efeitos jurídicos. Além disso, EMILIO BETTI28 observa que às manifestações da autonomia privada, independentemente da forma como ocorrem, adere, de forma coerente, no plano social, uma valoração do que deve ser, que o Direito não tem motivo para rejeitar, mas que, segundo o autor, pelo contrário, confirma ao fazer seu, por meio da recepção, a substância preceptiva do negócio. A declaração de vontade pode ser feita de várias formas, sendo que o meio eletrônico é uma de suas manifestações. Assim, quando um indivíduo clica em um link na internet, como o botão "comprar" em uma página de um fornecedor, ele expressa sua vontade de adquirir um determinado serviço ou produto. Através da internet, essa vontade é transmitida da máquina virtual do comprador para o computador do fornecedor. 25 LORENZETTI, R.L. Comércio eletrônico. Tradução de Fabiano Menke. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 96 ss. 26 ROPPO, V. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 2009, p. 142. 27 MESSINEO, F. Dottrina generale del contratto. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1948, p. 58. 28 BETTI, E. Teoria. cit., p. 225. 162 Além disso, a verificação da identidade das partes também é um aspecto crucial para a validade de um negócio jurídico. É amplamente conhecido que nos meios eletrônicos é fácil ocultar a verdadeira identidade. No entanto, é essencial em um negócio jurídico saber com quem se está realmente celebrando. O fato é que preencher um determinado formulário para confirmar a própria identidade, utilizando um número específico de cartão de crédito, ou acessando a partir do próprio computador do titular em sua residência, não garante a devida segurança nas relações jurídicas pela internet. Por outro lado, diante da situação em que a declaração eletrônica pode ser feita por alguém que não seja o proprietário da máquina utilizada para essa manifestação, juntamente com nosso contexto jurídico baseado na tradição de atribuir a declaração de vontade a uma pessoa física, é necessário fazer um grande esforço para atribuir autoria a uma manifestação cujo agente não seja prontamente percebido. Logo, aplica-se o preceito de que a declaração será atribuída ao sujeito cujo campo de importância esteja relacionado ao software ou hardware 29. Na ocorrência dos contratos eletrônicos intersistêmicos, que consistir em ser utilizados para otimizar e reduzir os custos operacionais, não existem dificuldades, pois a vontade já foi firmada anteriormente, havendo um contrato prévio para permitir essa interoperação. Nessa categoria, as partes, previamente, utilizando geralmente a estrutura contratual tradicional, adaptam as disposições e os princípios que irão orientar as negociações que serão executadas de forma automática entre elas, por meio de dois sistemas informáticos interligados.30 Esse tipo de contrato eletrônico utiliza o Eletronic Data Interchange (EDI): quando uma empresa se comunica com o sistema de vendas de um fornecedor, por meio do envio de documentos eletrônicos de pedido de compra, almejando à obtenção de um produto, quando todas as organizações da sequência comercial estão conectadas a esse sistema, o caminho de um produto pelo leitor óptico do caixa de um supermercado gera uma ativação eletrônica para o sistema de estoque da sociedade empresária. Esse sistema será programado para, ao atingir um determinado nível, emitir um dispositivo eletrônico para o sistema de aquisições 31. Por outra perspectiva, os acordos eletrônicos interpessoais envolvem o acordo através da transmissão de mensagens de validação da negociação, por correio eletrônico, bate-papo ou outro programa que permita isso. Nessa configuração contratual, o computador não é apenas um meio de comunicação entre os sujeitos, "mas exerce uma LORENZETTI, RS.. Comércio eletrônico. cit., p. 274 ss. GARCIA, F.C.O. Da validade jurídica dos contratos eletrônicos. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 264. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4992/da-validade-juridica-dos-contratos-eletronicos/5. Acesso em: 13 maio. 2023. 31SANTOS, M.J.P.; ROSSI, M.D.. Aspectos legais do comércio eletrônico: contratos de adesão. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, p. 105-129, out./dez., 2004. 29 30 163 função essencial na formação da intenção dos contratantes e na execução do negócio legal". Segundo o autor, a característica principal dessa modalidade é a necessária "interação humana em ambas as extremidades da relação, desde o momento da primeira declaração de vontade até a concretização efetiva do contrato, tudo realizado eletronicamente, por meio de uma rede de computadores na qual as partes estão conectadas.”32 É fundamental destacar também que os contratos digitais interativos operam de forma um tanto distinta, pois envolvem a interação entre um indivíduo e um sistema. Essa é a forma mais usual no comércio online e, consequentemente, nas lojas virtuais, que geralmente consistem em interações na tela para confirmar e concluir a transação realizada 33. Essa é a modalidade mais frequente de contratos digitais, na qual, por um lado, há um indivíduo interessado em formalizar um determinado acordo legal, e, por outro lado, um dispositivo de informática previamente configurado para disponibilizar produtos e/ou serviços a todos os que estiverem acoplados à rede de computadores 34. A vontade é o elemento central do negócio jurídico, e o contrato requer a manifestação de intenções de seus criadores. O acordo voluntário alcançado por meios eletrônicos não introduz um novo conceito jurídico que exija uma regulamentação distinta. O próprio conceito de contrato não é alterado. A diferença reside apenas na forma, que é substancialmente diferente, não sendo física, e pode apresentar riscos para os indivíduos, ocasião em que há interferência da norma. Nesse ponto, surge a questão de saber se as normas que regulam os vícios de consentimento previstos no Código Civil se aplicam ao contrato celebrado eletronicamente 35. Ademais, tende-se a considerar a manifestação de vontade como nula, inexistente ou anulável36. Primeiro, quando contraria disposições de ordem pública. Segundo, quando falta um elemento essencial, como o consentimento. Terceiro, quando ocorre uma comunicação inadequada, imprecisa, ou quando o consentimento é obtido por meio de vícios (erro, dolo e coação). Como mencionado, a contratação eletrônica é caracterizada, entre outras coisas, pelo uso crescente de instrumentos representados virtualmente, por meio de códigos de identificação, o que dificulta uma análise mais precisa, especialmente para os mais vulneráveis digitalmente. Por exemplo, por meio de sua plataforma online (internet banking), uma instituição financeira pode induzir seus consumidores a erro na contratação de empréstimos e serviços. GARCIA, F.C.O. Da validade. cit. p. 112. BARBAGALO, E.B. Contratos eletrônicos: contratos formados por meio de redes de computadores: peculiaridades jurídicas da formação do vínculo. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 51. 34 GARCIA, F.C.O Da validade. cit. p. 112. 35 RODRIGUES, S. Direito civil: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 181 ss. 36 MELLO, M.B. Teoria do fato jurídico (Plano da Validade). São Paulo: Saraiva, 1995, p. 112. 32 33 164 Contudo, se o algoritmo alerta sobre as consequências, meios e modalidades, deixando claro o que está sendo acordado, e mesmo assim o usuário contrata algo que na realidade não desejava, por não ter manuseado e investigado corretamente, não haveria vício de vontade. Outro exemplo ocorre quando uma parte oferece dolosamente um produto na internet que tem uma aparência muito diferente da realidade, induzindo à compra. Se o comprador tivesse visto o produto em seu aspecto real, não teria obtido. Assim, nos vícios de consentimento, há uma discrepância entre a vontade autêntica e a vontade manifestada. De um lado, temos o interesse do emissor da declaração, que está viciada, e do outro lado, há o interesse da outra parte, que a acolheu confiando nela. Desenvolveram-se teorias sobre o assunto, como a teoria da vontade verdadeira, da vontade de responsabilidade, da vontade declarada e da confiança. A primeira teoria sustenta que a vontade interna tem prevalência sobre a vontade manifestada, porquanto não se pode impor efeito a uma declaração desprovida de vontade. Proposta por Savigny37, com uma abordagem subjetiva, acredita-se que deve ser dada maior importância à vontade interna do sujeito. Assim, o negócio jurídico pode ser anulado sempre que a declaração de vontade, de qualquer uma das partes, não corresponder à vontade interna. Essa teoria gera insegurança jurídica, pois facilita muito a anulação dos atos, além de não proteger a boa-fé da parte que recebe a declaração de vontade. A segunda teoria representa uma mitigação da anterior, pois o negócio só tende a anulação quando faltar a correlação entre a vontade interna e a declaração resultar da má-fé de uma das partes. Para anular o negócio, essas partes não podem ter agido com dolo ou culpa. A terceira teoria permite apenas a anulação do negócio jurídico quando a vontade do destinatário da declaração estiver viciada: da pessoa a qual a declaração é dirigida. Em face do declarante, o que interessa é a vontade expressa, não a vontade interior e autêntica. Essa teoria tem como objetivo garantir a segurança das relações jurídicas, resguardando o contratante que depositou confiança no conteúdo da declaração. Se de um lado, as duas teorias antecedentes dão prioridades a vontade interna, permitindo a anulação quando há discordância com a vontade declarada, nesta teoria, a preferência é dada à vontade declarada, e o declarante deve cumprir a obrigação, em vez de anulá-la, devido à confiança depositada pelo destinatário ao celebrar o negócio jurídico. A característica dessa teoria é conectar os efeitos e o abordagem legal das interações em relação aos fatores concretos externos e socialmente reconhecíveis dos atos pelos quais as relações são estabelecidas, em vez de se basear nos elementos de psicologia individual e 37 LEAL, S.R.C.S. Contratos eletrônicos. cit., p. 53. 165 nas atitudes mentais que permanecem no âmbito privado. Dá-se maior importância à vontade objetiva do que à vontade das partes, resultando em uma prevalência dada ao objetivo em face da relação dicotômica: subjetiva e objetiva. O objetivo é proteger os interesses do destinatário da declaração, que confiou no conteúdo objetivo e socialmente percebível dela. De acordo com a quarta teoria, o declarante que expressar uma vontade viciada só se permitirá a anulação do negócio jurídico se o destinatário da declaração pudesse ter percebido esse vício. Caso o destinatário tenha agido de boa-fé, sem dolo ou culpa, o ato será válido, mesmo que o declarante tenha cometido um erro ou tenha sido coagido38. Essa teoria é uma variante da teoria da declaração39, pois quando há divergência entre a vontade interior e a manifestada, prevalece a vontade declarada na maioria dos casos, devido à responsabilidade do declarante pela confiança depositada pelo destinatário ao celebrar o contrato. No entanto, se o destinatário agir com dolo ou culpa, ou seja, de má-fé, a vontade interna do declarante prevalecerá. É importante observar que, em nome da equidade, essa teoria da confiança deve se aplicar apenas aos contratos onerosos, pois nos contratos gratuitos, como doações e testamentos, a vontade real e interna deve valer-se sobre a vontade declarada. Além disso, é importante destacar que o Código Civil não aborda o erro ou a coação que afetam o destinatário da declaração. A discrepância entre o desejo e a afirmação não pode ser governada por uma norma rígida, pois os diferentes tipos de relações comerciais impossibilitam a adoção de uma teoria unificada do negócio jurídico. Fica claro que, também nos contratos eletrônicos, a expressão de vontade necessita ser livre e conscienciosa40. Aqui não se afirma apenas que o consentimento está livre de fraude, coação ou dolo, mas sim que a pessoa que contrata eletronicamente tenha sido informada de forma específica sobre o serviço ou produto disponibilizado, assim como sobre as cláusulas que restringem quaisquer direitos e obrigações impostos pelo contratante. Em contratos entre sistemas, nos quais os computadores são configurados para realizar acordos automaticamente, entende-se que a concordância acontece quando as partes discutem antecipadamente todas as disposições da operação desses programas. Em contratos entre pessoas, as partes trocam comunicações por meio eletrônico ou por algum tipo de diálogo em tempo real, portanto, a concordância é estabelecida no instante do envio dessas mensagens e na posterior aceitação da proposta. Nos contratos interativos, a interação do indivíduo ocorre em um ambiente virtual, no qual todas as informações sobre o produto ou 38 ROPPO, V. O contrato. cit., p. 299. RODRIGUES, S. Direito civil: parte geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 184. 40 LEAL, S.R.C.S. Contratos eletrônicos. cit., p. 61 ss. 39 166 serviço oferecido já estão disponíveis. Dessa forma, o consentimento é considerado quando o indivíduo clica em palavras como "aceito", "sim", "finalizar" ou "concordo"41. Diante disso, fica evidente que a legislação em vigor acerca de acordos estabelecidos com equívoco de consentimento é satisfatória para resolver a questão. Vale ressaltar o artigo 12 da Lei Modelo da UNCITRAL42, que estabelece que a manifestação de vontade não é discriminada nem negada em sua validade e eficácia apenas pelo fato de ter sido originada ou transmitida por meios eletrônicos. Portanto, conclui-se que as manifestações de vontade expressas por meios eletrônicos são plenamente válidas, e os contratos eletrônicos resultantes da convergência dessas manifestações de vontade têm validade, desde que observem as condições estabelecidas no ordenamento para a validade das relações contratuais. 4. Considerações Finais O avanço da ciência da computação nas últimas décadas tem desempenhado um papel crucial na transformação dos contextos sociais, políticos e culturais da sociedade. É por meio dessa digitalização social que a tecnologia da informação desempenha um papel central em nossas vidas diárias. No entanto, essa realidade também traz consigo desafios significativos para a proteção dos direitos humanos, especialmente no que diz respeito à vulnerabilidade dos consumidores no âmbito da privacidade e validade nos contratos eletrônicos. Diante da variedade de novas situações jurídicas surgidas na contemporaneidade, especialmente no campo da tecnologia, e dos desafios que essas situações apresentam, fica evidente a necessidade de abordar a falta de segurança nas transações eletrônicas e a vulnerabilidade dos consumidores em relação à sua privacidade e validade. A questão desencadeada pelos acordos digitais na interação de consumo, especialmente por ser um fenômeno em estágio de evolução no contexto jurídico-social, mostra uma grande complicação. A difusão da rede mundial de computadores proporciona uma significativa colaboração e até mesmo um estímulo nas contratações digitais, alcançando uma ampla quantidade de utilizadores, encorajando, dessa maneira, os empreendedores a se envolverem no comércio realizado de forma virtual. Diante deste contexto, o fato de haver uma forma de adquirir produtos de qualquer lugar do mundo sem necessitar sair de residência, é um considerável progresso tecnológico 41 MATTE, M.S.. Internet: comércio eletrônico. São Paulo: LTr, 2001, p. 102. UNCITRAL. United Nations Commission On International Trade Law. Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional. Lei Modelo da UNCITRAL. Resolução n. 51/162 da Assembleia Geral. ONU, Nova York, 1997. Disponível em: https://www.lawinter.com/1uncitrallawinter.htm. Acesso em: 10 mai. 2023. 42 167 que atrai, cada vez mais, financiadores e consumidores. O comércio digital é uma realidade e está se tornando o principal meio para a efetuação de transações comerciais em todo o mundo, em suas várias modalidades. Distinto do comércio convencional, prevalecem nos acordos digitais a autonomia de utilização, a despersonalização, a flexibilidade dos conceitos de tempo e de espaço, bem como a dispensabilidade, em princípio, de interação corporal e de registros físicos anotados em folhas de papel. Portanto, é imprescindível garantir aos consumidores do comércio digital uma proteção clara, efetiva e, no mínimo, equivalente àquela assegurada nas demais formas de comércio convencional. É de máxima relevância analisar a legitimidade dos pactos digitais, visto que os mesmos obstáculos identificados no contexto físico igualmente podem ser constatados no âmbito virtual, como a imprecisa identificação entre as partes, falhas durante a celebração e manipulações. O contrato digital não é uma nova figura jurídica, uma vez que se trata apenas de um acordo de vontades entre duas ou mais pessoas, com o objetivo de estabelecer, modificar ou encerrar uma relação jurídica, sendo que sua distinção está no local de celebração, ou seja, por meio de meios eletrônicos ou telemáticos. A doutrina dos defeitos da vontade estabelece-se como um mecanismo de proteção da liberdade pessoal e uma salvaguarda da autonomia volitiva. Na contratação digital adquire uma peculiaridade específica no que diz respeito à maneira como ocorre. É bastante frequente cometer enganos ao empregar dispositivos eletrônicos, pois muitos desses equívocos são cometidos de maneira descuidada, seja por uma falta de familiaridade do utilizador ou meramente por falhas técnicas. Dessa forma, a concordância expressa por meios digitais pode acabar sendo direcionada a um destinatário distinto, de maneira incompleta ou até mesmo não alcançar seu destino. Esses fatos, a princípio, não normatizados, criam situações jurídicas que orbitam centros de interesse e que claramente merecem proteção jurídica. Não obstante, nota-se que o acordo digital é uma realidade e não pode ser contestada sua legitimidade jurídica em caso de uma controvérsia judicial, pois o progresso que demonstra diz respeito unicamente aos seus métodos de estabelecimento. Além disso, embora não haja disposições específicas sobre o tema, torna-se manifesto a viabilidade de aproveitar as regulamentações contratuais convencionais. A análise realizada, com base nos princípios estabelecidos no sistema jurídico, permitiu uma compreensão mais clara das questões envolvidas nesse debate. Ao examinar a adequação de conceitos, foi possível constatar que o conhecimento jurídico não pode ignorar um fenômeno social proeminente, mesmo diante da falta de regulamentação específica. 168 Através de uma análise doutrinária e legal, demonstramos que os negócios eletrônicos não constituem uma inovação contratual, mas podem ser devidamente compreendidos e regulamentados utilizando-se dos princípios jurídicos já existentes. Este estudo contribui para o avanço do conhecimento no campo do Direito, fornecendo subsídios teóricos e normativos para a compreensão e aprimoramento dos pontos legalísticos conexos aos contratos eletrônicos. Ao estabelecer a aplicabilidade das regras do consentimento aos contratos celebrados eletronicamente, promove-se maior segurança nas transações, garantindo a proteção dos direitos dos consumidores no contexto da sociedade tecnológica atual. É importante ressaltar que a conclusão alcançada neste estudo não deve ser vista como uma resposta definitiva para todas as questões relacionadas aos contratos eletrônicos. A evolução tecnológica continua a impor novos desafios ao campo jurídico, exigindo uma constante atualização e reflexão sobre a adequação das normas existentes. Referências Bibliográficas AMARAL, F. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. AZEVEDO, A.J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BARBAGALO, É.B. Contratos eletrônicos: contratos formados por meio de redes de computadores: peculiaridades jurídicas da formação do vínculo. São Paulo: Saraiva, 2001. BETTI, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. 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Direitos humanos: novas dimensões e novas fundamentações. Revista Direito em Debate, Ijuí, n. 16-17, p. 9-32, jan./jun. 2002. 170 Controvérsias do Caso Belo Sun no Brasil sob a Perspectiva dos Direitos Humanos e Atividade Empresarial Controversies of the Belo Sun case in Brazil under the Human Rights and business activity perspective Elisa Alberini Roters1 Gisele Jabur2 Sumário: 1. Empresas de Mineração; 2. Empresa de Mineração canadense Belo Sun e a Volta Grande do Xingu no Brasil; 3. Direitos Humanos e Empresas na Proteção da Sociobiodiversidade; Considerações Finais. Resumo: Este artigo busca analisar a relação do extrativismo mineral em grande escala por empresas de mineração com a garantia de proteção da sociobiodiversidade por meio dos Direitos Humanos. A fim de comprovar que o mercado globalizado e o sistema capitalista interferem na efetividade dos mecanismos de controle de dano no Brasil, foi realizado o estudo do caso a partir da empresa mineradora canadense Belo Sun, uma vez que sua construção gera controvérsias no âmbito político, jurídico e sociocultural. Utilizou-se o método indutivo e, quanto ao procedimento foi utilizada a pesquisa bibliográfica e documental. Busca comprovar-se por meio de leis, jurisprudência, pareceres técnicos e análise bibliográfica que a fragilidade do sistema de controle de danos ambientais são na verdade propositais, tendo em vista que os interesses do Estado se confundem com os interesses do particular. Com o intuito de estimular o diálogo no âmbito dos Direitos Humanos e Empresas, é imprescindível cumprir com os direitos ratificados em acordos e tratados internacionais que o Brasil é signatário, para que os próprios povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais sejam os protagonistas no exercício da autodeterminação para decidirem sobre os projetos e atividades que possam vir a impactar suas vidas e seus territórios. Palavras-chave: Belo Sun; Modernidade, Empresas de Mineração, Direitos Humanos. Abstract: This article aims to analyze the relationship between large-scale mineral extraction by mining companies and the guarantee of protection of sociobiodiversity through Human Rights. In order to prove that the globalized market and the capitalist system interfere with the effectiveness of damage control mechanisms in Brazil, we studied the case of the Canadian mining company Belo Sun, since its construction generates controversy in the political and legal spheres. The inductive method was used and, regarding the procedure, bibliographical and documentary research was used. Therefore, it is proven by means of laws, jurisprudence, technical opinions and bibliographic analysis that the fragility of the environmental damage control system is actually intentional, in view of the fact that the interests of the State are confused with the interests of the private individual. In order to encourage dialogue in the field of Human Rights and Business activities, it is essential to comply with the Human Rights ratified in international agreements and treaties to which Brazil is a signatory. So that the indigenous peoples, quilombolas, and traditional peoples and 1 Mestranda em Direito Socioambiental (PPGD/PUC-PR); Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR); Endereço eletrônico: [email protected] 2 Doutoranda em Direito Socioambiental (PPGD/PUCPR). Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE/UFPR). Diplomada em Estudo Internacional Litígio Estratégico em Direitos Indígenas (IIDS/PUCP). Pós Graduada em Direito Penal e Criminologia (PPGD/PUCRS). Bacharela em Direito (PUCPR). Advogada: OAB/PR: 83.988. Endereço eletrônico: [email protected] 171 communities themselves are the protagonists in the exercise of self-determination to decide on projects and activities that may affect their lives and territories. Keywords: Belo Sun; Modernity; Mining Companies; Human Rights. 1. Empresas de Mineração A atividade de mineração tem sua definição legal por meio do Decreto Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967, e corresponde à atividade econômica e industrial que consiste na pesquisa, exploração, lavra e beneficiamento de minérios presentes no subsolo. Distingue-se da regulamentação da atividade de garimpo, prevista na Lei nº 11.685, de 02 de junho de 2008. A abundante diversidade mineral presente em diversas regiões da África e América Latina há muito atrai o interesse de empresas de mineração nacionais e estrangeiras que têm violado de maneira sistêmica os Direitos Humanos socioambientais dos povos, e contribuído para a degradação da biodiversidade e intensificação do aquecimento do sistema climático global. Minérios como ouro, diamante, cassiterita, cobre, ferro, níquel, bauxita, dentre tantos outros, são objetos do extrativismo mineral intensivo e incessante no Brasil que visa somente o lucro para exportação do então já transformado produto 3. Muito embora a Constituição Federal de 1988 garanta que a pesquisa e a lavra das riquezas minerais nas Terras Indígenas só podem ser realizadas com autorização do Congresso Nacional, respeito o direito à consulta e ao consentimento prévio dos povos e comunidades afetadas, e assegure a participação nos resultados da lavra (§3º do artigo 231), não é o que ocorre na realidade. As empresas de mineração que atuam no Brasil, e de modo geral na América Latina e África, são pautadas em valores e práticas voltadas ao desenvolvimento econômico desenfreado à não observância aos direitos dos povos e da natureza. São inúmeras comprovações jurídicas e científicas de violações sistêmicas de direitos, como o caso do rompimento das barragens das empresas de mineração Samarco e Vale, nos anos de 2015 e 2019, respectivamente, nos municípios de Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais, e tantos outros, como no estado de Rondônia as beiradeiras e beiradeiros atingidos por barragens no Rio Madeira4. Este artigo tem o foco no estado do Pará, com a empresa de mineração canadense 3INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Mineração em Terras Indígenas na Amazônia Brasileira. São Paulo: ISA, 2013. 4GONÇALVES, Bruna Balbi. Beiradeiros Atingidos por Barragens: Insurgências Socioambientais no Rio Madeira. Dissertação (mestrado), orientadora, Heline Sivini Ferreira – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2017. 172 Belo Sun que possui o projeto de instalação da maior mina com método de lavra a céu aberto, mais precisamente na na Amazônia brasileira, região da Volta Grande do Xingu, território de ocupação tradicional de diversos povos. A licença prévia concedida à empresa de mineração foi suspensa, em razão da inobservância do direito à consulta e ao consentimento prévio aos povos e comunidades indígenas e ribeirinhas da região5. Entretanto, inúmeras são inúmeras as violações aos Direitos Humanos por empresas de mineração, como o povo indígena Krenak que habita ancestralmente às margens do Rio Doce foi altamente impactado com o rompimento da barragem da empresa de mineração Samarco. Ao levarem à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, exigem a responsabilidade da empresa pela violação do direito à integridade física, psíquica e moral do povo Krenak em razão dos danos econômicos e espirituais. A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), protocolou em 2022 um pedido de representação6 ao Ministério Público Federal (MPF), solicitando o cancelamento dos requerimentos minerários que se encontram ativos junto à Agencia Nacional de Mineração e que estão em curso no leito do rio Negro em áreas limítrofes à Terras Indígenas. São inúmeras as empresas de mineração com interesse em uma das regiões mais sociobiodiversas do mundo7. Importante ressaltar que após o primeiro ciclo de invasão da exploração de mineração no território originário dos Yanomami foi homologada a demarcação da Terra Indígena Yanomami (TIY), no ano de mil novecentos e noventa e dois, entre os estados do Amazonas e Roraima, no Brasil. As invasões para exploração do ouro nunca cessaram e os povos indígenas seguem sofrendo ataques aos seus direitos. Muito embora o Estado brasileiro reconheça a diversidade dos povos indígenas expresso no artigo 231, da Constituição Federal brasileira de 1988, desconhece suas especificidades. A diversidade cultural dos povos indígenas é heterogênea e indescritível, há disponível na literatura antropológica um vislumbre com o relato da cosmovisão de um dos mais de trezentos povos indígenas do Brasil8, que não deveria ser ignorado, pois expõe a própria cosmovisão Yanomami9 sobre a origem dos minérios e também quais os impactos 5OLIVEIRA, Rodrigo Magalhães de. Violações ao Direito à Consulta e ao Consentimento Prévio de Indígenas e Ribeirinhos: O caso de um empreendimento minerário na Volta Grande do Xingu. OLIVEIRA, Rodrigo Magalhães de [et al.]. Curitiba: Letra da Lei, 2022. 6 Ofício nº: 115/2022. Procuradores da República do 5º Ofício Cível - PR/AM e 13º Ofício Cível – PR/AM. 7INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Mineração em Terras Indígenas na Amazônia Brasileira. São Paulo: ISA, 2013. 8INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos>. Acesso em: 17.mai.2023. 9KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 173 do exercício da atividade de mineração intensiva e incessante à nível local e mundial. 2. Empresa de Mineração Canadense Belo Sun e a Volta Grande do Xingu no Brasil A fim de corroborar com a teoria de que o Estado na verdade é apenas um fantoche do mercado e de que os riscos produzidos pelos humanos já não podem ser dissociados da mentalidade moderna e globalizada, faz-se necessária uma análise de caso, demonstrando então que as políticas brasileiras que em tese deveriam conter os riscos são muito frágeis comparados ao poder do capital. O caso a ser analisado é o da mineradora canadense Belo Sun, que atua na Volta Grande do Xingu e é um empreendimento cujo objetivo é tornar-se a maior exploradora de ouro a céu aberto do país10, para alcançar esse objetivo, entretanto, vem ocasionando devastação da região em que está localizada em território Xingu, no Pará. Segundo a Rede Xingu+, o empreendimento está situado no município de Senador José Porfírio (PA), a menos de 50 km da barragem principal da Usina Hidrelétrica Belo Monte, a qual já castigou severamente a região, pois em seus 11 anos de funcionamento foram retiradas 39.767 megatoneladas de rochas. A menos de 9,5 km da mineradora está a Terra Indígena Paquiçamba, região habitada por povos tradicionais e pescadores artesanais que dependem de seus territórios para sobrevivência econômica e cultural. Dessa forma criou-se um impasse, já que de um lado há uma grande corporação que vê a região como uma chance de grandes lucros, de outro há pessoas que lutam pela sua sobrevivência. Como o apelo ao capitalismo é muito apreciado pelos governantes, o lado dos despossuídos é sempre relegado. Em face disso foi criado o Movimento Xingu Vivo Para Sempre (Xingu Vivo). Trata-se de um coletivo que atua na defesa de direitos humanos e ambientais. Esse coletivo é alvo de agressões e ameaças; Seus integrantes já sofreram ou estão sofrendo ameaças individualmente pela Cooperativa Mista dos Garimpeiros da Ressaca, Galo, Ouro Verde e Ilha da Fazenda, conforme aponta Apelo endereçado a Organização das Nações Unidas (ONU) de vinte e quatro de abril de 2018, assinada por Anita Rama Sastry, Presidente do Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos e corporações transnacionais e outras empresas, conjuntamente com outras autoridades no assunto. 10REDE XINGU+. Mineração Volta Grande (Belo Sun). Ficha técnica. 2022. Disponível em: <https://xingumais.org.br/obra/mineracao-volta-grande-belo-sun>. Acesso em: 06.jun.2023. 174 Esse documento denuncia violações de direito sofridas pela população ribeirinha, relatados pelo Movimento Xingu Vivo que acompanha e colhe informações junto à população, além de organizar defesa de direitos, tais como audiência e abaixo-assinados, importante salientar aqui que a nível nacional, ativistas que trabalham em prol dos direitos humanos em defesa à natureza sofrem elevado risco de vida. Tanto é que a Global Witness dá conta que o Brasil é o país mais letal para pessoas engajadas em defesa da terra e do meio ambiente, visto que em 2017 em oito meses foram mortos 58 defensores, ressalta-se inclusive que o município de Altamira, próximo a região de Belo Monte e Belo Sun, é um dos mais violentos do Brasil, segundo mapeamento efetuado pelo Ministério Público do Pará, em 2019. Os impactos ambientais são inúmeros decorrentes da instalação da mineradora, tanto para o meio ambiente e para as comunidades ao redor, quanto ao que concerne aos riscos de contaminação de solo e nascentes de rios com rejeitos minerais, como o mercúrio. Agrega-se como fator destrutivo da área o perigo de um aumento da pressão demográfica da região, despreparada para acolher esse fluxo migratório, além da perda cultural que os povos da região têm com seu território. Segundo o Observatório da Rede Xingu Mais, vários foram os esforços para que os impactos fossem minimizados, sendo que todas as controvérsias envolvendo a construção da mineradora estão relacionadas ao descumprimento das medidas impostas pelo Estado, especialmente no que diz respeito ao licenciamento ambiental e às consultas aos povos indígenas, ribeirinhos e pescadores artesanais. Em 2012, foi apresentado um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (RIMA), porém foram contestados pelo Ministério Público Federal (MPF) o qual moveu uma Ação Civil Pública (ACP), em 2013, junto à Justiça Federal exigindo a realização de estudos do Componente Indígena (ECI) a fim de verificar o impacto sobre as comunidade indígenas, a mesma não sendo apresentada a obra foi suspensa por meio de sentença judicial em 2014. Não obstante, em fevereiro de 2017, a mineradora conseguiu a Licença de Instalação (LI), a qual foi novamente suspensa na justiça, agora devido ao Estudo do Componente Indígena (ECI) ser considerado inconsistente pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ressaltando que o estudo deveria ser refeito, além disso, em dezembro do mesmo ano o Tribunal Regional Federal confirmou a suspensão da LI, devido a empresa não ter feito Consulta Livre Prévia e Informada (CLPI), às comunidades indígenas afetadas pelo 175 empreendimento. Na decisão, o TRF-1 ordenou que a CLPI fosse feita respeitando os protocolos de consulta dos povos indígenas afetados. Ainda conforme o Ministério Público Federal (MPF), entre janeiro e fevereiro de 2018, em pleno inverno amazônico observou-se por meio de monitoramento por radar do Instituto Socioambiental que 6,2 mil hectares de florestas foram destruídas para dar lugar à produção agropecuária e garimpo ilegal na bacia do Rio Xingu, entre as terras indígenas em territórios indígenas isolados , onde a construção de Belo Monte e agora o projeto de Belo Sun busca instalar ao norte da TI. Em maio de 2018, a Conectas Direitos Humanos fez uma denúncia junto à Organização das Nações Unidas (ONU), devido às ameaças e agressões cometidas por funcionários da prefeitura de Senador José Porfírio e seus aliados contra os integrantes do Movimento Xingu Vivo Para Sempre. Dada a gravidade da situação, em setembro deste mesmo ano, o juiz Federal de Altamira suspendeu todas as atividades do empreendimento até que o processo de licenciamento fosse regularizado em instância Federal, isto é, fosse credenciado pelo Instituto brasileiro de Meio Ambiente e de Recursos Naturais (IBAMA). Ainda na esteira da liberação da licença, em agosto de 2019, o Ministério Público Ambiental requereu a federalização do processo de licenciamento ambiental da obra, bem como o cancelamento de todas as licenças já emitidas pela SEMAS/PA. O Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em 2019, suspendeu os efeitos da Licença de Instalação (LI) do projeto minerário que foram concedidas no processo, o qual tramita na Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará (SEMAS) , até o efetivo cumprimento das condicionantes 29 e 30, a qual exigia que as famílias sob a área de influência indireta do projeto Volta Grande fossem devidamente reassentadas e que a mineradora apresentasse relatórios periódicos sobre o status do processo de remanejamento das populações tradicionais afetadas. Ao longo desse mesmo ano, a empresa JCP, contratada pela Belo Sun, realizou estudos de impactos dos componentes indígenas após aprovação do Termo de Referência pela FUNAI. Os três EJA- CIs- TI Paquiçamba, TI Arara da Volta Grande e TI Ituna Itatáforam protocolados na FUNAI no início de 2020 e pendem de avaliação pelo órgão indigenista. Ressalta-se que os estudos e informações solicitadas pelos indígenas Juruna em reuniões com JGP não foram realizados e não constam na versão final do EIA-CI protocolada na FUNAI. 176 Em outubro de 2019 e fevereiro de 2020, comunidades indígenas da Volta Grande do Xingu não aldeadas solicitaram consulta livre, prévia e informada em respeito à convenção da OIT, as quais ainda não foram respondidas pela FUNAI e pela Empresa Belo Sun – Carta Jericoa, Carta São Francisco e Carta Iawa Gleba Paquiçamba. Também foram protocolados na FUNAI e na SEMAS três ofícios com relatórios de pesquisadores independentes apontando lacunas nos componentes indígenas (EIA-CI), como também falhas metodológicas que comprometem a análise para a aceitabilidade do empreendimento. Apontaram-se lacunas da pesca e quelônios, falhas sobre os aspectos de segurança da barra e o terceiro e não menos importante: os aspectos geológicos. Os referidos relatórios pedem estudos complementares, pois se alega que, sem eles, a análise do mérito do componente indígena feita pela FUNAI, ficará comprometida. A FUNAI publicou em julho de 2020, a Informação Técnica nº 63/2020 da Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental/CGLIC, a qual analisou o Componente Indígena do Estudo de Impacto Ambiental de Belo Sun. Nela, a FUNAI concluiu que havia necessidade de uma reavaliação do estudo mais ampla, dada a complexidade do contexto local, regional e nacional. Alertou também para a sinergia de impactos inclusive na BR-230 e UHE Belo Monte. O órgão indigenista com essa publicação demonstrou que acolheu as preocupações dos indígenas e em face do que foi relatado pelos trabalhos científicos independentes, os quais não foram apresentados devidamente no EIA. Neste documento a FUNAI, solicitou entre outras coisas o esclarecimento sobre a captação de água para o empreendimento, pois há possibilidade de contaminação do arsênio das pilhas de estéril. Paralelamente, em agosto de 2020, a Defensoria Pública do Pará ajuizou uma Ação Civil Público em face das SEMAS-PA e Belo Sun, requereu a suspensão do licenciamento e a nulidade do EIA-RIMA e todos os atos subsequentes no processo pela violação dos direitos aos territórios tradicionais (posse e propriedade) dos povos ribeirinhos da Volta Grande e do direito de consulta livre, prévia e informada na Convenção nº 169 da OIT a esses povos. A FUNAI emitiu a informação Técnica 270/2020 em 20 de novembro de 2020, declarando que os estudos do componente indígena estavam aptos para sua apresentação aos povos indígenas. Segundo o órgão indigenista, as complementações solicitadas na IT 63/2020 pelo corpo técnico da própria FUNAI poderiam ser detalhadas na revisão do CIEIA. Também em 2020, a FUNAI encaminhou ofício para SEMAS e Belo Sun comunicando o: “Protocolo de Segurança para Atividades com Comunidades Indígenas 177 Durante a Pandemia de Coronavírus – COVID” – o qual deveria ser observado em apresentações presenciais ou por videoconferência tendo em vista a demanda da empresa em realizar reuniões de apresentação do CI-EIA aos indígenas de forma presencial ou videoconferência. Consultou-se também os indígenas sobre a concordância do modelo proposto e, quanto à viabilidade técnica em caso de apresentação por videoconferência. Em face disso os indígenas da tribo Juruna da TI Paquiçamba encaminharam carta à FUNAI, MPF e TRF-1 comunicaram que só aceitariam reuniões de consulta presenciais após todos os indígenas fossem vacinados. Os Mẽbengôkre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá por meio da Associação Bebô XiKrin do Bacajá escreveram carta à FUNAI solicitando a inclusão deles no processo de licenciamento do projeto de mineração Belo Sun de acordo com o direito à consulta livre, prévia e informada da Convenção 169 da OIT. Recentemente, no dia 26 de abril de 2022, a Defensoria Pública da União ajuizou Ação Civil Pública contra o INCRA, a Belo Sun e o Estado do Pará para defender os direitos das populações afetadas pela celebração do Contrato de Concessão de Uso nº 1.224/2021, firmado entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a empresa Belo Sun Mining Ltda., em 26 de novembro de 2021. Foi pedida a declaração de nulidade do contrato de nulidade da Licença de Instalação nº 2.712/2017. Em julgamento do TRF-1 na Ação Civil Pública do Ministério Público Federal , em abril de 2022, solicitou realização de Estudos de Impacto Ambientais e Consulta Livre, prévia e informada aos povos indígenas. Importante ressaltar que o Tribunal rejeitou todos os recursos apresentados pela empresa e o Estado do Pará e manteve a decisão de 2017 suspendendo a Licença de Instalação em seus termos integrais. Já a Justiça Estadual de Altamira suspendeu o licenciamento ambiental da mineradora pela Secretaria de Estado e Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), até que seja realizado estudo socioambiental dos povos ribeirinhos na região próximo do empreendimento Volta Grande, em maio de 2022. Foi pedida a consulta prévia, livre e informada, bem como o consentimento dos povos ribeirinhos, pelo Estado do Pará, conforme previsto no artigo 6º da Convenção de nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A decisão liminar foi dada no âmbito da Ação Civil Pública ajuizada contra a Empresa Belo Sun Mineração Ltda e o Estado do Pará pela Defensoria Pública do Estado do Pará (processo n° 08001861.8.14.0005). De acordo com os dados narrados, é possível notar que os componentes de controle do Estado sobre os riscos produzidos pelo mercado apresentados anteriormente 178 não possuem eficácia, uma vez que a Belo Sun está em processo de construção. Ou seja, mesmo existindo políticas e leis que limitem ações de empresas multinacionais em território nacional, a situação da Belo Sun apenas comprovam que o Estado Moderno não é capaz de driblar o poder do capital, já que também se beneficia dele. 3. Direitos Humanos e a Proteção da Sociobiodiversidade Os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, elaborados pelo Representante Es-pecial do Secretário-Geral das Nações Unidas, John Ruggie, buscam estabelecer obrigações para as empresas em matéria de Direitos Humanos, estruturados em três pilares de proteger, respeitar e remediar11. Reconhecem que as empresas são responsáveis pelos impactos que causam direta ou indiretamente, mesmo que não tenham a intenção de causar danos, diversos impactos afetam de maneira irreversível e irreparável os territórios e as vidas de povos indígenas e tradicionais. Dentre os 31 princípios estipulados se ressalta o número dezessete que o processo de devida diligência em Direitos Humanos. Para além disso os Princípios Orientadores também reconhecem que as empresas estão contribuindo para o incremento do aquecimento do sistema climático global e a relação de causalidade com a violação de inúmeros direitos humanos. As Diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para Empresas Multinacionais12, incentivam as empresas enquanto boas práticas de condutas empresariais e em capítulo específico sobre Direitos Humanos e sobre meio ambiente, orientam quanto ao dever de fornecer ao público informações precisas e verificáveis sobre seus potenciais impactos ambientais, por meio da devida diligência ambiental, com as etapas de avaliação de risco, estabelecimento de objetivos mensuráveis, prevenção baseada no princípio da precaução, ações de mitigação e monitoramento contínuo. As Linhas Diretrizes da OCDE também emitiram orientações de devida diligência em Direitos Humanos que incluem referência a impactos ambientais e fornecem indicadores para avaliação, como escala e escopo de caráter irremediável. Foram criados instrumentos jurídicos de proteção da natureza e de reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e tradicionais que determinam o fim do assimilacionismo das populações para com a sociedade nacional, por meio do fortalecimento de suas identidades próprias e mecanismos de consulta, consentimento e participação nas medidas 11ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.conectas.org/publicacao/empresas-e-direitos-humanosparametros-da-onu/>. Acesso em: 18.mai.2023. 12Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Linhas Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais. Paris: Editora OCDE, 2013. 179 executivas, legislativas e administrativas que possam vir a afetar suas vidas e seus territórios. A partir do Ecologismo Jurídico surge o ramo do Direito Ambiental que inaugura uma nova fase nos ordenamentos jurídicos de reconhecimento dos direitos coletivos ao conceber o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano e se propõe uma nova perspectiva através das noções da teoria de Gaia, da ciência holística e da ecologia profunda13. Durante o processo constituinte no Brasil tem-se uma crescente articulação política dos povos indígenas a fim de garantirem seus direitos expressos na Constituição brasileira. E com a promulgação da Constituição Federal brasileira em 1988 são reconhecidos os direitos difusos e coletivos da natureza e dos povos indígenas, e os direitos territoriais deles decorrentes e as manifestações das culturas indígenas como parte relevante do patrimônio cultural brasileiro, valorizando a diversidade étnica presente no país e garantindo o pleno exercício dos direitos culturais (BRASIL, 1988, artigos 215, 225, 231, 232). Sob esta nova ótica constitucional de reconhecimento, respeito e valorização à diversidade cultural deve ser interpretada toda a legislação infraconstitucional anterior e posterior à promulgação da Constituição Federal, assim como definida por este novo viés as políticas estatais indigenistas compreendidas como formas de relação entre o Estado e os povos, inclusive no âmbito do Poder Judiciário. Além dos direitos e garantias nacionais conferidas aos povos indígenas, quilombolas, tradicionais e à natureza, há estândares interamericanos de proteção dos direitos humanos, como o direito à vida, à saúde e integridade física, mental e espiritual, à soberania alimentar, à água, dentre outros. Em 1989, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) promulga a Convenção 169, sobre Povos Indígenas e Tribais, em substituição parcial à Convenção 107, do ano de 1957, que ainda mantinha uma política assimilacionista e integracionista, ao buscar integrar às comunidades e povos indígenas às sociedades nacionais. No Brasil, a Convenção 169 foi ratificada por meio do Decreto Lei 142/2002, promulgada nos termos do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004 e publicada no Diário Oficial da União de 20 de abril de 2004, enquanto instrumento de direitos humanos que possui caráter normativo supralegal (STF. Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, de 3 de dezembro de 2008). A Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas e Tribais, foi aprovada em 2007 e também assegura o direito à autodeterminação e livre desenvolvimento político e socioeconômico, bem como reconhece o direito consuetudinário enquanto Direito Indígena Próprio, baseado nos artigos 03, 04, 05, 19, 30. A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, reafirma que os 13ZAFFARONI, E.R. La Pachamama y el humano. Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2012. 180 povos têm o direito à autodeterminação e, portanto, devem determinar livremente o próprio destino, bem como o desenvolvimento econômico, social e cultural. Foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), no ano de 2016, na capital da República Dominicana, Santo Domingo e reconhece que os Estados têm o dever de respeitar as especificidades culturais e linguísticas dos povos indígenas (OEA, 2016, artigo II e III). A Constituição mexicana (1917) inova ao reconhecer os direitos sociais, enquanto na Constituição do Equador (2008) e da Bolívia (2009) é reconhecido os direitos da natureza, enquanto sujeito de direitos positivado no ordenamento jurídico dos Estados Nacionais. Já está consolidado o entendimento jurisprudencial sobre o direito de decidir sobre tudo aquilo que de maneira direta ou indiretamente possa afetar os territórios dos povos indígenas e tradicionais por meio do direito à consulta prévia, livre, informada, de boa fé e culturalmente adequada, como na Corte Interamericana de Direitos Humanos no emblemático caso do povo Saramaka em face do Estado do Suriname14, o qual, dentre outros, estabelece a obrigação do Estado em consultar aos povos indígenas segundo seus Protocolos de Consulta próprios. Reforça este entendimento também o caso do povo indígena Kichwa de Sarayaku em face do Estado do Equador15, acerca do direito dos povos de serem consultados e se manifestarem participando das decisões estatais que tenham o potencial de afetar seus direitos coletivos e territoriais. E da mesma maneira no dever de obrigação que os governos têm de consultar previamente aos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais sempre que alguma medida administrativa ou legislativa que vá ser tomada possa vir a afetar seus territórios. O direito à consulta prévia consiste no direito dos povos de serem consultados e se manifestarem participando das decisões estatais que tenham o potencial de afetar seus direitos coletivos e territoriais. Da mesma maneira, consiste no dever de obrigação que o governo tem de consultar previamente aos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais sempre que alguma medida administrativa ou legislativa que vá ser tomada possa vir a afetar seus territórios. O direito à consulta de maneira prévia, livre e informada pelo Estado sempre que alguma medida administrativa ou legislativa possa afetar suas vidas e territórios decorre do direito à autodeterminação, em que o Estado reconhece o direito dos povos à diversidade étnico cultural e, portanto, o direito a decidirem seus próprios projetos e prioridades de desenvolvimento por meio de seus mecanismos próprios de tomada de 14 CIDH, sentença de 28 de novembro de 2007. Série C nº 172, §133. Exceções preliminares, Mérito, reparações e custas. 15 CIDH, sentença de 27 de junho de 2012. Série C, nº 245, §205. 181 decisão e organização política16. Embora haja órgãos de fiscalização do exercício das atividades de mineração como o Ministério de Minas e Energia, Agência Nacional de Mineração (ANM), Ministério do Meio Ambiente, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). Considerações Finais A história demonstra que a relação entre a sociedade capitalista e a natureza nunca foi harmônica, já que o objetivo é sempre o lucro, independentemente das consequências. As consequências desses atos estão sendo notados em todo o planeta provocando desastres ambientais de grandes proporções e provando cada vez mais que o ser humano deve integrarse ao meio ambiente retirando dele o necessário para sua subsistência e não agir com o objetivo único do lucro. Ocorre que ao não perceber-se parte integrante da natureza e tendo como foco o lucro, seguindo fielmente a lógica do paradigma da modernidade, rompe o tecido do qual ele mesmo faz parte, ignorando a relação entre o ambiental e o social. O ser humano é ao mesmo tempo o algoz e a vítima de seus atos. Não obstante, os primeiros a sentir os efeitos de tal comportamento são os desfavorecidos socialmente, principalmente os povos tradicionais, os quais dependem exclusivamente da natureza para sua sobrevivência tornando-os vítimas de um sistema que aos poucos vem degradando o solo, o ar e a água, A conservação do meio ambiente está diretamente conectada com a proteção dos direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais, mas infelizmente, os efeitos da dominação cultural ainda ficaram marcados pelo colonialismo. Dessa forma os países latinos ainda sofrem com a desigualdade econômica e étnica, pois, se considera que o modo de produção de uma sociedade capitalista objetiva o lucro e o desenvolvimento, desdenhando possíveis impactos sociais e ambientais. Dessa forma em respeito a cultura dos povos tradicionais, já que eles possuem uma relação de simbiose com a natureza, esses povos, tiveram os seus direitos coletivos assegurados pela primeira vez no Brasil em junho de 2002, por meio da Convenção 169 da organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual garantiu aos povos indígenas e tribais o poder de autodeterminação e com isso, permitiu a delimitação de suas terras e a concessão de títulos de propriedade fundiária. 16SILVA, Liana Amin Lima da. Consulta Prévia e Livre Determinação dos Povos Indígenas e Tribais na América Latina: Re-existir para co-existir. Tese (doutorado), orientador: Carlos Frederico Marés de Souza Filho - Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2017. 182 As empresas multinacionais, em um reflexo do colonialismo buscam trazer para o país grandes empreendimentos que tem por objetivo obter lucros em detrimento ao impacto ambiental e social, com o discurso de trazerem progresso, gerar empregos e renda para as regiões que desejam instalar-se, buscam esconder os prejuízos ambientais que, uma vez instaladas, causariam às regiões e à população ao redor. Ao analisar a cronologia das tentativas de implantação do empreendimento da Mineradora Belo Sun pertencente a empresa canandense, percebeu-se inúmeras irregularidades no quesito de cumprimento das normas estatais. Em contrapartida, nota-se também o interesse financeiro do governo do estado do Pará, o qual atua insistentemente para a execução do projeto em uma área originalmente destinada à reforma agrária que abriga povos tradicionais que sobrevivem da agricultura, pesca e do extrativismo vegetal. Portanto, conclui-se que não há saída viável para que os riscos sejam driblados dentro de um sistema capitalista, porque existem muitos interessados em manter a acumulação do capital por meio da destruição de povos, culturas e da natureza, mesmo que as consequências também os afetem. Ou seja, pensar em modos de produção distintos, inclusão social e consciência ecológica só seria possível com a mudança da estrutura econômica que rege o mundo. Referências ALFINITO, A.C. Belo Sun traz mais destruição à Volta Grande do Xingu. IN: Amazon Watch, 25 jan. 2022. Disponível em: https://pt.amazonwatch.org/news/2022/0125-belosun-brings-more-destruction-to-the-volta-grande-do-xingu. Acesso em: 13.mai.2023. 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Buenos Aires: Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2012. 185 “Pós-Verdade, Fake News e a Influência da Desinformação nas Últimas Eleições Brasileiras” “Post-Truth, Fake News and the Influence of Disinformation in the Last Brazilian Election” Elizeu de Oliveira Santos Sobrinho1 Mayara Martins Klem Pamela Kafka Resumo: A disseminação de notícias falsas e a manipulação de informações têm sido temas amplamente discutidos nos últimos anos, especialmente no contexto das redes sociais e das últimas eleições políticas. Ao analisar o cenário político brasileiro, observa-se que diante das últimas eleições presidenciais, houve uma acentuada propagação de fake news e manipulações da opinião pública por meio de narrativas falsas ou distorcidas, que utilizam aspectos emocionais para convencer as pessoas de sua veracidade. Neste contexto, surge a noção de uma pós-verdade, termo que vem sendo cada vez mais utilizado para descrever a realidade política e social, na qual a emoção e a crença se sobrepõem aos fatos e à lógica. Isso se deve em parte pela exponencial polarização política e à falta de confiança nas instituições e meios de comunicação, o que acaba por sua vez levando a sociedade a buscar informações tomando como base suas crenças e concepções preexistentes, em vez de analisar os fatos de forma rigorosa, o que por consequência gera uma suspensão completa de referência a fatos e verificações aprofundadas. Nessa lógica, o presente trabalho tem como objetivo analisar as nuances da pós-verdade e como elas abriram espaço para a proliferação de desinformação e teorias da conspiração no Brasil, com ênfase nas últimas três eleições presidenciais brasileiras. Além disso, serão discutidos os desafios e as possíveis soluções para combater a desinformação e promover uma cultura de informação confiável e baseada em fatos. Dessa maneira, para a elaboração do respectivo trabalho, utilizou-se o método de pesquisa indutivo e, conjuntamente, foram adotadas as técnicas de pesquisa bibliográfica. Diante dos resultados obtidos, observou-se que a desinformação e a avalanche de notícias falsas dissipadas durante o pleito eleitoral influenciaram na tomada de decisão com relação ao voto dos eleitores. Essa influência poderá comprometer a liberdade de escolha eleitoral informada dos votantes, que podem direcionar seus votos com base em notícias falsas e desinformação, o que, em última instância, poderá comprometer os alicerces do estado democratico de direito brasileiro. Palavras-chave: pós-verdade; fake news; eleições. Abstract: The spread of fake news and the manipulation of information have been widely discussed topics in recent years, especially in the context of social networks and the latest electoral policies. When analyzing the Brazilian political scenario, it should been noted that in the face of the last presidential elections, there was a strong influence of fake news and manipulation of public opinion through false or distorted narratives, which use emotional aspects to convince people of their veracity. In this context, the notion of a post-truth arises, 1 Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestre em Direito pela mesma instituição. Professor de Ciência Política e Direito Constitucional no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí. Email: [email protected]. Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI – Campus Rio do Sul/SC.(GRADUAÇÃO) E-mail: [email protected]. Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI – Campus Rio do Sul/SC.(GRADUAÇÃO) E-mail: [email protected]. 186 a term that has been increasingly used to describe the political and social reality, in which emotion and belief overlap facts and logic. This is due in part to the exponential political polarization and lack of trust in institutions and the media, which in turn leads society to seek information based on its pre-existing beliefs and conceptions, instead of analyzing the facts rigorously, which in turn leads to a complete suspension of reference to facts and in-depth checks. In this logic, the present work aims to analyze the nuances on the last three Brazilian presidential elections of post-truth. How they opened space for the experience of disinformation and conspiracy theories in Brazil, with emphasis. In addition, challenges and possible solutions for combating disinformation and promoting a culture of truthful and fact-based information will be discussed. Thus, for the elaboration of the respective work, the inductive research method was used and, jointly, the bibliographical research techniques were adopted. In view of the results obtained, it was observed that the disinformation and the avalanche of false news dissipated during the electoral process influenced the decision making regarding the vote of the voters. This influence could compromise voters' freedom of electoral choice, who can direct their votes based on false news and misinformation, which, ultimately, could compromise the licenses of the democratic state of law in Brazil. Keywords: post-truth; fake news; vote. Introdução Com o advento das redes sociais, os meios de comunicação têm estado cada vez mais presentes na vida das pessoas, possibilitando o acesso e o compartilhamento de diversas informações, bem como tornando esse espaço um lugar em que as pessoas expressam suas opiniões. Essa facilidade de acesso aos meios de comunicação, incentiva a democratização dos debates públicos e a pluralidade de ideias sejam elas políticas, econômicas ou culturais. Todavia, ao observar o cenário mundial nos últimos 10 anos, a internet tem assumido outros papéis, marcado por novos desafios em diferentes setores da sociedade, afetando a cultura, educação e principalmente noções sobre política. Nesse sentido, diante desse cenário de acentuadas mudanças, o conceito de verdade também passou a ser alvo de questionamentos. Sua problematização se deu a partir do século XXI, a partir do que vem sendo conhecida como pós-verdade. Nessa lógica, ao observar o cenário atual relacionado à pós-verdade, observa-se que esta encontra-se sustentada na desordem informacional, em que a tomada de decisões leva em conta as convicções e crenças pessoais, sendo estas mais importantes do que os fatos objetivos. Tradicionalmente, a verdade é definida como um fato ou conjunto de fatos objetivos que são independentes das crenças ou emoções das pessoas. No entanto, a verdade também pode ser entendida como um processo social de construção de consenso em torno de certas ideias ou narrativas. Isso significa que o que é considerado verdadeiro em uma sociedade pode variar de acordo com a cultura, a política e os interesses dos grupos dominantes. Nos últimos anos, observa-se uma mudança na maneira como a verdade é percebida e valorizada na sociedade. A noção de pós-verdade, por exemplo, se refere à ideia de que as 187 emoções e as crenças têm mais influência do que os fatos objetivos na formação da opinião pública. Isso se deve em parte à crescente polarização política e à falta de confiança nas instituições, o que leva as pessoas a buscar informações que confirmem suas crenças preexistentes, em vez de procurar elementos objetivos. Esse fenômeno tem sido particularmente evidente nas últimas eleições presidenciais no Brasil. Tanto em 2018 quanto em 2022, houve uma intensa disseminação de fake news e a manipulação de informações com o objetivo de influenciar a opinião pública. As estratégias utilizadas variam desde a criação de notícias falsas até a distorção de fatos reais por meio de manipulação de imagens e vídeos. Essas práticas têm implicações significativas para a democracia e a confiança nas instituições. Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo analisar as nuances da pósverdade e como elas abriram espaço para a proliferação de desinformação e teorias da conspiração no Brasil, com ênfase nas últimas três eleições presidenciais ocorridas no Brasil. Nos canais de informação, a pós-verdade pode se manifestar na forma de notícias falsas ou desinformação, que podem se espalhar rapidamente nas redes sociais e prejudicar a credibilidade da imprensa. Além disso, a necessidade de gerar engajamento e audiência pode levar a uma ênfase excessiva em narrativas sensacionalistas ou polarizadoras, em detrimento da busca pela objetividade. Para a elaboração do respectivo trabalho, utilizou-se o método de pesquisa indutivo e, conjuntamente, foram adotadas as técnicas de pesquisa bibliográfica. Diante dos resultados obtidos, observou-se que a desinformação e a avalanche de notícias falsas dissipadas durante o pleito eleitoral influenciaram na tomada de decisão com relação ao voto dos eleitores. Essa influência poderá comprometer a liberdade de escolha eleitoral informada dos votantes, que podem direcionar seus votos com base em notícias falsas e desinformação, o que, em última instância, poderá comprometer os alicerces do estado democratico de direito brasileiro. Ademais, a desinformação pode minar a confiança das pessoas nas instituições, o que é particularmente preocupante em um momento em que a democracia está sendo desafiada em todo o mundo. Para combater a disseminação de notícias falsas e promover uma cultura de informação confiável e baseada em fatos, é necessário um esforço conjunto de governos, empresas de tecnologia, organizações da sociedade civil e cidadãos em geral. Para isso, serão discutidos os desafios e as possíveis soluções para combater a desinformação e promover uma cultura de informação confiável e baseada em fatos. Dessa forma, faz-se necessário o investimentos em educação midiática, o fortalecimento de leis e regulamentos relacionados à desinformação e a promoção de 188 iniciativas de verificação de fatos e checagem de informações. A disseminação de notícias falsas e a manipulação de informações são questões sérias que afetam a sociedade como um todo. Para enfrentá-las, é preciso compreender a natureza da verdade e da desinformação e adotar uma abordagem multifacetada que envolve governos, empresas, organizações da sociedade civil e cidadãos em geral. Breves Considerações Sobre a Pós-Verdade A pós-verdade é um fenômeno relativamente novo, mas tem suas raízes na história remota do pensamento humano. Desde a antiguidade clássica há uma preocupação com a natureza do conhecimento e da verdade. Recentemente, o termo ganhou destaque durante a campanha presidencial que elegeu Donald Trump nos Estados Unidos em 2016. A expressão “pós-verdade” foi utilizada para descrever a propagação de informações enganosas ou falsas que foram compartilhadas nas redes sociais e na mídia durante a campanha. Eleita a “palavra do ano” pelo Dicionário de Oxford, o termo é classificado como: “[...] um adjetivo definido como ‘relatando ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na opinião pública que os apelos emocionais e as crenças pessoais.” (OXFORD, 2016). O conceito de pós-verdade tem sido amplamente discutido em diversas áreas, como a política, a comunicação e a filosofia na busca de descrever uma situação em que os fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que os apelos emocionais e as crenças pessoais. Versa como uma condição na qual a opinião pública é formada por emoções, crenças e valores pessoais, em detrimento dos fatos objetivos e da racionalidade. A pós-verdade é na maioria das vezes associada com a disseminação de informações falsas ou enganosas, especialmente através das redes sociais e dos meios de comunicação, que consequentemente levam a uma polarização ainda maior da opinião pública, uma vez que as pessoas tendem a se agrupar com outros que compartilham de suas crenças e opiniões, formando bolhas de informação. Segundo Santaella: Na atual era da informação, o fluxo e a acessibilidade de informações nunca foram tão amplos e fáceis. No entanto, essa facilidade não significa que o acesso à informação é igual para todos e nem que ela está livre de vieses ou manipulações. As bolhas de informação que se formam a partir das buscas personalizadas em motores de busca, dos algoritmos das redes sociais e das opções de customização de conteúdo criam bolhas cognitivas que amplificam as crenças e convicções dos usuários e dificultam a obtenção de informações divergentes. (SANTAELLA, 2018, p. 10). Nesse sentido, o filósofo Zygmunt Bauman, em seu livro "Sobre o Tempo e Sobre o Tempo Livre", discute a crise da verdade e da razão na sociedade atual. Bauman argumenta 189 que a verdade é agora vista como uma questão de escolha pessoal, e não como uma questão de fato. Ele afirma que a sociedade contemporânea está cada vez mais dividida em tribos que têm suas próprias verdades, e que a verdade objetiva está se tornando cada vez mais difícil de encontrar. (ZYGMUNT, 2014). O termo concerne a uma alteração na percepção e no comportamento das pessoas, no sentido de uma perda da primazia pela verdade como princípio estruturante da sociedade e das decisões de interesse público e privado. A conceituação proposta por Matthew D'Ancona evidencia a preocupante realidade na qual a subjetividade e as emoções pessoais ganham mais destaque do que os fatos objetivos na formação de opiniões. Para D’Ancona: A pós-verdade é um sintoma de uma cultura que se rendeu ao relativismo, que considera todas as opiniões igualmente válidas, independentemente da evidência disponível ou da lógica que as sustenta. É um mundo em que as pessoas se fecham em suas próprias bolhas de informação, negando-se a ver qualquer coisa que possa desafiar suas opiniões preconcebidas. (D'ANCONA, 2017, p. 21). Essa abordagem relativista da verdade tem sido largamente utilizada na política, como uma ferramenta de manipulação e controle das massas. Políticos e líderes que utilizam a pós-verdade tendem a se concentrar em criar narrativas e histórias que apelam às emoções, temores e preconcepções do público, em vez de apresentar fatos e informações objetivas. Isso pode ser visto em campanhas eleitorais, debates políticos e propaganda, onde a pósverdade é usada para criar uma imagem idealizada de um candidato ou partido, por exemplo. Na tentativa de entender o fenômeno da pós-verdade e sua capacidade de influenciar a opinião, tomada de decisões e comportamento social, pesquisadores recorreram à Teoria da Dissonância Cognitiva, proposta pelo psicólogo norte-americano Leon Festinger na década de 1950. Essa teoria, sustenta que as pessoas tendem a acatar determinadas informações, ainda que inverídicas e absurdas, como uma espécie de mecanismo de defesa. Em “Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news”, D’Ancona descreve essa concepção: De acordo com a teoria da dissonância cognitiva, as pessoas têm uma tendência a buscar informações que confirmem suas próprias crenças e a rejeitar informações que contradigam essas crenças, em uma tentativa de manter a coerência interna entre suas crenças, atitudes e comportamentos. Esse mecanismo pode levar à propagação de informações falsas e distorcidas, contribuindo para o fenômeno da pós-verdade. (D'Ancona, 2017, p. 19). Segundo essa teoria, a existência de dissonância é o resultado de um desconforto emocional que ocorre quando fatos ou evidências contrariam as crenças ou cognições de uma pessoa ou grupo de pessoas. Em um exemplo prático, uma dissonância cognitiva pode 190 ocorrer quando uma pessoa se considera uma defensora dos direitos dos animais, mas consome regularmente produtos de origem animal, como carne, ovos e laticínios. Suponha que essa pessoa seja vocal sobre a importância de tratar os animais com respeito, compartilhando informações sobre os impactos negativos da indústria de alimentos de origem animal nas redes sociais e participando de protestos em defesa dos direitos dos animais. No entanto, em sua vida cotidiana, ela continua a consumir produtos de origem animal sem qualquer consideração pelos direitos e bem-estar dos animais. A tendência é que a conduta dissonante gere desconforto psíquico maior. O mesmo pode ocorrer quando um eleitor entra em contato com alguma notícia que contrarie aquilo que o eleitor possui pré estabelecido em opinião sobre um candidato. A dissonância cognitiva não é considerada uma patologia, uma doença e sim um fenômeno social e psicológico. Portanto, como um fato complexo e multifacetado que pode ter impactos em diversas áreas da sociedade, a pós-verdade pode influenciar a forma como os indivíduos se relacionam com a informação e com a realidade. No âmbito científico a pós-verdade pode levar a teorias pseudocientíficas e negação de fatos estabelecidos. Um exemplo recente, foi a disseminação de notícias falsas sobre a eficácia e segurança das vacinas contra a Covid-19, onde notícias a retratavam com o potencial de alterar o DNA humano ou até mesmo se tratar de um chip líquido para controle populacional (Agência da Hora, 2021). Mesmo com estudos científicos sólidos comprovando sua segurança e eficácia, muitas pessoas ainda resistem em se vacinar por causa de informações falsas ou distorcidas propagadas nas redes sociais. Fake News, Desinformação e Eleições Presidenciais Brasileiras De acordo com o dicionário de Cambridge o conceito de fake news corresponde a histórias falsas que aparentam ser notícias, veiculadas na internet ou em outros meios de comunicação, geralmente criadas para influenciar opiniões políticas ou como piada. Ademais, segundo Allcott e Gentzkow (2017, p. 212), fake news podem ser identificadas como “artigos noticiosos que são intencionalmente e comprovadamente falsos, e que podem enganar os leitores”. Nesse sentido, sob a perspectiva política apresentada por Zuckerman (2017b) eles procuram promover uma cultura de desconfiança e desinformação, diminuindo a capacidade do público de distinguir a credibilidade de fontes de informação (vistas agora com menor credulidade depois de tantas inverdades divulgadas e comprovadas como falsas) para erodir a força dos meios de comunicação sérios, que denunciam e fiscalizam incorreções comprováveis. 191 Nessa lógica, é válido destacar que a disseminação das fakes news está estritamente ligada aos objetivos financeiros que atraem a atenção de vasta audiência, capturada pelas suas manchetes bombásticas sem perceber que são falsas. Além disso, partindo de uma análise multidisciplinar, outros fatores influenciam significativamente a proliferação de notícias falsas, como a sua origem, o grau de credibilidade das pessoas, como também a quantidade de pessoas que estão proliferando esse tipo de conteúdo. Vale ressaltar ainda, que com a formação insuficiente em métodos argumentativos e científicos, que permitiram a realização de possíveis questionamentos sobre a veracidade dos conteúdos, por meio da formulação de críticas com pretensão de verdade, foi criado uma sociedade propensa a acreditar e confiar em todo tipo de informação, sem averiguar se as informações estão corretas, o que colabora para que essas informações sejam disseminadas nos meios de comunicação de forma muito rápida. Por esse motivo, hodiernamente se tornou necessário a verificação das fontes das notícias, isso porque, com a ascensão das novas tecnologias de informação e comunicação, em especial as redes sociais, as plataformas de publicação se tornaram mais acessíveis, contribuindo dessa forma para a fácil criação de sites para difundir mentiras. Atualmente, as notícias falsas se espalham de forma muito rápida, principalmente pelas redes sociais e alcançam um grande público. Esse grande alcance e a capacidade rapidamente captaram a atenção de determinados segmentos políticos, de modo que as fake news fizeram parte do cenário político brasileiro nos últimos anos e se proliferaram sob o argumento de exercício do direito à liberdade de expressão e pensamento. Sem dúvidas, a liberdade de expressão é uma importante conquista da democracia brasileira, não se tratando de uma licença para difundir desinformação ou para espalhar discursos de ódio e intolerância. Entretanto, muitas pessoas e grupos têm usado essa garantia constitucional como justificativa para difundir informações falsas e sem base factual. Esse comportamento é ainda mais preocupante quando chega aos mais altos níveis do poder, como se observa com a disseminação de notícias deturpadas por políticos e líderes governamentais, que serão abordadas neste tópico. As últimas eleições brasileiras foram marcadas por uma grande quantidade de desinformação e fake news, que teve influência na opinião pública e no próprio resultado das eleições. Embora as fake news, em pleitos eleitorais, sejam utilizadas por diferentes partidos do espectro direita-esquerda, esta tem encontrado mais legitimidade dentro dos candidatos populistas de direita (D’ANCONA, 2018) . Bem como Donald Trump nos EUA, Marine Le 192 Pén na França, Victor Orbán na Hungria e Jair Bolsonaro no Brasil, utilizaram de discursos de ódio a seus “oponentes ilegítimos”. (APPLEBAUM, 2020) A eleição presidencial brasileira de 2014 foi caracterizada por uma série de transmutações políticas e momentos de dubiedade em relação ao resultado da votação. Assim como em eleições anteriores, houve uma acentuada polarização entre o Partido dos Trabalhadores (PT), com a candidata à reeleição Dilma Rousseff, e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), com o candidato Aécio Neves. Apesar de Dilma ter suportado um desgaste político decorrente das manifestações de 2013 e da crise econômica que o país facejava, as expectativas indicavam que haveria um segundo turno entre Dilma e Aécio Neves (BORTOLETTO; BURGOS, 2015; SANTOS, 2015). No entanto, pouco antes do primeiro turno, a morte de Eduardo Campos (PSB) em um acidente de helicóptero em 13 de agosto levou Marina Silva, candidata a vice-presidente, a se apresentar como uma terceira via na polarização, ganhando impulso nas intenções de voto (SILVA; MARTINS; MELLO, 2016). No mês que precipitava as eleições, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) (2014) revelou que Dilma liderava com 39% das intenções de voto, seguida por Marina Silva com 31% e Aécio Neves com apenas 15% das intenções de voto. No entanto, em setembro, houve um aumento na propaganda negativa contra Marina Silva, tanto do PT quanto do PSDB (BORTOLETTO; BURGOS, 2015), o que levou a uma súbita queda em sua popularidade, resultando em 21% dos votos no primeiro turno e indicando um segundo turno entre Dilma, com 41,59% dos votos, e Aécio Neves, com 33,54% dos votos (TSE, 2014). Durante as eleições de 2014, apesar das fake news não terem tido o mesmo nível de impacto e circulação que ocorreu em 2018, houve uma grande quantidade de notícias falsas em formato de imagens disseminadas durante as campanhas eleitorais. Algumas dessas notícias incluíam documentos forjados mostrando a candidata Dilma Rousseff como terrorista e assaltante de banco, além de imagens manipuladas do candidato Aécio Neves em uma festa com pessoas semi nuas segurando garrafas de bebida alcoólica. Houve também a propagação de boatos sobre a candidata Marina Silva ter recebido 25 milhões de Eduardo Campos após sua morte e de que o réu da Operação Lava Jato, Alberto Yussef, havia sido envenenado e estava morto, por “saber demais”. (BRUGNAGO; CHAIA, 2015). Nesse ponto, o uso de robôs para incitação das notícias falsas nas mídias sociais também foi detectado durante o período das eleições, e esse fato se tornaria ainda mais frequente nas eleições subsequentes. (RUEDIGER, 2018b). 193 O alastro de notícias falsas e a deslegitimação da oposição foram alguns dos elementos presentes nas eleições de 2018, contaminando o processo eleitoral desde o seu início. Tal situação gerou um clima de animosidade entre grupos políticos e apoiadores de candidatos específicos, manifestando-se em trocas de ofensas nas redes sociais e, em alguns casos, até em violência nas ruas. Nesse período, a operação Lava Jato ganhou destaque por sua investigação de crimes de corrupção envolvendo políticos e empresas prestadoras de serviços ao Estado, gerando uma grande midiatização e judicialização da política (ABRANCHES, 2019, p. 20). O expresidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi indicado como candidato a presidente em agosto de 2018, mesmo estando preso desde abril do mesmo ano. Embora estivesse sendo alvo da polêmica Operação Lava Jato, Lula era o candidato com maior intenção de votos na época de sua prisão (39%, segundo o Datafolha), e havia grande divisão popular quanto à imparcialidade de sua condenação (ALMEIDA, 2018; MELO, 2019). No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou Lula como inelegível em 31 de agosto, e Fernando Haddad (PT) e Manuela D'Ávila (Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foram registrados como seus substitutos à presidência e vice-presidência, respectivamente (FACHIN; MACHADO, 2018). Um dos casos mais emblemáticos foi o da facada sofrida por Jair Bolsonaro durante um ato de campanha em setembro de 2018. A partir daí, surgiram diversas teorias conspiratórias sobre o ocorrido, com acusações infundadas de que o atentado teria sido forjado pela própria campanha de Bolsonaro como uma estratégia para ganhar votos (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Além disso, muitas notícias falsas foram compartilhadas nas redes sociais, especialmente no WhatsApp, aplicativo de mensagens que se tornou um importante meio de disseminação de informações falsas durante a campanha eleitoral (MARQUES; NASCIMENTO; SANTOS, 2019). Segundo uma pesquisa do Instituto Datafolha, 62% dos brasileiros afirmaram ter recebido notícias falsas sobre política pelo WhatsApp durante a campanha (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018). Essas informações falsas tiveram um grande impacto na eleição, especialmente em relação aos candidatos de esquerda, como Fernando Haddad e Manuela D'Ávila. Haddad, por exemplo, foi alvo de diversas fake news, como a acusação de que teria distribuído um "kit gay" nas escolas quando foi ministro da Educação (FOLHA DE SÃO PAULO, 2018). Já Manuela D'Ávila teve sua imagem associada a mensagens de WhatsApp falsas que a acusavam de ser ateia e de querer acabar com o cristianismo (MOURA, 2020). 194 Um dos especialistas que discutem a influência da desinformação nas eleições de 2018 é o professor de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), Pablo Ortellado. Em entrevista à BBC News Brasil, Ortellado afirma que as fake news foram uma das principais responsáveis pela eleição de Jair Bolsonaro, já que contribuíram para moldar a opinião pública a favor do então candidato. Segundo Ortellado: as notícias falsas foram disseminadas de maneira sistemática e organizada, com o uso de robôs e perfis falsos nas redes sociais. Além disso, muitas delas tinham um apelo emocional forte, explorando medos e preconceitos da população. [...] as fake news foram utilizadas para atacar os adversários de Bolsonaro, especialmente os candidatos de esquerda, criando um ambiente de polarização e desconfiança em relação aos partidos tradicionais. (Ortellado, 2021, p.1) Ele ressalta, porém, que a desinformação não foi o único fator a influenciar o resultado da eleição, mas sim um elemento importante em um contexto mais amplo de crise política e econômica. Essa ressalva se demonstra necessária, especialmente em razão da dificuldade de se comprovar uma relação causal direta entre o compartilhamento de fake news e o resultado das eleições. Outro especialista que discute o tema é o professor de comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fábio Malini. Em artigo publicado na Revista Comunicação & Política, Malini afirma que a disseminação de notícias falsas durante as eleições de 2018 foi parte de um processo mais amplo de manipulação da opinião pública, que incluiu também o uso de técnicas de propaganda e a exploração de redes sociais para criar uma bolha de opiniões e informações que reforçam as visões dos apoiadores de Bolsonaro. Para Malini: A desinformação não é apenas um problema de informação, mas também de poder. Ele destaca que a manipulação da opinião pública através de notícias falsas é uma forma de controlar a agenda política e os rumos da democracia, restringindo o debate público e as possibilidades de mudança social. (Malini, 2020, p. 50). Em março de 2021, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou todas as condenações do ex-presidente Lula relacionadas à Operação Lava Jato na 13ª Vara Federal de Curitiba, por considerar que a vara não tinha competência para julgar os casos, já que as acusações não estavam diretamente relacionadas a desvios na Petrobras. Com isso, Lula recuperou seus direitos políticos e pode concorrer ao pleito em 2022, com Jair Bolsonaro concorrendo à reeleição e Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente do Brasil, como seu principal adversário. 195 Durante as eleições de 2022 no Brasil, a desinformação e as fake news foram um grande desafio para os candidatos e eleitores. Além do WhatsApp, outras plataformas como o Facebook e o Twitter também foram utilizadas para disseminar informações falsas e enganosas. De acordo com a Agência Lupa, foram identificadas mais de 2.800 notícias falsas durante a campanha eleitoral, sendo que cerca de 1.800 delas foram disseminadas pelo WhatsApp. As mensagens falsas abordavam diversos temas, desde acusações infundadas contra candidatos até a propagação de teorias conspiratórias. Segundo Thiago Tavares, presidente da organização SaferNet Brasil, que atua no combate à violação dos direitos humanos na internet, o WhatsApp é o principal vetor desse tipo de informação, já que é usado para disseminar conteúdo sem que as pessoas possam verificar a veracidade das informações. Tavares afirma que, além das informações falsas, o WhatsApp também é utilizado para espalhar mensagens de ódio e intolerância, o que pode criar um clima de polarização e violência durante as eleições. (Tavares, 2021). Embora estudos aprofundados sobre a mais recente eleição ainda não tenham sido divulgados, ao que se espera a tendência de que a desinformação tenha afetado o resultado das urnas eletrônicas é prenunciado. Nesse pleito concorreram duas grandes figuras da política brasileira, contando com apoiadores fanáticos, em ambos os lados. Os candidatos possuíam grande força de comunicação em suas redes sociais, que contavam com milhares de seguidores. Outro fator que contribuiu para o clima de polarização e violência durante as eleições de 2022 foi a atuação de grupos extremistas e milícias digitais, que disseminaram mensagens de ódio e ataques contra adversários políticos. Esse tipo de prática é ilegal e pode ser enquadrada como crime eleitoral, mas a dificuldade em identificar e responsabilizar os autores desses ataques é um desafio a ser enfrentado pelas autoridades. Considerações Finais A noção de verdade passou por uma transformação, com a pós-verdade ganhando destaque. Em vez de depender de fatos objetivos, a formação de opinião pública muitas vezes é influenciada por emoções, crenças pessoais e narrativas tendenciosas. Esse fenômeno foi evidente nas últimas eleições presidenciais no Brasil, onde a disseminação de fake news e desinformação geraram impactos significativos na tomada de decisão dos eleitores. A liberdade de escolha informada dos votantes foi ameaçada, com potenciais consequências prejudiciais para a integridade do sistema democrático. A desinformação não apenas influencia as eleições, mas também mina a confiança nas instituições, algo alarmante 196 em um momento em que a democracia enfrenta desafios globais. Para abordar esse problema complexo, é fundamental um esforço conjunto e coordenado. Investir em educação midiática é essencial para capacitar as pessoas a discernir entre informações confiáveis e enganosas, capacitando-as a se tornarem consumidores críticos de conteúdo. Além disso, fortalecer leis e regulamentos relacionados à desinformação é uma medida importante para responsabilizar aqueles que espalham notícias falsas e distorcem informações. A promoção de iniciativas de verificação de fatos e checagem de informações também desempenha um papel crucial na correção da desinformação disseminada. No entanto, a solução não recai apenas sobre os governos e instituições. As empresas de tecnologia têm um papel significativo na promoção de um ambiente online seguro e confiável. A implementação de algoritmos que priorizem informações precisas e verificadas, juntamente com o combate eficaz às contas falsas e à propagação de desinformação, é fundamental para mitigar o problema. Por fim, os cidadãos também desempenham um papel vital nesse esforço coletivo. Ao serem críticos em relação às informações que consomem, compartilham e apoiam, as pessoas podem ajudar a construir uma cultura de informação baseada em fatos. O engajamento ativo na busca pela verdade e na promoção do diálogo construtivo é essencial para fortalecer os alicerces da democracia e preservar a integridade do processo eleitoral. Em um cenário em constante evolução, em que a tecnologia continua a moldar a forma como interagimos e acessamos informações, é imperativo que todos os setores da sociedade trabalhem juntos para enfrentar a desinformação, proteger a verdade e garantir que a democracia permaneça sólida e participativa. Somente por meio de esforços colaborativos e ações coordenadas podemos enfrentar os desafios da pós-verdade e garantir um futuro informado, transparente e verdadeiro. Referências: APPLEBAUM, A. Twilight of Democracy: The Seductive Lure of Authoritarianism. New York: Doubleday, 2020. ABRANCHES, M. P. Midiatização e judicialização da política no Brasil. In: ANNUAL REVIEW OF POLITICAL SCIENCE, v. 22, n. 1, p. 19-36, 2019. ABRANCHES, S. H. M. A política no Brasil após a Lava Jato. 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A ausência de mecanismos legais para a equiparação entre negros e brancos no mercado de trabalho viola a Constituição Federal brasileira de 1988. 5. Considerações finais. Referências Bibliográficas. Resumo: As estatísticas oficiais no Brasil revelam uma disparidade salarial entre trabalhadores brancos e negros, uma falta de representação da população negra em cargos de liderança e uma predominância da população negra no setor informal de trabalho. No entanto, apesar desses dados estatísticos, a compreensão mais comum sobre o racismo no mercado de trabalho geralmente parte do pressuposto de discriminação direta ou de uma disparidade baseada em classe social. Considerando que o Brasil manteve a escravidão de pessoas negras como regime econômico e político por muitos séculos, a mente coletiva da sociedade brasileira está permeada por estereótipos que descrevem e prescrevem comportamentos em relação às pessoas negras. A concepção tradicional do fenômeno discriminatório não consegue explicar a discriminação quando não há intenção consciente por trás dela. Porém, ao considerarmos o fenômeno do favoritismo de grupo, podemos obter explicações mais abrangentes sobre essa problemática. Tal estado de coisas inconstitucional acaba por violar a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na medida em que afronta a dignidade da pessoa humana, os objetivos da República, a igualdade e a busca do pleno emprego. Ainda, a Constituição da República Federativa do Brasil estabeleceu que a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental da República. Embora haja diferentes interpretações na doutrina e jurisprudência, é crucial destacar a importância normativa desse valor: a dignidade da pessoa humana, conforme estabelecido constitucionalmente, deve ser a base para a formulação de políticas públicas e a interpretação do direito. Palavras-chave: Racismo; Mercado-de-Trabalho; Favoritismo-de-Grupo; Estado-decoisas-inconstitucional; Abstract: Official statistics in Brazil reveal a wage disparity between white and black workers, a lack of representation of the black population in leadership positions, and a predominance of the black population in the informal labor sector. However, despite these statistical data, the common understanding of racism in the labor market often assumes direct discrimination 1Mestrando em Direito Político e Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e-mail: [email protected] 2Pesquisador-bolsista do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV. Pesquisador do Observatório de Teses Tributárias da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestrando em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e-mail: [email protected] 3 Mestrando em Direito da Saúde – Dimensões individuais e coletivas pela Universidade Santa Cecília, e-mail: [email protected] 200 or disparities based on social class. Considering that Brazil maintained the enslavement of black people as an economic and political system for many centuries, the collective mindset of Brazilian society is permeated with stereotypes that describe and prescribe behaviors towards black individuals. The traditional conception of the discriminatory phenomenon fails to explain discrimination when there is no conscious intention behind it. However, by considering the phenomenon of in-group favoritism, we can obtain comprehensive explanations for this issue. Such an unconstitutional situation ends up violating the 1988 Constitution of the Federative Republic of Brazil, insofar as it affronts the dignity of the human person, the objectives of the Republic, equality, and the search for full employment. Furthermore, the Constitution of the Federative Republic of Brazil established that the dignity of the human person is a fundamental principle of the Republic. Despite different interpretations in doctrine and jurisprudence, it is crucial to highlight the normative significance of this value: the dignity of the human person, as constitutionally established, should serve as the foundation for the formulation of public policies and the interpretation of the law. Keywords: Racism; Labor-Market; Ingroup-Favoritism; Unconstitutional-situation; 1. Introdução Ao verificar a realidade brasileira observa-se que os fundamentos elementares da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho não são observados.4 De acordo com os dados levantados pelos órgãos oficiais brasileiros, as pessoas brancas recebem, em média, nas ocupações formais, o valor de R$ 3.282, já a população negra, quando ocupa a mesma posição de trabalho, aufere a título de salário, em média, R$ 2.082. 5 No mesmo sentido, os dados disponíveis apontam que, em todo o país, o número de negros e pardos em ocupações informais é sempre maior do que o de pessoas brancas. No documento intitulado Estudos e Pesquisas - Informação Populacional e Socioeconômica n.41, divulgado pelo IBGE, também é evidenciada uma grande discrepância: a maioria das posições de liderança é ocupada por indivíduos de etnia branca. De forma mais precisa, 68,6% dos cargos gerenciais no Brasil são desempenhados por pessoas de ascendência branca, ao passo que somente 29,9% dessas posições são ocupadas por indivíduos negros.6 Neste contexto, dada a natureza claramente discriminatória e todos os reflexos que tais fatos podem ter e – efetivamente tem –, é necessária uma análise sobre possíveis causas da 4O artigo I da Constituição Federal de 1988 estabelece: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.” (BRASIL, 1988, s/pg.). 5 IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e Pesquisas – Informação Demográfica e Socioeconômica n.41. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/ liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 10/02/2021. 6IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e Pesquisas – Informação Demográfica e Socioeconômica n.41. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/ liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 10/02/2021. 201 discriminação e da disparidade entre negros e pardos em comparação as pessoas brancas no mercado de trabalho brasileiro. É o que se pretende fazer neste trabalho Para tanto, buscou-se, no segundo tópico, identificar as formas pelas quais a discriminação organizacional se dá no mercado de trabalho, com fundamento na teoria do direito antidiscriminatório e do racismo estrutural. No terceiro tópico, fez-se uma intersecção entre teoria do direito antirracista e fundamentos psicológicos dos fenômenos racialmente discriminatórios. No ponto, observou-se que a teoria do favoritismo de grupo, cuja finalidade foi identificar como as pessoas em posições privilegiadas pela raça perpetuam o racismo, é instrumento analítico hábil a fornecer subsídios epistemológicos para a construção de uma teoria do direito antirracista que milita a favor da diminuição da desigualdade racial. Por fim, no quarto tópico, tentou-se apontar como esta discriminação indireta no mercado de trabalho viola frontalmente a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), em especial se pensarmos na dignidade da pessoa humana (ex vi inciso III do artigo 1º da CF/88), nos objetivos da república (ex vi inciso IV do artigo 3º da CF/88), na igualdade (ex vi artigo 5º da CF/88), e na busca pelo pleno emprego (ex vi inciso VIII do artigo 170 da CF/88). O método utilizado foi de análise de dados estatísticos coletados por órgãos de pesquisa públicos do Brasil e levantamento bibliográfico, em especial nas áreas de direito antidiscriminatório, direito constitucional e direito econômico. 2. Discriminação Organizacional e Direito Antidiscriminatório A teoria da neutralidade racial, muito vigente ainda no Brasil, é uma forte narrativa, pois sustenta a tese de que os problemas sociais são única e exclusivamente decorrentes de disparidades de classes econômicas, passando ao largo da discussão sobre raça7. Entretanto, ao examinar os dados do mercado de trabalho e a composição racial da população, em um país onde 54% dos seus habitantes são negros ou pardos, é evidente a alarmante disparidade na distribuição de renda proveniente do trabalho no Brasil quando analisada pelo critério racial. Logo, necessário um aprofundamento sobre as possíveis causas. Tendo em vista que o Brasil teve o regime da escravidão das pessoas negras vigente por séculos, o inconsciente coletivo da sociedade brasileira está recheado de estereótipos descritivos e prescritivos sobre pessoas negras8. 7MOREIRA, A.J. Pensando como um negro – ensaio de hermenêutica jurídica. 1. ed. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. p. 186-187. 8RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. 3. ed. São Paulo: Global, 2015. p. 88. 202 A ideia tradicional sobre o que é o fenômeno discriminatório é incapaz de explicar a discriminação quando ausente o requisito da intencionalidade. Neste contexto, a teoria da discriminação organizacional nos explica que essa desigualdade pode ser resultado de processos psicológicos que ocorrem independentemente da intenção do indivíduo que discrimina9. Essa falta de intencionalidade está associada ao fato de que os responsáveis pela contratação e promoção de funcionários no mercado de trabalho são influenciados por treinamentos culturais que os levam a valorizar características positivas em pessoas que se assemelham a eles, além de buscar indicações dentro de seus círculos de amizade, o que geralmente resulta na seleção de candidatos semelhantes a eles mesmos.10 Segundo Adilson Moreira: Se a discriminação direta pressupõe a existência da intencionalidade, a teoria da discriminação organizacional considera o papel de processos inconscientes e da cultura institucional na discriminação de certas classes de indivíduos no mercado de trabalho.11 Como aponta Sílvio Almeida, a sociedade brasileira é marcada por um racismo entranhado na construção da subjetividade política do cidadão, de forma que a sua manifestação e percepção é velada e matizada por formas indiretas de discriminação negativa por critérios de raça12. Na estrutura racialmente demarcada, as instituições públicas e privadas são segmentárias e possuem como critério de seleção indireta a raça. Naturalmente, há pequenas formas de racismo evidente, i.e., manifestações expressas de desprezo ou diminuição da cultura negra. O que ocorre na realidade é a construção de mecanismos sociais e econômicos que privilegiam os brancos13. Ora, os dados estatísticos levantados são evidentes em atestar uma diferença objetiva entre brancos e negros no mercado de trabalho: brancos que possuem a mesma formação acadêmica e histórico profissional são majoritariamente favorecidos em relação aos negros que possuem a mesma qualificação. Logo, o elemento da raça é o critério isolado que permite auferir a diferença de nível de emprego e remuneração. É neste ponto que uma teoria do direito antidiscriminatório deve funcionar como guia prático para a construção de uma interpretação jurídica a favor da equiparação de condições econômicas entre brancos e negros, bem como para a formação de políticas 9MOREIRA, 10Idem. 11 A.J. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. p. 439. Idem. 12ALMEIDA, 13ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 1. ed. São Paulo: Pólen, 2019. p. 33. S. Racismo Estrutural. 1. ed. São Paulo: Pólen, 2019. p. 31. 203 públicas e legislativas que visem a diminuição das diferenças trabalhistas entre os grupos referidos. 3. Favoritismo de Grupo como Explicação Psicológica da Discriminação Relacionada com a questão do racismo estrutural e da formação histórica do Brasil, a psicologia pode fornecer importantes inputs estatísticos e epistemológicos para demonstrarmos como o racismo atua no mercado de trabalho brasileiro. Neste sentido, a teoria do favoritismo de grupo fornece importantes instrumentos metodológicos e respostas cientificamente demarcadas sobre a discriminação, partindo de estereótipos sobre grupos excluídos. Tal fenômeno ocorre a partir de estereótipos positivos sobre o grupo majoritário e negativo sobre os grupos minoritários. Essa ideia de que apenas o grupo majoritário possui atributos positivos é atribuída à teoria do preconceito inconsciente. Essa teoria evidencia que grupos privilegiados tendem a mostrar uma preferência pelo seu próprio grupo, enquanto grupos menos favorecidos também podem apresentar uma maior preferência pelo grupo social dominante em detrimento do seu próprio grupo menos favorecido. Na maioria das vezes, esse favoritismo ocorre de forma implícita e inconsciente.14 A teoria do favoritismo de grupo nos conta que grupos mais favorecidos por meio do inconsciente sempre dão preferência para o seu próprio grupo e demonstram preconceito com os grupos menos favorecidos. Isto porque, de acordo com a referida teoria, há uma preferência implícita escondida e não demonstrada explicitamente que leva ao grupo majoritário perpetuar-se no poder, escolhendo pessoas pertencentes a este grupo para a ocupação de vagas de trabalho, por exemplo. Essa teoria também revela que grupos socialmente menos privilegiados tendem a demonstrar menos preferência implícita pelo seu próprio grupo e maior preferência pelo grupo socialmente dominante. Em resumo, o fenômeno do favoritismo de grupo acaba servindo como um mecanismo para a manutenção dos privilégios sociais, já que, mesmo de maneira inconsciente, há uma tendência em perceber indivíduos do grupo dominante como sendo superiores aos do grupo menos favorecido. Nas palavras de Dasgupta: Na medida em que as atitudes e crenças implícitas funcionam como quaisquer outras atitudes e crenças, é improvável que permaneçam 14DASGUPTA, N. Implicit ingroup favoritism, outgroup favoritism and their behavioral manifestations. Social Justice Research, v. 17, n.2, p. 161, 2004. 204 confinados à mente, mas em vez disso, deve se difundir nos julgamentos, decisões e comportamento das pessoas de maneiras que mantem as desigualdades e hierarquias sociais e, às vezes, até as agrava. A ideia de que preconceitos e estereótipos implícitos têm o potencial de moldar o comportamento impulsionou a pesquisa em uma nova direção que se concentra em testar o “link” entre tais atitudes e vários tipos de comportamento, julgamentos e decisões (tradução nossa).15 Embora o favoritismo de grupo seja frequentemente implícito e inconsciente, ele tem consequências tangíveis ao favorecer a percepção de que o grupo dominante é detentor dos melhores atributos, sejam eles morais ou intelectuais. Dessa forma, o favoritismo de grupo nos possibilita compreender e identificar os mecanismos e padrões mentais que contribuem para a perpetuação de privilégios e a exclusão dos grupos menos privilegiados. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, os membros do grupo dominante e até mesmo os próprios membros do grupo menos privilegiado tendem a ter uma visão negativa desses últimos Segundo Nilanjana Dasgupta16, embora o favoritismo de grupo seja frequentemente implícito e inconsciente, esse fenômeno tem consequências tangíveis ao favorecer a percepção de que o grupo dominante é detentor dos melhores atributos, sejam eles morais ou intelectuais. Dessa forma, o favoritismo de grupo nos possibilita compreender e identificar os mecanismos e padrões mentais que contribuem para a perpetuação de privilégios e a exclusão dos grupos menos privilegiados. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, os membros do grupo dominante e até mesmo os próprios membros do grupo menos privilegiado tendem a ter uma visão negativa desses últimos.17 4. A Ausência de Mecanismos Legais para a Equiparação entre Negros e Brancos no Mercado de Trabalho Viola a Constituição Federal Brasileira de 1988 A Constituição Federal brasileira de 1988 incorporou diversas perspectivas morais subjacentes ao período em que foi formulada. O texto constitucional brasileiro é formado por um plexo de ideias que, a despeito de decorrerem de grupos conflitantes, devem ser interpretadas de forma uníssona e coesa18-19. Logo no inciso III do artigo 1º, a Constituição determinou que a dignidade da pessoa humana consiste em fundamento da República Federativa do Brasil. A despeito de se tratar de instituto assaz esgarçado pela doutrina e pela jurisprudência, é fundamental ressaltar a Idem. DASGUPTA, N. Implicit ingroup favoritism, outgroup favoritism and their behavioral manifestations. Social Justice Research, v. 17, n.2, p 143, 2004. 17Idem. 18BARROSO, L.R.. Direito Constitucional Contemporâneo. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 404. 19Sobre interpretação coesa da constituição, ver: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra, Almedina, 2003. p. 1.225. 15 16 205 normatividade deste valor: a dignidade da pessoa humana, por força constitucional, deve servir de fundamento para a construção de políticas públicas e para a interpretação do direito. A relevância deste princípio é tão clara que, topograficamente, ele se encontra abaixo apenas da soberania e da cidadania. Logo, qualquer objeção de que vagueza ou indeterminação da acepção de dignidade da pessoa humana inviabiliza a sua observância na construção de políticas públicas e na interpretação do direito deve ser, de pronto, rechaçada, em razão da relevante posição que o referido princípio assume na estrutura constitucional brasileira. De acordo com Celso Bastos e Ives Gandra Martins, a dignidade da pessoa humana busca englobar todos os tipos de direitos fundamentais referidos ao longo da Constituição Federal brasileira de 1988, de forma que a violação de quaisquer destes direitos implicará afronta à norma do inciso III do artigo 1º20. Neste contexto, a inexistência de mecanismos legais efetivos para a redução da desigualdade entre brancos e negros no mercado de trabalho impede a consecução do objetivo de bem-estar de todos, sem qualquer discriminação racial, prevista no inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal brasileira de 1988. Ora, é impossível garantir bem-estar a todos se negros (i) são impedidos de entrar no mercado de trabalho em razão do racismo estrutural e do favoritismo de grupo existente ou, quando dentro do mercado de trabalho, (ii) são impedidos de auferir o mesmo patamar salarial e profissional que brancos, pelas mesmas razões. Como aponta novamente Celso Bastos e Ives Gandra Martins, a ideia constitucionalizada no inciso IV do artigo 3º foi a de igualdade, cujo teor também foi constitucionalizado no caput do artigo 5º21. Sobre a questão de igualdade e raça, Virgílio Afonso da Silva indica que: Por um longo tempo, muitos supuseram (e alguns ainda supõem) que o Brasil seria um exemplo de democracia racial, embora essa visão idílica venha sendo contestada há décadas. Nos anos 1950, o Fundo das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) patrocinou pesquisas com o intuito de compreender melhor a experiência racial brasileira. Alguns resultados revelaram uma realidade distinta daquela esperada. Democracia racial, no Brasil, é, e sempre foi, um mito. (...) O debate constitucional sobre igualdade é, portanto, fortemente influenciado por um debate mais geral sobre racismo no Brasil. 22 20BASTOS, C.R.; MARTINS, I.G. Comentários à Constituição do Brasil – volume 01. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 425. 21BASTOS, C.R.; MARTINS, I.G. Comentários à Constituição do Brasil – volume 01. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 447. 22SILVA, V.A.. Direito Constitucional Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2020. p. 138. 206 Ora, é consectário lógico da ordem de ideias acima a concepção de que o racismo no Brasil é fenômeno a ser enfrentado para a construção de um ambiente efetivamente igualitário e democrático. A Constituição Federal brasileira de 1988incluiu dois dispositivos que tratam da questão, indicando, no caso do objetivo da república, a raça como critério para a não realização de discriminação. É dizer, se não se pode realizar diferenças entre brancos e negros para a construção de um ambiente de bem-estar geral, a existência de discriminação para vagas e salários no Brasil entre os dois grupos raciais é fator impeditivo da consecução dos objetivos da República, devendo o Estado formular políticas públicas visando a resolução do problema. Por fim, em relação ao pleno emprego, verifica-se que se trata de um princípio fundamental da ordem econômica (inciso VIII do artigo 170 da Constituição Federal brasileira de 1988), de forma que sua busca deve ser envidada por todos os agentes econômicos (Estado e particulares).; Acerca do tema, André Ramos Tavares salienta que o pleno emprego se trata de “situação em que seja, na medida do possível, aproveitada pelo mercado a força de trabalho existente na sociedade.”23. Vale dizer, a ideia de busca pelo pleno emprego, além de ser contrária a concepção puramente liberal e capitalista de mercado 24, traz consigo importante instrumento na calibragem da atuação estatal na fiscalização e intervenção na economia: sempre que Estado agir no mercado, o deverá fazer para, dentre outras coisas, buscar a ocupação máxima dos indivíduos profissionalmente disponíveis na sociedade. Como visto, a discrepância entre negros e brancos, proporcionalmente, no mercado de trabalho representa grave afronta à busca pelo pleno emprego. Mais ainda: não existem, atualmente, políticas públicas efetivas no âmbito do Estado brasileiro para o saneamento do problema. Em suma, este capítulo serviu para evidenciar como o racismo estrutural evidenciado nas diferenças entre brancos e negros no mercado de trabalho viola o texto constitucional. 5. Considerações Finais Evidenciou-se que no Brasil existe uma marcante disparidade racial no mercado de trabalho. Independentemente da perspectiva adotada, a população negra enfrenta uma 23TAVARES, 24TAVARES, A.R.Direito constitucional econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 205. A.R.. Direito constitucional econômico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 205. 207 posição desvantajosa: está sub-representada em cargos de chefia e liderança, recebe salários mais baixos em comparação aos trabalhadores brancos, mesmo com níveis educacionais semelhantes, e constitui a maioria dos trabalhadores informais. Apesar dos dados oficiais deixarem claro que a diferença é fundamentada na raça, observamos que ainda prevalece no Brasil a percepção de que o problema está relacionado apenas à disparidade de classe, ou seja, a pobreza seria o único fator relevante. Essa percepção advém da chamada Doutrina da Democracia Racial, que defende a inexistência do racismo no Brasil, admitindo apenas sua manifestação em formas individuais e diretas. Essa doutrina argumenta que, por sermos um país miscigenado, a raça não teria relevância nem seria um fator discriminatório na sociedade brasileira. O favoritismo de grupo evidencia que, frequentemente de maneira inconsciente e implícita, os grupos mais privilegiados demonstram preferência pelo seu próprio grupo e tendem a ter preconceitos em relação aos grupos externos, enquanto os próprios membros dos grupos menos privilegiados têm uma preferência menor pelo seu próprio grupo e uma maior preferência pelo grupo dominante. Além disso, com base em estereótipos e vieses, as pessoas têm a tendência de preterir indivíduos negros e interpretar suas ações de forma negativa e estereotipada. Esse favoritismo também pode ser um fator explicativo para a exclusão de pessoas negras no mercado de trabalho, uma vez que a gestão e os cargos de liderança são predominantemente ocupados por pessoas brancas, que tendem a privilegiar seu próprio grupo em detrimento de outros. Isso resulta na avaliação dos negros com base em estereótipos raciais, independentemente de suas intenções, uma vez que o preconceito implícito e os vieses atuam de maneira automática e inconsciente. A referida abordagem e a referida teoria merecem uma atenção maior dos pesquisadores e juristas interessados na causa da igualdade racial e de uma sociedade mais justa, haja vista que a disparidade no mercado de trabalho implica, necessariamente, na piora das condições de vida e na perpetuação da desigualdade social. Neste contexto, verificou-se também uma violenta afronta ao texto constitucional, eis que a diferença entre negros e brancos no mercado de trabalho viola a dignidade da pessoa humana, a busca pelo bem-estar de todas e todos, sem qualquer discriminação de raça, a igualdade formal e a busca pelo pleno emprego. Sem a construção de políticas públicas eficientes e sem uma interpretação jurídica que considere a raça como critério relevante para a construção de normas, o Estado brasileiro 208 incorrerá em inconstitucionalidade por omissão, eis que estar-se-á diante de um Estado de coisas inconstitucional. 5. Referências Bibliográficas ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 1. ed. São Paulo: Pólen, 2019. BARROSO, L.R. Direito Constitucional Contemporâneo. Educação, 2018. 7. ed. São Paulo: Saraiva BASTOS, C.R.; MARTINS, I.G. Comentários à Constituição do Brasil – volume 01. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: DASGUPTA, N. Implicit ingroup favoritism, outgroup favoritism and their behavioral manifestations. Social Justice Research, v. 17, n.2, p. 156 - 157, 2004. IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 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Rio de Janeiro: Forense, 2011. 209 Reflexões sobre a Concepção Coletiva da Reparação Integral às Vítimas de Violência do Estado Reflections on the Collective Concepto of full Repararation for Victims of State Violence Fernanda Andrade da Rocha1 Isabella Arruda Pimentel2 Zilda Letícia Correia Silva3 Sumário: 1. Apontamentos iniciais; 2. A reparação integral dos sujeitos coletivos de direito na instituição dos direitos de transição; 3. Os sujeitos coletivos de direito na luta por memória, verdade e justiça; 4. Considerações Finais. Resumo: O presente artigo busca explorar a concepção coletiva da reparação às vítimas de violência do Estado. A reparação às vítimas é um dos eixos da Justiça de Transição que aglutina atos judiciais e não-judiciais (políticas públicas) de passagem da exceção para a construção do Estado Democrático de Direito e reconciliação social após períodos autoritários. O Estado brasileiro por meio de sua Constituição Federal (1988) elegeu o eixo da reparação às vítimas, através da anistia política, para ser o eixo estruturante de sua transição política. Nesse sentido, o trabalho investigará a questão social da reparação às vítimas como uma demanda de reconhecimento por busca de dignidade dos sujeitos afetados pela violência estatal, considerando que o processo de reparação é uma questão de restituição da dignidade por meio do direito à memória e à verdade sobre as violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura civil militar brasileira. Como o pensamento dominante é revestido de neutralidade, enquanto na verdade é reprodutor de estigmas, entende-se que em contextos de diversidade cultural é urgente a construção emancipatória dos direitos que passa, inevitavelmente, pela criação de espaços para que as organizações da sociedade possam refletir e desenvolver as suas formulações. A política de reparação integral às vítimas de violência do Estado, manejada pela Comissão de Anistia no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, atualmente introduziu a concepção coletiva da reparação delineando a possibilidade inédita de anistia coletiva, assim, o objetivo do estudo reside em discutir sobre o passado de violações e seu legado no presente, tendo como foco a importância de melhor entendimento sobre a questão da reparação coletiva, que se configura como uma política inovadora no âmbito da estrutura do Estado brasileiro que possui a missão institucional de analisar requerimentos de anistia política. Para tanto, o estudo se utilizou de uma metodologia qualitativa, em que o polo teórico foi construído a partir da teoria crítica do direito e dos conceitos da Justiça de Transição, com pesquisa 1 Doutora em Sociologia (UFPB), sendo mestra em Sociologia e graduada em Comunicação Social. Pesquisadora e coordenadora do Memorial da Democracia da Paraíba, integra a direção executiva da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia. E-mail para contato: [email protected]. 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília- UnB, com pesquisa em andamento sobre Justiça de Transição no Brasil, sendo Mestra em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela UFPB. Integrante do grupo de pesquisa em Teoria e História dos Direitos Humanos e da Democracia (UFPB) e do Grupo de pesquisa em Justiça de Transição (UnB). E-mail para contato: [email protected]. 3 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília- UnB, especialista em Direitos Humanos pelo Instituto Esperança Garcia/FAR, graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí- UFPI e integrante dos grupos de pesquisa e extensão Direitos Humanos e Cidadania- DiHuCi (UFPI) e Justiça de Transição (UnB). E-mail para contato: [email protected]. 210 bibliográfica e análise documental. Concluímos que é importante vislumbrarmos que as mobilizações coletivas são capazes de construir cultura jurídica e, por fim, consideramos que a concepção apresentada faz com que os mecanismos da Justiça de Transição, em especial a questão da reparação às vítimas, avance e se aperfeiçoe como um instrumento do Estado capaz de responder às necessidades protetivas dos direitos humanos e do fortalecimento da democracia. Palavras-chave: Vítimas; Violência Estatal; Direitos Humanos; Justiça de Transição; Reparação coletiva. Abstract: This article seeks to explore the collective concept of reparations for victims of state violence. Reparation for victims is one of the axes of Transitional Justice, which brings together judicial and non-judicial acts (public policies) to move from the exception to the construction of the Democratic Rule of Law and social reconciliation after authoritarian periods. Through its Federal Constitution (1988), the Brazilian state chose reparations for victims, through political amnesty, to be the structuring axis of its political transition. In this sense, the paper will investigate the social issue of reparations for victims as a demand for recognition in search of dignity for those affected by state violence, considering that the reparations process is a question of restoring dignity through the right to memory and the truth about the human rights violations that took place during the Brazilian civil military dictatorship. As dominant thinking is clothed in neutrality, while in fact it is a reproducer of stigmas, it is understood that in contexts of cultural diversity, the emancipatory construction of rights is urgent, and inevitably involves the creation of spaces for society's organizations to reflect and develop their formulations. The policy of full reparation for victims of state violence, managed by the Amnesty Commission under the Ministry of Human Rights and Citizenship, has currently introduced the collective concept of reparation, outlining the unprecedented possibility of collective amnesty. The aim of the study is therefore to discuss the past violations and their legacy in the present, focusing on the importance of a better understanding of the issue of collective reparation, which is an innovative policy within the structure of the Brazilian state, which has the institutional mission of analyzing applications for political amnesty. To this end, the study used a qualitative methodology, in which the theoretical pole was built from the critical theory of law and the concepts of Transitional Justice, with bibliographical research and documentary analysis. We conclude that it is important to see that collective mobilizations are capable of building a legal culture and, finally, we believe that the concept presented makes the mechanisms of Transitional Justice, especially the issue of reparations for victims, advance and improve as an instrument of the state capable of responding to the needs of protecting human rights and strengthening democracy. Keywords: Victims; State Violence; Human Rights; Transitional Justice; Collective Reparations. 1. Apontamentos Iniciais O presente estudo possui como objetivo explorar a concepção coletiva da reparação integral às vítimas de violência do Estado atingidas, direta ou indiretamente, por atos de exceção do passado autoritário. As demandas de reparação integral envolvem atos que transcendem a questão material, pois se trata de uma questão afeta ao reconhecimento da categoria vítima, em especial, dos anos de chumbo no país, perpassando, assim, pela 211 necessidade da implementação de políticas de reconhecimento dos sujeitos afetados pelos abusos e ilegalidades. A reparação integral está para além da mera indenização ou reparação material, essa reparação deve contemplar o estabelecimento e conhecimento da verdade, da justiça e a adoção de outros mecanismos reparatórios, como a reabilitação, restituição e satisfação de direitos, visando desenvolver ações de garantias de não-repetição. A presente análise leva em consideração a Justiça de Transição como mecanismo de fortalecimento do Estado Democrático de Direito, por meio da promoção dos estandartes que giram em torno das lutas sociais por Memória, Verdade e Justiça. Nesse sentido, o objetivo principal da Justiça Transicional é promover a justiça e a reconciliação social por meio do fortalecimento do direito à memória, à verdade, à reparação integral, à justiça propriamente dita (responsabilização dos violadores de direitos humanos) e à reforma das instituições, configurando, assim, pilares indispensáveis do processo democrático. O esforço estatal empreendido sobre esta matéria, leva em consideração a necessidade de implementar iniciativas orientadas a reconstrução e memorialização da verdade histórica e social, com base no Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH3, especialmente no que diz respeito o Eixo Orientador VI – Direito à Memória e à Verdade, Diretriz 24 – a preservação da memória histórica e construção pública da verdade perpassa o esclarecimento das graves violações perpetradas no contexto da Ditadura civil-militar brasileira que atingiu grupos particularmente vulneráveis e historicamente discriminados, como os trabalhadores, estudantes, camponeses, povos indígenas, população LGBTQIA+, comunidades quilombolas e outros segmentos, grupos ou movimentos sociais que sofreram atos de exceção, em decorrência de motivação política. Nesse sentido, o presente estudo, por meio da metodologia bibliográfica e documental de cunho interdisciplinar, a partir dos aportes teóricos da literatura crítica sobre a Justiça de Transição e da fortuna crítica d’O Direito Achado na Rua, se debruça sobre a importância da formulação dos sujeitos coletivos de direito em busca da reparação integral em face das violências do Estado, dando destaque especial a possibilidade inédita de anistia política coletiva. Para tanto, traçaremos o seguinte percurso. Em primeiro lugar, há a discussão sobre a reparação integral dos sujeitos coletivos de direito na instituição dos direitos de transição, a partir de uma ótica crítica. Em seguida, será debatida a importância da luta social por reparação integral, considerando o contexto atual e exemplificando formulações a partir de coletivos que 212 demandam o aperfeiçoamento da agenda por Memória, Verdade e Justiça. Nesse momento se destaca a importância das mudanças regimentais no âmbito da Comissão de Anistia do Ministérios dos Direitos Humanos e Cidadania, que inaugura a possibilidade de anistia a coletivos atingidos pelos atos de exceção. Por fim, por meio do conceito de sujeitos coletivos de direito, há a tentativa de compreender a complexidade social das mobilizações coletivas para ultrapassar o cenário sociopolítico imposto por forças reacionárias que romperam o pacto da transição. Concluímos defendendo que o direito no processo transicional deve ser visto como um espaço aberto à contextualização que inclua também os atores afetados, para que seja efetiva a questão da reparação integral dos sujeitos coletivos de direito. 2. A Reparação Integral dos Sujeitos Coletivos de Direito na Instituição dos Direitos de Transição Para compreender a importância da reparação às vítimas de violência praticadas pelo Estado, entendemos primeiro ser necessário tratar sobre o que se pode definir como justiça transicional, conceito usado para designar os esforços empreendidos após períodos de instabilidade democrática, com o objetivo de reestruturar o Estado de Direito. Os elementos que acompanham o processo transicional têm sido, inclusive, objeto do direito internacional e atualmente já podemos vislumbrar padrões institucionalizados de enfrentamento às violações de direitos humanos. Em observação às experiências de passagem de períodos conflituosos para regimes democráticos, adotam-se medidas sociais e políticas que lidem com o passado. O debate inaugural da Justiça de Transição retrata que cabe ao direito buscar meios de consolidar a ordem democrática e o Estado Democrático de Direito, para evitar a repetição dos abusos e demais violações de direitos humanos. Um ponto comum da crítica ao conceito tradicional de justiça transicional é que ele recai em um universalismo que não dá conta de abarcar as especificidades de cada uma das experiências sociais. Em contrapartida à posição clássica, existe uma tentativa de centralizar o debate na sociedade civil e nas suas mobilizações, uma vez que os seus esforços decorrem da própria falha do Estado em articular os mecanismos de transição para que estes atendam a busca pela verdade e pela responsabilização (MCEVOY; MCGREGOR, 2008). Isso não significa abrir mão das estratégias possíveis dentro do processo transicional legalista, mas ter em mente que não é possível promover a reparação efetiva se há um distanciamento em relação às comunidades afetadas. A rearticulação concebe o direito como 213 um processo em aberto construído também por outros atores e não só pelo Estado (MCGREGOR, 2008). Para o presente texto, como chave de análise do fenômeno jurídico, partimos da compreensão que os sujeitos a quem o direito se dirige não são abstratos e que a significação sobre a justiça está implicada com as práticas sociais. Via de regra, ainda que a justiça sempre apareça como “um projeto de mundo melhor”, ela é carregada de concepções ideológicas que podem recair na manutenção da ordem opressora constituída. A neutralidade como atributo essencial à justiça incide também nos âmbitos morais e sociais, mas devemos considerar que ela é guiada por uma escala de valores que são baseados na vivência daqueles que articulam determinadas visões de mundo (AGUIAR, 2020). E é nesse sentido que nos interessa falar sobre o mito da neutralidade do direito aliado ao debate da justiça de transição no Brasil, pois a concepção positivista de sujeitos de direito os coloca em uma posição de abstração social, o que impede a realização de uma cidadania plena. A ideia de justiça transformadora, para Roberto Aguiar (2020), não pode estar pautada em hierarquizações que promovem dominação, ela deve ser criada a partir de um saber crítico. Assim, entendemos que como a memória está continuamente em disputa, em contextos de diversidade cultural, urge que alcancemos uma concepção de justiça como instrumento dos que lutam pela transformação social. Até porque a temporalidade das vítimas de violações de direitos humanos não necessariamente está em conformidade ao ritmo linear de todos os outros sujeitos da sociedade, algo também experienciado por comunidades indígenas e quilombolas. Sob a justificativa de um tempo institucional isonômico, se maneja a historicidade a serviço da temporalidade majoritária (PINHEIRO, 2019). Assim, o direito à memória, enquanto possibilidade de releitura histórica, se coloca como afirmação dos Direitos Humanos à medida que estes são: (...) produtos culturais que formam parte da tendência humana ancestral por construir e assegurar as condições sociais, econômicas, políticas, econômicas e culturais que permitem aos seres humanos perseverar na luta pela dignidade, ou o que é o mesmo, o impulso vital que, em termos spinozanos, lhes possibilita manter-se na luta por seguir sendo o que são: seres dotados de capacidade e potência para atuar por si mesmos (FLORES, 2009, p. 191). Ao nos voltarmos sobre as memórias do passado vislumbramos a possibilidade de reparação às violações massivas de direitos humanos cometidas no período ditatorial. A potencialidade dos sujeitos coletivos em busca da reparação trata-se de abordagem importante para uma observação histórica, por empreender uma dimensão na luta por 214 direitos que valoriza os atos de memória que remetem ao plano público. Vale ressaltar que não se pretende perder de vista a criticidade sobre como o processo transicional foi consolidado no Brasil e as suas deficiências, especialmente, em relação ao enfrentamento do legado de violência que persiste após o regime ditatorial nos setores marginalizados da sociedade e o questionamento sobre quem é reconhecido enquanto vítima (ser vítima) (FLAUZINA, FREITAS, 2017; PEDRETTI, 2016). Entende-se que a transição brasileira foi formulada através de um consenso com as oligarquias políticas em uma “abertura lenta, gradual e segura”, no entanto, desde a campanha pela anistia é possível identificar a mobilização popular que se articulava fazendo uso de um discurso fundado nos direitos humanos. Nas medidas reivindicadas e adotadas desde então, identificamos uma matriz integrativa que se desemboca em uma reflexão social sobre os acontecimentos históricos e no reconhecimento dos atos de resistência para a não repetição da violência cometida pelo Estado. Os setores mais conservadores em um primeiro momento inseriram a concepção de anistia como esquecimento forçado, o que impedia um enfrentamento do passado de violência necessário ao processo de redemocratização. O rearranjo semântico em torno do sentido de anistia se deu, especialmente no âmbito da Comissão de Anistia, no desenvolvimento de ações em que o direito à memória e à verdade foram construídos a partir da narrativa dos perseguidos políticos, ao considerar os requerimentos dos perseguidos políticos como fontes históricas (ABRÃO, TORELLY, 2010). Numa tentativa de avançar no alcance ao direito à memória, à verdade e à reparação, com a interlocução institucional da Comissão de Anistia, foi desenhado um projeto de anistia coletiva aprovado pela Portaria nº 177 de 22 de março de 2023. Essa modalidade de requerimento possibilita que associações, entidades da sociedade civil e sindicatos de estudantes e trabalhadores, camponeses, povos indígenas, comunidades quilombolas e outros segmentos que foram atingidos, em decorrência de motivação política, por atos de exceção possam protagonizar o pedido de anistia e propor recomendações sobre quais seriam as formas de se reparar tais violações. Aqui busca-se o rompimento com o discurso construído no regime de exceção e a inversão do protagonismo no processo transicional, centralizando o olhar sobre aqueles que sofreram a violência pelo Estado. Com isso, desenvolvemos em seguida como os sujeitos coletivos atuam para a consolidação das suas agendas de reivindicações e contribuem no aperfeiçoamento dos mecanismos propostos pelo Estado que se colocam como instrumentos de resposta às 215 necessidades protetivas dos direitos humanos e do fortalecimento da democracia em tempos de crise. 3. Sujeitos Coletivos de Direito na Luta por Memória, Verdade e Justiça Levando em consideração que a memória está continuamente em disputa, é importante ressaltar alguns pontos do contexto sociopolítico da exceção brasileira. Primeiramente, colocamos em destaque a conjuntura das violações de direitos humanos cometidas pelo regime civil-militar, para só então alcançarmos reflexões, a partir d’O Direito Achado na Rua, da reparação coletiva e conotação do manejo da temática “de baixo para cima”, ao considerar os pedidos de anistia protagonizados pelos coletivos de atingidos. O Brasil foi governado por uma ditadura militar a partir do golpe de Estado de 1964, dentro de uma política inserida na Doutrina da Segurança Nacional. Dirigida para causar medo e terrorismo, estas políticas se enquadram como parte ou materialização de uma política de Estado, com o cometimento de ataques massivos e sistemáticos em face de setores da população civil, considerados subversivos, ou de alguma forma como opositores ao regime. Neste período ocorreu uma série de graves violações aos direitos humanos e ao direito internacional, tais como homicídios, extermínios, desaparecimentos forçados, violências sexuais, falsidade ideológica e perseguições diversas, dentre outros atos inumanos. O contexto de ataques sistemáticos (que seguem um plano ou método regular) e generalizados (efetivados em larga escala e dirigidos contra uma multiplicidade de vítimas), são enquadrados como atos violadores de direitos humanos (crimes de lesa humanidade inanistiáveis e imprescritíveis). Contudo, o que visualizamos no Brasil é uma espécie de equivalência da violência, como uma justificativa inserida na política do esquecimento dos “excessos” do passado, como se fosse uma espécie de preço pago para garantir a estabilidade democrática ou, como bem dito por Safatle, em uma “amnésia sistemática em relação a crimes de um Estado ilegal” (SAFATLE, 2010). Nenhum contexto histórico pode ser utilizado como justificativa para acobertar violações de direitos humanos, assim, os chamados “crimes comuns”, cometidos por agentes do Estado de exceção, são caracterizados como crimes de lesa humanidade, e não crimes que podem ser “anistiados” por fazerem parte de um contexto de “guerra”, como o indica os adeptos da tese da amplitude da aplicação da anistia para vencidos e vencedores. Nesse sentido, são as palavras de Safatle ao afirmar que: 216 (...) nenhum país conseguiu consolidar sua substância normativa sem acertar contas com os crimes de seu passado. Se há algo que deveríamos apreender de uma vez por todas é: não há esquecimento quando sujeitos sentem‑se violados por práticas sistemáticas de violência estatal e de bloqueio da liberdade socialmente reconhecida. Se há algo que a história nos ensina é: os mortos nunca se calam. Aqueles cujos nomes o poder procurou anular sempre voltam com a força irredutível dos espectros. Pois, como dizia Lacan, aquilo que é expulso do universo simbólico, retorna no real (SAFATLE, 2010). Considerando este contexto, se destaca a importância da luta social dos grupos de pessoas atingidas, direta ou indiretamente, pelos atos de exceção estatal. Esta luta por Memória, Verdade e Justiça, teve peso singular na transição política e implementação, mesmo que tardia, dos mecanismos de reparação às vítimas, que se configura como eixo estrutural da transição política brasileira, como delineado no art. 8º do Atos de Disposições Constitucionais Transitórias. Levando em consideração a concepção crítica e emancipatória do direito como liberdade, a partir d’O Direito Achado na Rua e do pluralismo jurídico, visualizamos que é necessário “atravessar a rua”, conforme as lições de José Geraldo de Souza Júnior (2019), para fins de empreender um “constitucionalismo achado na rua”, que leve em consideração a luta constituinte e as causas impressas na CF/88, que necessitam de militância ativa. Os valores expressos n’O Direito Achado na Rua carregam um olhar necessário para o presente estudo, pois busca captar a emergência e complexidade social dos movimentos “da rua” que se organizam e se mobilizam para fazer valer os seus direitos. Os movimentos sociais que levantam a bandeira por Memória, Verdade e Justiça são fundamentais para ultrapassar o atual cenário sociopolítico de crise, permeado por forças reacionárias que romperam, pela primeira vez, o pacto da transição (como exemplo podemos citar os ataques do dia 8 de janeiro de 2023 aos três Poderes) e tentaram invisibilizar os lutas de resistência, não só para responder as violência do passado, mas também do presente. Assim, os coletivos de atingidos se constituem como sujeitos coletivos de direito e atores importantes para a construção democrática e busca dos direitos à memória, à verdade e à reparação integral das violações de direitos humanos (SOUZA JÚNIOR, 2019). O protagonismo e a identidade política dos sujeitos coletivos, com a possibilidade de se investirem por meio da titularidade jurídica coletiva foi atendida, em parte, com as mudanças empreendidas a partir do projeto de anistia política coletiva aprovado pela Portaria nº 177 de 22 de março de 2023, no âmbito da Comissão de Anistia, como acima mencionado. 217 Em estudo sobre a pioneira experiência brasileira de Anistia política coletiva, Eneá de Stutz e Almeida, Thiago Viana e Maíra Carneiro (2023) identificaram a existência de pedidos anteriores de anistia coletiva, contudo, todos foram indeferidos. O trabalho se debruça sobre a questão do reconhecimento da perseguição política da coletividade em si, contribuindo para as reflexões que giram em torno da visibilização de grupos sociais historicamente estigmatizados que ficam à margem dos debates justransicional pelo modelo tradicional adotado. A mudança institucional que introduziu a anistia política coletiva no país atende uma realidade de perseguições pautadas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e Comissões Estaduais da Verdade que identificaram e listaram as violações de direitos humanos em face de coletivos de vítimas. A questão da reparação coletiva é uma pauta inédita, contudo, já houve requerimento de tais demandas no âmbito da Comissão de Anistia. O Ministério Público Federal propôs dois casos no ano de 2015, um referente às violações sofridas pelo povo Krenak e outro referente ao povo Guyraroká, bem como um terceiro solicitado por vítimas dos atos de exceção da Comunidade Japonesa no Brasil. Estes casos foram apresentados, analisados e indeferidos na última gestão governamental no ano de 2021/2022, basicamente, sob a justificativa de falta de norma regimental que contempla a reparação dos sujeitos coletivos de direito (ALMEIDA, VIANA, CARNEIRO, 2023). O novo Regimento Interno (Portaria nº 177/2023 – MDHC), ao prever a hipótese de anistia política coletiva se mostra como um “importante instrumento para efetivar a “justiça de transição de baixo para cima”, com a visibilidade e protagonismo dos grupos sociais, cuja subalternização também se reflete no debate justransicional do modelo clássico” (ALMEIDA, VIANA, CARNEIRO, 2023), assim, a justificativa de falta de normatividade que viesse a abarcar tal possibilidade, já não pode mais ser utilizado. O artigo 16 da Portaria citada dispõe que o requerimento de anistia política coletiva poderá ser apresentado por meio de associações, entidades da sociedade civil e sindicatos representantes de trabalhadores, em defesa dos interesses de estudantes, camponeses, povos indígenas, população LGBTQIA+, comunidades quilombolas e outros segmentos, grupos ou coletivos que foram alvos de perseguição política ou atingidos por atos de exceção, institucionais ou complementares e alvos de perseguição por agentes estatais, com base no art. 8º do ADCT e nos arts. 1º e 2º da Lei nº 10.559/02. Ademais, visualizamos que o trabalho de instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública (custos vulnerabillis) no manejo da temática, tem especial contribuição no 218 auxílio do ingresso dos requerimentos de anistia política coletiva em interesse dos grupos sociais. Após a vigência da Portaria nº 177/2023 – MDHC, até o momento não houve o ingresso de nenhum requerimento reparatório coletivo, seja demandado pelo MPF, DPU ou mesmo por meio das associações, entidades da sociedade civil e representantes dos coletivos. Contudo, há esforços de alinhamento de expectativa e união para fins de fortalecer os estandartes da Memória, Verdade e Justiça. Um exemplo salutar se observa com a criação, no âmbito da Defensoria Pública da União, do Observatório Nacional sobre o Direito à Memória, à Verdade e à Justiça Transicional, por meio da Portaria DPGF n. 423, de 31 de março de 2023. Este Observatório se configura como mais um ator importante, dando espaço, apoio e auxílio na visibilidade da agenda, pautando o debate de modo especializado, seja nos âmbitos judiciais (especialmente no STF e nos Tribunais Federais) e extrajudiciais (a partir da atuação junto a Comissão de Anistia e demais órgãos envolvidos nas demandas por reparação). Outro ponto de destaque, que deriva da inédita possibilidade de reparação coletiva, é o arrolamento, a partir de associações, entidades da sociedade civil e sindicatos de estudantes e trabalhadores, camponeses, povos indígenas, comunidades quilombolas e outros segmentos que foram atingidos, em decorrência de motivação política, por atos de exceção, de listarem as violações e, principalmente, qual a melhor forma de reparar tais violências sofridas. Esta conotação abarca a dimensão peculiar de cada caso, podendo ser um mecanismo que atenda de modo mais profundo as diversas formas de se reparar violações de direitos humanos do passado de exceção nos diversos contextos, seja nas violências sofridas pelos coletivos de pessoas moradoras das favelas, dos campos, das florestas e da classe trabalhadora dos chãos das fábricas. A perspectiva de ampliação da agenda por Memória, Verdade, Justiça e Reparação ao inverter um movimento na relação direito e sociedade abre um novo caminho das narrativas de memória: se por um lado aos sujeitos coletivos de direito é dado um “poder” de pautar a justiça, por outro lado, cabe ao Estado cumprir com o seu dever de direito de forma integral, trabalhando para a abertura completa dos arquivos da ditadura e não sendo mais um agente que reproduz trauma ao obrigar a vítima a apresentar provas das violências sofridas para poder ter acesso ao pedido de reparação. Essa questão da inversão do ônus da prova em favor dos requerentes da anistia política, por exemplo, amplia a dimensão da reparação e tem sido tratado coletivamente, como um dos aspectos centrais para o Grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e 219 Justiça4, que recentemente apresentou uma carta ao Ministro Silvio Almeida, na ocasião da audiência que aconteceu em março de 2023, proposta pelo Ministério de Direitos Humanos para ouvir as demandas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos. O documento feito com base nas vivências e experiências traumáticas do grupo traz elementos substanciais e convergentes ao que estamos tratando no presente debate: a continuidade do projeto Clínicas do Testemunho, sem qualquer obstáculo, alteração in pejus ou corte orçamentário, diante do evidente benefício do programa e adequação ao sistema internacional de direitos humanos, tornando-o uma política permanente do Estado, com incorporação ao Sistema Único de Saúde; ampliação do alcance da lei a fim de contemplar filhos e netos como anistiados políticos a partir do reconhecimento da existência de traumas intergeracional e transgeracional causados pelos atos de exceção dos agentes do Estado brasileiro durante o regime militar, haja vista o respeito ao dever de proteção da dignidade da pessoa humana insculpido na Constituição Federal (art. 1o, III), nos deveres de não violação e de reparação pelos danos sofridos (art. 5o, V e X, CF) bem como na responsabilização do Estado Brasileiro, conforme a teoria do risco administrativo (art. 37, §6o, CF); orientação institucional de redistribuição da carga dinâmica da prova, com inversão do ônus da prova a favor dos requerentes de anistia política, em virtude da extrema dificuldade de obtenção dessas provas por parte dos perseguidos políticos e seus descendentes; revisão dos requerimentos administrativos de anistia negados nos períodos do governo Temer e Bolsonaro. A carta do Grupo é uma demonstração de como é importante a construção coletiva orientada por uma consciência política e que outros grupos também podem dar seguimento ao hábito de pautar o governo, mas há também o entendimento que o Estado precisa dar apoio para que os grupos tenham acesso ao arcabouço jurídico para elaboração das suas Trecho da carta apresentada ao Ministro Silvio Almeida: O grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça é uma organização social, política, independente e suprapartidária nascida a partir do encontro de descendentes de pessoas afetadas direta ou indiretamente pela violência de Estado ocorrida durante o período da ditadura civil-militar no Brasil e cone sul-americano. Este grupo teve origem a partir do trabalho desenvolvido pelo projeto clínico político Clínicas do Testemunho que aconteceu no nosso país entre os anos de 2013 a 2016, quando foi interrompido pelo governo Temer. O grupo não apenas deu continuidade ao trabalho como também se aliou a movimentos sociais de comunidades marginalizadas, a outros coletivos que lutam por Memória, Verdade, Justiça e Reparação, a organizações de trabalhadores e demais familiares de perseguidos, presos, torturados e desaparecidos políticos de ontem e de hoje na luta diária pelos Direitos Humanos. Ao reunir as gerações posteriores àqueles que foram afetados diretamente pela mão pesada da ditadura civil-militar e a sociedade em geral e, ainda, sofrendo com os efeitos transgeracionais do terrorismo de Estado, este coletivo tem como objetivo fomentar a luta pelos direitos humanos a partir de atos políticos, audiências públicas, fóruns, debates, pesquisas e projetos comunitários ligados ao tema Memória, Verdade, Justiça e Reparação. Entendemos que nossa luta é um compromisso em defesa do Estado Democrático de Direito e tem, como horizonte, uma sociedade igualitária nas diferenças e justa socialmente. 4 220 demandas por justiça. Só assim, será atingido um sentido que abarque possibilidades de obter um aperfeiçoamento das medidas reparatórias. 4. Considerações Finais Do exposto, entendemos que há a necessidade de pensarmos o campo do direito como um espaço aberto à contextualização a partir da mobilização dos sujeitos coletivos de direito. Ainda que a atuação estatal seja essencial para a efetivação do restabelecimento do Estado Democrático de Direito, dentro do processo transicional brasileiro, é necessária a devida atenção para as contribuições advindas das lutas sociais por Memória, Verdade, Reparação e Responsabilização. O processo de reparação é uma questão de restituição da dignidade por meio do direito à memória e à verdade sobre as violações de direitos humanos ocorridas no período da ditadura civil militar brasileira. Por isso, identificamos a modificação trazida pela Portaria nº 177/2023 – MDHC como um avanço na conquista dos direitos de transição. Essa inovação permitirá que as agendas de associações, entidades da sociedade civil e sindicatos de estudantes e trabalhadores, camponeses, povos indígenas, comunidades quilombolas e outros segmentos que foram atingidos, em decorrência de motivação política, por atos de exceção sejam consideradas na proposição de uma reparação adequada, além de responder às necessidades protetivas dos direitos humanos e do fortalecimento da democracia em tempos de crise. A sistematização das contribuições dos sujeitos coletivos de direito também faz parte do percurso transicional, pois não nos interessa tratar de uma história oficial neutra, em que a abstração social impede a realização de uma cidadania plena, mas na construção de um direito à memória e à verdade pela narrativa dos perseguidos e perseguidas políticos. O legado de violência persiste após o regime ditatorial nos setores marginalizados e um dos caminhos possíveis é a consolidação de uma matriz integrativa sobre os acontecimentos históricos e, principalmente, o reconhecimento dos atos de resistência para a não repetição da violência cometida pelo Estado. Referências Bibliográficas ABRÃO, P.; TORELLY, M. A justiça de transição no Brasil: a dimensão da reparação. In: SANTOS, Boaventura de Sousa et al (orgs.). Repressão e Memória política no contexto Ibero-Americano: estudos sobre Brasil, Guatemalla, Moçambique, Peru e Portugal. 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Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023. 222 Desmatamento da Floresta Amazônia: da Necessidade de Meios de Promoção A um Meio Ambiente Saudável Deforestation of the Amazon Forest: necessity of promotion means to healthy environment Franciele Barbosa Santos1 Indyanara Cristina Pini2 Daniela Braga Paiano3 Sumário: 1. Da dignidade da pessoa humana: conquistas e evolução; 2. Do direito ao acesso a um meio ambiente saudável como exteriorização do respeito à dignidade humana; 3. Do desmatamento da floresta Amazônia: necessidade de meios de combate; Considerações Finais. Resumo: A atualidade tem sido demarcada por constantes degradações ambientais que, direta ou indiretamente, afetam a pessoa, uma vez que um meio ambiente saudável e equilibrado é fundamental para uma vida com qualidade. Nesse contexto, notou-se que algumas práticas, em específico o desmatamento da floresta Amazônia, ocasionam danos às pessoas e às futuras gerações. Assim, o presente trabalho tem como objetivo demonstrar que a promoção de um meio ambiente saudável se correlaciona, em última instância, com a dignidade humana, uma vez que consiste em um direito fundamental da pessoa. Para tanto, partiu-se da análise do princípio da dignidade da pessoa humana e sua evolução, para então tratar do direito fundamental ao meio ambiente saudável como exteriorização da floresta Amazônia e, ao final, abordar as constantes degradações que ela vem sofrendo e os meios de combate. Ao final, concluiu-se que o Brasil possui medidas legais para a responsabilização pela degradação ambiental, mas que ainda é necessário medidas que vão além da legislação, com foco na preservação, bem como pela implementação de políticas públicas que sejam capazes de monitorar a região e combater os atos de desmatamento. A pesquisa possui cunho teórico, exploratório e crítico e foi desenvolvida à luz do método dedutivo, enquanto as técnicas empregadas fundamentam-se, preponderantemente, na pesquisa bibliográfica e documental de natureza legislativa. Palavras-chave: Desmatamento; Floresta Amazônia; Meio ambiente. Abstract: Current times have been marked by constant environmental degradation that directly or indirectly affect people, since a healthy and balanced environment is essential for a quality life. In this context, it was noted that some practices, specifically the deforestation of the Amazon forest, cause harm to people and future generations. Thus, the present work aims to demonstrate that the promotion of a healthy environment correlates, ultimately, with human dignity, since it consists of a fundamental right of the person. To do so, we started with the analysis of the principle of human dignity and its evolution, after dealing with the Mestra em Direito Negocial pelo programa de mestrado e doutorado da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela PUC/PR. Especialista em Direito Empresarial e Especialista em Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) pela Faculdade Legale. Docente na graduação. Advogada. E-mail: [email protected]. 2 Mestra em Direito Negocial pelo programa de mestrado e doutorado da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Direito Médico pelo Verbo Jurídico. Advogada. E-mail: [email protected]. 3 Pós-doutora e Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Professora na graduação e no Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]. 1 223 fundamental right to a healthy environment as an externalization of the Amazon forest to, finally, address the constant and current degradation of the Amazon forest and means of combat. In the end, it was concluded that Brazil has legal measures for accountability for environmental degradation, but that measures that go beyond legislation are still needed, with a focus on preservation, as well as the implementation of public policies that are able to monitor the region. and combat acts of deforestation. The research has a theoretical, exploratory and critical nature and was developed in the light of the deductive method, while the techniques employed are mainly based on bibliographical and documental research of a legislative nature. Keywords: Amazon Forest; Deforestation; Environment. 1. Da Dignidade da Pessoa Humana: Conquistas e Evolução O princípio e a ideia de dignidade humana, nos tempos hodiernos, parecem bem delimitados, ajustados e respeitados, partindo-se da premissa comparativa entre os fatos que ensejaram a positivação do tema nos ordenamentos jurídicos vigentes em grande parte dos países, notadamente, o holocausto durante a segunda guerra mundial, em que se viu a supressão e mitigação de direitos humanos e o cenário atual. Ela envolve aspectos das mais variadas realidades. Prima-se, sob a luz do direito de igualdade, que todo homem, pela condição de ser humano, deva ser respeitado como tal, coibindo-se toda conduta que tente desrespeitar este princípio4. É imperioso destacar que desde a independência das antigas treze colônias britânicas da América do Norte, em 04 de julho de 1776, deu-se início a democracia moderna que, sob novo regime constitucional, combinou a representação popular com a limitação dos poderes governamentais e respeito aos direitos humanos, que foi reafirmada, mais tarde, pela Revolução Francesa. Mas, foi apenas em 1948, com a Declaração Universal de Direitos Humanos que o homem teve, efetivamente, o direito à sua dignidade reconhecido e garantido.5 Em decorrência das barbáries cometidas durante a segunda guerra mundial, que ensejou uma reação, visando a criação de instrumentos de defesa, como os Pactos Internacionais e a criação da ONU, com fito resguardar e tutelar, de forma mais efetiva, o ser humano, primando pelo respeito recíproco que, até os dias atuais, possibilita o constante processo de ampliação e universalização dos direitos humanos e a luta contra regimes políticos que desrespeitam direitos civis e políticos, bem como contra situações que ameaçam 4 COMPARATO, F.K.. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 95 apud PAIANO, Daniela Braga. Elemento integrador da democracia, como forma de se garantir um meio ambiente saudável. Argumentum – Revista de Direito – UNIMAR. Nº 5, 2005, p. 129-141. 5 Ibidem, p. 135. 224 a paz mundial, a luta contra a fome e a miséria, tornando-se um tema de interesse internacional.6 O princípio da dignidade da pessoa humana surge como uma conquista em determinado momento histórico. Trata-se de tutelar a pessoa humana possibilitando-lhe uma existência digna, aniquilando os ataques tão frequentes à sua dignidade. 7 É em virtude do reconhecimento e da positivação da dignidade humana que se pode assegurar a todo homem, a toda a humanidade, a existência de valores em comum ou mesmo na universalidade de valores, de modo que é garantido ao indivíduo que mesmo em prol da dignidade de outrem, a sua não poderá ser violada ou sacrificada em contornos gerais. Constitui-se, portanto, em bem jurídico inalienável, intangível e irrenunciável, devendo-se garantir o respeito à autonomia, à integridade física e moral e garantir ainda ao indivíduo o mínimo existencial no aspecto material, objetivando a garantia da própria dignidade. 2. Do Direito ao Acesso a um Meio Ambiente Saudável como Exteriorização do Respeito à Dignidade Humana A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe em seu bojo diversos direitos fundamentais, os quais representam a plena positivação dos direitos humanos no ordenamento brasileiro, podendo as pessoas se valerem de tais direitos frente ao Poder Judiciário. Nesse aspecto, a Constituição Federal de 1988 foi uma das mais abrangentes, uma vez que alargou significamente o âmbito dos direitos e garantias fundamentais. 8 Frisa-se que os direitos fundamentais foram elaborados no decorrer do século XX, sendo, também, assim como os direitos humanos, marcados pela historicidade, uma vez que se desenvolveram ao longo do tempo,9 não foram adquiridos de forma abrupta, consistindo em uma conquista histórica caracterizada por lutas em defesa de novas liberdades.10 Nesse contexto, destaca-se diversas dimensões dos direitos fundamentais, as quais exteriorizam as lutas de determinado período histórico. 6 SOUTO, R.S. A dignidade da pessoal humana como um valor absoluto no Brasil. Rev. NUFEN, Belém, v. 11, n. 3, p. 170-186, dez. 2019. Disponível em https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php script=sci_arttext&pid=S2175-25912019000300011&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 14/06/2023. 7 PELEGRINI C.L.W. Considerações a respeito do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista BoniJuris, Curitiba, v. 16, n. 485, p. 5-16, abril 2004, p. 8. 8 PIOVESAN, F. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 20. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, s.p., l. 38. E-book. 9 FACHIN, Z. Acesso à água potável: direito fundamental de sexta dimensão. Campinas, SP: Millennium Editora, 2012, p. 59. 10 BOBBIO, N.. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 09. 225 Atualmente, é consolidado na doutrina três dimensões de direitos fundamentais, contudo, há, ainda, quem elenque uma quarta, quinta e sexta dimensão de tais direitos. Os direitos de primeira dimensão são os direitos de liberdade, segurança e propriedade, são aqueles que reconhecem a autonomia dos particulares. Os direitos de segunda dimensão são marcados pelos direitos sociais, tendo como exemplos o direito à saúde, à habitação e à educação. Os direitos fundamentais de segunda dimensão, não substituem ou excluem os direitos de primeira dimensão, mas representam acréscimos aos direitos já existente, uma vez que ao longo do tempo novas necessidades surgem e que demandam novos direitos fundamentais, os quais, por sua vez, se incorporam ao patrimônio de cada pessoa.11 Por fim, os direitos de terceira dimensão possuem como valor nuclear a solidariedade. São direitos transindividuais, ou seja, se desprendem da figura da pessoa como titular. São também chamados de meta individuais, direitos coletivos ou difusos, não tendo um destinatário certo e possuem como marco as profundas alterações sofridas na comunidade internacional. Destaca-se que novas preocupações surgiram e fizeram com que fosse percebida a necessidade de proteção ambiental e dos consumidores. Assim, o ser humano passa a ser inserido em uma coletividade, tendo direitos de solidariedade e fraternidade. 12 Tais direitos, para serem efetivados exigem esforços e responsabilização em âmbito nacional e internacional, além de exigir a atuação de toda coletividade em prol de tal interesse que é comum. A proteção conferida por meio dos direitos fundamentais é pautada na dignidade da pessoa humana, que consiste em um princípio e fundamento da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, a garantia a tais direitos é dever do Poder Público e direito de cada pessoa, uma vez que configuram em garantias mínimas sem as quais a pessoa não pode viver.13 É nesse contexto que se destaca o direito ao meio ambiente equilibrado, uma vez que é afeto a todas as pessoas. Destaca-se que a dignidade humana é núcleo em torno da qual gravitam todos os direitos fundamentais, incluindo, nesse sentido, o direito ao meio ambiente equilibrado, uma vez que é condição essencial para a efetivação desse princípio fundante, já que é intrínseca à vida com qualidade. Como meio ambiente, entende-se o “conjunto de condições, leis, FACHIN, Z.. Acesso à água potável: direito fundamental de sexta dimensão. Campinas, SP: Millennium Editora, 2012, p. 69. 12 LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado. 18. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1.058. 13 SARLET, I.W.; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 332. 11 226 influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.14 Vislumbra-se, assim, ampla proteção conferida ao meio ambiente, ante a sua imprescindibilidade para a vida com qualidade. Além do conceito trazido pela legislação infraconstitucional, a ISO 14001:2004 (International Organization for Standardization), norma internacionalmente reconhecida, busca definir um sistema de gestão ambiental e, ao fazê-lo, traça um breve conceito de meio ambiente, entendido como “circunvizinhança em que uma organização opera, incluindo-se ar, água, solo, recursos naturais, flora fauna, seres humanos e suas inter-relações”.15 O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está previsto no artigo 225 da CF/8816 e é tido como um direito fundamental, entendido como uma exteriorização do direito à vida, uma vez que o meio ambiente saudável é imprescindível para as futuras gerações. Esse direito é essencial para a qualidade da vida da pessoa que, por sua vez, consiste em um bem jurídico de maior valor. É nítido, portanto, que a proteção conferida por meio da Constituição Federal brasileira de 1988 possui como objetivo último a proteção da pessoa humana em suas múltiplas esferas, incluindo um bom ambiente para que possa viver. Tal ambiente é formado, também, pelo meio ambiente equilibrado, uma vez que as afrontas ao meio ambiente impactam diretamente na qualidade de vida da pessoa. Isso porque, “é notável hoje em dia a consequência climática, dentre tantas outras enfrentadas pelo homem, decorrente do descaso com o meio ambiente”.17 Tais ocorrências implicam na degradação do bem-estar da pessoa, uma vez que as condições ambientais influenciam em aspectos como qualidade do ar, chuvas, desastres naturais, entre outras. Dessa forma, a proteção do meio ambiente saudável e equilibrado, uma vez que é de uso e interesse comum, sendo fundamental para existência, já que “[...] interfere e condiciona o ser humano, que vive dentro de uma teia de relações. Essas interações se processam em BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispões sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acesso em: 13 jun. 2023. Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; 15 ABNT NBR ISSO 14001:2004. Sistemas de gestão ambiental: requisitos com orientações para uso. Disponível em: https://www.ipen.br/biblioteca/slr/cel/N3127.pdf. Acesso em: 13 jun. 2023. 16 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 17 PAIANO, D.B.. Elemento integrador da democracia, como forma de se garantir um meio ambiente saudável. Argumentum – Revista de Direito – UNIMAR. Nº 5, 2005, p. 129-141. 14 227 dois níveis: o da biosfera, e o da sociosfera. No meio ambiente natural temos a prevalência dos condicionantes naturais”.18 Assim, a pessoa deve ser resguardada na sua integralidade, de forma que os direitos que lhe são inerentes, como àqueles que são relacionados com a sua vida digna, devem ser resguardados, sob pena de violar a sua máxima garantia, qual seja, a da promoção da dignidade da pessoa humana. A proteção do meio ambiente saudável representou uma conquista histórica, bem como a sua previsão como fundamental pelo ordenamento brasileiro. Entretanto, ainda são inúmeros os obstáculos que a promoção desse direito esbarra na atualidade, uma vez que, apesar de cada vez mais questões ambientais ganharem foco nacional e internacional, a degradação ambiental continua. Percebe-se, na prática, a relativização desse direito, que possui como fundamento o direito à vida, em prol de interesses financeiros e econômicos, sacrificando um bem de maior valor em face de um de menor valor. É nesse contexto que se cita o desmatamento da floresta Amazônia, o qual atinge toda a fauna, flora, os seres vivos e a vida futura, que é constantemente ameaçada em razão da degradação ambiental cometida na atualidade. Dessa forma, passa-se a abordar os desmatamentos que têm ocorrido na floresta Amazônia, que afetam não só o Brasil, mas todo o mundo, bem como a necessidade de mecanismos de combate a essas práticas. 3. Do Desmatamento da Floresta Amazônia: Necessidade de Meios de Combate O enfoque para a problemática no desmatamento da floresta Amazônia tem como justificativa a sua importância não só para o Brasil, em que se concentra a maior área, mas, como bioma responsável pela regulação climática de todo o mundo, razão pela qual, a intensificação do desmatamento e conversão em áreas de plantio ou pastagem implicam as mudanças climáticas de nível global, comprometendo, consequentemente, os direitos humanos de terceira geração e vilipendiando, frontalmente, a dignidade humana da atual e das futuras gerações. A degradação da floresta Amazônia, especialmente com a derrubada da vegetação ou queimada redunda na liberação em excesso de carbono para a atmosfera, pois, o papel central da floresta é o armazenamento de carbono nos tecidos vegetais, contribuindo para o aumento 18 ROBERT, C.; SÉGUIN, E. Direitos Humanos, acesso à justiça: um olhar da defensoria pública. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 42. 228 da temperatura no planeta em decorrência do efeito estufa. Para além do aumento da temperatura, o excesso de carbono e outros gases na atmosfera provocam mudanças no clima, quebra de safras e o aumento do nível do mar, o que poderia inundar as cidades litorâneas. Em números, o desmatamento na Amazônia libera 200 milhões de toneladas de carbono por ano (2,5% do fluxo total global). Por outro lado, a Amazônia armazena em suas florestas o equivalente a uma década de emissões globais de carbono19, e, embora alguns países venham gradativamente adotando alguns processos industriais e artificiais para captura, armazenagem e uso de CO2 da atmosfera, o chamado Carbon Capture, Utilisation and Storage, é fato que as florestas, vegetações, o solo e os oceanos continuam sendo os principais responsáveis pela captura desse gás20, de modo que a preservação se mostra o caminho mais indicado para evitar os efeitos climáticos deletérios dos quais os indivíduos serão vítimas em decorrência da elevada produção de carbono em razão da degradação ambiental. Porém, existe uma outra forma de emissão de carbono das florestas da Amazônia que depende estreitamente do fogo, que é o carbono liberado pelos incêndios florestais, e impõe além do impacto ambiental, danos diretos à saúde, ao passo que a queimada surge como um fator que contribui para a concentração de material particulado na atmosfera, e conforme já foi demonstrado em alguns estudos, existe uma correlação positiva entre os altos índices deste poluente e a incidência de doenças respiratórias21, e, por conseguinte, a imediata violação da dignidade humana. Outro aspecto negativo em relação ao desmatamento da Amazônia e a emissão de gases de efeito estufa se dá no campo econômico que, entre 2019 a 2022, firmou um prejuízo a nível mundial de R$ 1,18 trilhão que corresponde a US$ 229 bilhões ou 12,3% do PIB brasileiro de 202222, sendo conveniente ressaltar que, no período em questão o desmatamento acumulado chegou aos 35.193 km², área que supera o tamanho de dois estados: Sergipe e Alagoas, que possuem 21 e 27 mil km², respectivamente e representou um 19 MAZER, S. A importância da floresta em pé. IPAM, 2010. Disponível em https://ipam.org.br/cartilhasipam/a-importancia-das-florestas-em-pe/. Acesso em: 13/06/2023. 20 BORGES, B. Custos globais do desmatamento da Amazônia. FGV IBRE, 2022. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/custos-globais-do-desmatamento-da-amazonia. Acesso em: 14/06/2023. 21 DIAZ, M.C.V.; NEPSTAD, D; MENDONÇA, M.J.C.; MOTTA, R.S.; ALENCAR, A.; GOMES, J.C.; ORTIZ, R.A.. 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Acesso em 13/06/2023. 229 aumento de quase 150% em relação ao quadriênio anterior, entre 2015 e 2018, quando foram devastados 14.424 km².23 Entrementes, apesar dos dados alarmantes, é indiscutível que a legislação brasileira possui disposições próprias que visam a manutenção e a preservação do meio ambiente, tendo adotado a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio ambiente, em decorrência do que prevê o art. 225, § 3º, da Constituição Federal, com espeque na teoria do risco integral, sistema mais rigoroso de responsabilização, o que expressa a preocupação ante o alarmante quadro de degradação que se assiste não só no Brasil, mas em todo o mundo impondo ao agente a reparação integral de qualquer fato, culposo ou não culposo, desde que cause um dano24. A redação do citado dispositivo constitucional demonstra a existência de uma previsão tríplice de responsabilização, que serão administrativas, cíveis e penais, onde o ponto em comum entre os três tipos de responsabilidade é a antijuridicidade, ao passo em que se diferenciam no sentido da aplicação do regime jurídico específico ao ato praticado e o meio pelo qual o Estado aplicará as normas legais.25 Extrai-se da disposição constitucional, portanto, que existem três esferas no direito ambiental, quais sejam, a preventiva, relacionada à responsabilidade administrativa, em que se espera do Poder Executivo as medidas necessárias para controlar as atividades causadoras da degradação ambiental, a reparatória, quanto à responsabilidade cível, e a repressiva, no tocante à responsabilidade criminal, sendo que ambas são de competência do Poder Judiciário a quem caberá a aplicação da legislação, visando a efetiva responsabilização aos causadores do dano ambiental26. A nível infraconstitucional, antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, a lei 6.938/81, que segue vigente, já previa, em seu art. 4º, inciso VII “à imposição, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos” e ainda “à imposição ao poluidor e ao predador da obrigação de recuperar e/ou indenizar os AMAZÔNIA perdeu quase 3 mil campos de futebol por dia de floresta em 2022, maior desmatamento de 15 anos. IMAZON, 2023. Disponível em: https://imazon.org.br/imprensa/amazonia-perdeu-quase-3-milcampos-de-futebol-por-dia-de-floresta-em-2022-maior-desmatamento-em-15anos/#:~:text=Com%20isso%2C%20o%20desmatamento%20acumulado,e%2027%20mil%20km%C2%B2 %2C%20respectivamente. Acesso em 14/06/2023. 24 MILARÉ, É. Direito do ambiente: Doutrina, Jurisprudência, Glossário. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 87. 25 FIORILLO, C.A.P. Curso de direito ambiental brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 45. 26 BRAUNER, M.C.C.; SILVA, C.G.. A tríplice responsabilidade ambiental e a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Juris – Revista da Faculdade de Direito, v. 26, p. 71-87, 2016. Disponível em: https://periodicos.furg.br/juris/article/viewFile/5882/4153, p. 76. 23 230 danos causados”, sendo referido dispositivo consagrado como Princípio 1627, da Declaração do Rio na ECO-92, sediada pelo Brasil na cidade do Rio de Janeiro. A citada lei tratou de inserir o conceito de poluidor de forma ampla tornando possível uma persecução mais efetiva do causador do dano, seja ele responsável direto ou indireto da atividade ensejadora. Na esfera criminal a lei 9.605/98 tratou de tipificar os crimes ambientais e adotou, assim como a legislação civil, a responsabilidade objetiva daquele que incorre em uma das figuras típicas estabelecidas, existindo ainda as previsões para os crimes ambientais no Código Penal, no Código Florestal, na Lei de Contravenções Penais e nas Leis 6.453/77 e 7.643/87. Seguindo a Lei 6.938/81, o art. 2º da Lei 9.605/98 também trouxe em seu bojo normativo uma amplitude de agentes sujeitos à responsabilização criminal, pontuando ainda a possibilidade de condutas omissiva ou comissiva, e, no art. 3º e 4º previu a responsabilização das pessoas jurídicas causadoras dos danos ambientais. Pode-se dizer que a responsabilização criminal pelo dano ambiental é a mais severa das responsabilidades, com enfoque de tanger a liberdade, seja da pessoa natural ou jurídica, e possui como efeito o caráter de punição, desdobrando-se para o aspecto educacional, para que seja exercido o exemplo perante a coletividade. Sob a ótica legalista, portanto, é perceptível que existem mecanismos vários e efetivos com o viés repressivo em relação ao dano ambiental, carecendo para a efetivação do controle ao desmatamento intenso que vem ocorrendo uma gestão governamental que busque a máxima efetividade nas medidas de combate à devastação, como algumas já anunciadas de volta da demarcação de terras indígenas, de reestruturação dos órgãos de fiscalização e de incentivo à geração de renda com a floresta em pé.28 Demonstrando a efetividade da legislação atrelada a políticas públicas, verifica-se que o Brasil já conseguiu diminuir substancialmente o desmatamento, que caiu de 27 mil quilômetros quadrados em 2004 para cerca de 4 mil quilômetros quadrados em 2012, quando As autoridades nacionais devem procurar promover a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais. 28 AMAZÔNIA perdeu quase 3 mil campos de futebol por dia de floresta em 2022, maior desmatamento de 15 anos. IMAZON, 2023. Disponível em: <https://imazon.org.br/imprensa/amazonia-perdeu-quase-3-milcampos-de-futebol-por-dia-de-floresta-em-2022-maior-desmatamento-em-15anos/#:~:text=Com%20isso%2C%20o%20desmatamento%20acumulado,e%2027%20mil%20km%C2%B2 %2C%20respectivamente>. Acesso em 14/06/2023. 27 231 tinha atuação interministerial, acirrando a fiscalização e implementando o monitoramento por satélite.29 O que se verifica, portanto, é que os meios de combate ao intenso desmatamento na Amazônia demanda não só a existência de legislação com enfoque na preservação, mas, especialmente, políticas públicas capazes, inicialmente, de monitorar a região, visando combater os atos praticados com intento de exploração e efetivo suficiente para gerir esses sistemas. Considerações Finais Sabe-se que a floresta Amazônia é vital para todo o mundo, uma vez que é rica em biodiversidade, sendo que a sua preservação é essencial para as presentes e futuras gerações. O desmatamento, os crimes ambientais, que a Amazônia tem sofrido ocasiona, portanto, danos diretos à pessoa, que tem o seu patrimônio ambiental destruído. Dessa forma, o direito ao meio ambiente saudável faz parte das garantias fundamentais de cada pessoa, que correspondem àqueles direitos que são essenciais para a subsistência humana, devendo ser preservados e englobando tanto um aspecto negativo (não desmatar), quanto positivo (medidas públicas para a preservação ambiental), não podendo tal direito ser relativizado em face de um bem de menor valor. Nesse contexto, verificou-se que entre 2019 e 2022 houve o desmatamento de 35.193 km², área que supera o tamanho de dois estados: Sergipe e Alagoas, apresentando um aumento de mais de 150% em relação aos anos de 2015 a 2018. Além dos danos inegáveis à biodiversidade, ao ser humano, aponta-se o prejuízo financeiro, uma vez que, a nível mundial, gerou prejuízo no quantum de R$ 1,18 trilhão de reais.30 Demonstra-se, assim, a urgência na tomada de medidas que reforcem a proteção do meio ambiente e o cumprimento da legislação brasileira, a qual já abrange a responsabilização, inclusive da pessoa jurídica, pela degradação e por crimes ambientais. Entretanto, para além da fiscalização pelo órgão públicos, aponta-se a necessidade de constantes monitoramentos das áreas da floresta Amazônia, a fim de controlar o desmatamento que vem sofrendo, além da implementação de políticas públicas que reforcem a fiscalização. DESMATAMENTO da Amazônia registra prejuízo mundial de R$ 1.18 trilhão nos últimos 3 anos, aponta estudo da FGV. ICL ECONOMIA, 2022. Disponível em: <https://icleconomia.com.br/desmatamento-daamazonia-prejuizo-mundial/>. Acesso em 14/06/2023. 30 AMAZÔNIA perdeu quase 3 mil campos de futebol por dia de floresta em 2022, maior desmatamento de 15 anos. IMAZON, 2023. Disponível em: https://imazon.org.br/imprensa/amazonia-perdeu-quase-3-milcampos-de-futebol-por-dia-de-floresta-em-2022-maior-desmatamento-em-15anos/#:~:text=Com%20isso%2C%20o%20desmatamento%20acumulado,e%2027%20mil%20km%C2%B2 %2C%20respectivamente. Acesso em 14/06/2023. 29 232 Por fim, destaca-se que a preservação do meio ambiente como um todo é um trabalho constante que deve partir da conscientização ambiental sobre seu valor para o ser humano, englobando atividades das atuais e futuras gerações e dos órgãos públicos para que esse direito seja, efetivamente, garantido. Referências Bibliográficas ABNT NBR ISSO 14001:2004. Sistemas de gestão ambiental: requisitos com orientações para uso. Disponível em: https://www.ipen.br/biblioteca/slr/cel/N3127.pdf. Acesso em: 13 jun. 2023. AMAZÔNIA perdeu quase 3 mil campos de futebol por dia de floresta em 2022, maior desmatamento de 15 anos. IMAZON, 2023. Disponível em: https://imazon.org.br/imprensa/amazonia-perdeu-quase-3-mil-campos-de-futebol-pordia-de-floresta-em-2022-maior-desmatamento-em-15-anos/#:~:text=Com% 20isso%2C%20o%20desmatamento%20acumulado,e%2027%20mil%20km%C2%B2%2C %20respectivamente. Acesso em: 13 jun. 2023. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BORGES, B. Custos globais do desmatamento da Amazônia. FGV IBRE, 2022. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/custos-globais-do-desmatamento-da-amazonia. BRAUNER, M.C.C.; SILVA, Carina Goulart da. A tríplice responsabilidade ambiental e a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Juris – Revista da Faculdade de Direito, v. 26, p. 71-87, 2016. Disponível em: https://periodicos.furg.br/juris/article/viewFile/5882/4153. BRASIL. [Constituição (1988)]. 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SARLET, I.W.; MARINONI, L.G; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 234 Não Existem Direitos, sem Erradicar Violências: Estudo Sobre Feminicídios no Brasil There Are no rights without eradicating violence: Analysis about femicides in Brazil. Gabriela Maria Pinho Lins Vergolino Isabela Vince Esgalha Fernandes Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti Sumário: 1. Lei do Feminicídio e análise comparativa dos dados; 2. Feminicídios e ações estatais desenvolvidas no período da pandemia; 3. Considerações Finais. Resumo: Nas últimas décadas, entre dinâmicas e agendas políticas, verificou-se a mobilização do Estado brasileiro para a promoção da igualdade de gênero, a fim de possibilitar o exercício e a garantia dos direitos humanos das mulheres, através de iniciativas institucionais e a construção de marcos legais. Tomando um contexto temporal do Tempo Presente, em 2015, foi promulgada a Lei nº 13.104/2015, definindo feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio cometido contra mulheres, em razão do sexo. Um mecanismo que revela intenções e está inscrito no processo de constituição de políticas públicas e ajustes feitos após a Lei Maria da Penha (2007). No entanto, os números continuam alarmantes, então, através da abordagem metodológica de cariz qualitativo e com uso de documentação oficial institucional, tanto para contexto internacional quanto para nacional, revelando procedimentos de coleta de dados a partir de revisão de literatura e bancos de dados governamentais, propõe-se apresentar como resultados novos procedimentos de recolha entre os setores de Segurança Pública, analisando o aumento significativo nos casos de feminicídios nos Estados selecionados (São Paulo, Bahia e Pernambuco), especialmente com o recorte temporal que envolve a crise sanitária e processos de isolamento vivenciados entre 2020 e 2021. Palavras-chave: Feminicídio; Violência de Gênero; Direitos Humanos; Políticas Públicas. Abstract: In recent decades, between dynamics and political agendas, there has been a mobilization of the Brazilian State to promote gender equality, in order to enable the exercise and effectiveness of women's human rights, through institutional initiatives and the construction of legal milestones. Taking a temporal context of the Present Time, in 2015, Law nº 13.104/2015 was enacted, defining feminicide as a qualifying circumstance of homicide committed against women, due to sex. A mechanism that reveals intentions and is inscribed in the process of creating public policies and adjustments made after the Maria da Penha Law (2007). However, the numbers are still alarming, therefore, through the methodological approach of a qualitative nature and with the use of official institutional documentation, both for the international and national context, revealing data collection procedures from literature review and government databases. It is proposed to present new data collection procedures among the Public Security sectors, analyzing the significant increase in cases of femicide in the selected states (São Paulo, Bahia and Pernambuco), especially with the time frame that involves the health crisis and processes of isolation experienced between 2020 and 2021. Keywords: Femicide; Gender Violence; Human Rights; Public Policy. 235 Introdução “Estamos frente a un tipo de violência sistémica. (...) que não prescrevam.” Rita Segato, 2013. A produção legislativa brasileira para prevenção de práticas de violência contra as mulheres possui marcos relevantes, como a Lei nº 1.973/1996 que promulgou, no âmbito interno, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, denominada de Convenção de Belém do Pará, e a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que surgiu no intuito de proteger mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. No entanto, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Brasil ainda ocupa o 5º lugar no ranking de países que mais matam mulheres no mundo, ficando atrás apenas de El Salvador, Guatemala, Colômbia e Rússia. Em 2015, um novo instrumento legislativo foi promulgado. A Lei nº 13.104/2015, cuja redação definiu feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio cometido contra mulheres, em razão do sexo, quando a conduta envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Por consequência, há aumento de pena e os feminicídios passam a integrar o rol de crimes hediondos, em consonância ao entendimento de que o bem jurídico a ser protegido tem como cerne a dignidade da pessoa, sendo assim, inclui-se no rol de direitos humanos como direito fundamental a uma vida livre de violência (Mendes, 2017). 1. Lei do Feminicídio e Análise Comparativa dos Dados As mortes geradas pela violência devem ser entendidas como processo social que se modifica no tempo. (Jackeline Aparecida Ferreira Romio, 2017, p. 21). O processo de construção de marcos legais, com destaque ao instrumento-arcabouço em lei específica (Lei Maria da Penha, n. 11.340/2006, completando 16 anos de implementação em 2023), demonstra vontades políticas e sociais, mas sobretudo instâncias regulatórias e institucionalizadas para cumprir diretrizes internacionais (CEDAW, 1994) e consolidação de políticas de acesso à justiça social e cidadania. Tópicos como a promoção e a proteção dos direitos de meninas e mulheres são reflexos do esforço contínuo para transformação social em prol da igualdade. Ao longo das últimas décadas, foram desenvolvidas uma série de iniciativas legais e institucionais que visam promover a igualdade de gênero e garantir acessibilidade, buscando prevenir e coibir quaisquer formas de discriminação e violências, estando entre elas a criação 236 de medidas a partir da utilização do conceito de feminicídio. Reforçam, sobremaneira, ações advindas de décadas anteriores e estratégias como criação de delegacias especializadas, legislação estruturante e incentivadoras de políticas de atenção primária, políticas sociais, instância de segurança como a Ronda Maria da Penha, dentre outras medidas. Para Roa, Bandeira e Cordeiro (2022), feminicídios são resultados de múltiplas e contínuas manifestações de violência que tem em suas raízes as desiguais relações de poderes entre homens e mulheres. Nesse contexto, a adoção do termo tem como principal objetivo Desmascarar o patriarcado como uma instituição que se sustenta no controle do corpo e na capacidade punitiva sobre as mulheres, e mostrar a dimensão política de todos os assassinos de mulheres que resultam desse controle e capacidade punitiva, sem exceção. A relevância estratégica da politização de todos os homicídios de mulheres nesse sentido é indubitável, pois enfatiza que eles resultam de um sistema no qual poder e masculinidade são sinônimos e impregnam o ambiente social com misoginia: ódio e desprezo pelo corpo feminino e pelos atributos associados à feminilidade. Em um meio dominado pela instituição patriarcal, menos valor é atribuído à vida das mulheres e há uma propensão maior para justificar os crimes que elas sofrem (Segato, 2006, p. 03 – versão livre das autoras). A crescente utilização do termo para a criação de iniciativas legais e institucionais reflete em medidas afirmativas, propositivas e emergentes para a compreensão do fenômeno e frequência de dados sobre mortes de mulheres e meninas (em suas mais diversas caracterizações, grupos, interseccionalidades) e no enfrentamento da violência de gênero na medida em que o termo busca abarcar não apenas o homicídio em si, mas também consideram as motivações e contexto por trás dessas mortes, reconhecendo que os crimes de feminicídio não ocorrem de forma isolada, mas são manifestações extremas de uma história de violência enraizada nas desigualdades de poder entre homens e mulheres, juntamente com a discriminação de gênero arraigada nas estruturas sociais (Machado, Elias, 2018). Nesse contexto, a categoria passou a ser utilizada nos casos em que uma mulher é assassinada devido à sua condição de gênero, incluindo motivações como misoginia, discriminação, violência doméstica ou ódio direcionado às mulheres, e consiste em uma estratégia para sensibilizar a sociedade sobre a ocorrência de tais crimes públicos (Roa; Bandeira; Cordeiro, 2022). A determinação criminal aconteceu a partir da promulgação da lei, mas já havia investigações e recomendações - inclusive anteriores à LMP -, revelando que temos um problema estrutural (cultural e ético) que banaliza violências sobrepostas, especialmente assassinato de mulheres e meninas. 237 Nos últimos anos, diversos países têm realizado mudanças legais a partir da concepção de feminicídio. Apenas na América Latina, 17 (dezessete) países adotaram a terminologia na tipificação de qualificadoras para o crime de homicídio em seus códigos penais (Romio, 2017). Seguindo a tendência latino-americana, o Brasil aprovou a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015). A norma introduziu alterações no Código Penal Brasileiro e na Lei de Crimes Hediondos, com o objetivo de tratar o feminicídio como um crime específico e qualificado, diferenciando-o do homicídio comum. Contudo, assim como qualquer processo jurídicoinstitucional considerando aplicação e efetividade em políticas públicas, são tempos vindouros para formação, consolidação e avaliação de mecanismos. Aqui, verifica-se o intervalo entre motivos que levaram a revisão/propositura de novas abordagens legislativas e as vidas que deveriam ser protegidas. A atenção às “violências sobrepostas” (Cavalcanti, 2018) e inércia ou temporalidades entre cotidiano e justiça podem significar a confirmação de maiores números de mortes. O avanço atingido com essa metodologia possibilitou inúmeros trabalhos acadêmicos que tentam construir/reconstruir a trama socioeconômica. Contudo, buscar em dados criminais as representações sociais que compõem a vida e a condição de mulheres nas diferentes intersecções apresentam dificuldades maiores do que trabalhar com outros indicadores, oriundos do Ministério da Saúde que aportam informações mais quantitativas ou de Secretarias de Segurança Pública, que apresentam fragilidades na uniformização dos indicadores usados à exemplo dos recortes raça/cor, orientação sexual, identidade de gênero, religião, formação familiar, dentre outros, e com a pandemia essa dificuldade teve impactos relevantes na coleta de informações (Teixeira & Cavalcanti, 2021, p. 7). A iniciativa justificou-se pelo fato de que, apesar da implementação de medidas de enfrentamento à violência contra as mulheres, as quais destaca-se a própria e inovadora Lei Maria da Penha, não houve mudanças significativas no índice de mortes de mulheres, pelo contrário. Em uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança em 2019, foi demonstrado, em verdade, um crescimento de aproximadamente 30% no número de homicídios de mulheres no período compreendido entre 2007 e 2017. Deste número, um outro dado chama atenção: do total, 66% das vítimas são mulheres negras (Cerqueira, Bueno et al., 2019). O processo de aprovação da lei foi permeado por crescente conscientização sobre a gravidade da violência de gênero e o impacto devastador do feminicídio. Tal situação foi possível em razão da forte atuação de movimentos feministas, organizações da sociedade 238 civil, defensoras de Direitos Humanos e instituições governamentais, que desempenharam papéis vitais ao levantarem vozes contra a violência de gênero, desigualdades e vulnerabilizações interseccionais, além de pressionarem por uma legislação que abordasse diretamente essa questão. Entretanto, é importante salientar que o processo envolveu nuances políticas, sociológicas e jurídicas, que foram marcadas por debates sobre gênero, poder e justiça. Um dos aspectos a serem mencionados se refere ao próprio texto da lei, que embora inspirado por uma preocupação com a proteção das mulheres, sofreu modificações que afetaram sua interpretação e aplicação. Durante a tramitação, o termo "gênero" foi substituído por "sexo feminino", com o argumento de evitar interpretações amplas. Ponto não pacífico e que gera uma série de interpretações e usos contraditórios, buscando conformismos e adequações às expressões não críticas. A preocupação em distanciar o conceito de feminicídio de uma compreensão mais ampla de gênero foi baseada em premissas controversas, perpetuando a desigualdade de gênero e subestimando o poder do conceito no enfrentamento do problema (e graves estatísticas relativas às mulheres negras e indígenas, assim como travestis e transgêneros). Apesar das mudanças, em março de 2015 a norma foi aprovada, alterando o artigo 121 do Código Penal brasileiro através da inclusão de feminicídio como qualificadora, no qual a pena é elevada para 12 a 30 anos de reclusão (no crime de homicídio comum, a pena é de 6 a 20 anos). Prevê-se ainda um aumento em até 1/3 quando o crime ocorrer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra pessoas vulneráveis (menores, idosos ou portadores de deficiências) e na presença de descendente ou de ascendente da vítima (Brasil, 2015). A iniciativa, contudo, recebeu diversas críticas, inclusive por parte do movimento feminista, sobretudo em razão do caráter punitivista da lei (Campos, 2015). Essa crítica aponta para a complexa interseção entre o ativismo feminista e a adoção de medidas legais, desafiando a noção de que a criminalização é a resposta definitiva. Argumenta-se que o sistema penal é seletivo e inadequado, não consegue cumprir adequadamente sua promessa de garantir direitos, prevenir crimes ou resolver conflitos de maneira justa. Ademais, a pena, em vez de prevenir ou ressocializar, muitas vezes perpetua a criminalidade e mantém relações de dominação, além de negligenciar o papel ativo das vítimas no processo (Machado, Elias, 2018). Cabe ressaltar, porém, que a dimensão legal pode ser considerada uma dimensão política de significativa importância. Desde a promulgação da lei retratada neste texto, houve um notável engajamento das diversas frentes feministas brasileiras em destacar o ganho substancial 239 advindo do processo de criminalização do feminicídio. Esse ganho vai além do aspecto simbólico per se, já que representa um avanço concreto alavancado pela lei, transcendendo o campo da mera representação para se tornar uma manifestação política que abraça a esfera pública e se traduz em legislação, e tem o potencial de gerar reflexos nas estruturas sociais (Machado, Elias, 2018). Observa-se na prática, porém, que a iniciativa não se traduziu em mudanças concretas no que se refere ao índice de crimes cometidos. Em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, verificou-se que houve um crescimento constante de mortes de mulheres desde o ano de 2019. Apenas no primeiro semestre de 2022, 699 (seiscentos e noventa e nove) mulheres foram vítimas de feminicídio, o que significa uma média de 4 mulheres por dia (Bueno; Lagreca; Sobral, 2022). Diversos são os aspectos que podem contribuir para esse contexto. De acordo com as Nações Unidas (2015), a proporção de mulheres que consulta a polícia é inferior a 10%. Entre os motivos para tanto estão a dificuldade de acesso aos serviços institucionais, medo de retaliação e ameaças, preocupação com a família, baixa confiança nas instituições, entre outros (Romio, 2017). No Brasil, especificamente, um outro fator contribuiu de forma significativa para tais índices nos últimos anos: a falta de alocação orçamentária para as políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, como é possível verificar pelo gráfico elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a partir de dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), que reproduzimos abaixo: Gráfico 1 - Valores destinados pelo Governo Federal às Políticas de Enfrentamento à violência contra a Mulher Fonte: Adaptado e reproduzido por Bueno; Lagreca; Sobral, 2022 240 A partir da análise do gráfico acima, é possível concluir que a diminuição de orçamento para as políticas de enfrentamento coincide com o início da gestão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (2018-2022), evidenciando a omissão e a intenção de esvaziamento de pastas relativas aos eixos de promoção de cidadania e justiça social advindos de mandatos anteriores. Isso pode ser detectado no incentivo ao uso de armas e ao não combate da violência de gênero. Esse quadro foi agravado ainda mais com o advento da pandemia causada pelo Coronavírus (COVID-19), uma vez que não havia investimento em sistemas de proteção às mulheres e meninas, em suas representações plurais de raça/etnia/cor, territórios, religiões, classes sociais, identidade/orientação e desejo, faixa etária; muito menos quando da necessidade de adaptar os recursos para que estivessem ao alcance das vítimas de forma efetiva, o que agravou a ocorrência de violências no âmbito doméstico e familiar a partir do isolamento social. A partir da recolha dos dados, verificou-se um aumento do número de feminicídios no estado de Pernambuco e uma leve diminuição nos estados da Bahia e de São Paulo, conforme gráfico abaixo (Gráfico 2). Gráfico 2 - Feminicídios nos Estados da Bahia, Pernambuco e São Paulo entre 2019 e 2021 Fonte: Elaboração das autoras, em adaptação de dados extraídos do Anuário de Segurança Pública (2020, 2022). É possível apontar uma série de dificuldades nas recolhas desses dados, bem como a não unificação de informações, instituições e metodologias. Tal fato agrava a descrição e análise de dados, revelando fragilidades e lacunas para o desenvolvimento de políticas 241 públicas integradas e promotoras de segurança, paz, bem-estar social e, com maior destaque para efeitos deste texto, do direito à vida. 2. Feminicídios e Ações Estatais Desenvolvidas no Período da Pandemia. “Mas o diga “basta” e a assertiva de que o “machismo mata” deve ganhar novas abordagens, propostas e dimensões, chegando às escolas, às famílias e à elaboração de metodologias para melhor descrever e analisar, permitindo concomitantemente diretrizes e ações efetivas.’ (Márcia Teixeira & Vanessa Cavalcanti, 2021, p. 13). A pandemia global causada pelo Covid-19 impactou nas ações de prevenção à prática de violências contra mulheres, o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que no 1º semestre de 2020, período de isolamento intenso da população em virtude das medidas sanitárias de prevenção à doença, 648 mulheres foram assassinadas no Brasil. Ou seja, quatro mulheres foram assassinadas por dia, no período de seis meses. As razões apontadas, ainda com base na pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2020) - e sinalizando para as sub-notificações e dados captados não reveladores de crimes de feminicídios -, seria a dificuldade agravada que as vítimas enfrentaram para denunciar os crimes nas delegacias de polícia, e por consequência, a diminuição do número de concessões de medidas protetivas de urgência. Vale destacar, ademais, que em contexto brasileiro, agravos como filiação e ambiente doméstico devem ser fatores de risco elevado. Importante ressaltar que, conforme dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, (2020) sobre violência doméstica durante a pandemia de COVID-19, apenas em abril de 2020 houve um aumento em 37,6% de denúncias telefônicas, momento em que todos os estados brasileiros já estavam em isolamento social. Acionar o sistema de justiça e de denúncias significa “tentativa” de proteção. Vários estudos acadêmicos revelam, por exemplo, que a maior parte das mulheres não silencia ao entrar na “rede de proteção” e que são vários os registros em delegacias, promotorias, postos e centros de saúde. O ódio e as manifestações das cenas e nos corpos femininos, em geral, são brutais. O feminicídio é um fenômeno histórico e social que se estrutura pela humilhação de mulheres, mediante violência extrema sobre seus corpos: violação, ferimentos, dilaceração, deformação, amputação, esquartejamento e toda a sorte de crueldade que chegam ao extremo de quase impossibilitar o reconhecimento dos corpos pelos próprios familiares (Souza & Mariano, 2022, p. 127-8). 242 Tanto nos estudos antes e pós-pandêmicos, os crimes são registrados tomando autores como pessoas na intimidade, familiares e de relações próximas, em contexto doméstico e de repetidas tentativas. Entretanto, e tomando referência a análise destes dados, é possível observar que o contexto pandêmico obrigou as pessoas ao isolamento e à hiperconvivência. Com isso, propiciou que mulheres estivessem mais suscetíveis a potenciais agressores e sem possibilidade de denunciar ou procurar as redes de apoio institucional, potencializando as vulnerabilidades dessas mulheres e potencializando o risco da violência. A institucionalização não amenizou esforços de movimentos feministas e nem abrandou por conta de etapas jurídico-legislativas. Afinal, os índices seguem elevados (resultantes também de incentivo ao uso de armas, esvaziamento da pasta especializada em políticas para mulheres, cortes orçamentários e longo período de crise sanitária). Tanto em esfera acadêmica quanto civil, destacamos as emergências e as urgências em manter o já existente e renovar o conceito de redes, atenção às vítimas e sistematização de dados. Os movimentos de mulheres visibilizaram rotas críticas para o acesso à Justiça, a exemplo dos tribunais que costumavam julgar, além do crime em si (autoria, materialidade e o modo de operar), a conduta e o comportamento social das vítimas, muitas vezes responsabilizadas pela violência sofrida, a partir de teses baseadas em reproduções de estereótipos de gênero, o que sinaliza para o uso do direito como instrumento de subordinação e controle de mulheres. (Teixeira & Cavalcanti, 2021, p. 11). No âmbito federal, foi sancionada a Lei nº 14.022-20 que dispôs sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra mulheres, bem como contra crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, durante o período de emergência da saúde pública. A Lei trouxe apenas disposições como prorrogação de medidas protetivas e permanência do atendimento presencial das redes de proteção. Não dispôs, nas letras jurídicas, de ações adaptadas de forma eficaz ao período da crise sanitária, até porque ao diminuir verbas do orçamento para financiar políticas públicas de combate à violência contra as mulheres, o Governo Federal não exerceu um papel efetivo na proteção das vítimas. Assim, os estados passaram a conduzir as ações de forma isolada. Em Pernambuco, foram implementadas as denúncias eletrônicas pelo canal da Polícia Civil, no entanto, apenas para crimes específicos, para tentar contornar as subnotificações, além do teleatendimento pela Secretaria Estadual da Mulher (SMP-PE, 2021) e campanhas de conscientização como o realizado pelo Ministério Público estadual. Na Bahia, também foi organizado e ampliados canais de denúncias, como o telefone “Respeita as mina” (começou como campanha e ocupou as diretrizes da última década). 243 Utilizado para orientações e denúncias (SPM-BA, 2021), além da instituição do Protocolo do Feminicídio, em dezembro de 2020, para padronização dos procedimentos de prevenção, investigação e julgamento de crimes contra as mulheres. Tendo como fundamentação diretrizes internacionais da ONU e do Protocolo Nacional, os alertas e os instrumentos para promover proteção e seguir atividades do ponto de vista de políticas públicas foram adaptados. Em São Paulo, o estado manteve as mesmas informações sobre o Ligue 180 e o canal de whatsapp do Ministério da Mulher, do Governo Federal. Nota-se mais empenho na tentativa planejada na capital, através do governo municipal, com o lançamento de um pacote de medidas de enfrentamento à violência doméstica durante a pandemia, sendo a mais destacada em razão do isolamento social. Dentre as ações, foi implementado o “156 HUMANIZADO”, canal de atendimento de escuta qualificada para os casos de violência contra mulheres. Foi garantido também ajuda financeira, com a disponibilização de vagas em quartos de hotéis para mulheres vítimas de violência doméstica e a possibilidade de concessão de auxílio-hospedagem no valor de 400 reais para mulheres que possuíssem medida protetiva judicial na capital e para as que estejam em situações de extrema vulnerabilidade. É possível observar que nos três estados houve a alegação de diminuição das denúncias e, por conseguinte, subnotificações, no período de 2020-21. Por isso, foram implementados instrumentos alternativos de denúncias na tentativa de alcançar essas mulheres em possível estado de vulnerabilidade em razão do isolamento. Considerações Finais Não faltam elementos jurídicos-legais e nem experiências de enfrentamento e coibição de violências de gêneros extremadas. Desde os anos 70, temos no campo do direito internacional público e nas esferas nacionais ações e agendas específicas. Se podem ser evitadas, as mortes de meninas e mulheres devem ser foco da atenção pública, respondendo aos mecanismos internacionais e aos indicadores infra-constitucionais e legais já desenhados e promulgados. “Não deixar morrer” pode significar intensificação de estratégias educativas e preventivas, mas criar avaliação e acompanhamento de riscos, de equipamentos e centros de referência que funcionem e estejam de “portas abertas” (delegacias especializadas não tinham atendimento 24 horas até recentemente) é fundamental. 244 No âmbito da vitimologia e da criminologia crítica, inúmeros são as recomendações de boas práticas, de metodologias validadas internacionalmente e que podem agilizar atenção, proteção e segurança. Deste modo, sugerimos a criação de metodologias de registros e mapeamento dos dados e informações da(s) violência(s), adequadas à tipificação já existente na Lei Maria da Penha e no cruzamento de informações via sistemas integrados e tecnológicos, uso de bancos de dados e reforços nos procedimentos já ativos. Proeminente incentivo à formação continuada para agentes de segurança, saúde e políticas sociais (educação, saúde e assistência social, como linhas de frente) vislumbrando ações efetivas no que se refere à acessibilidade e à proteção imediata de mulheres e de pessoas próximas. As violências sobrepostas (Cavalcanti, 2018) devem ser evitadas e revitimizações, silenciamentos e tempos de espera também. Para além das tipificações, se instituições, agentes e sociedade civil também não integrarem a “rede”, a impunidade e a ineficácia/ineficiência do sistema jurídico-social também estará sob falência. Ações e fluxos devem estar planejados, ampliando em lentes de aumento riscos e situações agravantes (por exemplo, contexto em que estão envolvidos filhos (as) ou genitores/vítimas secundárias). O acúmulo de queixas e solicitações de apoio nas redes não podem servir como novas e mais entraves à proteção às vidas. Os princípios já são conhecidos e utilizados nas rondas e nas diversas ações construídas ao longo das duas últimas décadas. Fortalecer as múltiplas parcerias na rede, ouvir e acompanhar sistematicamente as vítimas, incentivando convivência e atendimento multidisciplinar (envolvendo assistência social, psicológica e de proteção) são alguns dos pontos basilares para garantir direito à vida e à dignidade. Referências BAHIA. Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres. SPM-BA promove ações de enfrentamento à violência contra as mulheres durante a pandemia. 2021. Disponível em: https://www.mulheres.ba.gov.br/2021/12/3456/SPM-BA-promove-acoes-deenfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres-durante-a-pandemia.html BUENO, S.; LAGRECA, A; SOBRAL, I. Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2022. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/12/violencia-contrameninasmulheres-2022-1sem. pdf CAICEDO-ROA, M.; BANDEIRA, L.M.; CORDEIRO, R.C.. Femicídio e Feminicídio: discutindo e ampliando os conceitos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 2022, 30(3): e83829. Disponível em DOI: 10.1590/1806-9584-2022v30n383829 CAMPOS, C.H.. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. Revista Sistema penal e violência. Porto Alegre, v. 7 n. 1, jan-jun, p. 103-115, 2015. Disponível em 245 https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/20 275 Acesso em 18/08/2023 CERQUEIRA, D.; BUENO, S.; ALVES, P.; DE LIMA, R. et al. “Atlas da Violência 2020”. 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A (in)constitucionalidade das medidas executivas atípicas. 4. A efetividade como corolário do direito humano e fundamental de acesso à justiça. Considerações Finais. Resumo: As estatísticas oficiais do Conselho Nacional de Justiça, divulgadas anualmente através dos relatórios intitulados “Justiça em Números”, demonstram que a fase de execução consiste em um dos maiores desafios do Poder Judiciário brasileiro. De modo geral, mais da metade das decisões judiciais não são espontaneamente cumpridas pelos litigantes sucumbentes, o que deu ensejo à inserção, ainda no Código de Processo Civil de 1973, de dispositivo permitindo a adoção de medidas executivas atípicas a fim de assegurar o cumprimento dos julgados. Inicialmente aplicáveis com vistas a incentivar o cumprimento das obrigações de fazer, de não fazer e de entrega de coisa, no Código de Processo Civil de 2015, essa técnica processual, segundo a qual o magistrado pode determinar a utilização de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, foi estendida às obrigações pecuniárias. O artigo 139, IV, do Código de Processo Civil, teve, portanto, sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal. Em 09 de fevereiro de 2023, a Corte Constitucional, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.941, reconheceu a constitucionalidade do dispositivo legal. Atualmente, considera-se que o direito de acesso à justiça previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, tem como corolário o direito à tutela jurisdicional efetiva. No âmbito internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos atestou, na sentença do caso Mejía Idrovo versus Equador, que a efetividade das sentenças depende de sua execução, sem a qual se está diante da própria negação do direito envolvido, conforme prevê o artigo 25.2.c) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Destarte, a análise da juridicidade da aplicação das medidas executivas atípicas previstas no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil, deve levar em consideração o direito humano e fundamental à tutela jurisdicional efetiva, sobretudo no processo do trabalho, cujos créditos possuem natureza alimentar. Palavras-chave: direito à tutela jurisdicional efetiva; acesso à justiça; execução trabalhista; medidas executivas atípicas. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011) e Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná (2002). Professora Associada dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Mestranda em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná, Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Analista Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Endereço eletrônico: [email protected]. 1 248 Abstract: The official statistics of the National Council of Justice, released annually through the “Justice in Number” reports, demonstrate that the execution phase is one of the greatest challenges for the Brazilian Judiciary. In general, more than half of judicial decisions are not spontaneously complied with by succumbing litigants, which led to the insertion in the 1973 Civil Procedure Code, of an article allowing the adoption of atypical executive measures in order to ensure compliance with judicial decisions. Initially applicable with a view to encouraging compliance with to do, to not do and to deliver obligations, in the 2015 Civil Procedure Code, this procedural technique, according to which the judge can determine the use of inductive, coercive, mandatory or subrogatory measures to ensure compliance with a court order, was extended to pecuniary obligations. Therefore, article 139, IV, of the Civil Procedure Code, had its constitutionality questioned before the Federal Supreme Court. On February 9, 2023, the Constitutional Court, judging the Direct Action of Unconstitutionality n. 5,941, recognized the constitutionality of the law. Currently, it is considered that the right of access to justice (article 5, XXXV, of the Constitution of the Republic), has as a corollary the right to effective judicial protection. At the international level, the Inter-American Court of Human Rights attested, in the case of Mejía Idrovo versus Ecuador, that the effectiveness of judgments depends on their execution, without which there is a denial of the right involved, as provided for in Article 25.2. c) of the American Convention on Human Rights (San José of Costa Rica Pact). Therefore, the analysis of the legality of the application of atypical executive measures provided for in article 139, IV, of the Civil Procedure Code, must take into consideration the human and fundamental right to effective judicial protection, especially in the labour process, whose credits have alimentary nature. Keywords: right to effective judicial protection; access to justice; labour execution; atypical executive measures. 1. O Cumprimento de Sentença no Processo Civil e a Execução no Processo do Trabalho De forma bastante resumida, o Código de Processo Civil de 1973, até junho de 2006, previa a existência de três espécies de processos judiciais: o processo de conhecimento; o processo de execução; e o processo cautelar. O primeiro consistia no momento processual no qual o juiz determinava a qual das partes assistia razão. Noutro dizer, afirmava-se – ou não – a própria existência do direito que reclamava a tutela jurisdicional. Fixada essa premissa, caso a obrigação não fosse cumprida espontaneamente, a próxima etapa consistia no processo de execução, através do qual o juiz invadia o patrimônio do devedor, independentemente da vontade deste, para satisfazer o credor. O processo cautelar, a seu turno, prestava-se à conservação do direito a fim de evitar a ocorrência de dano ou garantir o resultado útil do processo. Este está fora do escopo do presente trabalho. Até então, dispunha o artigo 162, § 1º, do CPC/1973 que a sentença era o ato pelo qual o juiz punha termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa. Na realidade, contudo, o trânsito em julgado da sentença encerrava apenas o processo de conhecimento, mas não representava garantia de que o credor fosse ter acesso ao bem da vida postulado. Caso o devedor não cumprisse espontaneamente a obrigação, iniciava-se o processo de 249 execução, através do qual buscar-se-ia invadir o patrimônio do devedor/executado com vistas ao adimplemento do débito. Ou seja, havia dois processos distintos, tanto que o devedor/executado deveria ser citado3 do início do processo de execução (artigo 614, do CPC/19734). Essa situação era de certa forma redundante no caso de título executivo judicial pois, a rigor, o devedor já havia tomado conhecimento da existência do processo e havia tido a oportunidade de exercitar sua ampla defesa. Sabia, portanto, que em caso de sucumbência, seria compelido a cumprir a obrigação, de modo que era descabido falar em citação. A microrreforma promovida pela Lei n. 11.232/2005 representou, portanto, um verdadeiro divisor de águas. A inclusão do Capítulo X (Do Cumprimento da Sentença) no Título VIII (Do Procedimento Ordinário) do Livro I (Do Processo de Conhecimento) significou o reconhecimento de que o processo não se encerrava com o trânsito em julgado da sentença, pelo simples fato de que a afirmação da existência do direito não implica necessariamente a sua efetivação. Ora, se o conflito de interesses somente se encerra quando o credor tem acesso ao bem da vida reclamado em juízo, e quando isso ocorre apenas após a execução forçada, levada a efeito no âmbito do Poder Judiciário, a conclusão é de que o próprio processo só se encerra com a satisfação do crédito. Assim sendo, não haveria falar em processos de conhecimento e de execução, mas em meras fases de conhecimento e de cumprimento de sentença (em caso de título executivo judicial), inseridas em um processo sincrético. Assim foi que, com o trânsito em julgado da sentença e liquidado o julgado, a parte condenada ao pagamento de quantia certa passou a ser intimada para realizá-lo no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de multa de 10% (dez por cento), nos termos do artigo 475-J, caput, do CPC/19735. A inovação da microrreforma foi mantida no Código de Processo Civil de 2015, que entrou em vigor em 18 de março de 2016, como se depreende do Título II (Do Cumprimento da Sentença) do Livro I (Do Processo de Conhecimento e do Cumprimento de Sentença). Tal como no sistema anterior, o devedor atualmente é intimado para cumprir a sentença, nos termos do artigo 513, § 2º, do CPC/20156. Segundo o artigo 213, do CPC/1973, “citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu, a fim de se defender”. “Art. 614. Cumpre ao credor, ao requerer a execução, pedir a citação do devedor e instruir a petição inicial: [...]” (destaque nosso). 5 “Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.” 6 “Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código. [...] 3 4 250 A partir da entrada em vigor da Lei n. 11.232/2005, ainda sob a égide do CPC/1973, iniciaram-se discussões sobre a aplicabilidade do processo sincrético no âmbito do Processo do Trabalho, haja vista o disposto no artigo 769, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)7. Todavia, em 25 de março de 2019, o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, no Incidente de Recurso de Revista Repetitivo (IRR) n. 1786-24.2015.5.04.0000, decidiu que o Processo do Trabalho possui um sistema próprio e que não haveria omissão a autorizar a incidência do artigo 523, § 1º, do CPC/20158, que trata da fase de cumprimento de sentença. Destarte, no Processo do Trabalho, ainda se fala em processo de conhecimento, processo de execução e citação do executado, terminologia que será observada doravante. 2. A Execução Trabalhista no Brasil Os números relativos à execução no Poder Judiciário brasileiro como um todo vêm demonstrando que ela representa um dos grandes desafios do sistema de justiça. De acordo com o relatório Justiça em Números 2022, 53,3% (cinquenta e três inteiros e três décimos por cento) dos 77 (setenta e sete) milhões de processos pendentes de baixa no final do ano de 2021 estavam na fase de execução 9. Na Justiça do Trabalho em especial, ela representou 47,8% (quarenta e sete inteiros e oito décimos por cento) do acervo total de processos, chegando a representar mais de 60% (sessenta por cento) do acervo em 10 (dez) 10 dos 24 (vinte e quatro) Tribunais Regionais do Trabalho11. O mesmo relatório, comparando as taxas de congestionamento12 entre as fases de conhecimento e de execução, apurou que na Justiça do Trabalho elas atingiram os § 2º O devedor será intimado para cumprir a sentença: [...]” (destaque nosso). 7 “Art. 769 - Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título.” 8 “Art. 523. No caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liquidação, e no caso de decisão sobre parcela incontroversa, o cumprimento definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o executado intimado para pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias, acrescido de custas, se houver. § 1º Não ocorrendo pagamento voluntário no prazo do caput, o débito será acrescido de multa de dez por cento e, também, de honorários de advogado de dez por cento.” 9 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. Acesso em: 16 ago. 2023, p. 164. 10 TRT7 (Ceará), TRT9 (Paraná), TRT10 (Distrito Federal e Tocantins), TRT13 (Paraíba), TRT14 (Rondônia e Acre), TRT16 (Maranhão), TRT19 (Alagoas), TRT20 (Sergipe), TRT21 (Rio Grande do Norte) e TRT22 (Piauí). 11 BRASIL, op. cit., p. 165. 12 “Taxa de Congestionamento: indicador que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução ao final do ano-base, em relação ao que tramitou (soma dos pendentes e dos baixados). Cumpre informar que, de todo o acervo, nem todos os processos podem ser baixados no mesmo ano, devido a existência de prazos legais a serem cumpridos, especialmente nos casos em que o processo ingressou no final do anobase.” (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. Acesso em: 16 ago. 2023, p. 103). 251 percentuais de 60% (sessenta por cento) e 76% (setenta e seis por cento) respectivamente 13. Relativamente aos índices de produtividade em ambas as fases, constatou-se que “o quantitativo de processos baixados é sempre maior na fase de conhecimento do que na de execução”14. Esses dados revelam que o Poder Judiciário brasileiro se encontra diante do que Rodolfo de Camargo Mancuso denomina uma “crise de efetividade prática” 15. Ou, na terminologia popular, o famigerado “ganha, mas não leva”. Referida crise é muito grave. Com efeito, a partir do momento em que o Estado assume para si a tarefa de resolver os conflitos intersubjetivos e proscreve o exercício da autotutela 16, espera-se que tal função seja exercida de forma exitosa. Se isso não está ocorrendo – como revelam as estatísticas citadas em linhas pretéritas –, reina um sentimento de injustiça e de impotência do jurisdicionado, bem como faz cair em descrédito o Poder Judiciário. A ineficiência do Poder Judiciário em entregar o bem da vida ao credor se reveste de especial gravidade quando se trata da Justiça do Trabalho. Isso porque, na maior parte das vezes, o credor é um(a) trabalhador(a) que teve seus direitos sonegados17, possuindo créditos de natureza salarial e, portanto, alimentar. Destarte, o inadimplemento significa que o(a) trabalhador(a) prestou serviços – e, portanto, dedicou horas de sua vida – sem qualquer contraprestação, passou por dificuldades para prover sua subsistência e de sua família e, após invocar a tutela jurisdicional, ainda assim não obteve a satisfação da obrigação. Nesse contexto, a previsão legal da possibilidade de adoção de medidas executivas atípicas como forma de coerção indireta para que o devedor cumpra a obrigação18, o que foi Ibidem, p. 169. Ibidem, p. 178. 15 MANCUSO, R.C.. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 115. 16 O exercício arbitrário das próprias razões é crime previsto no artigo 345 do Código Penal Brasileiro: “Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.” 17 Importante esclarecer que o fato de a maior parte dos credores trabalhistas ser de trabalhadores não significa que haja um protecionismo de parte desse ramo do Poder Judiciário com relação aos empregados, como muitas vezes se ouve no meio forense. O que ocorre é que a grande maioria das demandas é ajuizada por trabalhadores em face de empregadores (que já se reconhecem nessa posição jurídica ou em face de quem se postula vínculo empregatício) e, quando estes logram êxito, não é usual que tenham valores a receber daqueles. Destarte, não se tornam seus credores e não chega a ser instaurado um processo de execução. São poucas as demandas ajuizadas diretamente por empregadores em face de trabalhadores, de modo a colocar aqueles na posição de credores destes. Daí porque é possível afirmar com segurança que a maior parte dos processos em execução na seara trabalhista envolve trabalhadores na posição de credores/exequentes. 18 A previsão foi inserida ainda no CPC/1973, pela Lei n. 8.952/1994 e, posteriormente, pela Lei n. 10.444/2002, que modificaram o artigo 461, nos seguintes termos: 13 14 252 estendido, no CPC/2015, às obrigações de pagar, representou uma esperança de melhoria da efetividade da execução. 3. A (In)Constitucionalidade das Medidas Executivas Atípicas A leitura da Exposição de Motivos do Código de Processo Civil em vigor revela, já nos dois primeiros parágrafos, que a efetividade da tutela jurisdicional foi uma grande preocupação da Comissão de Juristas que elaborou o diploma legal: Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo.19 Nesse contexto, o artigo 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015, estendeu a possibilidade de aplicação de medidas executivas atípicas – já amplamante aceitas e aplicáveis às obrigações de fazer e não fazer e de entrega de coisa sob a égide do CPC/1973 – às obrigações pecuniárias, nos seguintes termos: Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: [...] IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou subrogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. Com efeito, a busca de maior efetividade à execução foi o grande mote da inserção do dispositivo legal no Código de Processo Civil. Tanto é assim que, nas palavras de Olavo de Oliveira Neto, o artigo 139, IV, do CPC/2015 prevê o denominado poder geral de efetivação20. “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. [...] § 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.” 19 BRASIL. Código de Processo Civil e normas correlatas. 7ª ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/512422/001041135.pdf. Acesso em 17 ago. 2023, p. 24. 20 OLIVEIRA NETO, Olavo de. O Poder Geral de Coerção. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 229. 253 Em que pese a louvável intenção da Comissão de Juristas, a aceitação do dispositivo não foi nada tranquila. Ao revés, ele teve sua constitucionalidade questionada por alguns autores de renome, como é o caso de Araken de Assis, segundo quem a inconstitucionalidade do dispositivo legal é patente, sobretudo pela possibilidade de utilização de medidas que atinjam a pessoa do executado21. Fora do âmbito doutrinário, o Partido dos Trabalhadores ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impugnando o artigo 139, IV, do CPC/2015, à qual foi atribuído o n. 5.941/DF. Mais especificamente, foi questionada a constitucionalidade das medidas consistentes na suspensão do direito de dirigir e/ou de apreensão da carteira nacional de habilitação (CNH) do executado, da apreensão do seu passaporte e da sua proibição de participar de concurso público ou de certame licitatório. Defendeu-se que a adoção de tais técnicas de execução indireta implicaria violação a direitos fundamentais. Da leitura da petição inicial, lê-se que “não se conhece um direito fundamental ao adimplemento de um crédito”22 e que “sob o patrocínio de uma sanha por efetividade [...] não se pode admitir o sacrifício de direitos fundamentais” 23, a saber, a liberdade de locomoção (artigo 5º, XV e LIV, da Constituição 24) e a dignidade da pessoa humana25 (art. 1º, III, da Constituição 26). Argumentou-se, ainda, que a adoção de referidas técnicas em ações envolvendo obrigações de pagar implicaria violação à patrimonialidade da execução27. Em 09 de fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal, por maioria (vencido, em parte, o Ministro Edson Fachin), julgou improcedente o pedido, nos termos do voto do Relator, Ministro Luiz Fux que, aliás, havia sido o Presidente da Comissão elaboradora do Código de Processo Civil de 2015. No inteiro teor do acórdão 28, um dos fundamentos ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 20ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 167. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.941/DF. Petição inicial. Autor: Partido dos Trabalhadores; Interessado: Presidente da República. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5458217. Acesso em 17 ago. 2023, p. 14. 23 Ibidem, p. 14. 24 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 25 Ibidem, p. 16. 26 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana”. 27 Ibidem, p. 11. 28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.941/DF. Acórdão. Autor: Partido dos Trabalhadores; Interessado: Presidente da República. Brasília, DF, julgamento em 09 fev. 2023; acórdão publicado em 28 abr. 21 22 254 exaustivamente utilizados para o reconhecimento da constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC/2015 foi, de fato, a efetividade. 4. A Efetividade como Corolário do Direito Humano e Fundamental de Acesso à Justiça Andou bem a Corte Constitucional brasileira ao afastar a alegação de inconstitucionalidade da aplicação das medidas executivas atípicas sob comento com fundamento no princípio da efetividade. Contrariamente ao alegado pelo autor da ADI n. 5.941/DF, ao estender a possibilidade de aplicação das medidas executivas atípicas às obrigações pecuniárias, não se está tutelando um direito ao crédito, mas o direito humano e fundamental29 de acesso à justiça. Com efeito, quando se pensa em acesso à justiça, a primeira ideia que vem à cabeça é a possibilidade de alguém invocar a tutela jurisdicional do Estado, tendo em vista a proibição da autotutela. Na consagrada obra Acesso à Justiça, Mauro Cappelletti e Bryant Garth admitiram que seu enfoque foi precipuamente voltado à amplitude da acessibilidade do sistema, ou seja, à possibilidade de todos poderem reivindicar a tutela jurisdicional 30. Daí porque os autores trataram das ondas de acesso à justiça, a saber: assistência judiciária para os pobres (primeira); representação dos interesses difusos (segunda); e enfoque do acesso à justiça (terceira)31. Não obstante, os supracitados autores reconhecem que não basta assegurar a todos o direito de ingressar com uma demanda judicial; é necessário, ainda, que sejam 2023. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=767273122. Acesso em 17 ago. 2023. 29 Fábio Konder Comparato explica a distinção doutrinária entre direitos humanos e direitos fundamentais: “É aí que se põe a distinção, elaborada pela doutrina jurídica germânica, entre direitos humanos e direitos fundamentais (Grundrechte). Estes últimos são os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional; são os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais.” (COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 71). 30 “A expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. Nosso enfoque, aqui, será primordialmente sobre o primeiro aspecto, mas não poderemos perder de vista o segundo. Sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.” (CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 8 – destaque no original). 31 A terceira onda de acesso à justiça “[...] encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações no direito substantivo destinadas e evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios” (CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 71). 255 desenvolvidos “métodos que tornem os novos direitos efetivos” 32. Concluem, afirmando que: De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade dos direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.33 Na mesma toada, leciona Luiz Guilherme Marinoni explica que a previsão legal de técnicas processuais que visem a conferir efetividade aos comandos judiciais é da essência do direito de ação: O direito de ação não pode mais ser visto como direito a uma sentença sobre o mérito. O direito de ação, no Estado contemporâneo, exige a preordenação das modalidades executivas idôneas à obtenção das tutelas prometidas pelo direito material. Assim, o autor, ao propor a ação, não deseja apenas a sentença condenatória, mas sim a tutela do direito material que afirma possuir. 34 Com efeito, parece óbvio que quando uma pessoa invoca a tutela jurisdicional perante o Poder Judiciário, o que ela espera é obter o bem da vida do qual foi alijada, no seu entender, injustamente. Destarte, a mera prolação de uma sentença de mérito acolhendo sua pretensão não soluciona o problema; nada mais é que uma etapa a ser percorrida, mas não constitui o próprio fim do processo. O objetivo final é que o credor consiga a prestação à qual fazia jus desde o início e que lhe fora sonegada pelo devedor. Partindo dessa premissa, o verdadeiro acesso à justiça somente é alcançado quando a parte vencedora tem o seu direito recomposto. Noutro dizer, a efetividade é parte indissociável da concepção hodierna de acesso à justiça. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na sentença do caso Mejía Idrovo versus Equador, assentou que o artigo 25.2.c)35, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica)36, consagra o direito à execução efetiva, sendo responsabilidade dos Estados signatários: Ibidem, p. 70. Ibidem, p. 11-12. 34 MARINONI, L.G.. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 114-115. 35 “ARTIGO 25 Proteção Judicial [...] 2. Os Estados-Partes comprometem-se: [...] c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.” 36 A Convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 27, de 26 de maio de 1992 e foi promulgada pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. 32 33 256 [...] garantir os meios para a execução das respectivas decisões e sentenças definitivas proferidas pelas referidas autoridades competentes, de modo que os direitos declarados ou reconhecidos sejam efetivamente protegidos. O processo deve tender à adequada materialização do referido pronunciamento. Portanto, “a eficácia das sentenças depende de sua execução. Esta última, porque a sentença com caráter de coisa julgada confere certeza sobre o direito ou a controvérsia discutida no caso concreto e, portanto, tem como um de seus efeitos a obrigação ou necessidade de cumprimento. O oposto supõe a própria negação do direito envolvido.37 No âmbito interno, entende-se que o artigo 5º, XXXV, da Constituição38, ao consagrar o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, estabeleceu o direito de acesso à justiça e, como corolário, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Nesse sentido: Se o Judiciário brasileiro, segundo o art. 5º, XXXV, da CF/1988 (LGL\1988\3), deve apreciar e, por óbvio, remover as lesões ou ameaças de lesão a direitos, os seus julgados naturalmente devem ser efetivos, isto é, capazes de propiciar a remoção das situações contrárias à eficácia dos direitos reconhecidos.39 No mesmo sentido, as próprias alterações ao CPC/1973, levadas a efeito pela Lei n. 11.232/2005, ao eliminarem a execução como processo autônomo e ao consagrarem o processo sincrético, admitiram que o processo somente se encerra de fato após a execução do julgado, quando o credor tem verdadeiro acesso ao bem da vida que lhe foi outorgado. A manutenção desse entendimento no CPC/2015, bem como o disposto no artigo 4º, parte final40, revelam que a efetividade é o mote do sistema processual pátrio. Do exposto, considerando que as medidas executivas atípicas previstas no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015, constituem técnicas processuais de execução indireta que visam a incentivar o adimplemento da obrigação pelo devedor/executado, é patente sua constitucionalidade sob a óptica do princípio do acesso à justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República. Tradução livre feita pelas autoras. Segue o texto original: “[...] garantizar los medios para ejecutar las respectivas decisiones y sentencias definitivas emitidas por tales autoridades competentes, de manera que se protejan efectivamente los derechos declarados o reconocidos. El proceso debe tender a la materialización idónea de dicho pronunciamiento. Por tanto, “la efectividad de las sentencias depende de su ejecución. Esto último, debido a que una sentencia con carácter de cosa juzgada otorga certeza sobre el derecho o controversia discutida en el caso concreto y, por ende, tiene como uno de sus efectos la obligatoriedad o necesidad de cumplimiento. Lo contrario supone la negación misma del derecho involucrado”. (CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Mejía Idrovo vs. Ecuador. Sentencia de 5 de julio de 2011. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_228_esp.pdf. Acesso em: 18 ago. 2023, p. 29). 38 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” 39 NOGUEIRA, P.H.P.. O Direito Fundamental à Tutela Jurisdicional Executiva e a Técnica da Ponderação. Revista de Processo. São Paulo, v. 169, Mar. 2009, p. 38-61. 40 “Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.” 37 257 Consequentemente, ao se analisar eventual conflito entre princípios na aplicação das medidas executivas atípicas, é o direito humano e fundamental de acesso à justiça que deve ser levado em consideração pelo intérprete para fazer um juízo de ponderação41. Tomando como exemplo a suspensão do direito de dirigir do devedor e/ou a retenção de sua carteira nacional de habilitação (CNH), há quem defenda que o direito constitucional de ir e vir do executado estaria sendo restrito, em afronta ao artigo 5º, XV e LIV, da Constituição. O que ocorre é que o direito de livre locomoção do devedor deve ser analisado em contraposição ao direito de acesso à justiça do credor, na vertente da obtenção da tutela jurisdicional efetiva. Em tal situação, verifica-se que a mera limitação de uma forma de locomoção do devedor – já que ele poderá se valer de diversos outros meios de transporte para ir e vir, desde que não esteja na direção de veículo automotor – representa um contratempo muito pequeno perto do prejuízo social que ele causa ao deixar de cumprir uma decisão judicial transitada em julgado. Não apenas o credor permanece com seu direito violado, como o Poder Judiciário cai em descrédito, solapando a própria base do Estado Democrático de Direito ao proibir a autotutela de interesses. A situação se afigura ainda mais grave quando se trata de verbas alimentares a que fazia jus um(a) trabalhador(a) hipossuficiente, ou seja, no bojo de um processo trabalhista. Enfim, parece claro que os direitos de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva devem ter precedência no caso concreto. Considerações Finais Em conclusão, tem-se que hodiernamente o direito de acesso à justiça representa muito mais que a simples possibilidade de ingressar em juízo na busca da tutela de determinado direito subjetivo violado; a obtenção de sentença de mérito favorável tampouco representa o objetivo do autor de determinada demanda judicial. Na realidade, o que pretende o jurisdicionado é obter o bem da vida do qual foi alijado e, para tanto, é necessário que a legislação estatal preveja técnicas processuais hábeis a imprimir efetividade à execução Robert Alexy ensina que por vezes, princípios isoladamente considerados conduzem a uma contradição. “Isso significa, por sua vez, que um princípio restringe as possibilidades jurídicas de realização do outro. Essa situação não é resolvida com a declaração de invalidade de um dos princípios e com sua consequente eliminação do ordenamento jurídico. Ela tampouco é resolvida por meio da introdução de uma exceção a um dos princípios, que seria considerado, em todos os casos futuros, como uma regra que ou é realizada, ou não é. A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão da precedência seja resolvida de forma contrária.” (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 96). 41 258 dos julgados. As medidas executivas atípicas previstas no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil de 2015, se inserem nesse contexto. Não há falar, pois, de inconstitucionalidade de medidas tais como a suspensão do direito de dirigir e/ou de apreensão da carteira nacional de habilitação (CNH) do executado, da apreensão do seu passaporte e da sua proibição de participar de concurso público ou de certame licitatório, pois às eventuais limitações ao conforto do executado devem ser contrapostos os direitos humanos e fundamentais de acesso à justiça e de tutela jurisdicional efetiva do executado – e não um mero direito de crédito –, que ganham especial relevo quando se trata de execução de verbas trabalhistas de natureza alimentar. Referências Bibliográficas ALEXY, R.t. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. ASSIS, A. Manual da Execução. 20ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. BRASIL. Código de Processo Civil e normas correlatas. 7ª ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/512422/001041135.pdf. Acesso em 17 ago. 2023. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. Acesso em: 16 ago. 2023. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.941/DF. Acórdão. Autor: Partido dos Trabalhadores; Interessado: Presidente da República. Brasília, DF, julgamento em 09 fev. 2023; acórdão publicado em 28 abr. 2023. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=767273122. Acesso em 17 ago. 2023. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5.941/DF. Petição inicial. Autor: Partido dos Trabalhadores; Interessado: Presidente da República. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarPro cessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5458217. Acesso em 17 ago. 2023. CAPPELLETTI, M. e GARTH, B.. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Mejía Idrovo vs. Ecuador. Sentencia de 5 de julio de 2011. Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_228_esp.pdf. Acesso em: 18 ago. 2023. COMPARATO, F.K. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 259 MANCUSO, R.G.. Acesso à Justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. MARINONI, L.G. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. NOGUEIRA, P.H.P. O Direito Fundamental à Tutela Jurisdicional Executiva e a Técnica da Ponderação. Revista de Processo. São Paulo, v. 169, Mar. 2009, p. 38-61. OLIVEIRA NETO, O. O Poder Geral de Coerção. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 229. 260 Transparência Empresarial: Um Paradigma Necessário para a Efetividade dos Direitos Humanos nas Relações Privadas. Corporate Transparency: a necessary paradigm for the effectiveness of Human Rights in private relationships. João Emilio de Assis Reis1 Sumário: 1. Introdução; 2. O fortalecimento dos direitos humanos e o novo paradigma na concepção do papel das Empresas na Sociedade; 3. A importância da transparência empresarial em um modelo ético de empresa; 4. A concretização da transparência empresarial: o modelo europeu e brasileiro de informes não financeiros; 5. Considerações finais; Resumo: O presente artigo é um ensaio teórico, baseado em revisão bibliográfica e documental, que busca relacionar a transparência empresarial e os direitos humanos, apresentado a mesma como uma consequência do movimento de fortalecimento dos direitos humanos, que terminou por criar novos paradigmas éticos para a atuação empresarial, ao mesmo tempo em que consiste em um importante mecanismo de proteção e promoção aos direitos humanos por permitir o monitoramento das condutas das empresas pela sociedade. Ao final, analisa os informes não financeiros na União Europeia e no Brasil como instrumentos de implementação da transparência empresarial. Conclui-se que a transparência empresarial é uma necessidade cada vez mais demandada por diferentes atores sociais com relação às empresas, especialmente em se considerando o papel de centralidade que as empresas tem na sociedade moderna e instrumentos que propiciem o controle social por parte das atividades empresariais como os informes não financeiros são importantes, na medida em que permite aos atores sociais o informação sobre ações concretas da empresa no campo da responsabilidade social e seus resultados. Palavras-chave: Transparência empresarial; Direitos Humanos; Responsabilidade Social da Empresa; Informes não financeiros. Abstract: This article is a theoretical essay, based on a bibliographical and documentary review, which seeks to relate corporate transparency and human rights, presented as a consequence of the movement to strengthen human rights, which ended up creating new ethical paradigms for the performance business, at the same time that it consists of an important mechanism for the protection and promotion of human rights by allowing society to monitor the conduct of companies. At the end, it analyzes non-financial reports in the European Union and in Brazil as instruments for implementing corporate transparency. It is concluded that business transparency is a need that is increasingly demanded by different social actors in relation to companies, especially considering the central role that companies have in modern society and instruments that provide social control on the part of business activities how non-financial reports are important, as they provide social actors with information about the company's concrete actions in the field of social responsibility and their results. Professor de Direito Empresarial do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro IFRJ. Pós-doutorado em Direito pela Universidad de Salamanca. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Lider do Grupo de Pesquisas NUPRESE – Núcleo de Pesquisas em Responsabilidade Social da Empresa certificado pelo CNPq/IFRJ e Coordenador do curso de Especialização em Gestão de Negócios do IFRJ. E-mail: [email protected]. 1 261 Keywords: Business transparency; Human rights; Corporate Social Responsibility; Nonfinancial reports. 1. Introdução. A partir da segunda metade do século XX especialmente a relação da Empresa com a Sociedade começa a mudar. A forma de produzir da empresa focada exclusivamente ou excessivamente nos resultados econômicos e sem se preocupar com outras consequências de sua atuação, a mudança do perfil do cidadão, mais exigente e mais informado, bem como a compreensão de que a forma de produzir e consumir da sociedade até então é insustentável coloca em cheque a visão de uma empresa centrada apenas no aspecto econômico, demandando também posturas éticas preocupadas com os impactos outros, diretos ou indiretos que a empresa pode produzir sobre o cidadão e a sociedade. Aliado a isso após a segunda guerra mundial há um forte movimento de fortalecimento e universalização dos direitos humanos, em razão das atrocidades cometidas durante toda a II Guerra Mundial, buscando mecanismos de manutenção da paz e de proteção de direitos para além dos Estados nacionais. Assim a cultura de promoção e proteção dos direitos humanos adquire cada vez mais importância, surgindo também debates de proteção desses direitos nos negócios e em razão da atuação das Empresas. É nesse diapasão que adquire importância a transparência empresarial, como meio de controle por parte dos demais atores sociais impactados pelas empresas, de suas atividades, suas posturas éticas e seus compromissos com o bem-estar da sociedade com quem se relaciona. Partindo dessas premissas, o trabalho tem como objetivo afirmar e analisar a importância da transparência na atividade empresarial como mecanismo de proteção aos direitos humanos, e surgido justamente do movimento de fortalecimento da proteção dos mesmos, propiciando o controle social da conduta ética da empresa. Trata-se de uma pesquisa de revisão de literatura de natureza integrativa, buscando analisar o surgimento e o conceito de transparência empresarial, dentro do contexto do paradigma da responsabilidade social da empresa, para a seguir, realizar uma análise do implementação dos informes não financeiros como ferramentas de implementação de transparência, no Brasil e na Europa. 2. O Fortalecimento dos Direitos Humanos e o Novo Paradigma na Concepção do Papel das Empresas na Sociedade. 262 A empresa desempenha um papel central na sociedade. Produz e circula bens e mercadorias, cria riquezas e empregos, gera tributos ao Estado e através de suas ações impacta a vida o mundo a sua volta: as pessoas, comunidades ecossistemas e até países inteiros e esse fato gera expectativas em toda a sociedade. A Empresa no mundo contemporâneo ocupa lugar de destaque, especialmente a partir da revolução industrial, que transformou a forma de produção econômica do mundo e criou uma extensa rede de interconexão entre diversos atores sociais e às Empresas, alguns desses diretamente ligados a estas e outros indiretamente. Basta lembrar da interdependência dos agentes econômicos assalariados pelas empresas ou que com esta colaboram, a grande quantidade de bens e serviços produzidos e consumidos pela população e que não existiriam sem produção em grande escala, além da significativa fonte de receitas fiscais provindas do exercício da atividade empresarial. (REIS, 2020, P. 73) Ocorre que os modelos de desenvolvimento produtivos baseados exclusivamente na obtenção do resultado econômico ou com foco excessivo nestes passou a ser questionado, inclusive em razão dessas expectativas sociais criadas em torno da empresa que não se realizaram, especialmente a de que o a pujança econômica se faria acompanhada de desenvolvimento e bem-estar social. Isso se deu, segundo Teixeira, porque trabalhando com a “economia de escala”, o modelo trabalhava com as premissas que deveriam se manter estáveis e perenes: a existência de um mercado consumidor acrítico e ilimitado e fontes de matérias primas inesgotáveis, para garantir o ganho de escala e em escala. Com tais premissas não se realizando, era inevitável a crise como resultado direto do próprio modelo econômico, caracterizado por um lado pelo aumento da produção, e por outro pelo esgotamento e escassez de recursos naturais, pelo crescente desigualdade na distribuição de renda, cada vez mais concentrada e como consequência, o não crescimento proporcional do mercado consumidor, entendido como a população com rendimento capaz de adquirir bens e serviços (2010, P. 222). Acompanhando esse quadro econômico baseado em crescimento contínuo e com pouco êxito na igualdade social aliados ao esgotamento das matérias-primas, fruto desse próprio modelo acontece concomitantemente o fenômeno da evolução tecnológica e propiciou uma mudança na forma de acesso a informação pelos diversos atores sociais, mais consciente desses processos econômicos e mais críticos a eles, mais participativa e com novas visões de mundo. Conforme alvitra RIVERO TORRE: La aparición del fenómeno socio-económico de la “globalización” y el nacimiento de la “sociedad de la información”, han traído también consigo un cambio social relevante, basado en el hecho de que la sociedad cuenta cada vez con más información sobre cualquier acontecimiento que tenga una cierta relevancia y es 263 más interactiva y participativa. La sociedad conoce cada vez mejor a las empresas y es cada vez más exigente com su actividad. (2005, p. 10) Esse contexto socioeconômico e as críticas a eles surgidas abrem caminhos para outros modelos de desenvolvimento econômico, de conciliação entre interesses individuais com interesses coletivos também no campo econômico e que essa conciliação de interesses não é um fato consolidado, mas um processo evolutivo, partindo-se da premissa de que as atividades empresariais não podem ser pensadas em um contexto estanque, alijado do meio em que se situam, mas sim considerando os interesses sociais e legítimas expectativas dos atores com quem interagem, que inclusive não se restringem exclusivamente a atividade empresarial propriamente dita. Neste sentido continua RIVERO TORRE: La empresa del siglo XXI tiene ante sí un reto importante, los clientes y la sociedad en la que desarrollan su actividad, ya no demandan sólo de éstas la calidad de sus productos o servicios, sino su comportamiento ético a lo largo de todo el proceso de producción de bienes o servicios, que ha de estar presente en toda la actividad y en suma en la cultura de la empresa, además del conjunto global de sus actuaciones, porque de nada sirve que una compañía apoye programas de mecenazgo o ayude a ONGs, si falsea su contabilidad, actúa abusivamente con sus proveedores o no respeta los derechos laborales de sus empleados. Por eso, dentro del ámbito económico de la Responsabilidad Social, cobra importancia el concepto de Buen Gobierno de las Empresas, concepto de acuerdo con el cual las compañías deben tomar en cuenta su comportamiento económico y el grado de información que les requiere la sociedad, que exige rigor contable, transparencia, crecimiento ordenado y rentabilidad sostenible, creación de valor, gestión responsable de las situaciones de crisis, verificaciones y auditorías externas y en suma, ética empresarial en la forma de afrontar y gestionar el negocio (2005, P. 10). Assim a ideia do papel da empresa na sociedade e suas relações com os demais atores sociais passa por uma grande mudança, para compreender além do seu desempenho econômico e a geração lucros para proprietários e investidores, em princípio os únicos legítimos interessados a quem deveriam prestar contas. A partir dessa mudança, surge o termo Stakeholder que no que concerne ao âmbito empresarial corresponde o referido termo àquela parcela da coletividade passível de ser afetada deforma positiva ou negativamente, pela atuação da empresa. Para entender os interesses que gravitam ao redor da empresa, Fábio Ulhoa Coelho (2015, p.165-166) nos fornece a imagem de três círculos, tais como elipses representantes dos planetas em torno do sol, e os descreve da seguinte maneira: No círculo mais próximo ao centro, estarão representados os interesses dos empresários, mas não somente os deles, como também os dos sócios da sociedade empresária, dos investidores estratégicos, acionistas do bloco de controle e, nas companhias com elevado nível de dispersão acionária, os administradores graduados. (COELHO, 2015, p.165) 264 Assim, descreve o primeiro círculo como sendo o daqueles diretamente afetados à atividade empresarial, tendo, portanto, interesse direto em seu desenvolvimento. O autor segue, distinguindo ainda um segundo círculo, onde estariam presentes os trabalhadores, consumidores, Fisco, fornecedores de insumos, investidores não sofisticados do mercado de capitais e os vizinhos dos estabelecimentos comerciais, os quais, por não estarem afetados de maneira direta aproximam-se da figura de bystanders, embora nem sempre figurem como meros espectadores da atividade empresarial. Assim o foco da responsabilidade empresarial deixa de se centrar exclusivamente nos seus proprietários e investidores, os shareholders, para abordar também os stakeholders, atores que mesmo não se relacionando diretamente com a empresa são mais do que meros expectadores, posto que também são impactados pelas atividades empresariais. Por fim Coelho distingue um terceiro círculo, onde restariam representados os “interesses metaindividuais coletivos ou difusos da coletividade” (COELHO, 2015, p.166),que abrange todos os cidadãos, a economia regional, nacional e global, cujo interesse cerne reside no desenvolvimento. Essa nova visão do papel das empresas está inegavelmente atrelada ao fenômeno de fortalecimento dos Direitos Humanos que o mundo vivenciou, especialmente a partir da segunda metade do século XX. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial especialmente em razão das atrocidades cometidas pelo nazismo, que surge um movimento que busca a universalização dos direitos humanos, vez que passou a se compreender que a proteção aos direitos humanos não deveria se reduzir ao domínio reservado do Estado. É nesse contexto que nasce a Organização das Nações Unidas – ONU e é produzida a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como um conjunto de princípios a serem observados pelos Estados. Além da criação da ONU uma série de outros organismos e instrumentação de cooperação internacionais surgem no período, em razão da catástrofe causada pela guerra, a partir do surgimento de uma consciência da necessidade de mecanismos no plano da sociedade internacional que assegurassem a manutenção da paz, a segurança internacional e permitissem a reconstrução econômica. Nesse contexto do Pós-guerra, o mundo também necessitava de um novo planejamento para as economias que haviam sido severamente prejudicadas pelo conflito. Foram então realizados os acordos de Bretton Woods, promovidos em uma série de conferências em New Hampshire para o estabelecimento de controle e normatização da política econômica internacional. Contudo, a progressiva prosperidade econômica que os 265 acordos proporcionaram para as nações centrais não trouxe de arrasto o mundo todo. Muito pelo contrário. (DE MARCO, MEZZAROBA, 2017, P. 327). É nesse contexto de expansão dos direitos humanos e de busca de mecanismos de cooperação internacional e de insuficiência dos modelos até então existentes na resposta aos problemas, é que se realiza em Estocolmo na Suécia em 1972 a Convenção das Nações Unidas relativa a proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. É essa convenção que reconhece o interesse excepcional sobre o patrimônio ambiental e cultural e o caráter incomparável e insubstituível desses bens (COMPARATO, 2004, p. 382), bem como reconhece como direito fundamental do homem à qualidade do meio ambiente No mesmo ano da convenção, foi publicado o relatório “Os limites do crescimento” encomendado pelo Clube de Roma2 a cientistas do Massachusetts Institute of Tecnology – MIT. O relatório, baseado em simulações computacionais teve o objetivo de projetar o crescimento populacional, o crescimento econômico e aumento da pressão gerada pelo consumo humano sobre os recursos naturais nos 100 anos seguintes, de acordo com os dados disponíveis até aquela data. O relatório conclui que o planeta impõe limites ao crescimento, já que as dinâmicas de crescimento exponencial da população e da produção não são sustentáveis ante um cenário de recursos naturais não renováveis, terras produtivas finitas e a capacidade limitada do ecossistema de absorver a poluição da atividade humana, entre outras condicionantes e que a continuidade da forma de produção e consumo da humanidade levaria a resultados catastróficos nos próximos 100 anos. Na década de 1980, ganha relevo o termo desenvolvimento sustentável especialmente através do documento intitulado “Nosso futuro comum”, coordenado pela então primeira ministra da Noruega Gro Harlen Brundtland, e por isso conhecido como “Relatório Brundtland”. É esse documento que pela primeira vez define desenvolvimento sustentável: O desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro, atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais (ONU, 1987). Esse Relatório, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, faz parte de uma série de iniciativas impulsionadas a partir da conferência de Estocolmo que apontam uma visão crítica do modelo de desenvolvimento O Clube de Roma é uma associação criada em 1968 que busca reunir líderes formadores de opinião, entre cientistas de diversas áreas, políticos e líderes empresariais que busca soluções para enfrentar as mudanças globais e as crises que a humanidade enfrenta (CLUB OF ROME, 2020). 2 266 tradicionalmente adotado pelos países industrializados e reproduzido pelos países em desenvolvimento, e que apontam os riscos do uso excessivo dos recursos naturais sem considerar a capacidade de suportar dos ecossistemas, deixando claro que o padrão de produção e consumo tradicionalmente adotados não atendem a característica de permanência e continuidade, que nesse caso é necessária para a vida humana. Esse documento também indicou que as crises ambientais, a pobreza e a desigualdade no mundo estão umbilicalmente ligadas à forma predatória de produção e ao consumismo elevado é muito claro ao apontar de que não é possível dissociar produção econômica de bem-estar social e preservação ambiental. Todo esse movimento coloca em cheque a forma de produção e consumo havida no mundo até então, e por isso todo o modelo de produção econômica, passando a exigir em consequência, uma forma mais ética de se pensar as Empresas e o modo de agir empresarial. Assim surge a necessidade de um modelo empresarial preocupado com os impactos sociais de suas ações, com o meio-ambiente, com o bem-estar dos trabalhadores e a saúde dos trabalhadores, e a transparência se coloca como um mecanismo fundamental nessa nova forma de se pensar a empresa. 3. A Importância da Transparência Empresarial em um Modelo Ético de Empresa. A transparência empresarial é uma necessidade da sociedade moderna, especialmente partindo-se de um paradigma ético da empresa, que vai além das funções econômicoprodutivas desta e a divulgação de informes não financeiros, embora não constituam o único, é um importante instrumento de transparência que em última instância permite algum tipo de controle social das atividades empresariais especialmente no que tange à sua responsabilidade social. Observa-se assim, o consenso cada vez maior a respeito do papel das empresas na sociedade, seja no exercício de sua função econômico-produtiva, seja pelos impactos diretos e indiretos que pode causar sobre os demais atores sociais passou a provocar uma maior pressão por mais informações das atividades empresariais, diminuindo assim assimetria de informações entre empresários e os stakeholders, que passaram a ser compreendidos como legítimos interessados nas atividades da empresa. De fato, ao longo dos últimos anos observa-se não só um aumento da procura por essas informações e da compreensão de que estas são interesses legítimos da sociedade, como também o alargamento de quais são as informações pertinentes aos legítimos interessados. A importância de acesso a informação 267 não se restringe mais apenas à informação financeira e a planos de investimento: torna-se importante também a responsabilidade social, o respeito a direitos dos trabalhadores e o impacto ambiental de suas atividades. Perramon aponta duas grandes teorias para explicar a importância que o tema da transparência está adquirindo no plano global: Las organizaciones están mejorando la transparencia empresarial como respuesta a una presión externa: este argumento apunta que los escándalos han hecho que la sociedade exija al Estado una normativa que aumente la cantidad y calidad de información accesible para los stakeholders. La iniciativa de mejora de transparência empresarial procede de las propias organizaciones: Esta teoria apunta que ellas son las principales interesadas em mejorar la transparência, ya que esta iniciativa tiene múltiples ventajas, como la implicación de los grupos de interés o la creación de una imagen sostenible, lo que ayuda a mejorar los resultados a largo plazo (2016, p. 14). Diante do quadro desenhado, essas duas teorias apontadas pelo autor não parecem se contradizer. De fato tem-se mostrado complementares, tanto pelo movimento de governos e cidadãos em busca mais e melhores informações, quanto por atitudes propositivas de importantes empresas em diversos segmentos preocupados com a melhora da reputação. Ademais, parece ser unanimidade a importância crescente da transparência empresarial, independentemente de sua origem. E finalmente, ambas as teorias tem como raízes a importância da atividade empresarial para a sociedade e a responsabilidade pelos impactos que pode causar. A transparência tem sido tratada pelo aspecto normativo em diversas situações, seja em contexto de países regulando determinados setores econômicos, seja no âmbito de organizações, como a União Europeia e a própria Organização das Nações Unidas. Aliás, na sua Convenção sobre o Desenvolvimento Sustentável de 2012 as Nações Unidas tratam expressamente em seu parágrafo 47 a importância de informes sobre sustentabilidade pelas empresas, especialmente aquelas de grande dimensão e aquelas cujos valores mobiliários são cotados em bolsa: Reconocemos la importancia de la presentación de informes sobre sostenibilidad empresarial y alentamos a las empresas, especialmente a las que cotizan en bolsa y a las grandes empresas, a que, según proceda, consideren la posibilidad de incorporar información sobre sostenibilidad a su ciclo de presentación de informes. Alentamos a la industria, los gobiernos interesados y las partes interesadas pertinentes a que, con el apoyo del sistemade las Naciones Unidas, según proceda, confeccionen modelos de mejores prácticas y faciliten la adopción de medidas en favor de la incorporación de informes sobre sostenibilidad, teniendo en cuenta las experiencias de los marcos ya existentes y prestando especial atención a las necesidades de los países en desarrollo, incluso en materia de creación de capacidad. 268 Além disso, o Livro Verde da Comissão Europeia de 18 de julho de 2001, documento publicado pela Comissão Europeia destinado a promover uma reflexão em nível comunitário sobre a responsabilidade social das empresas, ao definir a responsabilidade social das empresas como “la integración voluntaria, por parte de las empresas, de las preocupaciones sociales y medioambientales en sus operaciones comerciales y sus relaciones con sus interlocutores” (Item 20), também destaca o papel reconhecido à transparência empresarial como um instrumento essencial para a efetivação da responsabilidade social da empresa e que garante a credibilidade da empresa quanto às suas ações nessa esfera, proporcionada pela “auditoria social” a partir dos diversos stakeholders com os quais a empresa interage (item 58). 4. A Concretização da Transparência Empresarial: o Modelo Europeu e Brasileiro de Informes Não Financeiros. Dentre os instrumento de implementação da transparência empresarial, se mostram importantes os informes não financeiros e os relatórios de sustentabilidade, vez que eles permitem avaliar o grau e a qualidade da transparência da empresa e, além disso, avaliar o nível de comprometimento da empresa com resultados efetivos relacionado a propostas de comportamento ético frente à sociedade, o meio ambiente e seus stakeholders, para além dos resultados econômicos. Serão analisados aqui os modelos comunitário europeu e brasileiro. As normas do direito comunitário europeu produzem efeito imediato no ordenamento jurídico dos Estados membros da União, cabendo aos juízes e tribunais locais aplicá-las independente de outras normas não comunitárias. “No que tange tanto ao direito originário como ao direito derivado, importante salientar que a doutrina e a jurisprudência comunitária, inquestionavelmente, impulsionaram a integração europeia não a desvirtuando de seus objetivos, ao reformarem a aplicabilidade direta e o efeito direto, prevalecendo, assim, o Direito da União sobre o direito nacional.” (ACCIOLY, 2010, P. 110). Cientes do principio do funcionamento do modelo normativo comunitário, quanto a transparência empresarial informes não financeiros é importante mencionar a Comunicação da Comissão Europeia de 25 de outubro de 2011, Reponsabilidade social das empresas: uma nova estratégia da UE para o período de 2011-2014. O objetivo desta Comunicação é enquadrar e incentivar a implementação de medidas de Responsabilidade Social com vista a um crescimento econômico mais sustentável. Esse documento, busca promover a transparência, inclusive reconhecendo a sua importância e o seu papel positivo no item 4.5: La divulgación de información de carácter social y medioambiental, incluida la información relacionada con el clima, puede facilitar el compromiso con las partes 269 interesadas y la determinación de los riesgos para la sostenibilidad material. Constituye también un elemento importante de asunción de responsabilidades y puede contribuir al aumento de la confianza del público en las empresas. Para responder a las necesidades de las empresas y otras partes interesadas, la información debe ser significativa y su recopilación debe ser rentable. Tratando mais especificamente dos informes não financeiros no âmbito da União Europeia, o ato legislativo mais importante é a Diretiva 2014/95/UE, que derrogou a Diretiva 2013/34/UE, tratando do tema da divulgação desses informes com relação a grandes sociedades empresárias e grupos. Essa Diretiva aponta em sua considerando 3 que a divulgação de informes não financeiros é essencial para o processo de transformação em direção a uma economia mundial sustentável: De hecho, la divulgación de información no financiera resulta esencial para la gestión de la transición hacia una economia mundial sostenible que combine la rentabilidad a largo plazo com la justicia social y la protección del medio ambiente. En este contexto, la divulgación de información no financiera contribuye a medir, supervisar y gestionar el rendimiento de las empresas y su impacto en la sociedad. O artigo 19 da referida Diretiva, dispõe que as grandes empresas que sejam de interesse público e que encerrem um balanço anual com um número de mais de 500 empregados devem incluir no seu relatório de gestão informações de caráter não financeiro da empresa necessários para a compreensão a evolução, os resultados e a situação da empresa, além do impacto de sua atividade, tendo como parâmetro mínimo questões de meio-ambiente e sociais, assim como as relativas aos trabalhadores, direitos humanos e o combate a corrupção e suborno. Sobre essas questões devem ser incluídas as políticas aplicadas pela empresa em relação a essas questões, os resultados obtidos acerca delas e a indicação dos riscos que correlacionam essas questões e as atividades objeto da empresa. Ademais, a empresa deve informar os indicadores-chave de resultados não financeiros que se relacionem com a atividade empresarial concretamente. Seguindo o caminho da sistemática “Cumprir ou Explicar”, conforme proposto pela Diretiva 2014/208/UE) a empresa que não implemente nenhuma político com relação a essas questões deverá oferecer uma explicação clara e motivada a esse respeito do porquê não o fazem. A diretiva dispõe ainda que a metodologia de divulgação dessas informações a empresa poderá basear-se a metodologia dos informes nacionais, da União ou internacionais reconhecidos, especificando qual neste último caso (art. 19). Cita na Considerando 10 a possibilidade do uso de sistemas nacionais, sistemas da União como o Sistema Comunitário 270 de Ecogestão e Auditoria (EMAS) e sistemas internacionais como o Pacto Global das Nações Unidades, Os princípios orientadores das Nações Unidas sobre empresas e direitos humanos das Nações Unidas que aplicam a diretriz “Proteger, Respeitar e Reparar”. Ainda que o ordenamento constitucional brasileiro busque conciliar quanto às atividades econômicas o desenvolvimento econômico, bem estar social e proteção ambiental e que, como visto essa seja uma necessidade urgente mundial, no âmbito nacional não existe uma obrigação legal referindo-se a divulgação de informes ou relatórios não financeiros ou que remetam ao aspecto da sustentabilidade. Relacionando a transparência corporativa com responsabilidade socioambiental, existe uma recomendação da B3 (referência a Brasil, Bolsa e Balcão), a Bolsa de Valores brasileira, instituição responsável pela administração do mercado de valores mobiliários brasileiro, no sentido da adoção pelas empresas de um modelo de relatório de sustentabilidade ou similar. Essa iniciativa da B3 relativa a divulgação de informes de sustentabilidade se operou no final de 2011 para ser implantada a partir de 2012 através do Comunicado Externo 0172011-DP. A Recomendação é de que as empresas listadas nessa Bolsa passem a indicar no Formulário de Referência no item 7.8 destinado a “Descrição das relações de longo prazo relevantes da companhia que não figurem em outra parte deste formulário” se publicam ou não Relatório de Sustentabilidade ou similar indicando onde esse relatório está disponível. Adotando o modelo “Relate ou explique”, a instituição recomenda ainda que em caso de não publicação, as empresas deveriam explicar o porquê de não o fazerem. Após a recomendação, a B3 passou a acompanhar a adesão das empresas à sua recomendação. Segundo informações da própria instituição, no primeiro anúncio em junho de 2012, 45,31% das empresas publicavam essas informações ou explicavam o motivo de não fazê-lo. Em 2013, o percentual cresceu significativamente, indo para 66,29%. A terceira atualização, em 2014, seguiu apontando evolução de adesão, de 66,29% para 71,17%. Em 2015, o resultado indicou elevação de 71,17% para 71,65% (B3, 2016). Observa-se assim que, embora não se trate de uma obrigação legal, a adesão à recomendação apresentou adesão razoável e apresenta evolução ao longo do tempo. A partir de 2016, a Comissão de Valores Mobiliários promoveu a revisão do seu Formulário de Referência e tornou o item 7.8 exclusivo para informações socioambientais. O regulador passou a perguntar às companhias se divulgam informações socioambientais, que metodologia adotam, se as informações são auditadas ou revisadas por entidade independente e onde podem ser encontradas, mantendo o formato “relate ou explique”, as 271 novas regras têm caráter de orientação para o mercado e não de obrigação. No entanto a autarquia não obriga as companhias a elaborar e divulgar as informações, mas se limita a perguntar se as informações existem e, em caso negativo, por que não existem. Assim, a disciplina dos informes financeiros em âmbito brasileiro ocorre somente em nível de recomendação, caracterizando-se assim como direito não prescritivo, ou a chamada soft Law. Nesse sentido, são instrumentos que indicam princípios, direções a serem seguidas, orientações que seria adequadas que se observadas. Alvitra-se ainda a existência de um projeto de lei que tramitou no Senado Brasileiro a partir de 2012, o Projeto de Lei No. 289 de 07/08/2012 que buscando alterar a Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976) para tornar obrigatório a produção do Relatório de Sustentabilidade por parte das Sociedades Anônimas, incluindo o inciso VI, no artigo 133 da referida lei. Não obstante os esforços para transformar este projeto em lei, em dezembro de 2018, o projeto que estava tramitando no Congresso Nacional e já havia sido aprovado por diversas comissões, foi arquivado, embora posteriormente tenha havido tentativas de se desarquivá-lo. A não obrigatoriedade da prestação de tais informações no Brasil não pressiona as empresas da mesma forma que na Espanha e na União Europeia, lançando dúvidas sobre a efetividade e o aperfeiçoamento do instrumento em nível de recomendação, já que se observa um crescimento na adesão nos anos iniciais e depois uma tendência ao estacionamento com a diminuição da curva de crescimento. Fosse o instrumento obrigatório ainda que permitisse algum nível de autorregulação para as Empresas, a coercibilidade da norma induziria um maior diálogo entre empresas e sociedade e contribuiria de forma mais efetiva para a criação de uma cultura de transparência no meio empresarial Brasileiro. Além disso, o estabelecimento de um parâmetro ou modelo mínimo melhoraria o nível de informação dos interessados vez que permitiria análises mais adequadas e mesmo comparações entre informações de uma mesma empresa ou entre diferentes empresas. Destaque-se ainda que considerando o disposto no parágrafo 47 da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável RIO+20 de 2012, o estabelecimento de uma política estatal de regulação de informes não financeiros por parte das empresas inclusive cumpriria o estabelecido, vez que isso consistiria na incorporação do informe de sustentabilidade pelas empresas ao ordenamento jurídico do Brasil, Estado signatário daquela conferência. 5. Considerações Finais. 272 A partir da segunda metade do século XX especialmente a relação da Empresa com a Sociedade começa a mudar. O papel da Empresa passa a ser visto de outra forma. A forma de produzir da empresa focada exclusivamente ou excessivamente nos resultados econômicos e sem se preocupar com outrasconsequências de sua atuação, a mudança do perfil do cidadão, mais exigente e mais informado, bem como a compreensão de que a forma de produzir e consumir da sociedade até então é insustentável coloca em cheque a visão de uma empresa centrada apenas no aspecto econômico, demandando também posturas éticas preocupadas com os impactos outros, diretos ou indiretos que aempresa pode produzir sobre o cidadão e a sociedade. Aliado a isso após a segunda guerra mundial há um forte movimento de fortalecimento e universalização dos direitos humanos, em razão das atrocidades cometidas durante toda a II Guerra Mundial, buscando mecanismos de manutenção da paz e de proteção de direitos para além dos Estados nacionais. Assim a cultura de promoção e proteção dos direitos humanos adquire cada vez mais importância, surgindo também debates de proteção desses direitos nos negócios e em razão da atuação das Empresas. É nesse diapasão que adquire importância a transparência empresarial, como meio de controle por parte dos demais atores sociais impactados pelas empresas, de suas atividades, suas posturas éticas e seus compromissos com o bem-estar da sociedade com quem se relaciona. A transparência empresarial é uma necessidade cada vez mais demandada por diferentes atores sociais com relação às empresas, especialmente em se considerando o papel de centralidade que as empresas tem na sociedade moderna, seja em termos de produção econômica, seja em âmbito social ou outros campos que a empresa impacta direta ou indiretamente, instrumentos que propiciem o controle social por parte das atividades empresariais, na medida em que permite aos atores sociais o informação sobre ações concretas da empresa no campo da responsabilidade social e seus resultados. Finalmente, é importante atentar-se para a necessidade de instrumentos que permitam ou fortaleçam a concretização da transparência nas atividades empresariais, que não apenas tornen obrigatório um sistema de transparência empresarial, mas que estabeleçam diretrizes a fim de dar segurança jurídica à empresa, oferecer a proteção que demanda seus aspectos privados e econômicos, além de efetivar a prestação de contas à sociedade sobre questões que lhe são de interesse, especialmente no que tange a concretização de direitos humanos. Nesse sentido, os informes não financeiros são ferramentas interessantes de concretização da transparência. Enquanto a Europa adota um 273 um sistema de relatórios obrigatórios, o Brasil não normatizou a questão, existindo um sistema voluntário de informações, e não obstante essa situação já signifique um avanço, a falta de juridiscidade dos relatórios terminam por limitar seus efeitos. 6. Referências ACCIOLY, E. Mercosul e a União Europeia: estrutura juridico-institucional. Curitiba: Juruá, 2010. BRASIL, BOLSA, BALCÃO – B3. Novo Valor – Sustentabilidade nas Empresas Como começar, quem envolver e o que priorizar. Disponível em: https://www.b3.com.br/data/files/1A/D7/91/AF/132F561060F89E56AC094EA8/Guia -para-empresas-listadas.pdf. Acesso em 03-03-2022. BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm. Acesso em: 25-07-2023 COELHO, F.U. A crise da empresa no projeto do Código Comercial. in: ABRÃO, Carlos Henrique; ANDRIGHI, Fátima Nancy; BENETI, Sidnei. 10 anos de vigência da Lei de Recuperação e Falência (Lei n. 11.101/2005). São Paulo: Saraiva, 2015 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2003. DE MARCO, C.M.; MEZZAROBA, Orides. O direito humano ao desenvolvimento sustentável: contornos históricos e conceituais. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, v. 14, n. 29, p. 323-349, 2017. EUROPA. Comunicación de la comisión al parlamento europeo, al consejo, al comitê econômico y social europeo y al comite de las regiones de 25-10-2011. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52011DC0681&from=ES. Acesso em 12-06-2023. ________. Directiva 2014/95/UE Del parlamento europeo y del consejo de 22 de octobre de 2014 por la que se modifica la Directiva 2013/34/UE en lo que respecta a la divulgación de información no financiera e información sobre diversidad por parte de determinadas grandes empresas y determinados grupos. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/ES/TXT/?uri=CELEX:32014L0095. Acesso em 03-06-2023. ________. Libro verde - fomentar um marco europeo para la responsabilidad social de las empresas de 18 de julho de 2001. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/meetdocs/committees/deve/20020122/com(2001)366_e s.pdf. Acesso em 12-06-2023. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda 21. Disponível https://www.ecologiaintegral.org.br/Agenda21.pdf. Acesso em 01-08-2023 em: _______. El futuro que queremos. Disponível https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/764Future-We-WantSPANISH-for-Web.pdf. Acesso em 01-08-2023. em: PERRAMON, J. La transparencia: concepto, evolución y retos actuales. Revista de Contabilidad y Dirección, v. 16, p. 11-27, 2013. PERRAMON, J. La transparencia: concepto, evolución y retos actuales. Revista de Contabilidad y Dirección, v. 16, p. 11-27, 2013. 274 REIS, J.E.A. A função socioambiental da empresa: contornos juridicos e aspectos relevantes no direito brasileiro. In: Alisson Carvalho de Alencar, Lauro Ishikawa, Thiago Lopes Matsushita. (Org.). O bom governo e o combate à corrupção: seminários de Salamanca. 1ed.São Paulo: Liquet, 2020 TEIXEIRA, A.B.C. A empresa-instituição. 2010. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. TORRE, P.R. Responsabilidad social y gobierno corporativo: información y transparencia. RAE: Revista Asturiana de Economía, n. 34, p. 9-29, 2005. 275 Direitos Humanos na América Latina e a importância da Corte Interamericana de Direitos Humanos Human Rights in Latin America and the importance of the Inter-American Court of Human Rights João Proença Xavier1 Giovana de Morais Figueiredo Cruz2 Sumário: 1. Histórico dos direitos humanos na américa latina; 2. Declaração universal dos direitos humanos na américa latina; 3. A importância da corte interamericana de direitos humanos; Considerações finais Resumo: Os Direitos Humanos na América Latina têm sido objeto de preocupação e enfrentado desafios ao longo dos anos. Embora cada país possua circunstâncias específicas, havia problemas comuns que afetavam todo o território latino-americano. Durante as décadas de 1960 a 1980, as sociedades latino-americanas enfrentaram o estabelecimento e a consolidação de estruturas governamentais repressivas, cujo propósito era suprimir a oposição aos regimes ditatoriais. Atualmente, a sociedade ainda sofre as consequências desse período, além de enfrentar problemas atuais como violência, impunidade, desigualdade e exclusão. No entanto, é necessário reconhecer os avanços alcançados no campo dos Direitos Humanos na região. Foram estabelecidos marcos legais, como a criação da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essas instituições desempenham um papel crucial na proteção e promoção dos Direitos Humanos em toda a América Latina, bem como no monitoramento e responsabilização dos Estados por violações cometidas. A atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos envolve a recepção de denúncias, a realização de visitas aos países e a emissão de relatórios sobre a situação dos Direitos Humanos em cada nação. Além disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos exerce um papel judicial essencial, julgando casos que lhe são encaminhados pelos Estados ou pela própria Comissão. Suas decisões têm efeito vinculante e estabelecem preceitos importantes para a garantia dos Direitos Humanos na região. Essas instituições internacionais têm desempenhado um papel fundamental na responsabilização dos Estados por violação de Direitos Humanos, buscando assegurar a justiça e reparação às vítimas. Por meio de suas jurisdições e competências, contribuíram para o desenvolvimento de um sistema de proteção e promoção dos Direitos Humanos na América Latina, estabelecendo padrões e normas que devem ser seguidos pelos Estados membros. Palavras-chave: Direitos humanos; América Latina; CIDH; Corte IDH Professor Adjunto Convidado da Coimbra Business School | ISCAC / IPC (Portugal). Professor Doutor em Direitos Humanos | Universidade de Salamanca / Integrado no CEIS20 Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX | Universidade de Coimbra (Portugal). Póstdoctoral Research Scientist - “Derechos Humanos en Perspectiva Comparada Brasil España”. Instituição: CEB | Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito | Universidade de Salamanca (Espanha). Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal), com Master em “Human Rights and Democratization”. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em direito na Universidade Lusófona do Porto, Portugal. Pesquisadora da Cátedra Jean Monnet da Universidade Federal de Uberlândia - Projeto Global Crossings. Pós-graduada lato sensu em Direito Constitucional pela Faculdade IBMEC São Paulo e Instituto Damásio de Direito (Brasil). Bacharela em Direito pela Universidade Paulista (Brasil) E-mail: [email protected] 1 276 Abstract: Human Rights in Latin America have been the subject of concern and faced challenges over the years. Although each country has specific circumstances, there were common problems that affected the entire Latin American territory. During the 1960s to 1980s, Latin American societies faced the establishment and consolidation of repressive governmental structures, whose purpose was to suppress opposition to dictatorial regimes. Currently, society still suffers the consequences of this period, in addition to facing current problems such as violence, impunity, inequality and exclusion. However, it is necessary to recognize the advances made in the field of human rights in the region. Legal frameworks were established, such as the creation of the Commission and the Inter-American Court of Human Rights. These institutions play a crucial role in protecting and promoting human rights throughout Latin America, as well as in monitoring and holding states accountable for violations committed. The role of the Inter-American Commission on Human Rights involves receiving complaints, carrying out visits to countries and issuing reports on the situation of Human Rights in each nation. In addition, the Inter-American Court of Human Rights plays an essential judicial role, judging cases that are referred to it by the States or by the Commission itself. Its decisions have a binding effect and establish important precepts for the guarantee of Human Rights in the region. These international institutions have played a key role in holding States accountable for human rights violations, seeking to ensure justice and reparation for victims. Through their jurisdictions and competences, they contributed to the development of a system for the protection and promotion of Human Rights in Latin America, establishing standards and norms that must be followed by the member states. Keywords: Human rights; Latin America; CIDH; IDH court 1. Histórico dos Direitos Humanos na América Latina A história dos direitos humanos na América Latina é uma narrativa multifacetada que se estende por séculos de evolução política, social e legal. Ela se caracteriza por um complexo enredo que abarca desde os sombrios capítulos da colonização até a contínua busca por justiça e igualdade. Os direitos humanos na América Latina têm suas origens no período da chegada dos colonizadores europeus no final do século XV. A conquista espanhola e portuguesa acarretou uma série de abusos cometidos contra os povos indígenas, incluindo a escravidão, a exploração e o desapossamento de suas terras3. Nesse contexto, os direitos fundamentais das populações nativas foram sistematicamente violados, marcando um capítulo sombrio na história da região. O século XIX testemunhou a independência de muitos países latino-americanos, inaugurando uma fervorosa busca por liberdade e igualdade. No entanto, a conquista da independência frequentemente não resultou em melhorias substanciais nos direitos Reis, R. R. (2011). A América Latina e os direitos humanos. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 1(2), p. 105 3 277 humanos, uma vez que as elites dominantes permaneceram no poder e a discriminação persistiu4. Nesse período, surgiram movimentos sociais e intelectuais que promoveram ideias progressistas. Figuras emblemáticas como Simón Bolívar, José de San Martín e Miguel Hidalgo abraçaram a causa da emancipação e igualdade, lançando os alicerces para futuras lutas pelos direitos humanos5. O século XX trouxe desafios significativos para os direitos humanos na América Latina. Muitos países enfrentaram períodos de ditadura militar, caracterizados por amplas violações dos direitos humanos, incluindo a tortura, desaparecimentos forçados e repressão política generalizada6. O Chile, a Argentina e o Brasil foram particularmente afetados por essas ditaduras. No entanto, esse período também testemunhou o surgimento de movimentos de resistência e guerrilhas que buscavam justiça social e igualdade. Figuras como Ernesto "Che" Guevara e Salvador Allende representaram diferentes abordagens para a luta pelos direitos humanos, destacando as complexidades das questões na região7. A década de 1980 marcou uma virada crucial na história dos direitos humanos na América Latina, com muitos países passando por processos de transição para a democracia. Isso resultou na promulgação de novas constituições e na criação de instituições destinadas a promover e proteger os direitos humanos8. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, desempenharam papéis cruciais nesse processo. Apesar dos avanços das últimas décadas, a América Latina continua a enfrentar desafios significativos em relação aos direitos humanos. A persistente desigualdade, a violência associada ao tráfico de drogas, a discriminação de gênero e étnica, bem como a falta de acesso a serviços básicos, permanecem como questões prementes em muitos países da região. 2. Declaração Universal dos Direitos Humanos na América Latina Reis, R. R. (2011). A América Latina e os direitos humanos. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 1(2), p. 113 5 Prado, M. L. C. (2002). Sonhos e desilusões nas independências latino-americanas. el@ tina. Revista electrónica de estudios latinoamericanos, 1(1). p.2 6 Araujo, M. P. N., de Moraes Ferreira, M., Fico, C., & Quadrat, S. V. (2008). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Editora FGV. p. 8 7 Júnior, F. L. (2017). Ditadura e Insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e Resistência Armada1. Psychology: science and profession Psicología: ciencia y profesión, 28, p. 8 8 Castilho, N. M. (2013). Pensamento descolonial e teoria crítica dos direitos humanos na América Latina: um diálogo da partir da obra de Joaquín Herrera Flores. p.12 4 278 Várias nações latino-americanas desempenharam um papel fundamental na elaboração e defesa da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O ilustre jurista e diplomata brasileiro João Neves da Fontoura, por exemplo, presidiu a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas durante o processo de concepção da declaração9. Além disso, representantes de Argentina, Chile, Colômbia, Cuba, México e Uruguai tiveram participação direta nas negociações, contribuindo para a formulação dos princípios universais que constituem a essência dessa declaração 10. Na América Latina, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa um documento de primordial importância na orientação das políticas públicas e estruturas legais voltadas para a defesa dos direitos humanos. A região enfrentou ao longo do século XX períodos de grande instabilidade, marcados por ditaduras militares, conflitos armados e amplas violações de direitos humanos11. Durante esses períodos de crise, a declaração serviu como um farol de esperança e um referencial normativo para defensores dos direitos humanos, que frequentemente enfrentaram riscos significativos em sua busca por justiça e dignidade. Diversos países latino-americanos incorporaram os princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos às suas próprias constituições e ordenamentos jurídicos internos12. Essas constituições garantem um vasto leque de direitos, tais como a liberdade de expressão, igualdade perante a lei, direito à vida, liberdade pessoal, e proibição da tortura e da discriminação. Paralelamente, a região estabeleceu um conjunto de instituições nacionais e regionais, como comissões nacionais de direitos humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com o propósito de promover e proteger os direitos humanos13. A América Latina mantém uma relação profunda e duradoura com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A região desempenhou um papel proeminente em sua formação e tem utilizado os princípios consubstanciados nesta declaração como um guia Saboia, G. V. (1993). O Brasil e o sistema internacional dos direitos humanos. Textos do Brasil, Edição Especial, 2(6). p. 23-24 10 de Carvalho, É. R., Rocha, V. L., & da Rocha Bento, R. L. D. (2018). LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS SOBRE QUEM? DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS. Revista Direitos Fundamentais e Alteridade, 2(1), p.55 11 Reis, R. R. (2011). A América Latina e os direitos humanos. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 1(2), p. 103 12 Maués, A. M. (2013). Supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos e interpretação constitucional. Eficácia nacional e internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 27-50. p. 45 13 D’AVILA, C. D. B., Becker, G. A. B., & de Brito, P. D. (2014). A proteção reflexa do meio ambiente na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista IIDH, San José, 60, 11-38, p. 14 9 279 para a construção de sociedades mais justas e igualitárias14. No entanto, o compromisso com os direitos humanos na América Latina é uma empreitada contínua, exigindo esforços constantes para superar desafios e assegurar que todos os indivíduos possam plenamente desfrutar de seus direitos fundamentais na região, sob a égide de um compromisso jurídico inabalável com a jurisprudência universal dos direitos humanos15. 3. A Importância da Corte Interamericana de Direitos Humanos A Corte Interamericana de Direitos Humanos, instituída em 1979, assume um papel de primordial relevância na promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano. A sua importância transcende fronteiras nacionais, desempenhando um papel central na defesa dos direitos fundamentais das pessoas na América Latina e no Caribe 16. A América Latina é uma região caracterizada por uma diversidade considerável em termos de sistemas políticos, culturas, línguas e histórias. Não obstante, a existência da Corte Interamericana de Direitos Humanos estabelece um denominador comum crucial na proteção dos direitos humanos em toda a região17. A corte providencia um fórum imparcial e independente onde casos relacionados a violações de direitos humanos podem ser julgados com equidade, garantindo que as vítimas dessas violações tenham acesso à justiça, independentemente de sua nacionalidade ou origem étnica18. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também desempenha um papel vital na promoção da responsabilidade dos Estados membros da OEA. Através da prolação de sentenças e recomendações vinculantes, a corte imputa responsabilidade aos Estados por violações de direitos humanos, incentivando-os a adotar medidas efetivas para reparar os danos causados às vítimas e prevenir futuras transgressões19. Este contributo fomenta o fortalecimento do Estado de Direito na região, promovendo a accountability e a transparência governamental. Barcellos, G. H., de Almeida, J. A., & de Moraes Freire, S. (2022). Direitos Humanos na América Latina: um processo em construção. Revista Ágora, 33(2). p. 8 15 Barcellos, G. H., de Almeida, J. A., & de Moraes Freire, S. (2022). Direitos Humanos na América Latina: um processo em construção. Revista Ágora, 33(2). p.9 16 Oliveira, S. L. G. D. (2010). A corte interamericana de direitos humanos e a formulação de políticas públicas. P. 177 17 Gontijo, A. P. (2015). O desenvolvimento ativo da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 5(2). p. 412 18 de Souza, T. M. R. M. A Noção de Tribunal Competente, Imparcial e Independente Previsto em Lei na Corte Interamericana e na Corte Europeia de Direitos Humanos. p.1 19 Bernardes, M. N. (2011). Sistema Interamericano de Direitos Humanos como esfera pública transnacional: aspectos jurídicos e políticos da implementação de decisões internacionais. SUR-Revista Internacional de Direitos Humanos, 8(15), 135-156. p. 148 14 280 A jurisprudência emanada da Corte Interamericana de Direitos Humanos enriquece o corpo do direito internacional de direitos humanos. As suas decisões e interpretações dos tratados e convenções de direitos humanos estabelecem padrões jurídicos que têm sido invocados e aplicados em tribunais de todo o mundo20. Neste sentido, a corte contribui para o progresso contínuo do direito internacional de direitos humanos, servindo como um referencial valioso para outros sistemas regionais e organismos internacionais. Ademais, a corte fomenta a responsabilidade dos Estados e contribui substancialmente para o desenvolvimento do direito internacional de direitos humanos. Num mundo onde os direitos fundamentais enfrentam frequentes desafios, a Corte Interamericana de Direitos Humanos perdura como um esteio essencial na defesa da dignidade e da justiça na região. Considerações Finais A presente pesquisa buscou abordar a temática dos Direitos Humanos na América Latina, destacando a notável importância da Corte Interamericana de Direitos Humanos neste contexto. No decorrer da análise, pudemos verificar a evolução histórica da região no que diz respeito aos direitos fundamentais, bem como os desafios e avanços enfrentados ao longo do tempo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, enquanto pedra angular na proteção global desses direitos, tem sido integrada ao arcabouço legal e constitucional de muitos países latino-americanos. Este documento não apenas estabelece princípios universais, mas também orienta a atuação das nações da região na promoção e garantia dos direitos humanos. Nesse contexto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se revela como uma instituição de valor inestimável. Ao fornecer um fórum imparcial e independente para a resolução de casos de violações de direitos humanos, a corte assegura que vítimas de tais violações tenham acesso à justiça e à reparação, independentemente de sua origem étnica ou nacionalidade. Ademais, suas decisões vinculantes e seu papel na promoção da responsabilidade estatal contribuem para o fortalecimento do Estado de Direito na América Latina. Dresch, M. (2013). A universalização do reconhecimento dos direitos humanos: significados da declaração universal de 1948 e sua influência no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. p. 80 20 281 A jurisprudência da corte não apenas influencia os sistemas jurídicos da região, mas também enriquece o corpo do direito internacional de direitos humanos, servindo como um guia e referência em nível global. Em tempos em que os direitos humanos enfrentam desafios complexos e persistentes na América Latina, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se mantém como uma instituição vital na defesa da dignidade, justiça e igualdade na região. Sua existência reflete o compromisso das nações latino-americanas com a proteção dos direitos fundamentais e representa uma fonte de esperança para todos aqueles que buscam justiça e respeito pela dignidade humana. Assim, concluímos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos é um componente central na concretização da visão de uma América Latina onde os direitos humanos são integralmente respeitados e protegidos, assegurando que nenhum indivíduo seja excluído em sua busca pela justiça e igualdade. Seu papel na região é indiscutivelmente relevante e continuará a desempenhar um papel vital nas décadas vindouras na promoção e proteção dos direitos humanos na América Latina. Referências Bibliográficas ARAUJO, M. P. N., de Moraes Ferreira, M., Fico, C., & Quadrat, S. V. (2008). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Editora FGV. p. 8 BARCELLOS, G. H., de Almeida, J. A., & de Moraes Freire, S. (2022). Direitos Humanos na América Latina: um processo em construção. Revista Ágora, 33(2). p. 8 BARCELLOS, G. H., de Almeida, J. A., & de Moraes Freire, S. (2022). Direitos Humanos na América Latina: um processo em construção. Revista Ágora, 33(2). p.9 BERNARDES, M. N. (2011). Sistema Interamericano de Direitos Humanos como esfera pública transnacional: aspectos jurídicos e políticos da implementação de decisões internacionais. SUR-Revista Internacional de Direitos Humanos, 8(15), 135-156. p. 148 CASTIHO, N. M. (2013). Pensamento descolonial e teoria crítica dos direitos humanos na América Latina: um diálogo da partir da obra de Joaquín Herrera Flores. p.12 D’AVILA, C. D. B., Becker, G. A. B., & de Brito, P. D. (2014). A proteção reflexa do meio ambiente na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista IIDH, San José, 60, 11-38, p. 14 de CARVALHO, É. R., Rocha, V. L., & da Rocha Bento, R. L. D. (2018). LIBERDADE, LIBERDADE, ABRE AS ASAS SOBRE QUEM? DA DECLARAÇÃO DE DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS Humanos. Revista Direitos Fundamentais e Alteridade, 2(1), p.55 de SOUZA, T. M. R. M. A Noção de Tribunal Competente, Imparcial e Independente Previsto em Lei na Corte Interamericana e na Corte Europeia de Direitos Humanos. p.1 282 DRESCH, M. (2013). A universalização do reconhecimento dos direitos humanos: significados da declaração universal de 1948 e sua influência no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. p. 80 GONTIJO, A. P. (2015). O desenvolvimento ativo da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Brasileira de Políticas Públicas, 5(2). p. 412 JUNIOR, F. L. (2017). Ditadura e Insurgência na América Latina: Psicologia da Libertação e Resistência Armada1. Psychology: science and profession Psicología: ciencia y profesión, 28, p. 8 MAUES, A. M. (2013). Supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos e interpretação constitucional. Eficácia nacional e internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 27-50. p. 45 OLIVEIRA, S. L. G. D. (2010). A corte interamericana de direitos humanos e a formulação de políticas públicas. P. 177 PRADO, M. L. C. (2002). Sonhos e desilusões nas independências latino-americanas. el@ tina. Revista electrónica de estudios latinoamericanos, 1(1). p.2 REIS, R. R. (2011). A América Latina e os direitos humanos. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 1(2), p. 103 REIS, R. R. (2011). A América Latina e os direitos humanos. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 1(2), p. 113 REIS, R. R. (2011). A América Latina e os direitos humanos. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 1(2), p. 105 SABOIA, G. V. (1993). O Brasil e o sistema internacional dos direitos humanos. Textos do Brasil, Edição Especial, 2(6). p. 23-24 283 A Justiça Restaurativa e a Mediação como Promotores do Exercício da Cidadania e sua Principal Aplicabilidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro Júlia Gomes Pereira Maurmo 1 Mariana Carvalho Sampaio2 Victória de Oliveira Terra3 Sumário: Introdução; 1. Justiça Restaurativa: aspectos gerais; 1.1 Princípios da Justiça Restaurativa; 1.2. O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) dentro da Justiça Restaurativa; 2. Como o Ordenamento Jurídico brasileiro trata os menores infratores; 2.1. A Justiça Restaurativa nos crimes cometidos por menores infratores; 2.2. Desafios da aplicabilidade da Justiça Restaurativa nos institutos jurídicos brasileiros; Considerações Finais; Referências bibliográficas. Resumo: O artigo aborda o uso do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) como uma ferramenta jurídica que permite a resolução consensual de casos criminais de menor potencial ofensivo, oferecida pelo Ministério Público como alternativa à persecução penal. Ademais, também explora a aplicação da justiça restaurativa no contexto de crimes cometidos por menores, destacando a mediação como uma forma de promover a cidadania e a reintegração social dos jovens, esquivando-se tão somente do ímpeto penal. A pesquisa analisa os princípios da justiça restaurativa e a importância da mediação na responsabilização do infrator, na cura da vítima e na reparação dos danos. O estudo utiliza uma abordagem qualitativa, com pesquisa bibliográfica para explorar e descrever situações reais. O objetivo é contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva, priorizando o desenvolvimento e reintegração dos menores envolvidos em infrações. Palavras-chave: justiça; cidadania; direitos; mediação; infratores. Abstract: The article addresses the use of the Non-Prosecution Agreement (NPA) as a legal tool that allows the consensual resolution of criminal cases of lesser offensive potential, offered by the Public Prosecutor's Office as an alternative to criminal prosecution. Furthermore, it also explores the application of restorative justice in the context of crimes committed by minors, highlighting mediation as a way to promote citizenship and social reintegration of young people, avoiding only the criminal impetus. The research analyzes the principles of restorative justice and the importance of mediation in holding the offender accountable, healing the victim and repairing the damage. The study uses a qualitative approach with bibliographic research and case study to explore and describe real situations. The aim is to contribute to a fairer and more inclusive society, prioritizing the development and reintegration of minors involved in infractions. Keywords: justice; citizenship; rights; mediation; offenders. 1 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Professora adjunta de Direito Penal e Processual Penal do Departamento de Direito, Humanidades e Letras do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Graduanda em Direito na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Endereço eletrônico: [email protected]. 3 Graduanda em Direito na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Endereço eletrônico: [email protected]. 284 Introdução Com a ineficácia de um modelo de justiça meramente punitiva, a chamada Justiça Retributiva, principalmente no tocante aos índices de reincidência, em vários países ao redor do mundo, urge a necessidade de um novo modelo de justiça que seja capaz de unir responsabilização e cura, com foco na reparação do dano sofrido pela vítima, e não apenas pelo ímpeto de punir o acusado. Nesse contexto, surge, em 1977, desenvolvido por Albert Eglash, psicólogo norte americano, o que seria chamado de Justiça Restaurativa em 1990 por Howard Zehr, também conhecido como um dos pioneiros em disseminar esse modelo de justiça. Assim, o presente artigo mostrará os aspectos da Justiça Restaurativa, traçando seus principais conceitos a abordando considerações gerais sobre o tema. Ao longo da pesquisa, será discorrida a forma como o direito brasileiro recepciona esse método de fazer justiça, e quais são as suas principais aplicações dentro do ordenamento jurídico brasileiro. O objetivo central é mostrar como o Acordo de Não Persecução Penal – ANPP e a as medidas aplicadas aos menores infratores trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, “bebem diretamente da fonte” da Justiça Restaurativa. Dessa forma, pretende-se demonstrar a necessidade de abrir novos caminhos dentro da justiça brasileira para que a aplicabilidade da Justiça Restaurativa seja mais difundida, baseando-se nos resultados obtidos dentro dos modelos supracitados que já são usados no Brasil e ao redor do mundo. A metodologia utilizada no desenvolvimento deste artigo foi a de pesquisa bibliográfica, com o intuito de, breve e objetivamente, explorar e descrever situações e fatos reais. Nesse ínterim, a metodologia do estudo concentra-se no método dedutivo, eis que serão elencadas teorias gerais para posteriormente refinar o conhecimento para premissas específicas, não trazendo novas concepções, eis que serão extraídas implicações lógicas do que já é conhecido. 1. Justiça Restaurativa: Aspectos Gerais De início, cabe ressaltar que a conceituação de “Justiça Restaurativa” assume inúmeras interpretações, haja vista a complexidade do tema e a diversidade de pensamentos pelos doutrinadores. Contudo, embora seja um assunto que não possui um conteúdo definido, em termos gerais, trata-se de um processo colaborativo voltado para a resolução de conflitos criminosos, envolvendo uma maior participação dos personagens, como a vítima e o infrator, sendo aquela a protagonista da relação. 285 De acordo com a Resolução nº 2002/2012 da Organização das Nações Unidas (ONU), que aborda os princípios básicos para a utilização de programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal, essa metodologia Significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador (2002). Depreende-se desse método a busca pela reparação dos danos sofridos pela vítima, de forma mais célere e eficaz. Desse modo, com a participação de um terceiro “facilitador”, o trâmite penal vai tomando um caminho diferente de um processo ajuizado no Poder Judiciário, contando com alternativas mais amistosas de solucionar o litígio de forma extrajudicial. Neste ínterim, as práticas abordadas na Justiça Restaurativa estão previstas na Resolução CNMP n°243/2021. É um instrumento relativamente novo, e que, segundo a norma, é responsabilidade do Ministério Público implementar projetos e mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, através da negociação, mediação e conferências dos traumas derivados dos eventos criminosos ou de atos infracionais, por meio da cooperação e parceria, sendo observadas as diretrizes contidas nas Resoluções CNMP n° 118, de 1° de dezembro de 2014, e n° 181, de 7 de agosto de 2017. 4 Consoante à definição adotada pelo TJDFT, a Justiça Restaurativa é apontada como Um método que busca, quando possível e apropriado, realizar o encontro entre vítima e ofensor, assim como eventuais terceiros envolvidos no crime ou no resultado dele, com o objetivo de fazer com que a vítima possa superar o trauma que sofreu e responsabilizar o ofensor pelo crime que praticou (2019). 5 Assim, com a implementação da mediação nos litígios, o objetivo pauta-se na satisfação de todos os envolvidos, responsabilizando o agente infrator e, concomitantemente, revertendo o desvalor que o evento danoso provoca, possibilitando um diálogo entre as partes. Ademais, é importante ressaltar a dessemelhança com o Sistema Retributivo, que compreende a responsabilização penal do infrator pelo mal cometido por meio de um castigo. Sendo assim, o foco principal é a culpabilização do indivíduo que violou a lei e, consequentemente, atribuindo uma pena proporcional ao delito, relegando a vítima a um 4 Ministério Público. Justiça Restaurativa. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/defesadasvitimas/oministerio-publico-e-a-vitima/justica-restaurativa. Acesso em: 03 de julho de 2023. 5 TJDFT - Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Terrirórios. Justiça REstaurativa: entenda os conceitos e objetivos. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2019/maio/justicarestaurativa-entenda-os-conceitos-e-objetivos. Acesso em: 03 de julho de 2023. 286 papel secundário. Nesta diapasão, o transgressor acaba sendo preso e retorna à sociedade com raiva, tendo em vista sua incompreensão das razões que o motivaram a praticar o ato infracional, termina por resultar no sentimento de irresponsabilidade do infrator e na consequente reiteração delitiva. Por outro lado, a Justiça Restaurativa tem uma abordagem mais ampla, calcada na relação entre ofensor, vítima e comunidade. Destarte, busca pela reparação do dano causado e por promover uma reconciliação, ao invés de focar em uma punição imediata para o infrator. Por conseguinte, a implementação dessa metodologia faz com que todos os personagens consigam se expressar e que os ofensores consigam compreender a dinamicidade que os seus atos infracionais corroboraram, além da participação ativa da comunidade, que vai contribuir para reintegração desses indivíduos à sociedade, enfatizando o diálogo e a cura. Outra perspectiva relevante refere-se à aplicação da Justiça Restaurativa no contexto de crimes cometidos por menores infratores, tendo em vista a condição peculiar de desenvolvimento físico e psíquico que esses jovens se encontram. Nesses casos, são imprescindíveis medidas sociopedagógicas a fim de proteger todos os envolvidos da tríplice (ofensor, vítima e comunidade), possibilitando a compreensão do ato infracional, bem como a superação da vulnerabilidade pessoal e social que levaram esse jovem à transgredir, atenuando a marginalização. Buscam-se, no enfoque restaurativo, Novas abordagens, compreensão e resposta às infrações, conflitos e situações- problema, bem como ao redesenho de abordagens pedagógicas, psicossociais, socioeducativas e penais, baseadas em elementos restaurativos, tais como: (a) a participação dos envolvidos, (b) a participação das comunidades, (c) o foco na reparação dos danos e (d) o foco na (co)responsabilização. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2015). Essa redução na marginalização associa-se à prevenção da reincidência, uma vez que a Justiça Restaurativa objetiva analisar as causas subjacentes do comportamento infracional e ajudar os jovens a adotarem uma abordagem mais construtiva para resolver conflitos. Ao promover a responsabilização, a empatia e o apoio, a abordagem restaurativa busca reduzir as taxas de reincidência e fornecer aos jovens os instrumentos necessários para uma reintegração bem-sucedida, com a participação das famílias de forma ativa para um resultado eficaz. 1.1 Princípios da Justiça Restaurativa Vale destacar que os princípios inerentes à Justiça Restaurativa são de extrema importância para a evolução do ordenamento jurídico brasileiro, sendo certo que a 287 Resolução 2002/12 da ONU possibilitou a sua aplicação nos programas restaurativos de matéria criminal, podendo destacar os seguintes princípios: voluntariedade, isto é, a participação da tríplice (ofensor, vítima e comunidade) deve ser de forma voluntária, baseada no livre consentimento; participação ativa, haja vista a importância da compreensão do processo pelas partes envolvidas, sendo o menor infrator influenciado a assumir suas responsabilidades por suas transgressões, expressando seus sentimentos e vulnerabilidades, a fim de contribuir para soluções significativas. Ademais, há a reparação do dano, em que é possível identificar o impacto do crime na vida da vítima e na comunidade, momento em que o terceiro facilitador entenderá as especificidades do caso concreto e ajudará a promover alternativas eficazes para reparar o dano causado; a responsabilização e aprendizado, neste caso, entende-se a importância da individualização da pena, estabelecendo o impacto do ato cometido pelo agente causador a fim de possibilitar uma alternativa mais efetiva, além de, sucessivamente, buscar fornecer ao indivíduo oportunidades de aprendizado e crescimento pessoal, desenvolvendo estratégias para ajudar o jovem a evitar comportamentos infracionais futuros. Outros princípios de suma importância, nos moldes do artigo 2° da Resolução 225/2016, são: confidencialidade; informalidade; corresponsabilidade; urbanidade; celeridade. Além desses, a inclusão e o diálogo também são princípios imprescindíveis para que o litígio seja solucionado de forma amistosa, sendo a abordagem restaurativa responsável por valorizar um diálogo aberto e inclusivo entre as partes envolvidas, em que todos poderão se expressar de forma plena para alcançar uma alternativa justa e satisfatória, promovendo cidadania. E, por fim, a reintegração social, em que a comunidade torna-se indispensável nesse momento, haja vista a possibilidade de fornecer aos menores infratores oportunidades educacionais e de desenvolvimento pessoal para que sua readequação à sociedade seja feita de maneira positiva. 6 1.2 O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) dentro da Justiça Restaurativa O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é uma novidade trazida por meio da Lei 13.964 (Pacote Anticrime) e pode ser definido como um acordo pré-processual entre 6 PROJURIS. Justiça Restaurativa. Projuris Blog, 2022. Disponível em: https://www.projuris.com.br/ blog/justica-restaurativa/. Acesso em: 03 de julho de 2023. 288 o Ministério Público e o investigado ou acusado em determinados casos de menor gravidade, visando dar maior celeridade e eficiência no sistema de justiça criminal. Através desse acordo, o Ministério Público pode deixar de oferecer a denúncia ou suspender o processo criminal em troca do cumprimento de certas condições pelo infrator, previstas no artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP). Essas condições podem incluir o pagamento de uma multa, a reparação do dano causado à vítima, a prestação de serviços à comunidade, a realização de cursos de educação ou profissionalização, entre outras medidas. O ANPP é aplicável a crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a quatro anos de prisão, desde que não haja emprego de violência ou grave ameaça, e o acusado não tenha sido condenado por outro crime doloso nos últimos cinco anos, além da confissão formal e circunstanciadamente do delito cometido. Ademais, o acordo também não é possível nos casos em que o Ministério Público considere indispensável a realização de diligências investigatórias ou se existirem outras circunstâncias que justifiquem a continuidade da persecução penal. É possível notar que o ANPP é uma oportunidade de derivação da Justiça Restaurativa, eis que as partes são responsáveis por conduzir a tratativa, reforçando o consenso no processo penal. Cumpre salientar que a vítima deve ter ciência do referido acordo, além de ser convidada a participar da conciliação do ANPP, assegurando-se direito de ciência, direito de fornecimento de informações às autoridades para instruir na decisão, bem como direito de manifestação sobre o cabimento do benefício, sobre as propostas e contrapropostas, e de ter seus interesses globalmente considerados para a elaboração do acordo. O ANPP diferencia-se da mediação penal, mas pode ser uma forma para se estabelecer uma comunicação, direta ou indireta, entre vítima e o autor da ofensa, ainda que a vítima, neste caso, não tenha uma posição de protagonismo, como nos casos da presença de um facilitador conduzindo a mediação ofensor-vítima-comunidade, característica basilar da Justiça Restaurativa, possibilitando o exercício da cidadania. Além disso, as tratativas do ANPP são realizadas de modo extrajudicial, uma forma de afastar o Poder Judiciário, assim, somente em casos excepcionais o ambiente judicial pode ser acionado. Isso ocorre porque o objetivo é promover uma negociação a nível 289 horizontal entre as partes, dessa forma, o Judiciário só é mobilizado quando for realizar a homologação da tratativa, haja vista seu caráter hierárquico presente nas relações. 7 Vale destacar que o ANPP não se trata de uma forma de impunidade, mas sim de uma alternativa para dar maior celeridade aos casos menos graves, permitindo que recursos do sistema de justiça sejam direcionados para os crimes mais complexos. O acordo precisa ser homologado por um juiz para ter validade, garantindo assim a sua legalidade e adequação às circunstâncias do caso em questão.8 No tocante aos crimes cometidos por menores infratores, o ANPP não tem aplicabilidade, tendo em vista que a legislação brasileira prevê um sistema jurídico especializado para tratar de questões relacionadas à criminalidade praticada por indivíduos menores de 18 anos de idade. No Brasil, os atos infracionais cometidos por menores são regidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece medidas socioeducativas como forma de responsabilização e ressocialização desses jovens. O foco principal do sistema socioeducativo é promover a reintegração social do menor infrator, visando sua recuperação e reeducação. 2. Como o Ordenamento Jurídico Brasileiro Trata os Menores Infratores No Brasil, é determinado pela Constituição da Republica de 1988, em seu artigo 228: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.”9 Isto é, os menores de 18 anos não estão sujeitos às medidas penais aplicadas pelo Código de Processo Penal, mas sim às normas da legislação especial, sendo determinadas pela, conhecida como ECA, Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. O ECA é o reflexo de todo o processo constitucional que visa a proteção e a valorização da infância e juventude, como bem determina o artigo 227 da Constituição de 1988: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de 7 ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO. Acordo de não persecução penal. Brasília: ESMPU. Disponível em: https://escola.mpu.mp.br/publicacoes/obras-avulsas/e-booksesmpu/direitos-fundamentais-em-processo-2013-estudos-em-comemoracao-aos-20-anos-da-escola-superiordo-ministerio-publico-da-uniao/4_acordo-de-nao-persecucao-penal.pdf. Acesso em: 03 de julho de 2023. 8 CNMP - Conselho Nacional do Ministério Público. O acordo de não persecução penal é importante para dar uma resposta quase imediata aos crimes de menor gravidade, diz promotor do MP-PR. Portal CNMP, 2021. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/13913-o-acordo-de-nao-persecucaopenal-e-importante-para-dar-uma-resposta-quase-imediata-aos-crimes-de-menor-gravidade-diz-promotor-domp-pr. Acesso em: 03 de julho de 2023. 9 BRASIL. Constituição (1988). Art. 228. 290 toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (EC no 65/2010). BRASIL. Constituição (1988).10 Ainda assim, se torna importante delimitar o que, para o ordenamento jurídico brasileiro, caracteriza a criança e adolescente, e tal delimitação fica a cargo do Estatuto, em seu artigo 2º: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.” 11 A partir dessa delimitação, podemos traçar quais são as medidas de proteção à criança e ao adolescente que são aplicáveis quando estes vêm a praticar o ato infracional. O Estatuto estabelece que as medidas sempre devem levar em conta as necessidades relacionadas à aprendizagem e reestruturação familiar e escolar do menor afetado, conforme artigo 100: “Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.”12 O intuito é sempre garantir a segurança e a integridade moral e física do menor envolvido, dentro das condições sociais e psicológicas em que está inserido, intervindo de modo que os pais assumam os seus deveres para com o menor13. Importa salientar que o ECA aplica medidas diferentes às crianças, daquelas medidas aplicadas aos adolescentes, que venham a cometer conduta descrita como crime ou contravenção penal. Conforme supracitado, se o ato infracional é praticado por menor de até 12 anos, caraterizado como criança, as medidas a ele aplicadas serão as de encaminhamentos aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários e a matrícula com frequência obrigatória em estabelecimento oficial de ensino fundamental, conforme elencados pelo artigo 101 do ECA. Já para com os adolescentes, a tratativa é diferente, conforme elencado no artigo 112 do Estatuto, as medidas podem ser a de advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional; ou qualquer uma das medidas elencadas pelo artigo 101, de acordo com a capacidade do adolescente de cumprir a medida aplicada e a gravidade da infração, conforme § 1º do artigo supracitado. 10 BRASIL. Constituição (1988). Art. 227. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 12 BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 13 DireitoNet. Criança e Adolescente (2023). Medidas de proteção à criança e ao adolescente, princípios do ECA, política de atendimento dos direitos dos menores, ato infracional e medidas socioeducativas, crimes e infrações administrativas. 28/06/2023. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/resumos/exibir/1128/ Crianca-e-Adolescente. Acesso em 05 de julho de 2023. 11 BRASIL. 291 Além disso, o Estatuto ainda prevê a possibilidade da remissão, concedida pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude, proposta pelo representante do Ministério Público, com o intuito de excluir o processo, a depender do tipo do ato infracional e qual o grau de participação do menor envolvido, de acordo com o artigo 126 do Estatuto que traz em sua redação o seguinte texto: Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. (BRASIL, Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990).14 Um ponto muito interessante a respeito do Estatuto da Criança e do Adolescente, é que é uma das primeiras legislações no mundo completamente sintonizadas com a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU em 1989, entrando em vigor em 2 de setembro de 1990, sendo ratificada pelo Brasil e mais outros 195 países, considerado o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal.15 A referida Convenção é um tratado que tem como objetivo promover a proteção das crianças e adolescentes através da composição de princípios que visam proteger os direitos básicos, princípios esses que estabelecem direitos sociais, culturais, econômicos, civis e políticos para todos aqueles que visam proteger, definindo a família, o Estado e a sociedade como os responsáveis por garantir esses direitos16. Desse modo, nota-se a importância de ratificar uma Convenção dentro do ordenamento jurídico brasileiro, baseada em princípios restauradores. 2.1 A Justiça Restaurativa nos Crimes Cometidos por Menores Infratores De início, é fundamental ressaltar o quanto a abordagem da Justiça Restaurativa trouxe benefícios para o ordenamento jurídico, dando voz às partes, atenuando a reincidência, reduzindo o número de demandas judicializadas, e possibilitando uma participação mais democrática e humanizada, além dos vieses de reintegração social do jovem infrator previstos no ECA. 14 BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. 15 UNICEF. Para cada criança. Convenção sobre os Direitos das Crianças. Instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal. Foi ratificado por 196 países. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/. Acesso em 06 de julho de 2023. 16 Fundação Abrinq. Por que a Convenção Internacional sobre os Direitos Humanos da Criança é importante? Descubra 5 informações fundamentais. 2019. Disponível em: https://www.fadc.org.br/noticias/por-que-aconvencao-internacional-sobre-os-direitos-da-crianca-e-importante. Acesso em 06 de julho de 2023. 292 No que concerne aos menores infratores, a criação do diálogo entre adolescente e vítima promove a formação de criticidade acerca do ato infracional praticado, possibilitando uma solução mais analítica e cidadã, objetivo principal das medidas socioeducativas, sendo estabelecido de forma mais eficaz do que a judicialização de um processo em que o adolescente, sua família, comunidade e vítima(s) não possuem voz.17 É importante estabelecer que embora os avanços da sociedade sejam notáveis, porém, há características alarmantes que precisam ser alteradas, haja vista que a falta de aplicabilidade de alguns elementos pelo próprio ECA, impedem o exercício da cidadania de forma plena. Posto isso, o documentário “Juízo” de 2008, dirigido e escrito por Maria Augusta Ramos, e produzido por Diler Trindade, elucida o Sistema Judiciário Brasileiro. O documentário revela as dificuldades enfrentadas pelos adolescentes e os desafios do sistema para lidar com a questão da criminalidade juvenil. 18 Nessa perspectiva, ao longo da obra cinematográfica, são abordados temas como falta de oportunidades, emprego de violência, abandono familiar e as desigualdades sociais perenes na sociedade que contribuem para o envolvimento de menores de idade com o crime. O documentário também levanta questionamentos sobre a eficácia do Poder Judiciário na recuperação e reintegração dos jovens infratores à sociedade. Através de uma abordagem observacional e imparcial, a autora Maria Augusta Ramos apresenta o cotidiano do sistema de justiça juvenil e retrata as complexidades e contradições envolvidas. A obra busca despertar reflexões sobre as políticas públicas necessárias para lidar com a criminalidade juvenil, evidenciando a importância de abordagens mais humanas e inclusivas para esses jovens, para que o exercício da cidadania seja feito de modo pleno e justo. O "Juízo" é um retrato sensível e impactante do sistema de justiça brasileiro e das vidas de diversos jovens infratores, sendo cada um tratado com uma peculiaridade, mas todos com pontos em comum: a ausência de escolaridade e as dificuldades financeiras. O documentário oferece uma visão crítica e profunda das questões enfrentadas pelos adolescentes em conflito com a lei no Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro, ressaltando as objeções e os desafios tanto para os jovens quanto para o sistema em si em contribuir de modo eficaz para a reinserção desses jovens à sociedade. 17 GOMES, Siqueira. Justiça Restaurativa para Jovens Infratores. Consultor Jurídico, 27 de maio de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-27/gomes-siqueira-justica-restaurativa-jovensinfratores. Acesso em: 03 de julho de 2023. 18 WIKIPÉDIA. Juízo (filme). Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Ju%C3%ADzo_(filme)\>. Acesso em: 03 de julho de 2023. 293 O documentário, em muitos momentos, faz com que o telespectador fique intrigado sobre o tratamento que é dado nas instituições, bem como pelos próprios personagens do sistema judiciário brasileiro. São revelados aspectos estruturais como a condição precária da instituição que os jovens infratores que cometem crimes mais graves ficam enclausurados, bem como a ausência de itens básicos como sabão, pasta de dente e papel higiênico. É de se notar que o papel de um mediador, nesses contextos, torna-se de fundamental importância, já que é nítido que enquanto elementos básicos não forem solucionados, o sistema restaurativo brasileiro jamais vai ter eficácia no que concerne aos menores infratores. As políticas públicas são de grande valia como forma de investimento para a prevenção da criminalidade, como iniciativas voltadas para a formação de uma educação de qualidade, acesso a oportunidades de emprego, fortalecimento curricular e atividades extracurriculares, além de programas de conscientização sobre os direitos e deveres desses jovens. Ademais, é essencial enxergar as vulnerabilidades dos jovens de forma precoce, estabelecer uma zona de risco e intervir, promovendo apoio psicossocial, aconselhamento e assistência jurídica, além de dispor serviços de saúde mental. A necessidade vincula-se a fornecer apoio aos jovens pauperizados antes que estes vejam no crime uma forma de mudar de vida e a de suas famílias. Outrossim, o apoio pós-liberação é de suma relevância, acompanhar e oferecer apoio aos jovens infratores após sua libertação é imprescindível para evitar a reincidência, impedindo que estes jovens retornem à criminalidade. Isso pode envolver programas de monitoramento, assistência na reintegração familiar e comunitária e medidas socioeducativas.19 2.2 Desafios da Aplicabilidade da Justiça Restaurativa nos Institutos Jurídicos Brasileiros Em suma, as leis penais, no Brasil, enfrentam um problema comum, qual seja a disparidade entre seus conceitos teóricos e a possibilidade de aplicação prática, principalmente no que se refere à ressocialização do indivíduo que comete o ato infracional. 19 Silveira, Priscila Francielle Knoop. Ressocialização de menores infratores: uma análise multidisciplinar da aplicação das medidas socioeducativas. Perspectivas Sociais, Pelotas, vol. 06, nº 01, p. 212-233, 2020. 294 Em razão disso, a Justiça Restaurativa vem se mostrando uma via mais assertiva no trato penal, especialmente com menores infratores, dentro do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois seu principal foco é na aplicação de medidas socioeducativas supracitadas, que visam a ressocialização do jovem à sociedade, sem torná-lo mais uma vítima do sistema punitivo brasileiro, promovendo a participação do menor, de sua família e da vítima, na busca da reparação do dano, sem negligenciar a responsabilização do infrator20. Essa dificuldade em estabelecer seus planos de fundos, enfrentada pela Justiça Restaurativa, perpassa pela necessidade de se adaptar às necessidades econômicas, políticas e sociais dos contextos em que estão inseridas21. Esse processo de adaptação é imprescindível para que a aplicabilidade de qualquer modelo de justiça seja possível, principalmente dentro do contexto brasileiro, que é um país extremamente desigual, e todas as práticas a serem aplicadas no sistema punitivo devem ser analisadas de forma minuciosa dentro das particularidades de cada panorama social. Considerações Finais Nesse compasso, pode-se inferir que a Justiça Restaurativa se mostra uma excelente alternativa ao modelo de Justiça Retributiva, que dentro de toda a história do ordenamento jurídico brasileiro não demonstra índices satisfatórios, principalmente no que concerne à reparação do dano e ressocialização do infrator, configurando um dos principais focos da Justiça Restaurativa. Em contraposição, essa possibilidade só será possível por meio de uma minuciosa análise e readaptação do modelo a ser aplicado. Nessa diapasão, a Justiça Restaurativa surge como uma alternativa inovadora e promissora, trazendo o foco para a reparação do dano e o resgate dos laços sociais rompidos, tanto para vítimas quanto para autores de infrações. Esse enfoque humanizado e empático pode contribuir significativamente para a redução da reincidência criminal e para a construção de uma sociedade mais justa e coesa, reintegrando o ofensor dentro da sociedade e, concomitantemente, reparando o dano causado à vítima. Da mesma forma, o Acordo de Não Persecução Penal se apresenta como uma ferramenta ágil e eficaz na busca por uma justiça mais célere e proporcional. Ao permitir que determinadas infrações sejam solucionadas extrajudicialmente, esse instituto pode 20 BIANCHI, Patrícia. NASCIMENTO JUNIOR, Jaime Meira. A Justiça Restaurativa e a proteção da criança e do adolescente. 21 OLIVEIRA, Cristina. Desafios da Justiça Restaurativa no Brasil. 2020. Disponível em: https://ibdpe.com.br/justica-restaurativa/. 295 desafogar o sistema judiciário, direcionando esforços para casos mais complexos e graves, além de garantir maior celeridade ao trâmite processual. Somado a isso, quanto aos crimes cometidos por menores infratores, é inegável a necessidade de políticas públicas abrangentes e estratégias específicas para tratar dessa questão delicada. A proteção integral e a ressocialização desses jovens são objetivos fundamentais para a construção de uma sociedade mais segura e inclusiva, que ofereça oportunidades de mudança e desenvolvimento a todos os cidadãos. Nesse sentido, é imprescindível que o poder público, o sistema de justiça, as instituições e a sociedade como um todo estejam empenhados em fomentar o diálogo e ações que visem a promoção de uma Justiça Restaurativa e a implementação adequada do Acordo de Não Persecução Penal, bem como a formulação de políticas efetivas para a prevenção e resolução dos problemas envolvendo menores infratores. Ao fortalecermos esses pilares do sistema de justiça criminal, estaremos mais próximos de alcançar uma sociedade mais justa, solidária, empática e comprometida com a transformação positiva de vidas, proporcionando uma perspectiva de futuro mais esperançosa tanto para as vítimas quanto para os responsáveis por infrações. Somente com a união de esforços e alicerces sólidos poderemos caminhar em direção a uma sociedade mais harmoniosa e consciente de seus desafios, buscando sempre a construção de um Brasil melhor para todos. Referenciais Bibliográficos BIANCHI, P. NASCIMENTO JUNIOR, J.M. A Justiça Restaurativa e a proteção da criança e do adolescente. BRASIL. Constituição (1988). Brasil Escola. Crianças e Adolescentes: Ato Infracional e as Medidas Socioeducativas. Disponível em: https://monografias.brasilescola.uol.com.br/direito/crianCasadolecentes-ato-infracional-as-medidas-socioeducativas.htm. Acesso em: 4 de julho de 2023. BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Lei nº 8.069, 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. CNMP - Conselho Nacional do Ministério Público. O acordo de não persecução penal é importante para dar uma resposta quase imediata aos crimes de menor gravidade, diz promotor do MP-PR. Portal CNMP, 2021. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/13913-o-acordo-de-naopersecucao-penal-e-importante-para-dar-uma-resposta-quase-imediata-aos-crimes-demenor-gravidade-diz-promotor-do-mp-pr. Acesso em: 03 de julho de 2023. DAGHER. C.A.. Como a nova Zelândia tem inspirado os passos da justiça penal brasileira. Canal Ciências Criminais. 2022. Disponível em: 296 https://canalcienciascriminais.com.br/como-a-nova-zelandia-tem-inspirado-os-passosda-justica-penal-brasileira/. Acesso em 06 de julho de 2023. DireitoNet. Criança e Adolescente (2023). Medidas de proteção à criança e ao adolescente, princípios do ECA, política de atendimento dos direitos dos menores, ato infracional e medidas socioeducativas, crimes e infrações administrativas. 28/06/2023. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/resumos/exibir/1128/Crianca-eAdolescente. Acesso em 05 de julho de 2023. ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO. Acordo de não persecução penal. Brasília: ESMPU. Disponível em: https://escola.mpu.mp.br/ publicacoes/obras-avulsas/e-books-esmpu/direitos-fundamentais-em-processo-2013estudos-em-comemoracao-aos-20-anos-da-escola-superior-do-ministerio-publico-dauniao/4_acordo-de-nao-persecucao-penal.pdf. 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Acesso em: 4 jul. 2023. <https://pt.wikipedia.org/wiki/ 297 Violências de Gênero no Âmbito do Trabalho Sob à Ótica da Convenção 190 da OIT: uma Análise Estrutural da Organização das Relações de Trabalho no Brasil Gender Violence in the Workplace Under the Perspective of ILO Convention 190: a Structural Analysis of the Organization of Labor Relations in Brazil Marcela Bittencourt Brey1 Mayara Pereira Amorim2 Sumário: 1. Introdução; 2. A Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); 2.1. A NR-05; 2.2. A violência de gênero no âmbito laboral: por uma análise a partir da Antropologia Jurídica; 3. Considerações Finais; Referências bibliográficas. Resumo: A Convenção sobre a Eliminação da Violência e Assédio no mundo do Trabalho 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece o direito fundamental e humano de todas as pessoas terem um ambiente de trabalho sadio e livre de toda e qualquer forma de violência, especialmente a de gênero. O processo de ratificação formal dessa Convenção no Brasil iniciou-se em março de 2023. Porém, com o propósito de mitigar ações violentas baseada no gênero no âmbito laboral, o estado brasileiro tem adotado outras medidas legislativas no plano interno. Objetiva-se, por meio desse estudo, sob a ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos e com base na metodologia dedutiva e por meio de acervo documental, legislativo e doutrinário trazer reflexões a partir da análise da norma regulamentadora NR-05. Essa norma institui a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio – CIPA – e está em vigor no Brasil desde o dia 20 de março de 2023, por meio da Portaria MTP (Ministério do Trabalho e Previdência) nº 4.219, de 20 de dezembro de 2022. A análise dogmática demonstra que o Brasil ainda é um país que demonstra um lento caminhar para se alcançar a equidade de gênero. Da análise do contexto relativo as relações trabalhistas, são constatados os mais variados casos de sexismo, assédio moral e sexual, seja no âmbito empresarial ou na esfera da administração pública, direta ou indireta. Tal proceder é reflexo de uma sociedade machista e violenta, denotando um problema estrutural e estruturante da sociedade brasileira. Esse cenário caminha na contramão dos objetivos firmados pelo Brasil na Agenda 2030, em especial, a ODS 5. O desafio lançado pelas Nações Unidas requer mudança de comportamento da sociedade brasileira, inclusive no contexto laboral, com adoção de boas práticas no ambiente corporativo. Por isso, problematiza-se na investigação, a aplicação da NR-05 no âmbito local e da importância de ratificar formalmente a Convenção 190 da OIT, como forma também de cumprir os padrões internacionais. Todavia, nesse estudo, apresenta-se como resultado parcial que, embora NR-05 seja de abrangência ampla no âmbito local, obrigando empresas privadas, instituições públicas e órgãos da administração pública brasileira, questiona-se sobre o seu potencial transformador num problema estrutural: a violência de gênero. Por fim, o estudo propõe-se a realizar a interdisciplinaridade com referenciais teóricos das áreas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, Antropologia e Sociologia Jurídicas, fundamentais para a investigação aqui proposta. 1Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduada em Compliance na área da Saúde, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Direito Penal, Direito Médico e da Saúde. Pesquisadora da Cátedra Jean Monnet da Universidade Federal de Uberlândia - Projeto Global Crossings. Membra efetiva da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-SP. Advogada. ORCID-ID: https://orcid.org/0000-0002-58676965. ID Lattes: 5492134261028151. E-mail: [email protected] 2Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento Social pela PUC-Campinas. Especialista em Direito Constitucional e Ambiental. Pesquisadora, docente de graduação em Direito e advogada. ORCID-ID: https://orcid.org/0000-0002-1728-4084. ID Lattes: https://lattes.cnpq.br/8702309601972950. E-mail: [email protected]. 298 Palavras-chave: Direito Humanos; Trabalho; Violências de gênero; Estrutural; ESG. Abstract: The Convention on the Elimination of Violence and Harassment in the World of Work 190 of the International Labor Organization (ILO) recognizes the fundamental and human right of all people to have a healthy work environment free of any forms of violence, especially of gender. The process of formal ratification of this Convention in Brazil began in March 2023. However, to mitigate violent actions based on gender in the workplace, the Brazilian state has adopted other legislative measures at the domestic level. The objective, of this study, from the perspective of International Human Rights Law and based on the deductive methodology and through the documental, legislative and doctrinal collection, bring reflections from the analysis of the regulatory norm NR-05. This norm establishes the Internal Commission for the Prevention of Accidents and Harassment – CIPA – and has been in force in Brazil since March 20, 2023, through MTP Ordinance (Ministry of Labor and Social Security) No. 4,219, of December 20 from 2022. The dogmatic analysis demonstrates that Brazil is still a country that demonstrates a slow path toward achieving gender equality. From the analysis of the context arising from labor relations, the most varied cases of sexism, and moral and sexual harassment are verified, whether in the business sphere or the sphere of public administration, direct or indirect. Such behavior reflects a macho and violent society, denoting a structural and structuring problem in Brazilian society. This scenario goes against the grain of the objectives established by Brazil in the 2030 Agenda, in particular, SDG 5. The challenge launched by the United Nations requires a change in the behavior of Brazilian society, including in the labor context, with the adoption of good practices in the corporate environment. Therefore, the investigation discusses the application of NR-05 at the local level and the importance of formally ratifying ILO Convention 190, as a way of also complying with international standards. However, in this study, it is presented as a partial result that, although NR-05 has a wide scope at the local level, obliging private companies, public institutions, and bodies of the Brazilian public administration, it is questioned about its transforming potential in a structural problem: gender violence. Finally, the study proposes to carry out interdisciplinarity with theoretical references in the areas of International Human Rights Law, Legal Anthropology, and Sociology, which are fundamental for the investigation proposed here. Keywords: Human Rights; Labor Relations; Gender Violence; Structural; ESG. 1. Introdução A Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho, em vigor desde 25 de junho de 2021 versa sobre Violência e Assédio no ambiente de trabalho. Apesar das 32 ratificações, atualmente, a Convenção está em vigor nos seguintes países: Albânia, Antígua e Barbuda, Argentina, República Central Africana, Equador, El-Salvador, Fiji, Grécia, Itália, Ilhas Maurício (Mauritius), México, Namíbia, Peru, San Marino, Somália, África do Sul, Espanha, Reino Unido (somente a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte) e Uruguai. Todavia, a Convenção também aguarda entrar em vigor num futuro próximo (entre os meses de 299 setembro de 2023 a agosto de 2024) nos seguintes países: Austrália, Bahamas, Barbados, Bélgica, Canadá, Chile, França, Alemanha, Irlanda, Lesoto, Nigéria, Panamá e Uganda.3 Empenhado no combate das violências de gênero, inclusive no âmbito laboral, o Brasil iniciou o processo de ratificação da Convenção 190 no dia 08 de março de 2023, como parte das medidas lançadas pela nova gestão política administrativa do poder executivo federal.4 A despeito da tentativa proposta pelo Brasil na prevenção da prática dessa violência, em especial as praticadas contra a mulher, pode-se questionar sua efetividade se elas ficarem adstritas tão somente sob a análise do contexto legislativo. Ressalta-se que não é o objetivo proposto desse estudo fazer uma análise somente sob o viés dogmático da referida Convenção. Busca-se um olhar interdisciplinar com referenciais teóricos das áreas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, Antropologia e Sociologia Jurídicas. O objetivo da investigação justifica-se pelo fato de compreender as violências de gênero, especificamente, no contexto brasileiro como uma característica estrutural da relação social. Neste sentido, considerando a materialidade do país calcada em uma cultura machista que estabelece hierarquias de poder baseadas no gênero. Por serem tais violências compreendidas como reflexo de uma sociedade machista e violenta, pode-se apontar, por conseguinte, a existência na sociedade brasileira de um problema estrutural e estruturante. Esse sentir, impõe não somente às empresas privadas, corporações, instituições, órgãos da administração pública (direta e indireta) a adoção de boas práticas no âmbito laboral. Por ser um problema que impacta a sociedade como um todo, requer-se um trabalho de cunho educativo também. E aqui, impende ressaltar que a construção de uma mudança de pensamento ou de uma cultura não é feita somente a partir da elaboração de normas jurídicas. A adoção de medidas legislativas faz parte de uma iniciativa importante, principalmente na condução política do estado brasileiro, mas não é o único caminho para se mitigar e reduzir os altos índices de violência de gênero. Portanto, não basta legislar ou tipificar condutas como criminosas, é importante refletir se essas medidas legislativas, por si só, terão efetividade no enfrentamento da violência de gênero no ambiente laboral. Em um esforço teórico, parte-se da necessidade de 3 Consulte os países que ratificaram a Convenção nº 190 da OIT. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:11300:9423821493987::::P11300_INSTRUMENT_SORT:1 . Acesso em: 18 ago. 2023. 4 Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_871030/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10 jul. 2023. 300 compreender a violência de gênero levando a localização geográfica, o tempo e o espaço na qual a análise está inserida. Sem a pretensão de esgotar ou estabelecer uma definição mecânica, compreende-se a violência de gênero no seguinte sentido de “as ações violentas são produzidas em contextos e espaços relacionais e, portanto, interpessoais, que têm cenários societais e históricos não uniformes” (BANDEIRA, 2014, p. 451). E por considerar a dinâmica relacional formadoras de ações violentas, parte-se da centralidade analítica dessas ações demarcadas em diversos campos da vida, por isso, que aponta uma: centralidade das ações violentas incide sobre a mulher, quer sejam estas violências físicas, sexuais, psicológicas, patrimoniais ou morais, tanto no âmbito privado-familiar como nos espaços de trabalho e públicos. Não se trata de adotar uma perspectiva ou um olhar vitimizador em relação à mulher, o que já recebeu críticas importantes,4 mas destacar que a expressiva concentração deste tipo de violência ocorre historicamente sobre os corpos femininos e que as relações violentas existem porque as relações assimétricas de poder permeiam a vida rotineira das pessoas (BANDEIRA, 2014, p. 451). Por isso, o tensionamento dessa categoria de análise a partir do âmbito jurídico possibilita o estabelecimento de fissuras em uma sociedade que normaliza os lugares sociais subalternos determinados pelo gênero. Neste ponto, as reflexões pautadas num vies interdisciplinar podem auxiliar ao cumprimento dos compromissos firmados pelo Brasil, por exemplo com o Objetivo do Desenvolvimento Social (ODS) 5 que visa “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (ONU) relacionando-o com a implementação de medidas eficazes para alcançar a igualdade de gênero no ambiente laboral. Nesse horizonte e dada a importância do enfrentamento da questão – igualdade de gênero – o Poder Judiciário brasileiro, por meio do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, reconhece a importância de dialogar com temas transversais que abordam as assimetrias de gênero. Por isso, problematiza-se na investigação a aplicação da NR-05, da Convenção nº 190 da OIT em vigor desde 25 de junho de 2021, a despeito do Brasil ter iniciado o processo de ratificação dela apenas no primeiro trimestre do ano de 2023. 2. A Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) Pode-se afirmar, que um dos objetivos da Convenção 190 da OIT é auxiliar os estados na promoção da proteção de todos os seres humanos independentemente de raça, credo ou sexo, têm o direito de buscar seu bem-estar material e seu desenvolvimento espiritual em condições de liberdade 301 e dignidade, de segurança econômica e igualdade de oportunidades, na prevenção e na proibição da violência e do assédio no ambiente laboral baseados em gênero.5 A Convenção, que possui 20 artigos, propõe aos Estados, inicialmente, a construção de consenso quanto a denominação semântica do que pode ser compreendido como “violência e assédio”. Porém, nesse breve estudo não se pretende fazer uma análise dogmática de todos os artigos da Convenção. O que se verá, por conseguinte, é uma análise concisa que pode servir a auxiliar na reflexão da abordagem interseccional aqui proposta, com a elaboração de melhores práticas no âmbito laboral, tendo como premissa a realidade sócio brasileira e do próprio âmago sustentado pela Convenção. Assim, por cautela, convém analisar o que realmente e quais atos seriam considerados violentos ou caracterizadoras de assédio. Dessa forma, de acordo com o Artigo 1 da Convenção 190, alínea “a”, o termo “violência e assédio” no mundo do trabalho pode ser aplicado ao único ato isolado ou reiterado, podendo ser inclusive considerado uma ameaça, ou mesmo uma série de comportamentos e práticas inaceitáveis ou ameaças dos mesmos. A conduta é direcionada a impor um resultado prejudicial à vítima, resultante em danos físicos, dano psicológico, sexual ou econômico e inclui violência e assédio de gênero. Quanto ao termo “violência e assédio com base em gênero”, previsto na alínea “b”, impede destacar que o (ou “os”) ato violento ou consistente de assédio são voltados a pessoas em decorrência do gênero, de forma desproporcional, incluindo o assédio sexual. Portanto, dada a compreensão da Convenção quanto a violência e o assédio no mundo do trabalho conclui-se que eles sejam analisados de forma ampla. Todavia, o artigo 1.2. da Convenção excepciona a diferença conceitual permitindo aos estados que “as definições nas leis e regulamentos nacionais podem conter um único conceito ou conceitos separados”. Essa ressalva é importante, em especial, no contexto brasileiro, visto a diferença conceitual na doutrina e na jurisprudência quanto ao assédio moral e sexual, no contexto juslaboral.6 Quanto ao assédio sexual, previsto como crime no Código Penal Brasileiro (art. 5 Cf. Preâmbulo e art. 7º. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/ f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C190. Acesso em: 18 ago. 2023. 6 Importante destacar, que no âmbito laboral, a ocorrência de assédio moral exige, para o Tribunal Superior do Trabalho (corte Suprema em matéria trabalhista no Brasil) a prática de uma série de atos reiterados, condutas abusivas, podendo ter ou não alguma intenção, mas direcionados a violar a integridade física, psíquica ou identitária da pessoa humana, pondo em perigo o seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho. Também aqui, exige-se o vínculo de trabalho, não ocorrendo por exemplo, em relações de prestação de serviço, não albergadas pela Consolidação das Leis do Trabalho. Para mais, confira: https://www.tst.jus.br/documents/10157/55951/Cartilha+ass%C3%A9dio+moral/573490e3-a2dd-a598d2a7- 302 216-A), praticado no ambiente de trabalho, ele deve ter como finalidade quando o(a) constrangedor(a) se vale de sua posição hierárquica ou de influência, para obter por meio da a satisfação sexual de seus desejos.7 De toda sorte, é essencial o processo de ratificação formal da Convenção 190 no âmbito interno para efetivar e dar segurança jurídica quanto à ocorrência dessas condutas. Importante destacar ainda, que o art. 9 da Convenção 190 traz a importância de cada estado membro adotar: “leis e regulamentos que exijam que os empregadores tomem as medidas apropriadas compatíveis com seu grau de controle para prevenir a violência e o assédio no mundo do trabalho, incluindo violência e assédio baseados em gênero e, em particular, na medida do razoavelmente praticável, para: (a) adotar e implementar, em consulta com os trabalhadores e seus representantes, uma política no local de trabalho sobre violência e assédio; (b) levar em consideração a violência e o assédio e os riscos psicossociais associados na gestão da segurança e saúde ocupacional; (c) identificar perigos e avaliar os riscos de violência e assédio, com a participação dos trabalhadores e seus representantes, e tomar medidas para preveni-los e controlá-los; e (d) fornecer aos trabalhadores e outras pessoas envolvidas informações e treinamento, em formatos acessíveis conforme apropriado, sobre os perigos e riscos identificados de violência e assédio e as medidas de prevenção e proteção associadas, inclusive sobre os direitos e responsabilidades dos trabalhadores e outras pessoas envolvidas em relação à política referida na alínea (a) deste artigo.” E nesse contexto, na adoção no âmbito interno de cada estado adotar e implementar medidas eficazes para coibir empresas, instituições, organizações não governamentais, órgãos da administração pública direta e indireta é que passará a tecer breves comentários acerca da NR-05 (norma regulamentadora que disciplina a CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes). Ela sofreu alteração, inclusive na sua nomenclatura, passando, a partir da promulgação da Lei n.º 14.457, de 21 de setembro de 2022, a ser chamada de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio. 6d492e4b2457#:~:text=%C3%89%20uma%20forma%20de%20viol%C3%AAncia,%2C%20fofocas%20e% 20exclus%C3%A3o%20social). Acesso em: 18 ago. 2023. 7 Para o Código Penal Brasileiro há assédio sexual na hipótese de: “Art. 216-A - Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função: Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.” Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 18 ago. 2023. 303 2.1. A Norma Regulamentadora 05 (NR-05) de 08 de junho de 1978 A Lei n.º 14.457, de 21 de setembro de 2022, instituiu o Programa Emprega + Mulheres. Entrou em vigor a partir do dia da sua publicação, mas, permitiu que as alterações insertas no art. 23, fossem implementadas em cento e oitenta dias. O referido art. 23 trouxe mudanças significativas no trato do enfrentamento do assédio moral e sexual no ambiente laboral. Inicialmente, pode-se mencionar a alteração na nomenclatura da CIPA. Por meio Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) nº 4.219, de 20 de dezembro de 2022- o nome que anteriormente era conhecido como Comissão Interna de Prevenção de Acidentes - CIPA, passou a ser Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio. 8 A referida portaria alterou dispositivos na NR-05, considerada o diploma normativo que estabelece diretrizes e requisitos para que as empresas implementem a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes no Trabalho. A partir das alterações impostas pela Lei n.º 14.457/2022 e portarias do MTP, como a retro citada nº 4.219/2022, as questões relacionadas ao assédio moral e sexual são geridas também pela CIPA. A NR-05, item 5.2. prevê amplo campo de aplicação, ou seja, ela deve ser seguida não somente por parte das empresas privadas ou corporações multinacionais com sede no Brasil, mas também, deve ser implementada por órgãos da administração pública direta e indireta, pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pelo Ministério Público, bem como por outras instituições não governamentais e terceiro setor, desde que tenham empregados(as) regidos(as) pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Portanto, de acordo com a NR-05, item 5.3 alínea “j”, a CIPA tem por atribuição “incluir temas referentes à prevenção e ao combate ao assédio sexual e a outras formas de violência no trabalho nas suas atividades e práticas.” Essa obrigação consiste em adotar treinamentos frequentes, não somente para o representante da CIPA, mas estendido a todos os empregados, sendo a carga horária requerida de acordo com o grau de risco referentes à atividade/prevenção ao combate do assédio sexual e de outras formas de violência no trabalho nas suas atividades e práticas. Os níveis de risco e número de empregados no estabelecimento estão previstos no Quadro I- dimensionamento da CIPA. Atualmente, as empresas com mais de vinte 8 A alteração para Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a partir do dia 20 de março de 2023. Para maior aprofundamento consulte a NR-05 e Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP) nº 4.219, de 20 de dezembro de 2022. Disponíveis em: https://pncq.org.br/wp-content/uploads/2020/05/NR-05-COMISSAO-INTERNA-DE-PREVENCAODE-ACIDENTES-E-DE-ASSEDIO-CIPA-200323.pdf e https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portariamtp-n-4.219-de-20-de-dezembro-de-2022-452780351. Acesso em: 18 ago. 2023. 304 empregados, são obrigadas a organizar a CIPA, com o fim precípuo de preservar a saúde do(a) trabalhador(a) com adoção de melhores práticas a fim de propiciar um ambiente sadio. Entretanto, a partir de uma leitura acurada da NR-05, são destacadas que as práticas adotadas pela empresa de um ambiente sadio, poderão ser implementadas somente a fim de se evitar aplicação de sanções. Ou seja, perde-se a oportunidade de estabelecer diálogos francos e que consigam fraturar a estrutura laboral machista. Por isso, na próxima subseção da pesquisa, busca-se estabelecer alguns aportes teóricos para informar o estudo. 2.2. A Violência de Gênero no Âmbito Laboral: por Uma Análise a Partir da Antropologia Jurídica A busca de uma análise que dialoga com outros campos dos saberes se finca na ideia da interdisciplinaridade. Em linhas gerais, parte-se do pressuposto de que a complexidade dos fenômenos analisados requer o diálogo com outros estudos. Por isso, de plano, considera-se a limitação da análise puramente jurídica ou dogmatizada que se torna precária ao não buscar um diálogo interdisciplinar. A partir disso, especial contribuição surge da Antropologia Jurídica posto que tem finalidades e objetos de análises que consideram a complexidade social. Neste sentido, inserese que a Antropologia Jurídica se preocupa com um ordenamento da cultura humana em uma determinada sociedade: antropologia jurídica, mediante a análise dos discursos (orais e escritos), práticas e representações, estuda os processos de juridicização que ocorrem nas diversas sociedades, procurando compreender as lógicas que lhe são subjacentes. Norbert Rouland, por exemplo, sustenta que essa abordagem procuraria realizar um ordenamento da cultura humana em sua generalidade, no que se refere ao domínio do direito, mediante a comparação entre as formas de regulação jurídica de todas as sociedades que se possa observar. É possível situar o surgimento da antropologia jurídica no final do século XIX. Ela se inscreve, portanto, no contexto da expansão imperialista ocidental. É, desse modo, como sublinhava Claude Lévi-Strauss, filha de uma época de violência. Contudo, sua institucionalização no contexto universitário ocorreu ao longo do século XX em momentos variados. No Brasil, a institucionalização da disciplina foi tardia, pouco uniforme e, muitas vezes, inconsistente (VILLAS BÔAS FILHO, 2017, s.p.). Com o objeto de estudo formado pela investigação das violências de gênero a partir do ambiente laboral, depreende-se um importante conceito analítico proveniente dos estudos antropológicos denominado de pilhagem. 305 A concepção de pilhagem, com base nos objetivos da pesquisa, aproxima-se da ideia de que “uma definição bem ampla de ‘pilhagem’ seria a distribuição de recursos praticada pelos fortes à custa dos fracos. O que fazemos, porém, é depurar essa abordagem de questão, de modo que nela sejam incluídas noções de legalidade e ilegalidade” (NADER; MATTEI, 2013, p. 17). Esse saqueamento de recurso acontece com base no gênero, ao passo que há uma economia do cuidado. Em perspectiva numérica tem-se que: A desigualdade econômica também se baseia na desigualdade de gênero e a maioria das pessoas situadas na base da pirâmide econômica são mulheres. A probabilidade de mulheres e meninas estarem em empregos mal remunerados e precários é maior e são elas que assumem a maior parte do trabalho de cuidado não remunerado e mal pago. O modelo de capitalismo dominante explora e impulsiona ativamente crenças sexistas tradicionais que desempoderam mulheres e meninas, ainda que contando com elas para fazer esse trabalho, mas se recusando a valorizá-las por isso (OXFAM, 2020, p. 09). Para além disso, o principal ponto de inflexão do conceito de pilhagem com a análise da realidade, depreende-se que isso se dá por meio da blindagem legal. Ou seja, conforme demonstrou na seção denominada de Norma Regulamentadora 05 (NR-05) de 08 de junho de 1978, tem-se a própria legislação aperfeiçoando-se e remodelando as relações laborais sem, contudo, modificar problemas estruturais e estruturantes da sociedade. No ponto, o Sociologismo Jurídico compreende “as conexões diretas das normas jurídicas com os fatores econômicos, políticos e ideológicos que constituem a realidade social” (SOARES, 2022, E-book). Neste sentido, é importante compreender de qual sociedade estamos estudando. Portanto, trata-se de uma sociedade machista e violenta, denotando um problema estrutural e estruturante do Brasil. Buscando uma proposta dialógica com o tema proposto ressalta-se que, um dos desafios é implementação do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável ODS 5 (Agenda 2030) da Organização das Nações Unidas que visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Neste sentido, especialmente a partir do eixo temático 5. C aponta “adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis” (ONU). Dessa forma, a partir dos resultados parciais dessa pesquisa, verifica-se o mero manejo da legislação sem, de fato, apresentar propostas de rupturas com o machismo no âmbito laboral. 3. Considerações Finais 306 O presente estudo visou apresentar reflexões a partir da análise da norma regulamentadora NR-05 que institui a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio – CIPA – e está em vigor no Brasil desde o dia 20 de março de 2023, por meio da Portaria MTP (Ministério do Trabalho e Previdência) nº 4.219, de 20 de dezembro de 2022. A análise dogmática demonstra que o Brasil ainda é um país de lento caminhar para se alcançar a equidade de gênero. Partindo-se na análise dos dispositivos legais da legislação ao mesmo tempo tensionando com aportes teóricos da Antropologia e Sociologia Jurídicas considerando a realidade brasileira formada no machismo laboral, foram verificados os seguintes resultados parciais: (i) Indispensabilidade da internalização no âmbito jurídico brasileiro da Convenção 190 da OIT; (ii)a busca de uma mudança cultural, por exemplo, de uma empresa com adoção de boas práticas e medidas educativas, especialmente voltadas aos Direitos Humanos; (iii) com efeito, a NR -05 alterada, constitui avanço ao exigir da CIPA nova nomenclatura (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio - CIPA) a adoção de medidas de conformidade (Compliance) para a prevenção das violências praticadas no ambiente de trabalho, como o assédio moral e sexual. Por fim, aponta-se que a temática da violência praticada no ambiente de trabalho merece reflexão e vigilância constante. Referências Bibliográficas BANDEIRA, L.M. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, p. 449–469, maio 2014. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-69922014000200008. Disponível em: https://www.scielo.br/ j/se/ a/QDj3qKFJdHLjPXmvFZGsrLq/#. Acesso em: 18 ago. 2023. BRASIL. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del2848compilado.htm. Acesso em: 18 ago. 2023. BRASIL. NR 5. Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e de Assédio - CIPA. Disponível em: https://pncq.org.br/wp-content/uploads/2020/05/NR-05-COMISSAOINTERNA-DE-PREVENCAO-DE-ACIDENTES-E-DE-ASSEDIO-CIPA-200323.pdf. Acesso em: 18 ago. 2023. BRASIL. Portaria MTP n.º 4.219 de 20 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-mtp-n-4.219-de-20-de-dezembro-de2022-452780351. Acesso em: 18 ago. 2023. ILO. C190. Ratification by country. Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/ normlex/en/f?p=1000:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:3999810. Acesso em: 18 ago. 2023. 307 ILO. C190 - Violence and Harassment Convention, 2019 (No. 190) Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO _CODE:C190. Acesso em: 10 jul. 2023. MATTEI, U; NADER, L. Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. OIT BRASIL. OIT saúda governo do Brasil por iniciar processo de ratificação das Convenções 190 e 156. Brasília, 08 março de 2023. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_871030/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10 jul. 2023. ONU. Organização das Nações Unidas. Transformando nosso mundo: a agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2015. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br>. Acesso em: 18 ago. 2023. OXFAM GB para a Oxfam Internacional sob o ISBN 978-1-78748-541-9 em janeiro de 2020. DOI: 10.21201/2020.5419. Oxfam GB, Oxfam House, John Smith Drive, Cowley, Oxford, OX4 2JY, Reino Unido. Tradução Master Language Traduções e Interpretações Ltda., Brasília - Brasil, 2020. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/wpcontent/uploads/2021/04/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PT-BR_sumario_ executivo.pdf. Acesso em: 18 de ago. 2023. SOARES, R. M. F. Sociologia e Antropologia do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. Ebook. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Ato Conjunto nº 8, de 21 de março de 2019. Disponível em: https://www.tst.jus.br/documents/10157/24821444/CSJT+e+TST++Ato+Conjunto+n%C2%BA+8,+de+21.3.2019,+DEJT+de+21.3.2019/51eb91c5-76932433-0acd-1485cfdc27e2?version=1.0. Acesso em: 18 ago. 2023. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral: Pare e Repare, por um ambiente de trabalho + Positivo. Brasília, 2019. Disponível em: https://www.tst.jus.br/documents/10157/55951/Cartilha+ass%C3%A9dio+moral/57349 0e3-a2dd-a598-d2a76d492e4b2457#:~:text=%C3%89%20uma%20forma%20de%20viol%C3%AAncia,%2C% 20fofocas%20e%20exclus%C3%A3o%20social. 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Conclusões; Referências bibliográficas Resumo: A dignidade da pessoa humana tem-se afigurado um princípio basilar da democracia e, bem assim, do Processo Penal, muito embora seja um conceito indeterminado. Confrontados com a aludida indeterminação, podemos facilmente inferir o que não é digno da pessoa humana. A evolução dos meios de prova e dos meios de obtenção de prova em Processo Penal tem convergido, no sentido de assegurar os direitos do ser humano, pela exaltação da dignidade da pessoa humana. Deste modo, e neste contexto, é importante compreender o que a Inteligência Artificial poderá introduzir no Processo Penal, já que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente para decidir, exceto, claro, quando a lei dispuser de modo diferente. Contudo, alerte-se para o facto de que a Inteligência Artificial, no papel de julgador, poderá não valorizar questões de ordem social, bem como outras, tais como o arrependimento e demais circunstâncias atenuantes. Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana; Prova Direta; Prova Indireta; Processo Penal Português. Abstract: The dignity of the human person has appeared to be a basic principle of democracy and, as well, of Criminal Procedure, although it is an indeterminate concept. Confronted with the alluded indetermination, we can easily infer what is not worthy of the human person. The evolution of the means of proof and the means of obtaining evidence in Criminal Procedure has converged, in the sense of ensuring the rights of the human being, by exalting the dignity of the human person. In this way, and in this context, it is important to understand what Artificial Intelligence can introduce in the Criminal Procedure, since the evidence is assessed according to the rules of experience and the free conviction of the competent entity to decide, except, of course, when the law provides differently. However, be alert to the fact that Artificial Intelligence, in the role of judge, may not value social issues, as well as others, such as regret and other extenuating circumstances. Keywords: Dignity of human person; Direct proof; Indirect proof; Portuguese Criminal Procedure. Introdução Licenciado e Mestre em Solicitadoria. Pós-Graduado em Relações Internacionais e Diplomacia Política e Económica. Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais (Universidade Portucalense, Infante D. Henrique). Email: [email protected] . 2 Licenciada, Mestre e Doutora em Direito. Professora Adjunta (ESTG do Politécnico do Porto). Email: [email protected] . 1 309 Estruturado ao longo dos tempos, a dignidade da pessoa humana tem sido princípio basilar da democracia e, bem assim, do Processo Penal, muito embora seja um conceito indeterminado. Confrontados com essa indefinição, podemos facilmente indicar o que não é digno da pessoa humana. Neste conspecto e não dispersando do tema a que nos propusemos tratar, a prova no Código Processo Penal português proíbe, no seu artigo 126, métodos que atentem contra a livre vontade da pessoa, por exemplo tortura e coação, para obtenção da prova. Note-se que a evolução dos meios de prova e dos meios de obtenção de prova convergiram-se para assegurar os direitos do ser humano, pela exaltação da dignidade da pessoa humana. Torna-se, assim, importante compreender o que a Inteligência Artificial poderá introduzir no Código de Processo Penal afinal, e mais uma vez só correlacionando a questão da prova, não nos podemos esquecer que esta é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127 do Código Processo Penal). Julgamos ser sensato que o recurso à Inteligência Artificial nas questões a dirimir no âmbito Penal e Processual Penal não poderá ocorrer em todas as etapas do processo ou até, a ocorrer, apenas numa fase puramente inicial. A Dignidade da Pessoa Humana São Tomás de Aquino (nasc.1225/fal.1274) teorizou que “a pessoa é uma substância individual de natureza racional”, feito à imagem e semelhança de Deus o que, por conseguinte, implica que a dignidade seja inerente ao homem, como espécie. Com o desenvolvimento laico do pensamento jusnaturalista, nos séculos XVII e XVIII, impulsionadas também por Immanuel Kant (nasc.1724/fal.1804), as ideias relativas à dignidade da pessoa humana principiam por ganhar relevo na sociedade. Kant sustentava a ideia de que todo e qualquer ser humano é um fim em si mesmo e de que o valor humanista deveria ser o fundamento indiscutível do Estado. Desta ideia resulta que tudo teria um preço ou dignidade. Nesta assunção, admitiremos que aquilo que tem um preço é substituível e tem equivalente; por sua vez, aquilo que não admite equivalente, possui uma dignidade. Em resultado, as coisas possuem preço; os indivíduos possuem dignidade. Ainda segundo a filosofia de Kant, o preço só pode ser atribuído àquilo que pode ser utilizado como “meio”. Assim, tudo o que possui dignidade é impossível de ser quantificado, 310 pois a dignidade humana é um “fim” em si mesmo e não uma coisa que possa ser utilizada como um “meio” para atingir determinada finalidade. A conceção kantiana da dignidade afasta qualquer espécie de disponibilização da pessoa humana. Assim, a dignidade humana seria violada sempre que a pessoa fosse tratada como coisa, ou seja, quando perdesse o “status” de sujeito para ser objeto. Deste modo, a dignidade humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo o tratamento degradante e discriminativo, bem como assegura condições materiais mínimas de sobrevivência. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagra a dignidade do ser humano logo no início do seu preâmbulo, nos seguintes termos: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. A dignidade existe por si, independentemente de ser reconhecida e tutelada pelos direitos, pelo que a Declaração Universal dos Direitos do Homem vem cimentar de forma indelével o seu “eu”. Desta forma, encontra-se prescrito, no artigo 1.° da aludida Declaração, o seguinte: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” Notemos que já São Tomás de Aquino se reportava à natureza racional do ser humano. O Tribunal de Justiça da União Europeia, através do Acórdão 3 de 9 de Outubro de 2001, referente ao Processo n.° C-377/98 (Países Baixos contra Parlamento Europeu e Conselho, Colect. 2001, p. I-7079, nos pontos 70 a 77), tendo presidido ao julgamento G. C. Rodríguez Iglesias, “confirmou que o direito fundamental à dignidade da pessoa humana faz parte do 3TJUE.Processo C-377/98 (Países Baixos contra Parlamento Europeu e Conselho), disponível online em: https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?nat=or&mat=or&pcs=Oor&jur=C%2CT%2CF&num=C377%252F98&for=&jge=&dates=&language=pt&pro=&cit=none%252CC%252CCJ%252CR%252C2008E %252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252Ctrue%252Cfalse%252Cfalse&oqp= &td=%3BALL&avg=&lg=&page=1&cid=308758. 311 Direito da União”4, muito embora os nossos tribunais tendam a ser parcimoniosos e prudentes na sua definição5, conforme constataremos mais adiante. Se atentarmos ao descrito no preâmbulo da Constituição da Republica Portuguesa, constatamos que, glorificando o povo português e bem assim o movimento das forças armadas, se elege como um dos pilares principais a liberdade do individuo. Na nossa opinião, assente em pilares de direitos e, também, com a mesma dureza, de deveres pois só com a junção destes pilares se chega à verdadeira liberdade. Liberdade esta que, não a afastando como componente da dignidade, deve ser estruturada por forma a não inferir na liberdade do próximo. Nas palavras do filosofo HERBERT SPENCER: “A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. Nas palavras de José Souto de Moura6: “A dignidade da pessoa humana significa o valor da pessoa pelo simples facto de ser uma pessoa. E este é um valor jurídico que se sobrepõe a todos os demais. Trata-se do respeito e apreço por cada pessoa concreta, individualmente considerada, sobreposto a interesses colectivos ou à consideração de valores abstractos”. É impossível interpretar esta expressão sem considerarmos que a pessoa humana, eticamente falando, só é completa se, além de usar dos direitos que lhe são concedidos, também respeite os deveres para com os seus pares. O Homem só é verdadeiramente livre e pleno de si se, vivendo na abundância dos seus direitos, igualmente respeitar os direitos dos seus pares e desta forma respeitar os deveres que lhe são imputados. Aqui chegados, julgamos pertinente transcrever o artigo 1.° da Constituição da República Portuguesa, que consagra o seguinte: “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.” 4“A dignidade do ser humano constitui não só um direito fundamental em si mesma, mas também a própria base dos direitos fundamentais. Já a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrava a dignidade do ser humano no seu preâmbulo: `Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo`. No seu acórdão de 9 de outubro de 2001, no processo C-377/98, Países Baixos contra Parlamento Europeu e Conselho, Colect. 2001, p. I-7079, nos pontos 70 a 77, o Tribunal de Justiça confirmou que o direito fundamental à dignidade da pessoa humana faz parte do direito da União. Resulta daí, designadamente, que nenhum dos direitos consignados na presente Carta poderá ser utilizado para atentar contra a dignidade de outrem e que a dignidade do ser humano faz parte da essência dos direitos fundamentais nela consignados. Não pode, pois, ser lesada, mesmo nos casos em que um determinado direito seja objecto de restrições.” Jornal Oficial da União Europeia C 303/17 - 14.12.2007”. Consultado em 14 de dezembro de 2022. Disponível em:https://fra.europa.eu/pt/eu-charter/article/1-dignidade-do-ser-humano?field_fra_country_target_ id%5B0%5D=995&page=7 5“O Tribunal tem sido prudente, e parcimonioso, na avaliação que faz da densidade normativa ou do «alcance» prescritivo do princípio.” - Tribunal Constitucional Português, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitucional – Relatório da Delegação Portuguesa, Roma, 2007. Disponível online: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/conteudo/files/textos/textos0202041.pdf 6 Cfr. https://observador.pt/opiniao/dignidade-humana-natureza-humana-eutanasia/ . 312 Acresce que, analisando o Relatório da Delegação Portuguesa do Tribunal Constitucional7, constatamos o cuidado que a doutrina portuguesa tem tido na “definição do conteúdo do princípio, quer quanto à avaliação da sua densidade normativa ou do seu «alcance» prescritivo”. Cremos que é unificador dizer que se trata de um princípio estruturante da nossa Constituição, enraizado em cada direito, liberdade ou garantia; na nossa opinião, encontramse alicerçados na Constituição. De notar que, tal relevo conferido aos direitos, liberdades e garantias vem a ser, em boa verdade, o relevo atribuído na organização da sociedade e por sua vez na organização do Estado. Em suma, afirmamos categoricamente que a dignidade da pessoa humana se encontra de tal forma enraizada em cada ser, sendo de tal forma objetiva que, na hipótese de lhe ser arbitrariamente diminuído algum direito ou liberdade, o ser humano continua a ser digno. Quer isto dizer que, independentemente da sua situação perante a república ou por força da vontade popular, a dignidade fará sempre parte do seu “eu”. Nesta sequência, podemos afirmar que a objetividade do princípio “fundamental” da dignidade da pessoa humana ganha forma com os princípios constitucionais e com os direitos fundamentais. Consideramos, portanto, que a dignidade é um bem tutelado pela Constituição da República Portuguesa e, nesse âmbito, poderemos constatar que a dignidade não pode ser limitada sequer em nome de outros direitos, sendo que cada pessoa deve respeitar a dignidade dos restantes, num estado democrático, pois foram definidas pelo legislador (constituinte e ordinário) normas reguladoras da vida em sociedade. Se assim não fosse, viveríamos em anarquia. A Constituição da República Portuguesa não consagra uma definição unívoca de dignidade, sendo admissível defender que, vivendo nós numa sociedade livre e democrática, vivemos um debate aberto, em permanência, onde cabem as opiniões de todos e de cada um nesse “entendimento” do que é a dignidade da pessoa humana. Nesta senda, atrevemo-nos a pensar que a dignidade da pessoa humana se encontra caracterizada, sendo que toda a leges verte sobre essa ideia, no sentido da defesa da sociedade, através da normatização do sujeito em prol da sua elevação enquanto ser racional. Por outra via, a dignidade da pessoa humana é tao “abstratamente abrangente” que nos é impossível sintetizar uma definição, permitindo-nos somente teorizar sobre este ideal. Tribunal Constitucional Português, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitucional – Relatório da Delegação Portuguesa, Roma, 2007. Disponível online: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/conteudo/files/textos/textos0202041.pdf 7 313 A Prova8: Meios de Prova e Meios de Obtenção de Prova O Código de Processo Penal encerra, no Livro III – Da Prova, mais concretamente nos Títulos II e III, os meios de prova e meios de obtenção de prova, que aqui iremos aprofundar. Principia o seu artigo 124.° por referir que constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis. Os artigos 125.° e 126.° estipulam que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei e os métodos proibidos de prova, respetivamente. Os meios de prova encontram-se elencados no Titulo II do Código de Processo Penal (artigos 128.° a 170.°), onde se estabelece um conjunto de meios de prova, designadamente: prova documental (artigo 128.° e ss); declarações do arguido, do assistente e das partes civis (artigo 140.° e ss); prova por acareação (artigo 146.°); prova por reconhecimento (artigo 147.° e ss); reconstituição do facto (artigo 150.°); prova pericial (artigo 151.° e ss); e prova documental (artigo 164.° e ss). Os meios de prova típicos, isto é, os que se encontram tipificados na lei são regulados pelo regime a que estão acometidos. Contudo, e como já referido, o artigo 125.° permite extrapolar os meios de prova típicos, pelo que considerá-los-emos como meios de prova atípicos9, desde que estes não sejam proibidos por lei, isto é, não ferindo os princípios constitucionais nem o previsto pelo artigo 126.°, que nos apresenta os métodos proibidos por lei. Neste seguimento, podemos afirmar que os meios de prova, no decurso da fase de instrução, são observados como indicadores na orientação da investigação. Terminado o Titulo II do Código de Processo Penal, que refere os meios de prova, inicia-se o elenco dos meios de obtenção de prova – Titulo III, que são os seguintes: dos exames (artigo 171.° e ss); das revistas e buscas (artigo 174.° e ss); das apreensões (artigo a realidade dos factos que interessa conhecer para aplicação do direito e alcançar um juízo de certeza sobre esses factos, ou seja, a verdade. A verdade é a correspondência do juízo formado com a realidade. O juízo humano é, porém, falível, e daí que a certeza do juízo possa ser uma certeza absoluta, objectiva, ou meramente subjectiva, uma convicção. Distingue-se efectivamente o juízo histórico do juízo lógico. No juízo lógico é pressuposta a certeza das premissas, a conclusão do silogismo é exacta. O juízo histórico respeita à verificação de factos e por isso mesmo pode conduzir a resultado inseguro, é uma incerteza, não absoluta, mas relativa. A razão está em que o juízo lógico é hipotético: dá como verificadas as premissas e incide sobre a relacionação daquelas com a conclusão. O juízo histórico incide sobre as próprias premissas, sobre uma realidade. Daqui deriva que a “demonstração da realidade” seja então equivalente à demonstração da verdade que o juízo humano pôde alcançar; é uma certeza, que pode ser uma opinião de certeza, uma convicção. A livre convicção do juiz não pode significar, nem significa, a substituição da certeza objectiva como finalidade da prova por uma convicção subjectiva, incondicionada, e desligada de regras legais, de regras de lógica baseadas na experiência, que formam o conteúdo de um direito probatório substantivo.” In FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. “Curso de Processo Penal”. Volume 1. Lisboa. Edições Danúbio. 1986. p. 204. 9“Provas atípicas são apenas os instrumentos probatórios efectivamente não previstos pelo legislador e não formas irrituais de aquisição de meios de prova já disciplinados no tecido processual.” in SILVA, Sandra Oliveira, “Legalidade da Prova e Provas Proibidas” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 4, 2011, pp. 545 – 591, disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/133333/2/49978.pdf 8“Demonstrar 314 178.° e ss) e das escutas telefónicas (artigo 187.° e ss). Os meios de obtenção de prova têm por escopo auxiliar na identificação dos indícios da prática de crime, compreendendo-se como instrumentos que coadjuvam as autoridades judiciárias responsáveis pela investigação e consequente acolhimento dos meios de prova. Como resultado desta breve exposição, verificamos a relação entrelaçada que existe entre os meios de prova e os meios de obtenção de prova, visto que sem a existência dos meios de obtenção não se poderá verificar a recolha dos meios de prova.10 Subsume-se então a dependência dos meios de prova aos meios de obtenção de prova.11 Classificação das Provas em Processo Penal Português12 Prova Direta A prova direta13, muito sinteticamente, refere-se diretamente ao tema da prova ou, melhor dizendo, aos factos a provar que sejam relevantes para a boa decisão. 10Germano Marques da Silva ensina que, também reforçado pela jurisprudência, no tocante ao modo e o momento de aquisição destes meios de prova, é de referir que os meios de obtenção de prova se caracterizam por se realizarem, “em regra, nas fases preliminares, sobretudo no inquérito”, pois, uma das finalidades do inquérito é “descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação” in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto n.° 63/10.0P6PRT.P1, de 17-07-2015, cujo relator é Castela Rio. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b1cd7e8c402ecf7c80257fa700471283?Op enDocument 11“Germano Marques da Silva distingue meios de obtenção de prova dos meios de prova, quer num plano lógico, quer num plano técnico- processual. No que concerne no plano lógico, refere Germano Marques da Silva, que quer as declarações das testemunhas, quer as declarações dos peritos, bem como as declarações dos arguidos e ofendidos, e até mesmo os documentos, se caracterizam pelas suas aptidões. Essas aptidões, através da perceção, pretendem formar, assim como fundamentar um juízo. O mesmo não acontece com os meios de obtenção da prova que, no plano lógico, não pretendem formar e fundamentar um juízo, mas sim obter coisas ou declarações que tenham aptidão probatória. Já no que diz respeito ao plano técnico-processual, entende o mesmo autor que a distinção entre meio de prova e meios de obtenção de prova pode ter uma particular relevância no momento da sua produção no processo.” COUTINHO, Marta Alexandra Carvalho. “Meios de prova e meios de obtenção prova que coloquem em causa o direito ao silêncio do arguido”. (Dissertação de Mestrado). Universidade Lusíada do Porto. 2014. Disponível em: https://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/1948/1/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20de%20mestrado.pdf 12 “I – Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.” Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto n.° 400/13.6PDPRT.P1, de 18-03-2015, cujo relator é Neto de Moura. Disponível em:https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/400-2015104212975 13“(…) como a objeto imediato, ao delito, mesmo em um dos seus mínimos elementos ou consistir no próprio elemento delituoso, sendo chamada, agora, de prova direta” in MALATESTA, Nicola Framarino dei.” A lógica das provas em matéria criminal.” Campinas. Servanda. 2013, p.173 315 Como enunciadores preferenciais da prova direta 14, podemos elencar a prova testemunhal e a prova documental. Contudo, neste âmbito, devemos suscitar reservas. No caso da prova documental, preconizada no capitulo VII do Código de Processo Penal, a prova direta no conspecto de se referir aos factos a provar, poder-se-á considerar como prova inequívoca os factos materiais constantes de documento autentico ou autenticado enquanto, citando o artigo 169.° in fine, “(…) a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.”. Outro aspeto a ter em consideração é no tocante à prova testemunhal. Se em outros tempos este meio de prova era suficiente se proferida por homens de determinado extrato social, no estado de direito democrático em que vivemos, claramente consideramos válida mas (…) que é uma prova falível pois, a prova testemunhal pode acomodar duas vertentes; a direta que aqui tratamos e a indireta. Direta pois a testemunha pode indicar que presenciou – logo considerada prova direta, porém, a testemunha pode indicar que “viu o arguido com bastante dinheiro mas desconhece a proveniência” – logo terá de ser considerada como prova indireta (tratada no ponto seguinte).15 Na prova direta, a conclusão é imediata e objetiva, resultando apenas da afirmação. No resultado prático que apresentamos sobre a prova direta, denotamos que, apesar de determinada testemunha indicar “ter visto in loco”, não pode a mesma ser bastante para aferir responsabilidades; temos antes de considerar que a mesma tem de ser acompanhada por mais substância. Não podemos esquecer que a mente humana, face a potenciais impactos traumatizantes que atingem o subconsciente, pode provocar distorções na capacidade de ajuizar o que de facto presenciaram, isto é, podem, as testemunhas, ter presenciado determinada ocorrência parcialmente e a mente, fruto da imaginação e da necessidade de concretizar determinada realidade, formular os aspetos em falta para ter uma versão consolidada do ato parcialmente presenciado. Sem prescindir, cremos que a prova aqui em causa deve ser valorada apesar da respetiva debilidade; para tal, é fulcral a experiencia e arte de interrogar para assim deslindar qual a parte vivenciada e a parte imaginada. Nesta elaboração, temos de a contemplar como meio de prova e conseguir extrair todo o conteúdo bastante para atender aos factos a provar. AGUILAR refere: “Por tanto, las pruebas directas se ven ampliadas, incluyendo testimonios, documentos o dictámenes de peritos, entre otros, siempre que versen sobre el hecho que se quiere probar, es decir, son “medios de prueba que no son el mismo hecho por probar [como lo exige la clasificación anterior], pero que lo demuestran directamente o recaen directamente sobre este” (CORDÓN AGUILAR, Julio César. Prueba indiciária y presunción de inocencia en el proceso penal. 2011” in GOMES, Márcio Schlee. “A PROVA INDICIÁRIA NO CRIME DE HOMICÍDIO: LÓGICA, PROBABILIDADE E INFERÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA SENTENÇA PENAL” (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Direito Universidade de Lisboa. 2014. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/19891/1/ulfd130284_tese.pdf 15“Não existe prova testemunhal direta, porquanto ninguém presenciou os factos.” - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora n.° 243/18.0JAFAR.E1, de 14-04-2020, cujo relator é Ana Bacelar Cruz. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/69f5abc2f39f8e0780258566003a13ee?Op enDocument 14“CORDON 316 Pensemos, agora, na confissão (utilizaremos este meio de obtenção de prova para demonstrar o modus operandi desde a era do Imperio Romano até à atualidade) como prova direta. Esta prova foi outrora aclamada como prova rainha, pois se o arguido participou diretamente nos factos, ninguém melhor do que ele para os confirmar e esclarecer nos aspetos que se acharem por necessários. Todavia, na atualidade, não devemos aceitá-la por si só. Recuando à era do Império Romano, este meio de prova, prova direta, era geralmente considerada prova bastante, admitindo-se mesmo o recurso à tortura para a conseguir. Posteriormente, na Idade Média, fortemente influenciada pelo catolicismo, esta passou a ser encarada como possível manifestação de arrependimento, mantendo-se a exigência de ser obtida a qualquer custo. Na Constitutio Criminalis Carolina, fruto da evolução da interpretação, ainda com o exemplo deste meio de prova, a confissão era vista como um excelente meio de prova, mas, concomitantemente, impunha ao juiz que este se encalcasse para alcançar a pretendida confissão, pelo que não seria considerada como prova única. Terminando com o exemplo da confissão como meio de prova, por nós arrolado, e com base no artigo 344.° do Código de Processo Penal, por forma a melhor caracterizá-la e demonstrando a sua evolução, a lei prescreve específicos pressupostos, por forma a este tipo de prova ser válido. Vejamos que, a todo o tempo, o arguido pode declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados. Não obstante, o julgador, sob pena de nulidade, deve questionar se o arguido o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas16, demonstrando, com este exemplo, a franca evolução que o processo probatório tem sofrido Prova Indireta ou Indiciária A prova indireta, cuja admissibilidade em processo penal não se questiona, pressupõe que a factualidade conhecida permite adquirir ou alcançar a realidade de um facto não diretamente demonstrado.17 A prova indireta refere-se a factos diversos do tema da prova; uma confissão que se diz integral e sem reservas, o Tribunal, se a aceita, tem de aceitar a veracidade dos factos constantes da acusação sem lhe ser lícito discutir a prova, e aplicar a lei aos mesmos. II-Se na apreciação que o Tribunal fez da prova excluiu a confissão, dando como como não provado facto que havia sido confessado por confissão integral e sem reservas, esse desaproveitamento de meio de prova, por si só, vicia o resultado do processo probatório, configurando erro notório na apreciação da prova (…).” In Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa n.° 329/06.4TACLD.L1-3, de 15-01-2014, cujo relator é Laura Goulart Maurício. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/-/1A19F7F26205DC88 0257CFD0046B958 17Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra n.° 174/08.2GASPS.C1, de 20-09-2017, cujo relator é Helena Bolieiro. Disponível em: 16“I-Feita 317 Cavaleiro de Ferreira advoga que a “A prova indireta (…) reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova”18 bem assim, espelhado na jurisprudência, esta denota a importância deste tipo de prova e bem como a sua modalidade. Em termos práticos, veja-se que, ocorrendo um facto demonstrado através de factos diversos do tema da prova, e associando-se à regra da experiência, à regra da ciência ou regra de sentido comum, estaremos perante uma prova indiciária. Desta forma, este facto indiciante, irá permitir a resultante de um facto consequência em virtude da referida ligação racional e lógica19. O funcionamento da lógica e das presunções, tantas vezes referidas pelo Senhor Professor Doutor Germano Marques da Silva, bem como as máximas da experiência, é transversal a toda a teoria da prova, iniciando-se no elemento subjetivo do ilícito até à valoração da prova direta retirada do testemunho. Não podemos esquecer-nos que a arte do interrogatório perpassa a natureza do Direito, pois este engenho só se adquire pela vivência, pela experiência e indelevelmente pelo enquadramento na sociedade. A Constituição Criminal Carolina da Alemanha, conforme relacionado pelo Conselheiro José António dos Santos Cabral, é considerada como o primeiro código penal da Idade Média, realizando a primeira tentativa de regulação formal da prova indiciária muito embora sendo-lhe negado a capacidade ou suficiência para fundamentar uma condenação. “A mesma prova por indícios justificava que, com base na sua existência, o juiz recorresse à tortura do suspeito para provocar a confissão, que, na época, era considerada a rainha de todas as provas (regina probatorum) e, uma vez obtida, constituía prova plena. Sem embargo, foi a supressão da tortura como método de prova que atribuiu à prova indiciária o seu valor como meio de convicção autónomo”20. Esta supressão verificou-se com o advento do iluminismo e do respeito pelos direitos, liberdades e garantias e pela dignidade da pessoa humana próprio da conceção liberal do Estado. Conforme abordado em aula, este advento veio atribuir ao arguido, que deixou de ser considerado um mero objeto do procedimento e passou a ser reconhecido como verdadeiro sujeito processual, dotado de efetivos direitos e garantias constitucionais. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5b4178016c32ce2a802581a3003e4845?O penDocument 18 FERREIRA, M.C.. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1981. p. 289. 19“O indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-juridico intelectual necessário antes que se gere impunidade” Cfr. FERRANDIZ, Leonardo Prieto-Castro e HEREDIA, E.G.C.F..”Derecho procesal penal”. 3.° ediciòn. Editores Tecnos. 1987. p.252. 20 CABRAL, J.A.S.. “A VALORAÇÃO DA PROVA NO ÂMBITO DA CRIMINALIDADE ECONÓMICO-FINANCEIRA, EM ESPECIAL A PROVA INDIRETA E AS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM “. Disponível em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=2Q2jAFdx_c4%3D&portalid=30 318 A partir da década de 90, séc. XX, começou a transparecer ou a haver uma melhor perceção e, por consequência, um melhor entendimento de novos tipos de criminalidade, como é o caso da criminalidade económica e financeira. Esta tipologia de crimes convoca uma forma de investigação diferente, de natureza mais técnica, pois carece de outros meios e, devido à sua especificidade, os indícios são fatores essenciais para descodificar situações ambíguas, ou, numa outra perspetiva, derivam da espantosa evolução que se verificou na área da investigação criminal, e que vão desde o ADN até às mais elaboradas tecnologias. Neste conspecto, reconhece a jurisprudência o seguinte: “A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios. II - Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura”21. Germano Marques da Silva acentua, precisamente, que a prova deve ser vista “enquanto meio ou actividade para produzir um determinado resultado (meio de prova)”, e como “o próprio resultado ou juízo sobre os factos (resultado probatório)”. 22 Conclusões No Direito Processual Penal, entre prova direta e prova indireta ou indiciária: respetivamente, aquela incide diretamente sobre o facto probando, enquanto a outra incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, a partir de deduções e induções e com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar. Embora a nossa lei processual penal não faça qualquer referência a requisitos especiais, em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, terá que ser sempre devidamente fundamentada. A prova indireta ou indiciária não é um “minus” relativamente à prova direta. Pelo contrário, pois se é certo que na prova indireta intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. 21Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 07P4588, de 12-09-2007, cujo relator é Armindo Monteiro. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f37caa1aad 3423c98025 73780051acd3?OpenDocument 22SILVA, Germano Marques da. “Curso de Processo Penal”. Vol. II. 2.° Edição. Editorial Verbo. 1993. p. 78. 319 No entanto, a prova indireta exige um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis.”23 De acordo com a doutrina de Germano Marques da Silva, “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.24 Neste contexto, “[a]cresce que a distinção entre prova direta e indireta não se baseia num predicado epistemológico – a idoneidade ou o valor do meio de prova, mas num predicado lógico – a relação entre a prova e o facto. A distinção justifica-se, essencialmente, por razões de comodidade analítica. Possui ainda a virtude metodológica de permitir discriminar processos inferenciais de complexidade diversa, na medida em que a prova indireta implica, por natureza, uma cadeia de raciocínio entre o facto probatório e o facto probando, ao passo que a prova direta do facto probando decorre imediatamente da adesão do julgador ao facto probatório.” 25 Poderemos então imaginar que a Inteligência Artificial no papel de julgador, com o algoritmo desenhado para a aplicação objetiva na elaboraçao de sentenças mediante o cumprimento dos pressupostos tipificados poderia não valorizar questões de ordem social, questões como o arrependimento e consequentemente circunstâncias atenuantes. Referências Bibliográficas CABRAL, J.A.S. “A VALORAÇÃO DA PROVA NO ÂMBITO DA CRIMINALIDADE ECONÓMICO-FINANCEIRA, EM ESPECIAL A PROVA INDIRETA E AS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM “. Disponível em: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=2Q2jAFdx_c4%3D&portalid=30 CORDÓN AGUILAR, J.C.. Prueba indiciária y presunción de inocencia en el proceso penal. 2011” in GOMES, Márcio Schlee. “A PROVA INDICIÁRIA NO CRIME DE HOMICÍDIO: LÓGICA, PROBABILIDADE E INFERÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA SENTENÇA PENAL” (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Direito Universidade de 23 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 202/14.2GAPCR.G2. S1, de 08-11-2018, cujo relator é Helena Moniz. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2ec6e74c19ec59a680258344003d2276?Op enDocument 24 Acórdão Tribunal Constitucional N.º 76/2021, Processo n.º 1081/2020, 1.ª Secção, Relator: Conselheiro José António Teles Pereira. Disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210076.html 25 Acórdão Tribunal Constitucional N.º 521/2018, Processo n.º 321/2018, 3.ª Secção, Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro. Disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/content/reserved/ebook_html5/tc_acordaos_0103/401/#zoom= z 320 Lisboa. 2014. Disponível 10451/19891/1/ulfd130284_tese.pdf em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/ COUTINHO, M.A.C. “Meios de prova e meios de obtenção prova que coloquem em causa o direito ao silêncio do arguido”. (Dissertação de Mestrado). Universidade Lusíada do Porto. 2014. Disponível em: https://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/1948/1/Disserta%c3%a7 %c3%a3o%20de%20mestrado.pdf FERRANDIZ, L.P.C e HEREDIA, E.G.C.F.” Derecho procesal penal”. 3.° ediciòn. Editores Tecnos. 1987. p.252. FERREIRA, M, C, de. “Curso de Processo Penal”. Volume 1. Lisboa. Edições Danúbio. 1986. p. 204. MALATESTA, N.F. dei.” A lógica das provas em matéria criminal.” Campinas. Servanda. 2013, p.173 SILVA, G.M. “Curso de Processo Penal”. Vol. II. 2.° Edição. Editorial Verbo. 1993. p. 78. SILVA, S.O., “Legalidade da Prova e Provas Proibidas” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 4, 2011, pp. 545 – 591, Disponível em: https://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/133333/2/49978.pdf TJUE. Processo C-377/98 (Países Baixos contra Parlamento Europeu e Conselho). Consultado em 02 de agosto de 2023. Disponível online em: https://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?nat=or&mat=or&pcs=Oor&jur=C%2CT%2CF&nu m=C-377%252F98&for=&jge=&dates=&language=pt&pro=&cit=none%252CC%2 52CCJ%252CR%252C2008E%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C%252C% 252C%252Ctrue%252Cfalse%252Cfalse&oqp=&td=%3BALL&avg=&lg=&page=1&cid =308758. Jornal Oficial da União Europeia C 303/17 - 14.12.2007”. Consultado em 02 de agosto de 2023. Disponível em: https://fra.europa.eu/pt/eu-charter/article/1-dignidade-do-serhumano?field_fra_country_target_id%5B0%5D=995&page=7 Tribunal Constitucional Português, O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência Constitucional – Relatório da Delegação Portuguesa, Roma, 2007. Disponível online: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/conteudo/files/textos/textos0202041.pdf Acórdão Tribunal Constitucional N.º 521/2018, Processo n.º 321/2018, 3.ª Secção, Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro. Disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/content/reserved/ebook_html5/tc_acordaos_0 103/401/#zoom=z Acórdão Tribunal Constitucional N.º 76/2021, Processo n.º 1081/2020, 1.ª Secção, Relator: Conselheiro José António Teles Pereira. Disponível em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210076.html Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 07P4588, de 12-09-2007, cujo relator é Armindo Monteiro. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003f a814/f37caa1aad3423c9802573780051acd3?OpenDocument Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa n.° 329/06.4TACLD.L1-3, de 15-01-2014, cujo relator é Laura Goulart Maurício. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf//1A19F7FD26205DC880257CFD0046B958 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto n.° 400/13.6PDPRT.P1, de 18-03-2015, cujo relator é Neto de Moura. Disponível em: https://diariodarepublica.pt/dr/ detalhe/acordao/400-2015-104212975 321 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto n.° 63/10.0P6PRT.P1, de 17-07-2015, cujo relator é Castela Rio. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657 f91e80257cda00381fdf/b1cd7e8c402ecf7c80257fa700471283?OpenDocument Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra n.° 174/08.2GASPS.C1, de 20-09-2017, cujo relator é Helena Bolieiro. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/ c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5b4178016c32ce2a802581a3003e4845?OpenDocu ment Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 202/14.2GAPCR.G2. S1, de 08-11-2018, cujo relator é Helena Moniz. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad 9dd8b980256b5f003fa814/2ec6e74c19ec59a680258344003d2276?OpenDocument Acórdão do Tribunal da Relação de Évora n.° 243/18.0JAFAR.E1, de 14-04-2020, cujo relator é Ana Bacelar Cruz. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973 db04f39bf2802579bf005f080b/69f5abc2f39f8e0780258566003a13ee?OpenDocument 322 A Lei 13/2016 de 23 de maio – Uma Análise Jurisprudencial Law 13/2016 of May 23 – A Jurisprudential Analysis Maria de Fátima Gonçalves Braga1 Sumário:1. A casa de morada de família e a especial necessidade de proteção; 2. Da consagração constitucional do direito à habitação; 3. A Lei 13/2016 de 23 de maio; 4. Da impenhorabilidade da casa de morada de família; 5. Da (im)possibilidade de prossecução da execução fiscal requerida pelo credor comum reclamante; 6. Da possibilidade de reclamar créditos na execução comum; 7. Conclusões; 8. Bibliografia Resumo: A proteção da casa de morada de família surge na prossecução da proteção da dignidade da pessoa humana, que se concretiza, além do mais, no direito à habitação. Este é um direito fundamental competindo ao estado desenvolver mecanismos que o protejam e assegurem. Surge assim a Lei 13/2016 de 23.05, a qual vem impossibilitar o estado, na posição de credor exequente, de promover a venda de imóvel onde o devedor executado, tenha fixado a sua habitação própria e permanente. Quais os limites desta impossibilidade, considerada a regra da sustação da execução posterior (art. 794ºCPC)? Em que posição fica o credor que vê a execução comum sustada e a execução fiscal suspensa, pela impossibilidade do estado promover a venda executiva? Surgiram diferentes correntes jurisprudenciais, tomando-se aqui posição no sentido da impossibilidade de venda da cas de morada de família no processo de execução fiscal ser absoluta, independentemente da natureza do credor que a promove, tendo a sua suspensão como efeito a prossecução da execução comum desaplicando-se o n.º2 do art. 794º do CPC. Mantém-se a possibilidade do credor tributário reclamar créditos na execução comum, assim mantendo este crédito a sua posição face aos demais créditos do executado, garantindo-se a obtenção de receita pública, essencial ao funcionamento do estado. Palavras-chave: casa de morada de família; penhora; venda; execução fiscal; execução comum. Abstract: The protection of the family home arises in the pursuit of the protection of the dignity of the human person, which materializes, moreover, in the right to housing. This is a fundamental right and it is incumbent upon the state to develop mechanisms that protect and ensure it. Thus arises Law 13/2016 of 23.05, which makes it impossible for the state, in the position of executing creditor, to promote the sale of property where the executed debtor has fixed his own permanent home. What are the limits of this impossibility, considered the rule of suspension of subsequent execution (art. 794ºCPC)? What is the position of the creditor who sees the common execution suspended and the tax execution suspended, due to the impossibility of the state to promote the executive sale? Different jurisprudential currents have emerged, taking a position here in the sense that the impossibility of selling the family home in the tax enforcement process is absolute, regardless of the nature of the creditor that promotes it, with its suspension having the effect of continuing the common enforcement-disregarding n.º 2 of art. 794º of the CPC. The possibility remains for the tax creditor to claim credits in the common execution, thus maintaining this credit in its position in relation to the other credits of the debtor, guaranteeing the obtaining of public revenue, essential to the functioning of the state. Doutoranda em Ciências Jurídico-civilísticas na Universidade Portucalense; Licenciada em Direito; Mestre em Direito – Ciências Jurídico-Administrativas e Tributárias; Juiz de Direito; e-mail: [email protected] 1 323 Keywords: family home; garnishment; sale; fiscal execution; common execution. 1. A Casa de Morada de Família e a Especial Necessidade de Proteção A proteção à família, núcleo natural e fundamental da sociedade, resulta de diplomas essenciais de direitos humanos, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 16º n.º3), bem como a proteção da dignidade da pessoa humana, concretizada no direito a um “padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família (…) habitação (…)” - art. 25º, n.º1 daquela mesma Declaração. Densificando o conceito de casa de morada de família, recorremos a Guilherme de Oliveira2 que a associa à residência da família, escolhida pelos cônjuges, segundo o princípio da igualdade entre os mesmos, de comum acordo, que pode ser expresso ou tácito. Uma vez escolhida a residência da família será onde ambos os cônjuges têm salvo motivo ponderoso em contrário, obrigação de viver, é onde se dá cumprimento ao dever de coabitação. Acrescenta Diogo Leite de Campos3, que a casa de morada de família “é um bem muito importante para a correta estruturação e estabilidade da unidade familiar”. Em anotação ao art. 1673º do CC, norma que dispõe sobre a “residência da família”, diz-nos Nuno de Salter Cid4 que, apesar de não haver definição legal de casa de morada de família, podemos dizer tratar-se do “local onde se realiza ou deve realizar-se a vida familiar” ou, ainda, “o espaço destinado a residência habitual e principal da família” será assim o lugar de residência permanente da família. O DL 135/2004 de 03.06 (que cria o PROHABITA – Programa de Financiamento para Acesso à Habitação), define no art. 3º, n.º1 a residência permanente como “aquela onde o agregado familiar mantém, estável, o seu centro de vida”. Regressando a Nuno Salter Cid5 a casa de morada da família corresponde a um bem material, que apenas existirá se, pelo menos um dos cônjuges, for titular de um direito subjetivo, que permita qualificá-la como tal. Considerada a importância atribuída à casa de morada de família, associada à consagração constitucional do direito à habitação, compete ao Estado desenvolver mecanismos de proteção de tal bem, por um lado a penhora da casa de morada de família, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, e por outro lado, a OLIVEIRA, G. D. AND R. M. RAMOS Manual de Direito da Família. edited by M. UNIVERSITÁRIOS. Edtion ed. Coimbra: Almedina, 2022. ISBN 978-972-40-9718-3. 3 CAMPOS, D. L. D. AND M. M. D. CAMPOS Lições de Direito da Família. Edtion ed. Coimbra: Almedina, 2020. ISBN 978-972-40-8948-5. 4 CID, N. S. Anotação ao Art. 1673º. In ALMEDINA ed. Código Civil Anotado. Coimbra, 2020, vol. Livro IV, p. 205-209. 5 Ibid. 2 324 impossibilidade de venda no âmbito dos processos de execução fiscal (art. 244º, n.2 do CPPT, redação da Lei 13/2016 de 23.05). 2. Da Consagração Constitucional do Direito à Habitação Desde a versão originária da CRP, que o seu art. 1º consagra uma república soberana, baseada, além do mais, na dignidade da pessoa humana. Assim, o respeito e a promoção da dignidade humana estarão, necessariamente subjacentes em todos os princípios que enformam o Estado de direito. Nesta conformidade dispõe o art. 65º, n.º1 da CRP que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, assim consagrando o direito à habitação como um direito fundamental. Na concretização do direito à habitação há que atender à natureza programática da indicada norma, que não é de aplicabilidade direta, carecendo de produção legislativa, da criação de normas que desenvolvam políticas de habitação permitindo o acesso de todos a uma habitação condigna à sua dignidade. Nesse sentido, concretiza o TC, acórdão do plenário n.º 197/20236, que o direito à habitação, como direito fundamental de natureza social, pressupõe a mediação do legislador ordinário com vista à concretização do respetivo conteúdo, ali se fazendo, ainda, referência à jurisprudência reiterada por esse mesmo tribunal, designadamente “os Acórdãos n.°s 130/92, 131/92, 280/93, 829/96, 32/97, 508/99, 29/00, 374/02 e 590/2004” Seguindo, ainda a jurisprudência do TC, no Acórdão 612/2019 de 22.10.2019 7, é definido o direito à habitação como um direito social, cujo conteúdo se desdobra “numa dupla vertente: por um lado, uma vertente de natureza negativa, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de ato que prejudique tal direito; por outro lado, uma vertente de natureza positiva, correspondente ao direito medidas e prestações estaduais visando a sua promoção e proteção”. No mesmo sentido se pronunciaram, Gomes Canotilho e Vital Moreira 8, concretamente o direito à habitação «Consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, DIAS, J. E. F. D. 197/2023. In P.D. TC. www.tribunalconstitucional.pt: Tribunal Constitucional, 2023. MACHETE, P. 612/19. In. TribunalConstitucional.pt: TC, 2019. 8 CANOTILHO, G. AND V. MOREIRA. Anotação ao artigo 65º CRP. In C. EDITORA ed. Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. 1, p. 834. 6 7 325 nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (cf. art. 17º). O direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”.». Regressando ao Acórdão do Plenário do TC9 vemos que o Estado é o sujeito passivo do direito à habitação condensado pelo art. 65º da CRP, o que se compreende atendendo ao estatuto do direito à habitação, que se encontra inserido “no catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais – concretamente, dos direitos sociais – e não nos direitos, liberdades e garantias, razão pela qual não lhe é constitucionalmente atribuída, por via de regra, a aplicabilidade direta”. Compete, assim, ao Estado, criar condições para que todos possam aceder e manter uma habitação com condições adequadas que proporcionem higiene e conforto e que permitam preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar. A jurisprudência dos nossos tribunais diz que “O dever do Estado assegurar a todos uma habitação condigna, como direito social que é, recai sobre o domínio público, cabendo ao Estado, e não aos particulares, assegurar a sua proteção, conforme art. 65º da CRP e arts. 1º e 3º da Lei de Bases de habitação nº 83/2019 de 03.09, na qual expressamente se prevê que O Estado é o garante do direito à habitação.”10 3. A lei 13/2016 de 23 de maio Surge com o intuito de proteger a casa de morada de família, concretamente, no âmbito dos processos de execução fiscal, podendo, por isso, ser considerada uma medida de concretização do dever do Estado de criar condições de manutenção da casa de morada de família, como sujeito passivo que é do direito à habitação conforme o art. 65º CRP 11. 3.1 Razão de ser e objetivos Esta lei resulta do Projeto de Lei n.º 86/XIII/1ª, com a epígrafe “Garante a impenhorabilidade e a impossibilidade de execução de hipoteca do imóvel de habitação própria e permanente por dívidas fiscais”. Surge numa fase de drástica diminuição do rendimento das famílias que degradou a sua situação financeira levando a situações de incumprimento de obrigações fiscais, conduzindo a penhoras que vieram a culminar na venda de imóveis afetos à habitação própria e permanente das famílias. Aparecia o Estado como exequente na execução onde era vendida a casa de morada de família, surgiu a solução da impenhorabilidade destes imóveis, assim se salvaguardando o direito constitucional à habitação e à dignidade humana 12. DIAS, J. E. F. D. 197/2023. In P.D. TC. www.tribunalconstitucional.pt: Tribunal Constitucional, 2023. REBELO, A. S. 2136/20.2T8VFX-D.L1-1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. 11 DIAS, J. E. F. D. 197/2023. In P.D. TC. www.tribunalconstitucional.pt: Tribunal Constitucional, 2023. 12 Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 86/XIII/1ª apresentado pelo Bloco de Esquerda. 9 10 326 Nas palavras de Inês da Mota Santos, “este regime jurídico visa proteger a casa de morada de família do executado que, se assim não fosse, por se encontrar penhorado, seria objeto de venda judicial para satisfação dos créditos do exequente” 13. O objetivo desta lei é o de proteger o imóvel afeto pelo executado à sua habitação própria e permanente, evitando a sua venda em sede de execuções fiscais. 3.2 Em que inova a Lei 13/2016 de 23 de maio No âmbito dos processos de execução fiscal deixa de ser possível realizar a venda executiva de bens imóveis, efetivamente usados como habitação própria e permanente do executado, o que resulta da atual disposição do n.º2 do art. 244º do CPPT. Veja-se o que resulta da jurisprudência dos nossos tribunais, fixada no sentido “O artigo 244º, nº 2, do CPPT, (…), visa proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado”14. Deixando o imóvel de estar afeto à habitação própria e permanente do executado, ou este, voluntariamente, prescindir do impedimento legal à venda (n.º6 do art. 244º do CPPT), poderá o processo de execução fiscal recuperar a sua normal tramitação, proporcionando a satisfação da dívida exequenda. Resta, ainda, atender à limitação imposta pelo n.º3 do art. 244º do CPPT. De acordo com esta norma, ficam excluídos da limitação de venda, apesar de habitação própria e permanente, os imóveis cujo valor tributável, no momento da penhora, se enquadre na taxa máxima de IMT prevista para este tipo de operação. Para se compreender que tipo de imóveis ficam excluídos nos termos do n.º3 do art. 244º do CPPT, atentemos no disposto pelo art. 17º, n.º1 a) do Código do IMT (CIMT), cuja redação atual é aquela que lhe foi dada pela Lei 24-D/2022 de 31.12 atenta a Declaração de Retificação n.º7/2023 de 15.01, sendo o valor ali enquadrável, superior a €1.050.40015. Assim, os imóveis de valor tributário até €1.050.400, afetos à habitação própria e permanente dos executados, não são vendidos em processo de execução fiscal, nos termos do n.º2 do art. 244º do CPPT, permitindo-se, apenas, a venda executiva de imóveis de valor superior à indicada cifra. SANTOS, I. D. M. A (im)penhorabilidade da casa de morada de família - Considerações em torno da Lei 13/2016, de 23 de maio. Mestrado Universidade de Coimbra, 2018. 14 CARVALHO, A. D. 936/17.0T8PRT-B.P1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021, SILVA, M. R. D. 639/21.0T8SRE. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2022. 15 Ao tempo da entrada em vigor da Lei 13/2016 de 23.05 este valor era de €574.323, nos termos da redação então em vigor, da Lei 55-A/2010 de 31.12. 13 327 Considerando a realidade habitacional nacional, entendemos que o limite fixado é excessivo, um vez que ao Estado cumpre assegurar o direito à habitação, que nos termos do n.º1 do art. 65º da CRP, corresponde a “uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Entendendo a fixação de um critério objetivo como o critério preferível na definição dos imóveis protegidos, por razões equilíbrio e bom senso, este valor devia situar-se na taxa mínima e não na taxa máxima de IMT, como sucede. 3.3. Da aplicabilidade imediata Todas estas alterações foram de aplicação imediata aos processos de execução fiscal pendentes aquando da sua entrada em vigor – 24.05.2016. Decidiu o TCAS que “as alterações introduzidas não têm por "ratio" a anulação de vendas já concretizadas à data da entrada em vigor da lei (cfr.artº.12, do C.Civil; artº.12, da L.G.T.), aplicando-se, tão somente, aos casos (de processo de execução fiscal pendente à data de entrada em vigor da lei) em que a venda ainda não tenha ocorrido.”16, seguido por nova decisão de que resulta: “V - As alterações introduzidas pelo referido diploma legal não têm por "ratio" a anulação de vendas já concretizadas à data da entrada em vigor da lei (cfr.artº.12, do CCivil; artº.12, da LGT), (…), aplicando-se, tão somente, aos casos (…) em que a venda ainda não tenha ocorrido.”17. Daqui se retira que a aplicação imediata aos processos de execução fiscal pendentes, salvaguarda, contudo, os atos já praticados bem como todos os efeitos deles decorrentes, designadamente, mantendo-se todas as vendas realizadas até à data de entrada em vigor da Lei 13/2016 de 23.05. 4. Da (Im)Penhorabilidade da Casa De morada de Família Apesar do projeto de lei, que veio a dar origem à Lei 13/2016 de 23.05, ser designado “Garante da impenhorabilidade e a impossibilidade de execução de hipoteca do imóvel de habitação própria e permanente por dívidas fiscais”, trata a lei de definir uma impenhorabilidade da casa de morada de família? Ou de consagrar a impossibilidade da venda, em processo de execução fiscal, de imóveis afetos a habitação própria e permanente? 16 17 CONDESSO, J. 1089/16.6BESNT. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2017. TOSCANO, L. 1401/15.5BEALM. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2017. 328 A atual redação do n.º2 do art. 244º do CPPT, limita a possibilidade de venda do imóvel exclusivamente destinado a habitação própria (…), pelo que, no Processo de Execução Fiscal, este imóvel se mantém passível de penhora. Delgado de Carvalho afirma que “A penhora não é proibida; o que é proibido é a venda.”18. Neste sentido decidiu já o STA, que “O imóvel destinado exclusivamente a habitação (…), quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim, não pode ser vendido na execução fiscal porque o proíbe o artigo 244.º, n.º 2 do CPPT, mas é penhorável (…)” 19. Também o TRL se pronunciou dizendo: “O legislador assegurou o direito fundamental à habitação do devedor no âmbito das execuções fiscais e no respeitante às dívidas fiscais - Lei 13/2016 de 23/5, art. 244 CPPT (restrições à venda executiva, em sede de execução fiscal, quando esteja em causa a venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente do executado)”20. A proteção surge em momento processual subsequente. Realizada a penhora, está o exequente impossibilitado de promover a venda do imóvel, que se mantém na propriedade do executado que, apesar da penhora, o manterá afeto à sua habitação própria e permanente. Que função desempenha esta penhora, este ónus, que incide sobre o imóvel? Para salvaguarda de que efeitos a mesma é de manter? Registada a penhora, nos termos exigidos pelo art. 2º, n.º1 n) do Código do Registo Predial, produzem-se os seus normais efeitos, tais como a oponibilidade perante terceiros, (art. 5º, n.º1Cod.RP), salvaguardando a possibilidade de qualquer ato de disposição do bem por parte do executado. Por outro lado, tem por efeito assegurar o seu crédito, de acordo com as regras de preferência, prevalência ou prioridade de satisfação do mesmo, face a outros credores, também eles titulares de outros direitos reais de garantia, (art. 6º Cod. RP). Assim, a lei não consagra a impenhorabilidade do imóvel afeto habitação própria e permanente do executado, protegendo-o da venda executiva, em processo de execução fiscal. 5. Da (Im)Possibilidade de Prossecução da Execução Fiscal Requerida pelo Credor Comum Reclamante Suspensa a execução fiscal, poderá o credor comum reclamante requerer a sua prossecução. Blog do IPPC [online]. blogippc.blogsopt.pt, 2016 [cited 11.07.2016 2023]. CADILHE, P. 0307/20.0BESNT. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. 20 MENDES, C. 19356/18.2T8SNT. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. 18 19 329 5.1 As Diferentes Posições Delgado de Carvalho, considera ser “indiferente o processo de execução no qual se realiza o concurso de credores”. Admitindo-se o Estado como credor reclamante na execução comum, não se justifica haver impedimento legal à venda quando “citados os credores comuns (isto é, não fiscais) (…) estes se apresentarem a reclamar créditos no processo de execução fiscal, aquele onde a penhora é mais antiga”21. A impossibilidade dos credores comuns promoverem a venda na execução fiscal implicaria a desaplicação da norma do art. 794º, n.º1 do CPC que determina a sustação da execução onde ocorrer a penhora posterior, isto porque, sendo a penhora mais antiga a que foi realizada na execução fiscal, [mantendo-se a obrigatoriedade de sustar a penhora realizada em segundo lugar] levaria a um impasse: a execução fiscal suspensa por imposição do n.º2 do art. 244º do CPPT e a execução comum sustada nos termos do art.794º, n.º1 do CPC. 5.2. Jurisprudência – Promoção da Venda na Execução Fiscal pelo Credor Comum Decidiu o TRC, que “Não se verifica o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente (…) quando, citados os credores comuns (…)na sequência da penhora de imóvel abrangido pela sua garantia, estes se apresentem a reclamar créditos no processo de execução fiscal, por ser este o processo em que a penhora é mais antiga”22 e, novamente, sustentando a tese de que “a interpretação do art.º 244º, n.º 2, do CPPT, de que o Exequente não se encontra impedido de exercer o direito a ver satisfeito o seu crédito através da penhora do bem imóvel que se encontra penhorado na execução fiscal, podendo promover a venda do mesmo, não viola qualquer preceito legal ou constitucional”23. Também o TRP24 se pronunciou neste sentido. De acordo com esta corrente jurisprudencial, apenas as dívidas tributárias impediriam a prossecução da execução para a venda, o que já não sucederia, com os créditos comuns reclamados na execução fiscal. 5.3 Posição do Tribunal Constitucional Ibid. MAGALHÃES, F. D. 1325/16.9T8ACB.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 23 ROBALO, A. D. P. 367/16.9T8CVL-C.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. 24 SILVA, A. D. D. 11128/11.1TBVNG-C.P1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 21 22 330 Em decisão sumária25, pronunciou-se o TC do seguinte modo: “ocorrendo uma impossibilidade legal de prosseguimento da execução em que a penhora tiver sido anterior, deixa de haver lugar à aplicação da regra estabelecida no artigo 794.º, n.º 1, do CPC, pela simples razão de que, por força de tal impossibilidade, o credor da execução em que a penhora tiver sido posterior deixa de poder «reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga», conforme pressuposto (ou exigido) pelo referido dispositivo”. Abre-se, assim, caminho àquela que será a solução a adotar pelos tribunais nacionais. 5.4. Prossecução da Execução Comum – Jurisprudência Nesta tarefa apontamos as decisões do TRE26, bem como do TRG de 23.05.2019 27 de acordo com a qual a sustação da execução comum, onde ocorreu a penhora mais recente, quando a execução fiscal estiver parada, ou suspensa, pela aplicação do disposto no n.º2 do art. 244º na redação da Lei 13/2016 de 23.05, deve ser levantada. De modo semelhante decidiu o TRP28 dizendo de forma direta que “Quando em execução cível for penhorado imóvel que constitua a casa de morada de família do executado e sobre ele incida penhora com registo anterior realizada em execução fiscal, não podendo o imóvel ser vendido na execução fiscal em virtude do estabelecido na Lei n.º 13/2016, não há lugar à suspensão da execução cível nos termos do artigo 794.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.”. O TRC decidiu, também neste sentido, que “Não podendo prosseguir com a execução fiscal (…), o credor pode acionar a execução comum, com citação da FN para reclamar os seus créditos.”29. E o TRL, emitiu entre outras 30, decisão31, onde, enumera os argumentos em que sustenta a sua posição, fixando jurisprudência no sentido da não aplicação do disposto pelo art. 794º, n.º2 do CPC quando, apesar da penhora da execução comum ser posterior à da 25 Decisão sumária 728/2108, apud SOTTOMAYOR, M. C. 329/2019. In. www.tribunalconstitucional.pt: Tribunal Constitucional, 2019. 26 FARO, M. J. S. E. 893/12.9TBPTM.E1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 12.07.2018, RAMIÃO, T. 402/18.6T8MMN.E1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019, SEQUINHO, V. 91/14.7BBNV. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. 27 FERNANDES, F. P. 2132/17.7T8VCT-B.G1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 28 PORTELA, M. 8590/18.5T8PRT-B.P1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 29 CAMPELO, M. 205003/10.1YIPRT.1.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 30 CARNEIRO, N. B. 13361/19.9T8SNT-A.L1.2. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020, MARINHO, C. 985/15.2T8AGH-A.L1.6. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 31 SOUSA, L. F. P. D. 2270/07.4TBVFX-B.L1-7. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 331 execução fiscal, esta se encontrara suspensa, por efeito da aplicação do n.º2 do art. 244º do CPPT. Não há, assim, lugar à sustação da execução comum, quando a execução fiscal se encontrar suspensa nos termos do art. 244º, n.º2 do CPPT, devendo o imóvel ser vendido naquela, mediante prévia convocação de credores, encontramos ainda decisões do TRL32. Também o STJ33 se pronunciou no sentido de que a limitação à venda da casa de morada de família imposta pela Lei 13/2016 de 23.05 ser exclusivamente aplicável à execução fiscal. 5.5 Posição Adotada Atento o texto da norma do n.º2 do art. 244º do CPPT, e o conflito de interesses subjacente: a promoção da dignidade humana concretizado no respeito pelo direito à habitação que têm como contraponto a titularidade de uma relação jurídica indisponível e a consequente obrigação de prover às necessidades do Estado, a harmonização de interesses ali encontrada veda ao credor tributário a venda executiva da casa de morada de família. Neste sentido é explícita a jurisprudência fixada pelo Acórdão do TRL34. Também se subscreve a posição relativa à interpretação do art. 794º do CPC, que determina a sustação da execução onde a penhora tiver sido posterior, de acordo com a qual a operacionalidade desta norma pressupõe que as duas execuções, estão numa situação de dinâmica (ou interação) processual35. Estando uma das execuções, no caso a execução fiscal, suspensa pela impossibilidade de prosseguir a sua normal tramitação, a norma do n.º1 do art. 794º do CPC não opera, não se sustando a execução comum que assim seguirá os seus termos até final. Acolhemos a posição maioritária, no sentido da impossibilidade de venda da casa de morada de família no processo de execução fiscal ser absoluta, independentemente da natureza do credor que a promove, tendo a sua suspensão como efeito a prossecução da execução civil, não se aplicando o disposto no n.º 2 do art. 794º do CPC. 6. Da Possibilidade de Reclamar Créditos em Execução Comum 32 BROTAS, A. 5766/20.9T8ALM-A.L1.6. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021, LEAL, J. 5729/19.7T8LRS-A.L1-2. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020, SALGADO, I. 175/20.2T8AGH.L1.7. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2022. 33 SILVA, M. R. D. 639/21.0T8SRE. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2022, SILVA, T. N. D. 5729/19.7T8LRSA.L1.S1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. 34 MARINHO, C. 985/15.2T8AGH-A.L1.6. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 35 SOUSA, L. F. P. D. 2270/07.4TBVFX-B.L1-7. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 332 Pode o credor fiscal, impedido de vender o imóvel afeto à habitação própria e permanente do executado, reclamar créditos na execução comum, onde estará em causa a venda do mesmo imóvel. A relação jurídica tributária é de natureza indisponível gerando um crédito cuja efetiva cobrança é essencial ao bom funcionamento do Estado. Diz Delgado de Carvalho36 dizendo que “a proibição de venda da casa de morada de família não implica a preclusão da garantia real ou do grau de preferência pelo pagamento de que a administração fiscal possa beneficiar”, afirmando, ainda, que a AT “pode ser paga pelo produto da venda desse imóvel no concurso com outros credores do mesmo devedor, dado que a limitação legal criada apenas se aplica no âmbito da execução instaurada para satisfação de créditos fiscais”. Dizendo, por fim que, a “administração fiscal pode apresentar-se a reclamar créditos de impostos no âmbito de processos de execução comum, na hipótese de a casa de morada de família ter sido primeiramente penhorada numa execução comum, mesmo que o seu crédito seja graduado em primeiro lugar (…) e ainda que arrecade a totalidade do produto da venda”.37 Pronunciaram-se os tribunais portugueses, designadamente os Tribunais da Relação de Coimbra38, de Évora39 e de Guimarães40, dizendo esta última decisão que “Ao prosseguimento da execução comum, onde foi efetuada a segunda penhora, não obsta o disposto no art. 822º do C. Civil, já que, a A.T. pode vir reclamar o seu crédito nesta outra execução, devendo para isso ser notificada ao abrigo do preceituado no art. 786º do Código de Processo Civil, sendo o seu crédito graduado no lugar que lhe competir.”. Considerada a natureza indisponível da dívida tributária, uma vez que a venda do imóvel em causa já ocorreu, promovida pelos credores comuns que não estão limitados pelo n.º2 do art. 244º do CPPT, o interesse conflituante deixa de ser o direito à habitação do executado, mas antes o interesse dos demais credores na obtenção de satisfação dos créditos comuns exequendos. Não se compreende, por isso, qualquer limitação da convocação de credores, na reclamação, na admissão e graduação de estes créditos, face aos demais, atendendo tão-só à garantia de que beneficiem. Blog do IPPC [online]. blogippc.blogsopt.pt, 2016 [cited 11.07.2016 2023]. Ibid. 38 CAMPELO, M. 205003/10.1YIPRT.1.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019, MAGALHÃES, F. D. 1325/16.9T8ACB.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 39 RAMIÃO, T. 402/18.6T8MMN.E1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 40 FERNANDES, F. P. 2132/17.7T8VCT-B.G1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. 36 37 333 Quanto aos demais credores, não há qualquer limitação do poder-dever do Estado na cobrança das dívidas tributárias, pelo que, não só não existe qualquer impedimento ou limitação na possibilidade de reclamar créditos na execução comum, como não há qualquer outra limitação na forma de graduação de estes créditos, que ocuparão o lugar que lhes corresponder de acordo com a proteção de que beneficiem. 7. Conclusões: Na execução fiscal não há lugar à realização de venda de imóvel que esteja efetivamente afeto a habitação própria permanente do devedor ou do seu agregado familiar; Os imóveis, afetos a habitação própria permanente do executado, cujo valor tributável, no momento da penhora, seja superior a €1.050.400, valor correspondente à taxa máxima de IMT, prevista para este tipo de operação, poderão ser vendidos; Consideramos que este valor limite de €1.050.400 é excessivo, considerando a situação habitacional do país e a salvaguarda constitucional do direito à habitação de modo a assegurar a dignidade da pessoa humana, devendo, ao contrário, a limitação situar-se no limite mínimo da taxa de IMT; O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto à habitação própria permanente, não sendo um direito absoluto, pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado; As normas decorrentes da Lei 13/2016 de 23.05 são de aplicação imediata aos processos pendentes, salvaguardando-se os atos já praticados, bem como todos os efeitos deles decorrentes, mantendo-se, deste modo, todas as vendas realizadas até à data da sua entrada em vigor. A lei 13/2016 de 23.05 não determina a impenhorabilidade da casa de morada de família, impondo, antes, a impossibilidade de realização da sua venda executiva, em processo de execução fiscal. O credor comum, com garantia real sobre o imóvel, que reclamou créditos na execução fiscal, não pode requerer a prossecução da execução fiscal, para a fase da venda; Tomamos posição no sentido da impossibilidade de venda da casa de morada de família ao processo de execução fiscal ser absoluta, independentemente da natureza do credor que a promove, tendo a sua suspensão como efeito a prossecução da execução civil, não se aplicando o disposto no n.º 2 do art. 794º do CPC. Atenta a natureza indisponível da dívida tributária, bem como, a venda do imóvel já ocorrida, promovida pelos credores comuns que não estão limitados pelo n.º2 do art. 244º 334 do CPPT, o interesse conflituante deixa de ser o direito à habitação do executado, mas antes o interesse dos demais credores na obtenção de satisfação dos créditos comuns exequendos. Não há assim lugar a qualquer limitação na convocação de credores, na reclamação, na admissão e graduação dos créditos fiscais, face aos demais, atendendo tão-só à garantia de que beneficiem, não se compreendendo qualquer limitação do poder-dever do Estado na cobrança das dívidas tributárias. 8. Bibliografia Doutrina CAMPOS, D. L. D. AND M. M. D. CAMPOS Lições de Direito da Família. Edtion ed. Coimbra: Almedina, 2020. ISBN 978-972-40-8948-5. CANOTILHO, G. AND V. MOREIRA. Anotação ao artigo 65º CRP. In C. EDITORA ed. Constituição da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, vol. 1, p. 834. CID, N. S. Anotação ao Art. 1673º. In ALMEDINA ed. Código Civil Anotado. Coimbra, 2020, vol. Livro IV, p. 205-209. Blog do IPPC [online]. blogippc.blogsopt.pt, 2016 [cited 11.07.2016 2023] MARTINS, A. A Proteção da casa de morada de família. In Julgar. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, vol. 23, p. 21-53. OLIVEIRA, G. D. AND R. M. RAMOS Manual de Direito da Família. edited by M. UNIVERSITÁRIOS. Edtion ed. Coimbra: Almedina, 2022. ISBN 978-972-40-9718-3. SANTOS, I. D. M. A (im)penhorabilidade da casa de morada de família - Considerações em torno da Lei 13/2016, de 23 de maio. Mestrado Universidade de Coimbra, 2018. Jurisprudência BROTAS, A. 5766/20.9T8ALM-A.L1.6. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. CADILHE, P. 0307/20.0BESNT. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. CAMPELO, M. 205003/10.1YIPRT.1.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. CARNEIRO, N. B. 13361/19.9T8SNT-A.L1.2. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. CARVALHO, A. D. 936/17.0T8PRT-B.P1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. CONDESSO, J. 1089/16.6BESNT. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2017. DIAS, J. E. F. D. 197/2023. In P.D. TC. www.tribunalconstitucional.pt: Tribunal Constitucional, 2023. FARO, M. J. S. E. 893/12.9TBPTM.E1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 12.07.2018. FERNANDES, F. P. 2132/17.7T8VCT-B.G1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. LEAL, J. 5729/19.7T8LRS-A.L1-2. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. 335 LOPES, A. 0918/17. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2017. MACHETE, P. 612/19. In. TribunalConstitucional.pt: TC, 2019. MAGALHÃES, F. D. 1325/16.9T8ACB.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. MARINHO, C. 985/15.2T8AGH-A.L1.6. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. MENDES, C. 19356/18.2T8SNT. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. PORTELA, M. 8590/18.5T8PRT-B.P1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. RAMIÃO, T. 402/18.6T8MMN.E1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. REBELO, A. S. 2136/20.2T8VFX-D.L1-1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. ROBALO, A. D. P. 367/16.9T8CVL-C.C1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. SALGADO, I. 175/20.2T8AGH.L1.7. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2022. SEQUINHO, V. 91/14.7BBNV. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2020. SILVA, A. D. D. 11128/11.1TBVNG-C.P1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. SILVA, M. R. D. 639/21.0T8SRE. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2022. SILVA, T. N. D. 5729/19.7T8LRS-A.L1.S1. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. SOTTOMAYOR, M. Constitucional, 2019. C. 329/2019. In. www.tribunalconstitucional.pt: Tribunal SOUSA, C. A. E. 876/19.8BEBJA. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2021. SOUSA, L. F. P. D. 2270/07.4TBVFX-B.L1-7. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2019. TOSCANO, L. 1401/15.5BEALM. In. www.dgsi.pt: DGSI, 2017. 336 Tendências e Desafios no Controle de Convencionalidade: Uma Análise do Supremo Tribunal Federal Brasileiro Trends and Challenges in Control of Conventionality: an Analysis of the Brazilian Supreme Court Melina Girardi Fachin1 Yago Paiva Pereira2 Sumário: 1. O controle de convencionalidade: origem, bloco e legitimados; 2. O controle de convencionalidade como mecanismo do diálogo multinível em direitos humanos; 3. Supremo Tribunal Federal brasileiro e controle de convencionalidade: resistência ou aderência? Considerações Finais. Resumo: O presente trabalho é destinado a abordar o tema controle de convencionalidade, apresentando, em um primeiro momento, a sua origem histórica, a sua introdução no Sistema Interamericano a partir de precedentes da Corte IDH, e a sua posição no âmbito da jurisdição interna brasileira, especialmente no que tange à incorporação de tratados internacionais no âmbito do bloco de constitucionalidade e os legitimados ao exercício do controle de convencionalidade, à luz da doutrina especializada na matéria. Em um segundo momento, discorre-se sobre o controle de convencionalidade como mecanismo de um diálogo multinível em matéria de direitos humanos e como instrumento apto à formação de um ius commune latino-americano. Por fim, é realizada uma análise empírica sobre o modo e o padrão de exercício do controle de convencionalidade pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, a partir de uma análise do conjunto de acórdãos do Tribunal em que há menção expressa à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao final, são apresentadas algumas linhas conclusivas, as quais podem ser sintetizadas na constatação de que o Supremo Tribunal Federal brasileiro, em que pese não apresente resistência ao controle de convencionalidade, ainda precisa desenvolver um diálogo real entre Cortes, com um compromisso especial em relação aos precedentes ou materiais estrangeiros invocados, para além de uma utilização meramente decorativa ou voltada para o reforço retórico. Palavras-chave: controle de convencionalidade; Supremo Tribunal Federal; Corte Interamericana de Direitos Humanos. Abstract: This paper intend to address the issue of control of conventionality, introducing at first its historical origin, its introduction into the Inter-American System from precedents of the IDH Court, and its position within the Brazilian internal jurisdiction, especially regarding the incorporation of international treaties within the scope of the constitutionality block and those legitimized to the exercise of conventionality control, in the light of specialized doctrine in the matter. In a second moment, it discusses the control of Professora Associada dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, no Instituto de Direitos Humanos e Democracia. Doutora em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH) e do Centro de Estudos da Constituição (CCONS), ambos da UFPR. E-mail: [email protected]. 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-graduado em Direito Público. Pósgraduando em Direito e Processo Tributário. Membro consultivo do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH-UFPR). Membro das Comissões de Direitos Humanos e de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Estado do Paraná. E-mail: [email protected]. 1 337 conventionality as a mechanism of a multilevel dialogue on human rights and as an suitable instrument for the formation of a Latin American ius Commune. Finally, an empirical analysis is carried out on the way about the standard of exercise of the control of conventionality by the Brazilian Supreme Court, from an analysis of the set of judgments of the Court in which there is express mention to the Inter-American Court of Human Rights. At the end, some conclusive lines are presented, which can be summarized in the finding that the Brazilian Constitutional Court, despite not presenting resistance to the control of conventionality, still needs to develop a real dialogue between Courts, with a special commitment to the foregoing or foreign materials invoked, in addition to a purely decorative or rhetorical reinforcement use. Keywords: control of conventionality; Federal Supreme Court; Inter-American Court of Human Rights. 1. O Controle de Convencionalidade: Origem, Bloco e Legitimados A teoria do controle de convencionalidade é um tema consideravelmente recente na teoria dos direitos humanos, especialmente no âmbito do Sistema Interamericano (SIDH). Conforme leciona Mazzuoli,3 o controle de convencionalidade teve a sua origem na França, designadamente na década de 1970, em um caso em que o Conselho Constitucional Francês, na decisão 74-54 DC, de 1975, reconheceu não ser competente para analisar a convencionalidade preventiva das leis, ou seja, a compatibilidade das leis com os tratados ratificados pela França. Nesse caso, tratava-se da compatibilidade das leis com a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), sendo que para esta função já existia um organismo competente: o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.4 No Sistema Interamericano, por sua vez, a expressão “controle de convencionalidade” foi utilizada pela primeira vez no voto separado do juiz Sérgio Garcia Ramirez, no Caso Myrna Mack Chang Vs. Guatemala, julgado em 25 de novembro de 2003. Entretanto, a teoria do controle de convencionalidade veio formalmente aparecer no Sistema Interamericano apenas em 2006, passados mais de vinte anos de funcionamento da Corte IDH, em sede do Caso Almonacid Arellano e Outros Vs. Chile (j. 26/09/2006), quando então as atenções sobre o tema se tornaram intensas.5 Pouco tempo depois, a Corte IDH voltou a se referir sobre o controle de convencionalidade no Caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso Vs. Peru, julgado em 24 de novembro de 2006, reforçando o seu entendimento anterior e destacando algumas especificidades desse controle.6 MAZZUOLI,V.O... O controle jurisdicional de convencionalidade das leis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 81. 4 CHAVES, D.G.; SOUSA, M.T.C.. O controle de convencionalidade e a autoanálise do poder judiciário brasileiro. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, v. 61, n. 1, jan./abr. 2016. p. 94. 5 MAZZUOLI,V.O.. Curso de Direito Internacional Público. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 488. 6 “Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes também estão submetidos a ela, o que os obriga a velar para que o efeito útil da Convenção não se veja diminuído ou 3 338 Em apertada síntese, pode-se dizer que, segundo a Corte IDH, o controle de convencionalidade consiste na verificação da compatibilidade das normas internas com a Convenção Americana, a jurisprudência da Corte e os demais tratados interamericanos dos quais o Estado seja parte. Deve ser realizado de ofício pelas autoridades públicas e se desdobra em duas espécies de efeitos: i) a supressão de normas contrárias aos parâmetros convencionais ou ii) uma interpretação conforme os ditames convencionais (eficácia interpretativa). Portanto, falar em controle de convencionalidade é, à luz do Sistema Interamericano, discutir sobre a possibilidade de se proceder à compatibilização vertical das leis (ou dos atos normativos do Poder Público), não só tendo como parâmetro de controle a Constituição, como também os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos, mas não só eles) ratificados pelo Estado e em vigor no país.7 Logo, o controle de convencionalidade constitui uma espécie de controle de constitucionalidade, porém adotando como parâmetro os tratados internacionais. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 acolhe os tratados internacionais sobre direitos humanos com índole e nível de normas constitucionais, pelo seu conteúdo material, independentemente de aprovação legislativa por maioria qualificada. Afinal, essa é a interpretação dada ao art. 5º, §2º, da CF,8 permitindo a expansão do bloco de constitucionalidade.9 Contudo, o tema do controle de convencionalidade ganhou destaque no Brasil só a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004, 10 que introduziu o §3º ao art. 5º do texto constitucional, 11 estabelecendo entre nós, a partir de então, uma distinção anulado pela aplicação de leis contrárias às suas disposições, objeto e fim. Em outras palavras, os órgãos do Poder Judiciário devem exercer não somente um controle de constitucionalidade, senão também ‘de convencionalidade’ ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas respectivas competências e dos regulamentos processuais correspondentes. Esta função não deve se limitar exclusivamente às manifestações ou atos dos postulantes em cada caso concreto.” CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Trabalhadores Demitidos do Congresso (Aguado Alfaro e outros) Vs. Peru, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 24 de novembro de 2006, Série C, nº 158, parágrafo 128. 7 MAZZUOLI, V.O. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do “diálogo das fontes”. Revista Argumenta – UENP. Jacarezinho. Nº 15. p. 77-114. 2011. p. 78. 8 O art. 5º, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil dispõe: «Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte». 9 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBC, n. 19, jan./jun. 2012. p. 69. 10 PIOVESAN, F; FACHIN, M.G.; MAZZUOLI, V. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 45. 11 O art. 5º, §3º, da Constituição da República Federativa do Brasil dispõe: «Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais». 339 entre tratados materialmente constitucionais e tratados material e formalmente constitucionais. A despeito dessa distinção, a melhor doutrina caminha no sentido de que tanto os tratados incorporados pelo rito previsto no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, quanto os demais tratados ratificados por maioria simples e aprovados até o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004 (que, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, possuem hierarquia supralegal), ensejam a possibilidade de aferição da compatibilidade entre tais atos normativos e os tratados internacionais.12 É dizer, à medida em que os tratados de direitos humanos são materialmente constitucionais (art. 5º, §2º, CF), ou material e formalmente constitucionais (art. 5º, §3º, CF), é lícito entender que, para além do clássico controle de constitucionalidade, deve ainda existir um controle de convencionalidade, que é a compatibilização da produção normativa doméstica com os tratados de direitos humanos ratificados pelo governo e em vigor no país. 13 Ainda que haja algum debate sobre a constitucionalidade, pode-se que todos os tratados que formam o corpus juris convencional dos direitos humanos de que o Brasil é parte servem como paradigma ao controle de convencionalidade das normas infraconstitucionais, com as seguintes especificações: a) tratados de direitos humanos internalizados com quórum qualificado (equivalentes às emendas constitucionais) são paradigma do controle concentrado (para além, é claro, do controle difuso), cabendo, v.g., uma ADI no STF para invalidar norma infraconstitucional incompatível com eles; b) tratados de direitos humanos que têm apenas “status de norma constitucional” (não sendo “equivalentes às emendas constitucionais”, posto que não aprovados pela maioria qualificada do art. 5º, §3º, da CF) são paradigma do controle difuso de convencionalidade, caso em que deverão os juízes/tribunais neles se fundamentar para declarar inválida uma lei que os afronte.14 Ademais, a Convenção Americana não impõe uma metodologia específica para a realização do controle de convencionalidade. A grande maioria dos artigos e obras sobre o tema aborda o controle de convencionalidade apenas sob a perspectiva dos membros do Poder Judiciário, deixando de lado a perspectiva de outras autoridades públicas.15 Não SARLET, Ingo Wolfgang. Controle de convencionalidade dos tratados internacionais. Consultor Jurídico, 10 abr. 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-abr-10/direitos-fundamentaiscontroleconvencionalidade-tratados-internacionais. Acesso em: 18 fev. 2022. 13 Cfr. MAZZUOLI, V.O.. “O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do ‘diálogo das fontes’”, ob. cit., p. 79. 14 Cfr. PIOVESAN, Flávia; FACHIN, M.G.; MAZZUOLI, V. “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, ob. cit., p. 46. 15 HEEMANN, T.A.. O exercício do controle de convencionalidade pelo membro do Ministério Público. In: 23º CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2019, Goiânia. Teses. Goiânia: 2019. 12 340 obstante, a Corte IDH consigna que todas as esferas do Poder Judiciário e demais órgãos vinculados à administração da justiça devem exercê-lo no âmbito de suas respectivas competências e das regras processuais pertinentes.16 À vista disso, é possível concluir que os legitimados para o exercício do controle de convencionalidade não se restringem aos órgãos e representantes do Poder Judiciário (em que pese seja um dos legitimados por excelência), mas se expandem a outras esferas do Poder Público, tais quais os representantes e órgãos do Poder Legislativo e do Poder Executivo. 2. O Controle de Convencionalidade como Mecanismo do Diálogo Multinível em Direitos Humanos O juiz Antônio Augusto Cançado Trindade há muito defendia que o futuro do sistema internacional de proteção dos direitos humanos está condicionado aos mecanismos nacionais de implementação.17 É dizer, o grau de eficácia do sistema regional de proteção de direitos humanos depende, em grande medida, do nível de compromisso dos Estados-parte em respeitar os instrumentos normativos internacionais em matéria de direitos humanos, bem como aplicar, no âmbito interno, a interpretação dada pela Corte IDH, seja a partir dos casos contenciosos julgados pela Corte, seja a partir das opiniões consultivas - competências decorrentes do disposto nos artigos 2, 62, 67 e 68 da CADH. Na mesma linha de raciocínio, defende-se que o sucesso dos sistemas regionais de direitos humanos depende, em larga escala, do grau de comprometimento dos Estados que o compõem.18 O mecanismo do controle de convencionalidade, portanto, constitui uma dessas formas de comprometimento do sistema interno com o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, porquanto tem a capacidade de promover um diálogo interjurisdicional e multinível, pautado no mútuo esforço entre os diferentes atores na defesa e na proteção dos direitos humanos. A constituição desse diálogo interjurisdicional, na doutrina de Gonzalo Aguilar Cavallo, manifesta o novo paradigma no modelo constitucional multinível, onde esses Disponível em: https://escolasuperior.mppr.mp.br/arquivos/File/MP_Academia/Teses_2019/Thimotie_ Heemann_-_O_exercicio_do_controle_de_convencionalidade.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022. 16 CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Liakat Ali Alibux vs. Suriname. Sentença de 30.01.2014. Série C, nº 276, parágrafo 124. 17 TRINDADE, A.A..C.; ROBLES, M.E.V. El Futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. San José: Corte Interamericana de Direitos Humanos e UNHCR, 2003. p. 91. 18 FACHIN, M.G.. Direito Humanos e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 477. 341 intercâmbios, comunicações, debates ou confrontações sobre o sentido e alcance de uma disposição de direitos humanos podem ocorrer entre a jurisdição nacional e a supranacional. 19 Válido ressaltar que, à luz do magistério de Marcelo Neves, esse diálogo entre ordens jurídicas diversas aponta para comunicações transversais, que implicam a possibilidade de aprendizado mútuo. Não se trata de um modelo de convergência, muito menos de resistência, mas sim um modelo de articulação (“engagement model”), ou seja, de entrelaçamento transversal das ordens jurídicas para solução de problemas jurídicos constitucionais comuns em matéria de direitos fundamentais ou de direitos humanos.20 Essa integração normativa, e sobretudo interpretativa, a partir do diálogo entre Cortes se coaduna com a consolidação de um sistema interamericano integrado, no qual é estabelecido um intenso diálogo entre as mais diversas ordens e hierarquias, o que acaba por reforçar a proteção dos direitos humanos e a criação de um ius constitutionale commune na região.21 É o que se registra, por exemplo, da doutrina de Flávia Piovesan, que revela a indissociabilidade entre o controle de convencionalidade e do diálogo entre jurisdições com a ideia de criação de um ius commune.22 O Ius Constitutionale Commune na América Latina (ICCAL) erigiu-se da própria adesão dos Estados ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, impulsionador de constantes diálogos entre a Corte Interamericana e as Cortes nacionais. Esse Ius Commune de matriz constitucional latino-americana fornece base para a profunda interligação entre sistemas jurídicos nacionais e o plano interamericano, tendo por eixo a CADH e como propósito uma atuação vanguardista especialmente dos órgãos jurisdicionais a fim de tornar efetivas as normas de direitos humanos.23 Uma das finalidades desse direito comum é fornecer as bases jurídicas para a construção de um constitucionalismo transformador, construído a partir da interlocução entre as Cortes Constitucionais e a Corte Interamericana de Direitos Humanos e voltado para a concretização dos compromissos constitucionais democráticos. Ao sediar os AGUILAR CAVALLO, G. Juiz constitucional e diálogo jurisdicional multinível: a experiência chilena. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 61-89, jan./abr. 2019. DOI: 10.5380/rinc.v6i1.57697. p. 63. 20 NEVES, M. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao transconstitucionalismo na América Latina. Revista de Informação Legislativa. Brasília, DF, ano 51, n. 201, jan./mar. 2014. p. 194. 21 Cfr. PIOVESAN, F; FACHIN, M.G.; MAZZUOLI, V. “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, ob. cit., p. 46, 352. 22 “Para a criação de um ius commune fundamental é avançar na interação entre as esferas global, regional e local, potencializando o impacto entre elas, mediante o fortalecimento do controle da convencionalidade e do diálogo entre jurisdições, sob a perspectiva emancipatória dos direitos humanos.” Cfr. PIOVESAN, Flávia. “Direitos humanos e diálogo entre jurisdições”, ob. cit., p. 93. 23 OLSEN, A.C,L,; KOZICKI, K. O papel da Corte Interamericana de Direitos humanos na construção dialogada do Ius Constitutionale Commune na América Latina. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 9, n. 2, 2019. p. 302. 19 342 intercâmbios entre esses sistemas, o Ius Commune se volta a um processo de harmonização capaz de compatibilizar, de um lado, a fixação de standards mínimos comuns em direitos humanos, e de outro, o respeito à diversidade.24 Ressalte-se, contudo, que a atuação da corte supranacional não deve ser exatamente padronizadora, mas sim harmonizadora e potencializadora, a propiciar espaço para dissonâncias e particularidades. Tal como um vértice dos diálogos judiciais mantidos no ICCAL, a Corte Interamericana logra exercer dois papéis primordiais: a harmonização do pluralismo jurídico latino-americano por meio da interpretação e aplicação das normas de direitos humanos, e o impulsionamento de transformações estruturais e sociais. 25 A harmonização entre normas jurídicas domésticas e regionais no ICCAL é catalisada pela Corte IDH, em que a formação do corpus juris interamericano conta, especialmente, com o protagonismo dos órgãos jurisdicionais, por meio de um diálogo judicial vertical. Em caso de divergências na interpretação dos direitos humanos, a Corte IDH assume uma posição privilegiada ao determinar novos standards para a região, sem, com isso, assumir uma posição hierárquica em relação às demais Cortes nacionais, mas adotando a posição de primus inter pares. Essa prática dialogada se evidencia no controle de convencionalidade. A dinâmica do controle de convencionalidade é, em grande medida, orientada pelo princípio da norma mais favorável à vítima (princípio pro persona), fundado no artigo 29 da Convenção Americana, segundo o qual devem prevalecer interpretações domésticas quando forem mais generosas na configuração dos direitos a serem fruídos, ou menos restritivas.26 Por outro lado, a função transformadora assumida pela Corte IDH diz respeito à modificação das condições da estrutura social que contribuem para os processos de exclusão que infelizmente ainda marcam a região e que demonstram as promessas incumpridas do constitucionalismo social. Nessa linha, a atuação da Corte IDH, nos últimos anos, tem se refletido na realidade social de diversos Estados, propiciando um ambiente mais favorável ao reconhecimento e à proteção dos direitos humanos. Trata-se de um comprometimento com a prolação de sentenças aptas a impactar a realidade, a partir de um comportamento estratégico. Cfr. OLSEN, A.C,L,; KOZICKI, K.. “O papel da Corte Interamericana de Direitos humanos na construção dialogada do Ius Constitutionale Commune na América Latina”, ob. cit., p. 304-306. 25 Cfr. OLSEN, A.C,L,; KOZICKI, K.. “O papel da Corte Interamericana de Direitos humanos na construção dialogada do Ius Constitutionale Commune na América Latina”, ob. cit., p. 302. 26 Cfr. PIOVESAN, F; FACHIN, M.G.; MAZZUOLI, V.O. “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, ob. cit., p. 317, 388. 24 343 Um dos aspectos que denota com maior relevância a ação transformadora das sentenças interamericanas se encontra no conceito de reparação integral das vítimas, o qual envolve a determinação de obrigações de respeito e garantias de não repetição — mecanismo por meio do qual a sentença determina medidas de caráter estratégico capazes de modificar a estrutura social/estatal que viabilizou aquela violação, como a modificação de leis e a adoção de políticas públicas.27 Portanto, é de se concluir que, no Ius Constitutionale Commune, a Corte Interamericana surge como um vértice canalizador dos diálogos judiciais necessários tanto à fixação de standards comuns, quanto impulsionador das transformações estruturais necessárias à efetivação dos direitos humanos.28 Como sustenta Eduardo Ferrer Mac-Gregor, o/a juiz/a nacional agora é também juiz/a interamericano/a.29 Dentre os desafios centrais para o ius commune latino-americano, destaca-se o fomento a uma cultura jurídica orientada pelo controle de convencionalidade, sendo essencial assegurar que todos os órgãos do poder estatal se vinculem aos tratados ratificados (em outras palavras, façam parte desse diálogo interjurisdicional), além da necessidade de se assegurar que as sentenças internacionais condenatórias de Estados sejam obrigatórias e diretamente executáveis no âmbito doméstico.30 Flávia Piovesan, ao discorrer sobre o diálogo entre jurisdições em matéria de direitos humanos, explicita que o diálogo jurisdicional regional e constitucional, mediante o controle de convencionalidade, deve ser exercido tanto pela Corte Interamericana, por intermédio de sua jurisprudência, quanto pelas Cortes latino-americanas, através da incorporação de princípios, jurisprudência e standards protetivos internacionais internamente.31 Tal dinâmica é indispensável para a pavimentação de um ius commune em direitos humanos na região. À vista de tudo isso, vislumbra-se, ainda que a passos curtos, à pavimentação de um ius commune latino-americano em direitos humanos, sob a perspectiva de um sistema multinível e dialógico a envolver as esfera regional (SIDH) e local (sem desconsiderar, por óbvio, a importância do diálogo entre os sistemas nacionais, entre os próprios sistemas Cfr. PIOVESAN, F; FACHIN, M.G; MAZZUOLI, V. “Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, ob. cit., p. 320. 28 Cfr. OLSEN, A.C.L.; KOZICKI, K. “O papel da Corte Interamericana de Direitos humanos na construção dialogada do Ius Constitutionale Commune na América Latina”, ob. cit., p. 322. 29 PIOVESAN, Flávia. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: impacto transformador, diálogos jurisdicionais e os desafios da reforma. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), v. 6, n. 2, p.142-154, jul./set. 2014. p. 151. 30 Cfr. PIOVESAN, F. “Direitos humanos e diálogo entre jurisdições”, ob. cit., p. 89-91. 31 Cfr. PIOVESAN, F. “Direitos humanos e diálogo entre jurisdições”, ob. cit., p. 73-89. 27 344 regionais e entre sistemas nacionais e universal), cujo fim máximo é a absoluta promoção e defesa dos direitos humanos. 3. Supremo Tribunal Federal Brasileiro e Controle de Convencionalidade: Resistência ou Aderência? Ante o exposto nos capítulos anteriores, pretende-se analisar, ainda que em breves apontamentos, a atuação do Supremo Tribunal brasileiro (STF) no exercício do controle de convencionalidade, um dos mecanismos aptos a promover o diálogo multinível em direitos humanos na América Latina, com vistas a identificar uma aderência ou resistência ao diálogo entre a jurisdição interna e a jurisdição internacional, especialmente a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para tanto, realizou-se uma pesquisa no banco de dados do Supremo Tribunal Federal, capaz de dar uma noção do cenário atual acerca do diálogo entre STF e Corte IDH. A metodologia consistiu, basicamente, em uma busca pelo termo “Corte Interamericana” na ferramenta virtual de pesquisa jurisprudencial disponibilizada pelo STF. Como resultado, foram localizados, exatamente, 100 (cem) acórdãos da Corte Constitucional brasileira em que a expressão “Corte Interamericana” aparece no inteiro teor das decisões colegiadas (até a data de 18/04/2022).32 Todavia, foram descartados quatro acórdãos da análise: dois deles se tratavam de Embargos de Declaração e outros dois tinham os mesmos fundamentos apresentados em outros acórdãos publicados em sede da mesma ação perante o Supremo Tribunal Federal (evita-se, assim, a duplicidade).33 Dessa sorte, restaram 96 acórdãos que foram objetos de análise propriamente dita. De partida, constatou-se que em 25 dos 96 acórdãos (i.e, 26,04% das decisões levantadas e analisadas) houve tão somente uma mera menção à Corte Interamericana de Direitos Humanos, sendo inexistente, em tais casos, a utilização de algum precedente do Duas ressalvas: i) o banco de dados do STF não abarca todas as suas decisões, especialmente no caso de decisões monocráticas (excluídas dessa análise), podendo haver, assim, outras referências à Corte IDH na jurisprudência do STF; e ii) os informativos da Corte foram excluídos da presente análise, restando a análise apenas dos acórdãos do STF, seja em Tribunal Pleno ou em alguma das duas Turmas da Corte. 33 Trata-se dos seguintes casos: AP 470 AgR-vigésimo quinto; AP 470 AgR-vigésimo sétimo; Ext 1424 ED; Ext 1425 ED. 32 345 SIDH para construção de um diálogo no âmbito da questão constitucional levada à apreciação do STF.3435 Ainda, importante mencionar que dos 71 acórdãos restantes, em 13 (treze) deles não houve menção alguma a casos julgados pela Corte IDH. Não obstante, verificou-se que nesses 13 (treze) acórdãos os ministros utilizaram a interpretação da Corte IDH em sede de Opiniões Consultivas para fundamentar os seus posicionamentos acerca da questão constitucional em debate. Neste ponto, convém mencionar que, à luz do entendimento da Corte Interamericana, estampada na OC nº 21/2014, Opiniões Consultivas fazem parte do parâmetro de controle de convencionalidade.36 Sob esse prisma, os 13 (treze) acórdãos37 acima aludidos não devem ser desconsiderados tão somente por não carregarem em seu conteúdo alguma menção a casos contenciosos julgados pela Corte Interamericana. A propósito, a Corte IDH, ao exercer a sua função consultiva, também promove a competente interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, razão pela qual as Opiniões Consultivas da Corte merecem igual respeito e observância pelos Estados-parte.38 Feitas estas considerações, pode-se dizer que temos, até 18/04/2022, 71 (setenta e um) acórdãos em que o STF fez menção a casos contenciosos e/ou a Opiniões Consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos.39 Entretanto, o simples fato de haver uma menção não significa, necessariamente, o entabulamento de um verdadeiro diálogo entre Cortes - a análise do inteiro teor dos acórdãos deixa isso muito cristalino. Trata-se dos seguintes casos: RE 669367; HC 115539; Inq 2842; Inq 2606; HC 165891; RHC 161728 AgR; RHC 154515 AgR; HC 151172 AgR; HC 157668 AgR; Ext 1327 AgR; RE 696533; Ext 1425 ED; Ext 1424 ED; Ext 1428 ED; RE 592581; Pet 7709; HC 171891 AgR; ARE 1054490 QO; RE 1092362 AgR; HC 152685 AgR; ADI 4263; HC 159807; RHC 138670 ED; RE 971959; AP 470. 35 Estão incluídos nessa categoria os acórdãos em que algum dos Ministros da Corte tão somente indica que o Brasil foi condenado perante à Corte IDH, sem maiores elucubrações. 36 ROA, Jorge Ernesto. La función consultiva de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2015. Disponível em: https://biblioteca.corteidh.or.cr/tablas/33439.pdf. Acesso em: 08 abr. 2022. 37 Trata-se dos seguintes casos: RE 511961; Ext 1126; ADI 5617; ADPF 461; ADPF 467; ADPF 526; ADPF 460; ADO 26; ADPF 457; MI 4733; ADI 4451; ADI 5418; ADPF 130. 38 Por sinal, a Opinião Consultiva nº 24/2017, que versa sobre a identidade de gênero, a igualdade e a não discriminação de casais do mesmo sexo, foi a mais referenciada pelo Supremo Tribunal Federal, aparecendo em 7 (sete) dos 13 acórdãos mencionados. Além dessa, foram citadas ainda: OC nº 5/1985 (4), OC nº 7/86 (2), OC nº 16/1999 (1) e a OC nº 18/2003 (1). 39 Importa esclarecer que, dentre os 75 acórdãos levantados, alguns estão relacionados a casos idênticos, porém com pronunciamentos distintos, a depender do andamento processual. Por se tratarem de decisões distintas, optou-se por mantê-las, independentemente da identificação dos casos. 34 346 Dos 71 acórdãos em que o STF menciona algum precedente ou alguma Opinião Consultiva da Corte IDH, em 59,15% deles (42 acórdãos) 40 não há qualquer espécie de diálogo. Essa conclusão está amparada em alguma(s) das seguintes constatações: (i) o STF apresentou apenas o resultado final (condenação) do caso submetido à Corte IDH; (ii) o STF indicou apenas os artigos violados da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, sem maiores elucubrações; (iii) o STF apresenta apenas um pequeno trecho do precedente invocado, sem quaisquer esclarecimentos dos fatos relativos ao caso; (iv) o STF apresenta apenas um conceito constante do precedente da Corte IDH, sem uma maior e melhor análise do caso propriamente dito; (v) o STF apenas decidiu que o precedente invocado por algumas das partes não se aplica ao caso concreto, com ínfimos esclarecimentos; ou (vi) o STF apresenta a interpretação da Corte IDH e a conclusão do precedente aludido em apenas um ou dois singelos parágrafos, sem indicar o contexto fático ou a ratio decidendi da decisão importada. Diante destas constatações, é ilegítimo dizer que houve um diálogo entre Cortes nestes casos, visto que a forma e o modelo de utilização dos precedentes invocados revelam um caráter de mera retórica,41 aliada com um modelo de utilização decorativo, ou seja, com a finalidade de “embelezar” a decisão com aportes estrangeiros que pouco dialogam com o caso sob apreciação, tampouco com a ratio decidendi do acórdão confeccionado. Portanto, é de se concluir que, dos poucos casos em que se constatou o recurso à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo STF, em apenas 29 acórdãos42 houve um mínimo diálogo,43 ou seja, o Supremo invocou os precedentes e/ou Trata-se dos seguintes casos: HC 110237; HC 105256; HC 112936; HC 109544 MC; HC 106171; HC 110185; RE 646721; ADI 3738; HC 141949; HC 87395; AP 891; RE 601182; ADI 6347 MC-Ref; ADI 5243; RE 878694; HC 164493; HC 105348; ADI 5122; ADI 6062 MC-Ref; RE 654833; ADPF 709 MC-Ref; HC 107731 Extn; Ext 1424; Ext 1426; ADPF 548 MC-Ref; Ext 1425; ADC 42; Ext 1578; RE 929670; ARE 1099099; Pet 3388; HC 174759; ADI 4277; ADPF 132; RE 591054; ADI 4439; AP 937 QO; ADPF 460; ADPF 526; ADPF 467; ADPF 461; ADI 5617. 41 Veja-se trecho de fala de um dos ministros do STF acerca do recurso à Corte IDH: “O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - De resto, vamos fazer uma observação. Raramente teve-se um processo com tal cuidado de observância do devido processo legal; quer dizer, o recurso à Corte Interamericana – vamos reconhecer – é um recurso de retórica processual”. (AP 470, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC 22-042013 RTJ VOL-00225-01 PP-00011) 42 Trata-se dos seguintes casos: ADPF 635 MC-TPI-Ref; ADPF 496; HC 171118; ADPF 635 MC; HC 143988; ADI 3239; HC 178856; AP 470 AgR-vigésimo sexto; RHC 117076 AgR; Ext 1362; HC 176933; ADI 2404; ADI 4275; RE 670422; HC 124306; Rcl 38782; ADC 43; ADPF 378 MC; ADC 43 MC; ADI 4815; HC 152752; RE 511961; Ext 1126; ADO 26; ADPF 457; MI 4733; ADI 4451; ADI 5418; ADPF 130. 43 Fala-se em “mínimo diálogo” tendo em vista que, dos 29 acórdãos em que se reconheceu a presença de um diálogo com a Corte IDH, em pelo menos 8 deles houve ressalvas, porquanto o diálogo foi muito singelo, a ponto de gerar dúvidas se, de fato, foi caracterizado um diálogo. Tratam-se dos seguintes casos: HC 171118; HC 178856; RHC 117076 AgR; HC 176933; Rcl 38782; ADC 43; ADPF 378 MC; HC 152752. 40 347 Opiniões Consultivas apresentando, minimamente, as características do caso e/ou a interpretação dada pela Corte IDH. Contudo, importante esclarecer que, mesmo nos casos em que se identifica a existência de um mínimo diálogo, ainda está longe do que se espera e do que se entende por diálogo entre Cortes, isto é, a utilização racional e fundamentada do precedente interamericano pelos julgadores, com exposição dos elementos que levaram o julgador à adoção da ratio decidendi exposta no julgamento tomado como parâmetro, ao seu afastamento ou à sua superação, o que possibilita a todos acompanhar o raciocínio desenvolvido e evita a mera escolha arbitrária dos precedentes.44 Em outras palavras, a interpretação das decisões e Opiniões Consultivas da Corte Interamericana deve ser cotejada cuidadosamente, sem referências superficiais, sem meras transcrições e sem converter o que deveria ser um diálogo em um puro e simples adorno interpretativo. Porém, é facilmente constatado esse modelo de utilização dos precedentes do SIDH, mesmo nos casos identificados como resultados positivos (“mínimo diálogo”). Não obstante, percebe-se que, ainda que paulatinamente, os Ministros do STF têm buscado promover um melhor aproveitamento do arcabouço interpretativo da Corte IDH (casos contenciosos e consultivos) em sede das deliberações do Tribunal. Até 2008, por exemplo, não houve qualquer menção à Corte Interamericana nos conteúdos decisórios da Suprema Corte brasileira. Entretanto, a partir de 2009 houve uma mudança significativa, posto que os Ministros começaram a citar casos e Opiniões Consultivas da Corte IDH em seus pronunciamentos (ainda que carentes de um efetivo diálogo). Como prova dessa mudança, constatou-se que dos 71 acórdãos analisados, 63% deles (total de 45) decorreram de julgamentos realizados entre 2018 e 2021, com destaque aos julgamentos proferidos no ano de 2020, que constituem mais de 30% dos acórdãos em que houve menção a casos contenciosos e/ou Opiniões Consultivas da Corte IDH. Dessa forma, é digno o reconhecimento de que o Supremo Tribunal Federal brasileiro vem se abrindo, ainda que de modo paulatino, às jurisdições internacionais, de modo que não há sentido em alegar uma suposta resistência da Corte ao controle de convencionalidade, pois se percebe um esforço dos Ministros direcionado à promoção de um maior e melhor diálogo com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, especialmente nos últimos 4 anos. Essa crescente e paulatina abertura da ordem local ao SCHÄFER, G. et. al. Diálogo entre o Supremo Tribunal Federal Brasileiro e a Corte Interamericana de Direitos Humanos: uma realidade nos dias atuais? Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 44, n. 143, dez. 2017, p. 224. 44 348 diálogo vertical com a jurisdição do SIDH é fator capaz de dinamizar a pavimentação de um ius commune em direitos humanos na região.45 Considerações Finais A teoria do controle de convencionalidade é um assunto relativamente recente na teoria dos direitos humanos, especialmente no contexto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), e, portanto, estudos e investigações nesse campo são de suma importância - ainda na atualidade. Como se viu, o presente trabalho teve por objetivo analisar o modus operandi do Supremo Tribunal Federal brasileiro no exercício controle de convencionalidade, tomando como parâmetro a jurisprudência e as opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Partiu-se da compreensão de que o controle de convencionalidade é um dos instrumentos mais eficazes para estabelecer um diálogo multinível em matéria de direitos humanos, sendo também um mecanismo para a implementação do sistema internacional de proteção dos direitos humanos nos sistemas jurídicos nacionais, contribuindo, assim, para a formação de um ius commune latino-americano. A principal conclusão é que a Corte Constitucional brasileira falha no exercício do controle de convencionalidade, deixando de recorrer de maneira adequada e satisfatória aos princípios, jurisprudência e padrões protetivos do Sistema Interamericano ao analisar e julgar casos submetidos à sua jurisdição. Não obstante, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal tem se aberto, embora gradualmente, para as jurisdições internacionais, e não há resistência da Corte ao controle de convencionalidade. Observa-se, inclusive, um esforço dos Ministros em promover um diálogo mais amplo e efetivo com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, especialmente nos últimos cinco anos. Essa abertura crescente e gradual do sistema jurídico brasileiro para o diálogo vertical com a jurisdição do SIDH é um fator que pode impulsionar a construção de um ius commune em direitos humanos na região. No entanto, ainda é necessário desenvolver um diálogo real entre as Cortes, com um compromisso especial em relação aos precedentes ou materiais estrangeiros adotados, para além de uma utilização meramente decorativa ou voltada para o reforço retórico, como observado em uma parcela significativa dos casos analisados. 45 Cfr. PIOVESAN, F. “Direitos humanos e diálogo entre jurisdições”, ob. cit., p. 93. 349 Afinal, é sempre bom lembrar que controle de convencionalidade não diz respeito tão somente a uma “adaptação interpretativa” das normas internacionais de direitos humanos, mas cumpre também a função de convocar os juízes e tribunais brasileiros a revisarem seus papéis na construção da sociedade e na proteção dos direitos humanos, no sentido de questionar “sua autorreferencialidade” como órgãos autossuficientes e fechados em si mesmos, para se abrirem a diálogos (re)produtivos no viés dos direitos humanos, seja por meio da reciprocidade de legitimidade normativa, seja mediante o diálogo interjurisdicional.46 Referências Bibliográficas AGUILAR CAVALLO, G. Juiz constitucional e diálogo jurisdicional multinível: a experiência chilena. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 6, n. 1, p. 61-89, jan./abr. 2019. DOI: 10.5380/rinc.v6i1.57697. BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. CHAVES, D.G.; SOUSA, M.T.C. O controle de convencionalidade e a autoanálise do poder judiciário brasileiro. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, v. 61, n. 1, jan./abr. 2016. p. 94-105. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, Série C, nº 154, Sentença, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. 26 set. 2006. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2016/04/7172fb59c130058 bc5a96931 e41d04e2.pdf. Acesso em: 15 abr. 2022. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gelman vs. Uruguai, Série C, nº 221, Mérito e Reparações. 24 fev. 2011. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/ uploads/2016/04/09b4d396111fe41e886a744a9f8753e1.pdf. Acesso em: 15 abr. 2022. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Liakat Ali Alibux vs. Suriname, Série C, nº 276, Sentença, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. 30 jan. 2014. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2016/04/76dc0db31092 5e305df1def0e12c9ee7.pdf. Acesso em: 15 abr. 2022. CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Trabajadores Cesados del Congreso (Aguado Alfaro y otros) Vs. Perú, Série C, nº 158, Sentença, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. 24 nov. 2006. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_158_esp.pdf. Acesso em: 15 abr. 2022. FACHIN, M.G. Direito Humanos e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2015. p. 149. HEEMANN, T.A.. O exercício do controle de convencionalidade pelo membro do Ministério Público. In: 23º CONGRESSO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2019, Goiânia. Teses. Goiânia: 2019. Disponível em: https://escolasuperior.mppr.mp.br/ arquivos/File/MP_Academia/Teses_2019/Thimotie_Heemann__O_exercicio_do_ controle_de_convencionalidade.pdf. Acesso em: 22 mar. 2022. Cfr. CHAVES, Denisson Gonçalves; SOUSA, Mônica Teresa Costa. “O controle de convencionalidade e a autoanálise do poder judiciário brasileiro”, ob. cit., p. 104-105. 46 350 MAZZUOLI, V.O. Curso de Direito Internacional Público. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 488-490. MAZZUOLI, V.O. O controle jurisdicional de convencionalidade das leis. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 51-81. MAZZUOLI, V.O. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do “diálogo das fontes. Revista Argumenta – UENP. Jacarezinho. Nº 15. p. 77-114. 2011. NEVES, M. Do diálogo entre as cortes supremas e a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao transconstitucionalismo na América Latina. Revista de Informação Legislativa. Brasília, DF, ano 51, n. 201, jan./mar. 2014. p. 194. NICOLAU, L.P. 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El Futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. San José: Corte Interamericana de Direitos Humanos e UNHCR, 2003.p. 91. 351 A Cidade Educadora como Agente Emancipatório no Exercicio da Cidadania Participativa The Educating City as an Emancipatory Agent in the Exercise of Participatory Citizenship Nathalia Viana Lopes1 Joel Bombardelli2 Sumário: 1. Introdução; 2. A educação centralizada e a cidade moderna; 3. A cidade educadora; 4. Os espaços de educação; 5. Considerações finais. Resumo: Perante o ideário liberalista, que conduz o cidadão à omissão frente à luta por direitos e políticas públicas, a cidade educadora, ramo do direito à cidade, se mostra como instrumento de emancipação do citadino, a partir da descentralização da educação bem como da pluralização de agentes educadores, reconduzindo o cidadão ao protagonismo na defesa de suas pautas. Lançando mão do método explicativo e da pesquisa bibliográfica qualitativa, o presente artigo objetiva apresentar a importância da descentralização da educação na cidade moderna, o conceito de cidade educadora como ramificação do direito à cidade e como se deu sua instituição na história, bem como, definir os espaços de educação formal, não formal e informal e qual sua importância para o cidadão em formação. Para isto foram analisadas as obras doutrinárias: Cidades educadoras: Possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia, escrita pelo Doutor em Cidades Educadoras, professor Valter Morigi; Cidades Educadoras: Um olhar acerca da cidade que educa, escrita em coautoria por Alceli Ribeiro Alves e Elena Justen Brandenburg; e pela obra Educação em direitos humanos: um discurso, de Eni Puccinelli Orlandi, entre outras bibliografias, além de propor soluções para o impasse educacional vivido hodiernamente no Brasil. Palavras-chave: Cidade Educadora; Educação Cidadã; Cidadania; Direito da Cidade; Educação Descentralizada. Abstract: Faced with liberal ideals, which lead citizens to omission in the fight for rights and public policies, the educating city, a branch of the right to the city, shows itself as an instrument. For the emancipation of the city dweller, based on the decentralization of education, as well as the pluralization of educational agents, bringing the citizen back to the protagonism in the defense of their agendas. Making use of the explanatory method and qualitative bibliographical research, this article aims to clarify the importance of the decentralization of education in the modern city, the concept of an educating city as a branch of the right to the city and how its institution took place in history, as well as defining the spaces of formal, non-formal and informal education and what is its importance for the Graduanda em Direito, pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Brasil; Integrante dos grupos de pesquisa Direitos Humanos na Era Cibercultural: educomunicação, distopia, política e democracia; e Políticas Públicas para a Educação Cidadã: saberes, práticas e acesso à justiça na Amazônia; ambos os grupos coordenados pela Professora Dra. Aparecida Luzia Alzira Zuin (UNIR). Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/9616581940474031. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5996-7959 Contato: [email protected]. 2Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí UNIVÁS (2015-2019); Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2000); Graduado em Ciências Contábeis pela Universidade Federal de Rondônia (1990); Professor da Universidade Federal de Rondônia, dedicação exclusiva da Universidade Federal de Rondônia. Professor do Mestrado Profissional em Administração Pública PROFIAP/UNIR. Desenvolve pesquisa em Análise de Discurso e Contabilidade - Sujeito, sociedade, neoliberalismo e sentido no discurso da contabilidade. Discurso e Sociedade. Discurso e Direito da Cidade. Contato: [email protected] 1 352 citizen in formation. For this, the doctrinal works were analyzed: Educating Cities: Possibilities of new public policies to reinvent democracy, authored by the Doctor in Educating Cities, Professor Valter Morigi; Educating Cities. A look at the city that educates, co-authored with Alceli Ribeiro Alves and Elena Justen Brandenburg; and the book Education in human rights: a speech, by Eni Puccinelli Orlandi, among other bibliographies, in addition to proposing solutions to the educational impasse currently experienced in Brazil. Keywords: Educating City; Citizen Education; Citizenship; City’s Law; Decentralized Education. 1. Introdução Os caráteres liberais basilares da concepção das constituições federais modernas, podem ser observados desde a idade média3, neste contexto, a fim de garantir a proteção de direitos relativos à propriedade e tributação, além de blindar o próprio sistema feudal é que foi imposto ao monarca inglês João Sem-Terra em 1215 a Carta Magna (primeiro documento angular da constituição britânica)4. Apesar de supramencionado, é com a Revolução Francesa no Séc. XVIII, paralelamente ao advento do capitalismo e do modo de produção capitalista 5, que a constituição adquire os ânimos de modelo individualista liberal de organização do poder político e das classes sociais; e de direitos civis e fundamentais 6. Consoante Juliana Palar, Igor Bueno e Maria Silva, o modelo individualista apresenta dois momentos cruciais: primeiramente ele afirma os direitos naturais individuais (ainda com foco no direito à propriedade). A partir disso, tem-se um rol de direitos que devem ser respeitados em face de tudo e de todos. Em segundo lugar, ele explica a ordem política através do contrato social, repudiando o poder absoluto e divino do monarca7. Destarte, pelo momento de concepção8 e ideais liberais empregados, é inegável a presença do espírito capitalista no texto constitucional, transformando essencialmente o referido documento no que Leonardo Araujo Negrelly denomina como Constituição 3 SOARES, R.E. O conceito ocidental de constituição. Revista de legislação e de jurisprudência, Coimbra, ano 119, n. 3743, p. 36-73, jun. 1986. 4VARGAS PALAR, J; MENDES BUENO, I; OLIVEIRA DA SILVA, M.B. O primado da Constituição como fator de desenvolvimento das relações de produção capitalistas / The primacy of Constitution as a factor of development of the capitalists production relations. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 11, n. 2, p. 911-943, jun. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/ view/42290/30894>. Acesso em: 11 jun. 2023. 5 Conforme argumentado por Covre, o advento capitalista tem início no século XV com a ascensão da burguesia em luta contra o feudalismo que não possibilitava a mudança de classe social, condenando os cidadãos ao status social de nascimento. Para mais, vide: COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. 2ed. São Paulo: Brasiliense, P. 23, 1996. (Coleção Primeiros Passos, 250). 6 Ibidem, p. 913. 7 Ibidem, p. 921. 8O momento de concepção da constituição como conhecemos hoje, se deu no século XVIII, no modelo revolucionário francês, paralelamente ao nascimento do capitalismo que origina da luta dos burgueses contra o feudalismo. 353 Econômica (responsável por organizar e instituir o sistema econômico)9. Compreende-se como exemplo claro presente na Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, o direito fundamental à educação, garantido pelo texto constitucional, porém com o objetivo final de capacitação laboral e não de emancipação representativa (como se demonstrará adiante). O escopo demonstrado intrinsecamente é de propiciar a continuidade do sistema econômico. Desfavorável à cidade educadora e a emancipação cidadã, o modelo de educação majoritariamente adotado no Brasil, nomeado por Valter Morigi como modelo conformista, é pautado na objetificação e fetichização do cidadão como “meio de produção”, focado em disciplinar e doutrinar crianças para que se tornem moeda de troca no sistema capitalista futuro, a partir de sua mão de obra não qualificada, endossando a bipolaridade de classes 10 estabelecida pelo capitalismo, que confere ao subalterno “figurantismo” na salvaguarda de direitos e da democracia11. A validação da bipolaridade social, é interpretada neste trabalho como sinônimo do sucateamento instituições públicas de ensino, promover a mercantilização da educação e por fim incentivar situações de desemprego e miserabilidade que forçam o citadino à margem, em um local de omissão fronte a sociedade. Para que o cidadão retome a visão de si mesmo como protagonista de seus direitos na ocupação da cidade e exercício da cidadania, é necessário romper a concepção de modelo centralizado de educação (que reforça a segregação e omissão de classes sociais desfavorecidas) e adotar a educação plural, social e emancipatória responsável pela formação de cidadãos que buscam ativamente a mudança no cenário político/social opressor das cidades modernas. Diante da explanação, a fim de atenuar a bipolarização social e promover a formação de cidadãos que se percebam como protagonistas na cidade, é necessário elucidar: a importância da descentralização da educação na cidade moderna, o conceito de cidade educadora como ramificação do direito à cidade e como se deu sua instituição na história, bem como, definir os espaços de educação formal, não formal e informal e qual sua importância para o cidadão em formação. 9 NEGRELLY, L.A.. Constituição econômica e o capitalismo: uma análise segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. XIX Encontro Nacional do CONPEDI: Fortaleza, CE, 09,10,11 e 12 de junho de 2010. Disponível em: https://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3671.pdf 10 Ao mencionar a bipolaridade de classes, busca-se demonstrar como o modelo conformista centralizado de educação contribui para que as diferenças econômicas e sociais entre as classes permaneçam tão evidentes de maneira que a classe abastada e a classe desfavorecida ocupem cada uma, polos distantes e opostos à outra. 11 MORIGI, Valter. XVIII Seminário Internacional de Formação de Professores para o MERCOSUL/CONE SUL: Cidades educadoras – a possibilidade de uma nova educação. Florianópolis/SC: UFSC, p.421 a 430, 2010. 354 Importa ressaltar, que o propósito deste artigo, limita-se à defesa do modelo descentralizado de educação e da implantação da cidade educadora para a emancipação do cidadão politicamente e socialmente ativo, reconhece-se a necessidade de aprofundamento acerca do tema, haja vista a multiplicidade da matéria. Em esferas mais avançadas de pesquisa acadêmica, sugere-se maior alcance teórico, com foco na identificação dos espaços de educação na cidade e análise do proscênio municipal frente ao plano diretor, a fim de aferir a compatibilidade do dispositivo com os princípios de cidade educadora e participação cidadã. Por fim, com a finalidade de alcançar o que se propõe, este trabalho, se vale da pesquisa bibliográfica, qualitativa e do método explicativo, amparado sobretudo nas obras: Cidades educadoras: Possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia, escrita pelo Doutor em Cidades Educadoras, professor Valter Morigi12; Cidades Educadoras: Um olhar acerca da cidade que educa, escrita emcoautoria por Alceli Ribeiro Alves e Elena Justen Brandenburg13; e pela obra Educação em direitos humanos: um discurso, de Eni Puccinelli Orlandi14, entre outras bibliográfias. 2. A Educação Centralizada e a Cidade moderna Enquanto a obra Cidades Antigas de Coulanges(1961) traduz a cidade antiga (grega e romana) como um espaço de apartheid de indivíduos baseado em crenças e culturas segregacionistas, que definiam a cidade com base na associação de cidadãos-integrantes de uma mesma religião doméstica, que em caráter familiar organizavam-se subordinados ao chefe de família/sacerdote do culto15; o conceito de cidade moderna para Alceli Ribeiro Alves e Elena Justen Brandenburg, foge da rasa definição tradicional objetiva pautada em território, extensão ou conjunto de indivíduos e moradias, para dar vazão à subjetividade da cidadania, da democracia e das inter-relações pessoais integrativas, portanto, a tradução dada à cidade pelas autoras consiste na leitura de que a cidade como: [...]espaço ou território educativo, deve considerar não apenas as estruturas materiais nela existentes (edifícios ruas, meios de transporte etc.), mas também as 12 MORIGI, V. Cidades educadoras: possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia. Porto Alegre: Editora Sulina, 2016. 13 ALVES, Alceli Ribeiro; BRANDENBURG, Elena Justen. Cidades educadoras: um olhar acerca da cidade que educa. Curitiba: Intersaberes, 2018. 14 ORLANDI, Eni Puccineli. Educação em direitos humanos: um discurso. Humanidades e inovação, vol 7, n 20, 2020: Direitos Humanos II. Disponível em: FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS | Humanidades & Inovação (unitins.br) 15 COULANGES, N. D. Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas S.A. EDAMERIS, 1961. 355 relações materiais ou imateriais, que a sociedade estabelece no e com o espaço da cidade16 A perspectiva que Alves e Brandenburg (2018) conferem à cidade, é em todos os momentos relacionada à educação e cidadania por isto, tem enfoque na transformação social a partir da inserção e ocupação do espaço da cidade, desacorde do panorama greco-romano exprimido por Coulanges, que tem em seu âmago a silenciação da subalternidade. Eni Orlandi, doutora em linguística pela Universidade de São Paulo (USP), aponta uma falha da educação na cidade moderna como estopim na busca por direitos17 ao se referir a ela como um signo que adota padrões copistas hegemônicos respaldados em métodos e características europeias, exitosos no processo e memória histórica que embasou a ruptura do modelo colonial europeu (sobretudo francês) que marca o início da idade contemporânea18, no entanto, Orlandi aponta que: Com isto estamos dizendo que os direitos humanos, no caso francês, por exemplo, têm uma memória, é algo histórico que se universaliza e funciona no registro de princípios gerais, válidos para todos. Mas se temos dizeres que não se enraízam em condições concretas, eles são incompreensíveis. É preciso, então, trabalhar os modos de sua produção e elaboração. Para nós, assim como para muitas sociedades que viveram o regime da colonização e não tiveram um gesto de ruptura em que a experiência da cidadania se colocava como um objetivo de luta, de conquista, de reconhecimento e identificação, o texto da Declaração é um texto “importado”, “traduzido” e afixado como “modelar”. Um padrão a seguir. É um modelo a ser seguido, não são sentidos conquistados e incorporados em nossa memória social e política19. Portanto, para extinguir esta prática que molda o cidadão com base no padrão histórico europeu, e outorgar ao citadino a possibilidade de incorporar seus sentidos à memória social e política personalizada de acordo com o meio real que habita, é que se faz necessário o rompimento com o modelo tradicional e a adoção da vivência urbana na educação garantindo assim ao indivíduo, além da compreensão do seu entorno histórico, o sentimento de pertencimento social em caráter não omissivo. Romper com o protótipo europeu tradicional de educação, como defende Orlandi, não significa desprezar os grandes feitos e saberes adquiridos com a evolução da humanidade, mas, adaptá-los ao quadro sociopolítico atual. Destarte, a fórmula genérica tradicional, 16 ALVES; BRANDENBURG. Op. Cit. p. 24 Na obra, Orlandi identifica o caráter resolutivo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos confere à educação ao classificá-la como uma grande ”chave” na solução de conflitos políticos, e como isto ocorre na cidade moderna, por isso a menção da educação como estopim na busca por direitos. Mais a respeito em ORLANDI. Op. Cit. p. 309 18O ponto de destaque em questão é a queda da Bastilha em 1789, estopim da revolução francesa motivada pela desigualdade social, pela fome, e pela insatisfação burguesa e popular frente às regalias aristocráticas. A revolução francesa foi pautada com base em ideais iluministas e liberais. 19 Ibidem, p. 309. 17 356 possibilita a ciência de conquistas alheias díspares com o meio social vivido pelo educando brasileiro, enquanto o modelo personalizado e moldado à cidade formadora de opinião, possibilita a participação ativa da sociedade em função do bem comum. Filiar a educação exclusivamente à moda europeia ministra ao cidadão o papel exclusivo de figurante na perquirição de suas prerrogativas. Infelizmente, o protótipo dominante que se encontra no Brasil é ainda muito semelhante ao modelo conformista conceituado por Morigi20, ou seja, um sistema empregado quase que exclusivamente para formar homens fetichizados21, mercadorias de produção de lucro no sistema capitalista. Endossar esta produção de personalidade “laboralizada” e “fetichizada”, reforça a bipartição da cidade baseada em classes sociais, no que Dietzch (2006) denomina por cidade visível e invisível, sendo esta nas palavras da autora uma cidade a ser descoberta22, a cidade silenciosa que abriga aqueles contra quem o objetivo do sistema não é o de apenas cercear a palavra, mas o de bloquear o próprio homem, que se rebela, em suas possíveis ações 23, tornando-o omisso; e aquela a cidade superficialmente observada, composta pelos que facilmente se fazem ouvidos e que tem seus interesses abarcados pelo sistema capitalista . No mesmo sentido, Araújo (2011) diz: A invisibilidade de determinados tipos de sujeitos no processo de materialização da cidade é que a esvazia da dimensão pública, dando-lhe uma configuração privada, fundada no modo como os indivíduos isoladamente são percebidos na dinâmica social24. Isto posto, possibilita a análise de que a mercantilização da educação, a materialização da cidade e o imediatismo tão característicos do modelo capitalista, contribuem à silenciação e ao isolamento do cidadão que se percebe apenas como meio de produção, e não como detentor de apanágios ou integrante de um corpo social. Consoante Dietzch (2006), quando 20 MORIGI, Valter. Cidades educadoras: possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia. Porto Alegre: Editora Sulina, 2016. 21 O conceito de homem fetichizado é incorporado ao texto, paralelamente à teoria do fetichismo da mercadoria abordada por Karl Marx, na seção 4 do primeiro capítulo da obra O Capital, que consiste na inobservância do valor de troca e das relações de produção, pelo consumidor que na aquisição do produto final foca apenas no valor de uso da mercadoria. Neste contexto, o trabalhador detém da força de trabalho sem ter ciência de sua mais-valia, portanto, é para o empregador, mero produto ou mercadoria, sendo o seu valor de uso, a produção e o lucro (mais-valia) e seu valor de troca o salário defasado (indiretamente produzido a partir da força de trabalho do próprio empregado). Para complementações, vide: MARX, Karl. O Capital - Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, K. O Capital - Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. 22 DIETZCH. Op. Cit. p. 730. 23 Ibidem. P.734. 24 ARAÚJO, Vania C. A cidade como espaço público de educação e de afirmação da cidadania: a experiência de Vitória/ES, Brasil. UFRGS: RBPAE, v. 27, n. 1, P. 137, 2011. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19973 357 se admite que por trás da cidade que se vê, há uma outra invisível a ser desvendada, é, no mínimo ingênuo, pretender aproximar-se da metrópole sem que se tente a leitura dessa cidade subjetiva que não se expõe de pronto à vista25, desta forma, harmonizar a fragmentada cidade moderna exige trazer à luz a cidade invisível e seus componentes. O citadino invisível afetado pelo protótipo não emancipatório de educação, muitas vezes desconhece seu papel na ocupação da cidade bem como suas prerrogativas jurídicas, sendo por isto novamente silenciado pela educação centralizada ao se ver como vítima de vertretung, termo em alemão utilizado por Gayatri Spivak na obra Pode o subalterno falar? para caracterizar a representação produzida por terceiro que julga o subalterno incapaz de se autorrepresentar26. Compete mencionar a educação centralizada (que tem o arquétipo de exclusividade da autoria da educação nas mãos da escola), como padrão tradicional supracitado adotado no Brasil atualmente, responsável pela manutenção da polarização da cidade por não emancipar o indivíduo como cidadão. Neste sentido, Morigi aponta: A escola tradicional reproduz modelos, não estimula a participação dos estudantes e da comunidade, define o professor como o centro das atividades e propostas, firma previamente os conteúdos a serem ensinados e despreza o conhecimento de mundo dos educandos27. Nesta ótica, para que a educação oportunize a reflexão, a análise, a crítica e a capacidade de participação ativa no contexto social, é necessária a compreensão de que o cânone centralizado é obsoleto e insuficiente sendo preciso implantar o protótipo constitucional de educação descentralizada28 instituído no Art. 205, CRFB/88: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho29. A Constituição brasileira não declara expressamente ser um documento capitalista, mas está repleta de informações tácitas a esse respeito30. Ao passo que o legislador insere não só o exercício da cidadania como fim para a educação 31, mas também insere a qualificação 25 DIETZCH. Op. Cit. P. 730. SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 27 MORIGI. Op. Cit. P. 59. 28 É indispensável mencionar que propor a referida descentralização, não implica na exoneração do estado, que também figura no rol de atores da educação, mas na ampliação desse rol. 29 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 30 NEGRELLY. Op. Cit. p. 2392. 31 O legislador não deixa claro o sentido de cidadania no texto legal, não expressa se refere ao fim estritamente eleitoral ou se trata do sentido alargado de cidadania, compatível com a variedade de direitos abarcados pelo Direito da Cidade mencionado por Lefebvre (2008). Além disso, ao atribuir à educação o fim de qualificação laboral, a compreensão deste trabalho é de que o legislador na verdade denota que só se alcança a cidadania a partir do trabalho. 26 358 para o trabalho como objetivo final da educação, reforça o que Karl Marx nomeia de posse dos meios de produção32; Sendo deste modo, os proprietários a menor parcela da população que dispõem de recursos e habitam a cidade visível e os meios de produção os citadinos proletários, habitantes da cidade invisível33. Paralelo ao texto constitucional, Morigi revela a importância de descentralizar e expandir a autoria da educação para a reinvenção da democracia ao aludir que: Para despertar nos cidadãos o interesse nos destinos de seu município, precisamos pensar e criar novas práticas participativas que influam nos caminhos dos governos. Esses novos processos precisam ser mais eficazes do que os conhecidos até o momento, para que se inicie a transformação da cultura política, possibilitando um real envolvimento das diversas camadas da população, muito além da simples presença obrigatória nos pleitos eleitorais34. Dessarte, a desconcentração do ensino cidadão, se mostra cada vez mais como a chave, indicada por Orlandi, na busca pela compreensão da cidade como espaço de permanência, em que se observam as tonalidades polifônicas e se compreendem os polos visíveis e invisíveis. A desconcentração exige ainda que o estado, a sociedade e a família exerçam seu papel constitucionalmente definido para que a cidade se abra fazendo com que os atores da educação a exercitem com e para os educandos. 3. A Cidade Educadora Para estudar a cidade educadora, é preciso antes abordar o Direito à cidade 35 que consiste na prerrogativa dos cidadãos e dos grupos por ele formados de integrar e ocupar o espaço extraterritorial da cidade, o espaço de perquirição de direitos. Neste panorama, Henri Lefebvre, ilustra a perspectiva da classe operária, inserida no seio da sociedade sem poder se opor a ela e alude às maneiras pelas quais o direito à cidade é um fator decisivo na conversão da realidade citadina desses indivíduos: Em condições difíceis, no seio dessa sociedade que não pode opor-se completamente a eles e que, no entanto, lhes barra a passagem, certos direitos abrem caminho, direitos que definem a civilização (na, porém frequentemente contra a sociedade – pela, porém frequente contra a cultura). Esses direitos mal reconhecidos tornam-se pouco a pouco costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados. Mudariam a realidade se entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida. Entre esses direitos em formação, figura o direito à cidade (não à cidade arcaica, mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de Para complementações, vide: MARX, Karl. O Capital - Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, K. O Capital - Livro I – crítica da economia política: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. 33 DIETZCH. Op. Cit. p. 730. 34 MORIGI. Op. Cit. P. 63. 35 Termo inicialmente proposto por Henri Lefebvre, em 1968, aos escrever a obra o direito à cidade em homenagem aos 100 anos de publicação da obra O Capital, escrita por Karl Marx. 32 359 trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais etc.)36. Importa frisar que a versão original da obra supramencionada foi escrita em 1968, desde então muitos avanços foram observados nas relações sociais e nas políticas públicas, no entanto, o direito à cidade permanece se desdobrando em outros apanágios como o direito ao trabalho, à moradia digna, ao saneamento ambiental, saneamento básico, saúde, transporte público, lazer e educação emancipatória a fim de assegurar a cidadania participativa dos citadinos. Equidistante à obra de Lefebvre, Gobbi, Leite e Anjos (2021), abordam a leitura e o sentido que o autor concerne o tema, de maneira a evocar características da teoria fetichista da mercadoria de Karl Marx (haja vista que o Capital, foi texto motivador para Lefebvre na construção de sua obra), à vista disto, na perspectiva das autoras, Lefebvre rompe com tais características e com o imediatismo capitalista ao acusar a apropriação do espaço com o “valor de uso e troca” distorcidos, consistindo não em mercadoria ou em tempo/custo de produção, mas em unidade e consciência social acerca do exercício da cidadania: Henri Lefebvre (2008), que nos chama para pensar sobre a força das metrópoles, ou seja, para o urbano, afirma em O direito à cidade sua contrariedade à sociedade automatizada. Por isso, Lefebvre propõe a reflexão sobre o direito mais amplo relacionado não à cidade como consumo imediato e alienado, mas como espaço de criação, obra coletiva inventiva. Trata-se de conceber um direito à cidade, segundo o qual a apropriação do espaço se dá não como mercadoria, mas como consciência do grupo sobre suas necessidades não acumulativas 37. Tangenciando a diversidade de temas relacionados às garantias urbanas, Marcia Aparecida Gobbi, Maria Cristina Stello Leite e Cleriston Izidro dos Anjos, propõem o caráter contemporâneo de direito à cidade da seguinte maneira: A ideia de direito à cidade exige pensar sobre processos emancipatórios e sobre a efetiva construção e vigência da democracia. Recentemente o direito à cidade – proposto por Henri Lefebvre desde 1969 – tem sido retomado de diferentes modos, em especial por movimentos sociais urbanos, de modo a incluir as crianças desde bebês, fato ainda raro quando se trata de refletir com elas sobre a produção do espaço urbano, processos de segregação e espoliação, modos de vidas em diferentes contextos e condições econômicas, sociais e culturais, no passado e no presente38. A cidade educadora tem seu quinhão no direito à cidade no que se refere a educação emancipatória, em conformidade com o cenário histórico ocupado pelo educando e com o estudo das transformações havidas em seu meio social a fim de produzir no citadino o 36 LEFEBVRE, Henri. O direito á cidade. São Paulo: Centauro, p. 139, 2008. GOBBI, Marcia A.; ANJOS, Cleriston I. dos; LEITE, Maria C. S. Crianças educação e o direito à cidade: pesquisas e práticas. São Paulo: Cortez Editora, p. 22, 2021. 38 GOBBI; ANJOS; LEITE. Op. Cit. P. 15. 37 360 espírito democrático participativo não apenas no que tange o simples pleito eleitoral, mas na conquista e elaboração de políticas públicas. Ainda sobre o conceito de cidade educadora como ramificação do direito à cidade, Alves e Brandenburg exprimem o seguinte: O conceito de cidade educadora implica as diversas noções de cidade, porém apropria-se principalmente de seu caráter social e político, envolvendo a questão da cidadania e da educação. A perspectiva da cidade educadora aproxima-se, portanto, da noção de cidade desenvolvida por Lefebvre (2009), que a descreve como uma prática, um lugar de encontro e de formação 39. O modelo educacional promovido por esta ramificação, é concorde com o texto constitucional, pois implementa o standard participativo e descentralizado como padrão de maneira a conferir às instituições públicas e privadas, um caráter divergente do apresentado por Dietzch (2006), como resultado do protótipo concentrado, ou seja, da instituição que controla o citadino: Mas se há tempos que submetem o homem à barbárie que advém da ordem instituída por um Estado que proclama a guerra, ordena a perseguição política, sufoca a palavra, há tempos ainda, que obrigam o citadino a conviver com o medo e a desordem, que escapam pelos dedos das instituições, enfraquecidas para assumir o seu papel de controle da ordem pública. [...] Os meninos/meninas, que tiram de suas viagens pela cidade a matéria de seu relato, são narradores de uma aventura muito complexa, mas pouco apreciada. Como será realmente o seu tempo, até onde vão suas viagens, a quem servirão os seus conselhos tirados da experiência marginal vivida nas ruas, perguntávamonos. Capturados em um mundo de saídas limitadas, os meninos de rua inventam portas e desenham corredores. Constroem nos caminhos urbanizados uma rede invisível que adentra o submundo, para protegê-los das instituições e diferenciálos do cidadão que pode escolher seus caminhos pela cidade40 Ou do caráter - ainda relacionado ao protótipo concentrado – que rompe a qualidade de integrante do cidadão individualizando-o perante a sociedade, outorgado às instituições por Orlandi: Faz ainda parte dessa reflexão reconhecer que há em todo sujeito uma necessidade de laço social que sempre estará presente ainda que ele viva em situação sócio-histórica absolutamente desfavorável. O homem é um sujeito sócio-histórico e simbólico. É nesse processo de individualização que os sujeitos são pegos em cheio pelos modos como as instituições os individualizam. É aí que incide fortemente a educação e é também aí que podemos pensar tanto a reprodução como a resistência, a ruptura e os movimentos (dos sujeitos, dos sentidos, da sociedade, da história etc). Faz ainda parte dessa reflexão reconhecer que há em todo sujeito uma necessidade de laço social que sempre estará presente ainda que ele viva em situação sócio-histórica absolutamente desfavorável. O homem é um sujeito sócio-histórico e simbólico. É nesse processo de individualização que os sujeitos são pegos em cheio pelos modos como as instituições os individualizam. É aí que incide fortemente a educação e é também 39 40 ALVES; BRANDENBURG. Op. Cit. P. 24. DIETZCH. Op. Cit. P. 735 e 740. 361 aí que podemos pensar tanto a reprodução como a resistência, a ruptura e os movimentos (dos sujeitos, dos sentidos, da sociedade, da história etc)41. Importa mencionar que a individualização do citadino nesse aspecto consiste em sua exclusão e omissão gradativa. Enquanto o caráter das instituições (de controle e individualização) mencionados por Dietzch e Orlandi, divergem do arquétipo de cidade educadora, a essência da instituição no paradigma educador descentralizado, apresentado por Morigi, como proposta educadora libertária e cultural e inclusiva, converge com a ramificação do direito à cidade: Para que uma cidade se transforme em educadora, é necessário que assuma por meio de suas políticas, a intencionalidade formativa “dos” e “nos” seus projetos, com vistas a apoiar o desenvolvimento integral do(s) cidadão(s). A cidade educa nomeadamente a partir das instituições e das propostas culturais que veicula, das políticas ambientais, do tecimento produtivo, do associativismo local, etc. É, pois, necessário que se proponha objetivamente a trabalhar para o desenvolvimento de comportamentos que implementem a qualidade de vida de seus cidadãos, constituindo-se como uma proposta integradora da vida comunitária42. Posto isto, compete informar que o termo cidade educadora surge da retomada da ideia de planejamento urbano barcelonês em 1979, em declínio da percepção exclusiva de oportunidades econômicas adotada pela cidade em 1975. Desta forma, em 1990, foi realizado o primeiro Congresso Nacional de Cidades Educadoras, em Barcelona, que resultou na reunião de princípios basilares do impulso educador em um documento denominado Carta das Cidades Educadoras43. Simultaneamente, surge na década de 1990 a Associação das Cidades Educadoras (AICE) competente pela observação do cumprimento dos dogmas instituídos no documento supranarrado e também pela investigação de estratégias de estado que tem como foco a gestão participativa e os espaços de educação na cidade. 4. Os Espaços de Educação Sob o prisma das cidades educadoras, a ocupação do espaço urbano perde o caráter genérico para adotar o aspecto amplo de vivência social, nesta ótica, o espaço deixa de ser analisado apenas pelo quadro geográfico e adquire personalidade própria, de predicado educativo, através de instituições públicas e privadas que desempenhem projetos e ações educativas. 41 ORLANDI. Op. Cit. P. 297. MORIGI. Op. Cit. P. 40. 43 Mais a esse respeito em ALVES; BRANDENBURG. Op. cit, p. 55 a 65, 2018 e MORIGI. Op. Cit. p.80 a 87. 42 362 A esse respeito, Morigi endossa a magnitude da abertura da fronteira da escola com o espaço urbano: A defesa de a educação ser maior do que o espaço da escola e estar em todos os espaços urbanos, quer escolares ou de serviços públicos, como postos de saúde e assistência, quer espaços da comunidade, como igrejas, escolas de samba, etc., corresponde a um projeto educativo comum a um território que assuma a tarefa de indutor da educação permanente, com uma centralidade no poder público local, representado pelas prefeituras. A educação contemporânea, não se limita aos espaços da escola, e o educador busca uma integralidade, um aprendizado e a construção de atitudes e valores na vivência das cidades nas interações possíveis aos educandos nas relações e práticas sociais, exercitando a noção de cidadania e o respeito ao outro no espaço urbano, carregado de possibilidades educativas 44 Ainda neste sentido, consoante Gobbi; Anjos e Leite (2021), o espaço é produto e produtor de relações que se transformam ao longo do tempo revelando diferentes realidades 45, logo, apenas expandindo a educação do espaço escolar para o espaço urbano, é que se pode formar cidadãos que conheçam a historicidade da comunidade que integram e por conseguinte, que legitimem a gestão participativa. Afinal de contas, concorde Alves e Brandenburg, quanto mais se conhece e se vive a cidade, mais se torna possível compreender suas transformações e, em um cenário de gestão participativa, mais consciente e atuante uma sociedade pode ser na produção e na transformação do espaço da cidade46. Ao analisar os espaços de educação na cidade, Maria das Graças Alves Cascais e Augusto Fachin Terán - em unanimidade com a Carta das Cidades Educadoras47 - os classificam em formais, não formais e informais48. Em paráfrase à Carta das Cidades Educadoras, Alves e Brandenburg apontam de maneira didática e objetiva o conceito de cada uma das classificações de espaço urbano de educação: A respeito desses conceitos, a Carta das Cidades Educadoras estabelece que as ações educativas formais são aquelas presentes nas instituições de ensino, as não formais têm uma intencionalidade educadora para além da educação formal, e as informais são as ações ou intervenções não intencionais ou não planificadas, mas que desempenham um papel educador, ainda que não intencionalmente49. 44 MORIGI. Op. Cit. P.94. GOBBI; ANJOS; LEITE. Op.cit. P. 21. 46 ALVES; BRANDENBURG. Op. Cit. P. 42. 47 AICE - Asociación Internacional de Ciudades Educadoras. Carta das Cidades Educadoras. 2004 48 CASCAIS, M. G.A.; TERÁN, Augusto F. Educação formal, informal e não formal em ciências: contribuições dos diversos espaços educativos. Ciência em Tela, v. 7, n. 2, 2014. Disponível em: https://www.cienciaemtela.nutes.ufrj.br/artigos/0702enf.pdf 49 ALVES; BRANDENBURG. Op. Cit. P. 30. 45 363 O texto da referida carta, demonstra ser vago no que tange a definição do conceito desses espaços, devido a isto, diversos doutrinadores dissertam a respeito do tema. Cite-se como exemplo Souza (2008), que fixa o sentido do espaço de educação não formal com base em práticas lúdicas, culturais, sociais e políticas executadas por instituições, grupos religiosos, ONGs e movimentos sociais (mas dificilmente dentro da escola)50; Cascais e Terán (2014), que abordam espaço de educação informal associado à mídia e meios de comunicação 51; e Gadotti (2005) que define o espaço de educação formal como atividade educacional organizada com base em objetivos claros e específicos e é representada principalmente pelas escolas e universidades. Ela depende de uma diretriz educacional centralizada como o currículo, com estruturas hierárquicas e burocráticas, determinadas em nível nacional, com órgãos fiscalizadores dos ministérios da educação52. 5. Considerações Finais Embora a Constituição Federal de 1988, seja prestigiada e inovadora na defesa de direitos e garantias fundamentais e a primeira constituição brasileira a enunciar a finalidade de educar para o exercício da cidadania53, carrega expressivo caráter de defesa neoliberalista, fato que não contribui para a formação do cidadão emancipado e protagonista na busca ativa por direitos e políticas públicas, haja vista a reafirmação do citadino como objeto de produção fetichizado e insipiente acerca da mais-valia sobre a mão-de-obra. Muitos são os percalços enfrentados na implementação da educação descentralizada, formadora de opinião e incentivadora da gestão cidadã participativa na elaboração de políticas públicas. Porém, a fim de que o indivíduo deixe de ser equiparado à mercadoria fetichizada e se veja como protagonista de seus direitos individuais e coletivos e da ocupação citadina, estes obstáculos precisam ser superados. Com o detalhamento dos tópicos supra narrados, foram mencionados a educação centralizada na cidade moderna, bem como a necessidade de incorporação do modelo descentralizado de atores e espaços de educação para a manutenção da democracia e para o 50 SOUZA, C. R. T. de. A educação não formal e a escola aberta. In: Congresso Nacional de Educação EDUCERE, 8, 2008, Curitiba. 51 CASCAIS; TERÁN. Op. Cit. P. 2. 52 GADOTTI, M. A. A questão da educação formal/não formal. Droit à l’education: solution à tous les problèmes ou problème sans solution? Sion, 18 out. 2005. 53 Sobre a historicidade e evolução do conceito de educação nas constituições federais brasileiras, vide: FURTADO, M.G. A formação do cidadão conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010 e TEIXEIRA, Maria Cristina. O direito à educação nas constituições brasileiras. São Paulo: Revista do Curso de Direito da Escola de Gestão e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, v.5, n.5, 2008. 364 exercício da cidadania; A cidade educadora como quinhão do direito à cidade, que por concepção apresenta um breve resumo acerca de seu percurso histórico e o caráter educador emancipatório das instituições sob o standard descentralizado de ensino na cidade educadora; E por fim, foi conceituado o espaço urbano de ocupação social, e os espaços urbanos de educação formal, não formal e informal. São possíveis remédios para atenuar a luta para a incorporação e promoção das cidades educadoras no Brasil, a adoção e prática do paradigma constitucional de educação como dever de agentes pluralizados e a execução de projetos nas instituições públicas e privadas (não só as de ensino), que convidem a sociedade, ou seja, que abram a fronteira da escola, para que através de atividades lúdicas aos poucos, a comunidade se perceba ocupando os espaços da cidade, conhecendo suas demandas e perquirindo seus direitos. Emancipados desta forma, os cidadãos deixarão de ser subalternos tácitos para tornar-se protagonistas enérgicos, a polifonia da cidade se harmonizará de maneira menos contundente e mais consonante e por fim, o modelo obsoleto de educação deixará de ficar aquém da necessidade da população, ao romper com os padrões distópicos copistas e hegemônicos que moldam o indivíduo com base em experiências impertinentes ao seu convívio comunitário e realidade social. Referências Bibliográficas AICE - Asociación Internacional de Ciudades Educadoras. Carta das Cidades Educadoras. 2004 ALVES, A.R.; BRANDENBURG, Elena Justen. Cidades educadoras: um olhar acerca da cidade que educa. Curitiba: Intersaberes, 2018. ARAÚJO, V.C. A cidade como espaço público de educação e de afirmação da cidadania: a experiência de Vitória/ES, Brasil. UFRGS: RBPAE, v. 27, n. 1, 2011. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19973 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. CASCAIS, M.G.A.; TERÁN, Augusto F. Educação formal, informal e não formal em ciências: contribuições dos diversos espaços educativos. Ciência em Tela, v. 7, n. 2, 2014. Disponível em: https://www.cienciaemtela.nutes.ufrj.br/artigos/0702enf.pdf COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. 2ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Coleção Primeiros Passos, 250). SOUZA, C. R. T. de. A educação não formal e a escola aberta. In: Congresso Nacional de Educação - EDUCERE, 8, 2008, Curitiba. COULANGES, N. D. Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas S.A. EDAMERIS, 1961. 365 DIETZSCH, M.J.M. Leituras da Cidade e Educação. Scielo: Cadernos de Pesquisa, vol. 36, nº 129, p.727 a 759, 2006. Disponível em: SciELO - Brasil - Leituras da cidade e educação Leituras da cidade e educação FURTADO, M.G. A formação do cidadão conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010. GADOTTI, M.A. A questão da educação formal/não formal. Droit à l’education: solution à tous les problèmes ou problème sans solution? Sion, 18 out. 2005. GOBBI, Marcia A.; ANJOS, Cleriston I. dos; LEITE, Maria C. S. Crianças educação e o direito à cidade: pesquisas e práticas. São Paulo: Cortez Editora, 2021. 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Disponível em: <https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/42290/30894>. Acesso em: 11 jun. 2023. 366 O Notariado brasileiro na execução da política pública de acesso à justiça – casamentos de pessoas do mesmo sexo nos Cartórios de Registro Civil The Brazilian Notary in the execution of the public policy of access to justice – same-sex marriages in Civil Registry Offices Orlando de Souza Padeiro Filho1 Sumário: Introdução; – 1. A política pública de acesso à justiça; – 2. O Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais; – 3. O casamento de pessoas do mesmo sexo; – Considerações Finais; – Referências Bibliográficas. Resumo: Este Artigo aborda a relevância dos Notários e Registradores brasileiros no acesso à justiça e na cidadania, considerando o contexto de excesso de processos judiciais. E um acesso à justiça simples e eficiente torna-se fundamental para os mais vulneráveis, que muitas vezes precisam recorrer à justiça para ter os seus direitos reconhecidos. Previstas no artigo 236 da Constituição Federal de 1988, as Serventias Extrajudiciais são representadas pelos Notários e Registradores, profissionais do direito que recebem delegação por meio de concurso público de provas e títulos e são fiscalizados pelo Poder Judiciário. E o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tornou-se um ator fundamental neste contexto, com contribuições importante na eficiência e transparência da justiça brasileira, atuando no controle do Poder Judiciário e também na delegação de procedimentos à esfera extrajudicial. Sendo conciliadores por natureza, além de sua grande capilaridade, Notários e Registradores tornam-se alternativas importantes de justiça para os mais vulneráveis, dada a extensão e a diversidade do território brasileiro. No ano de 2010 o CNJ formulou uma grande política pública de acesso à justiça, por meio da Resolução nº 125, com diversas ações para a melhora da celeridade dos processos judiciais. Além da ênfase aos meios alternativos de solução de litígios, foi ratificado o modelo de justiça multiportas, em que o Poder Judiciário não é mais o único caminho, sendo as Serventias Extrajudiciais uma alternativa para o acesso à justiça. Mas um marco importante na proteção de minorias foi a edição da Resolução nº 175 no ano de 2013, em que o CNJ autorizou o casamento de pessoas do mesmo sexo diretamente no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais. Em Tal Serventia são registrados os principais eventos de onde deriva o estado das pessoas como nascimento, casamento e morte. E o objetivo da presente investigação é analisar esse movimento de delegação de procedimentos para a esfera extrajudicial, que passam a ser executores dessa política pública de acesso à justiça, com ênfase no procedimento de casamento de pessoas do mesmo sexo. Embora tais Serventias já realizassem casamentos para pessoas de sexos distintos, a execução de casamentos de pessoas do mesmo sexo só era realizada com ordem judicial até a edição da Resolução nº 175/2013. Palavras-chave: acesso à justiça; cidadania; política pública; notários; Serventias Extrajudiciais. Abstract: This article addresses the relevance of Brazilian notaries and registrars in access to justice and citizenship, considering the context of excessive judicial processes. And simple and efficient access to justice becomes fundamental for the most vunerable, who often need 1 Mestre em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito. Auditor Fiscal da Receita do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. LATTES: https://lattes.cnpq.br/4817470238727947. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7359-9702. 367 to resort to justice to have their rights recognized. Provided for in article 236 of the Federal Constitution of 1988, as Extrajudicial Services, Notaries and Registrars, legal professionals who received through a public competition of tests and titles and are supervised by the Judiciary, represent them. In addition, the National Council of Justice became a key actor in this context, with important contributions to the efficiency and transparency of Brazilian justice, it was in control of the Judiciary and also in the scene of extrajudicial procedures. Being conciliatory by nature, in addition to their great capillarity, Notaries and Registrars become important justice alternatives for the most vulnerabale, given the extent and diversity of the Brazilian territory. In 2010, the National Council of Justice formulated a major public policy on access to justice, through Resolution Nº 125, with several actions to improve the speed of court proceedings. In addition to the emphasis on alternative means of resolving disputes, the model of multi-door justice was ratified, in which the Judiciary is no longer the only way, with Extrajudicial Services being an alternative for access to justice. But an important milestone in the protection of minorities was the issue of Resolution Nº 175 in 2013, in which the National Council of Justice authorized same-sex marriages directly at the Civil Registry of Natural Persons. In this service, the main events from which people's status derives are recorded, such as birth, marriage and death. And the objective of the present investigation is to analyze this movement of feelings from procedures to the extrajudicial sphere, which become executors of this public policy of access to justice, with emphasis in the marriage procedure of same-sex people. Although such Services already carry out marriages for people of different sexes, the execution of same-sex marriages was only carried out with a court order until the enactment of Resolution nº 175/2013. Keywords: access to justice; citizenship; public policy; notaries; extrajudicial services. Introdução A atuação do Estado em cenários de grandes desigualdades torna-se fundamental para garantir o direito dos mais fracos. Ademais em contextos de elevada desigualdade social, as políticas públicas devem ser efetivas e o direito passa a ser fundamental na defesa da igualdade material e não apenas formal. Uma política pública nada mais é do que uma ação do governo para a solução de um problema. Embora a política pública seja mais exemplificada em ações do Poder Executivo, o Poder Judiciário brasileiro vem promovendo políticas públicas importantes, por meio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que atua no controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e na fiscalização do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Com base nesse trabalho, o CNJ vem atuando com ações de melhora dos prazos de conclusão de processos judiciais, que chegou a 4 anos e 7 meses no ano de 2022. E o CNJ inaugurou uma grande política pública de acesso à justiça a partir da Resolução nº 125, no ano de 2010, institucionalizando uma justiça multiportas, em que o Poder Judiciário não é mais o único caminho. E, nessa seara, aparecem as Serventias Extrajudiciais, mais conhecidas como Cartórios, que passaram a complementar o Poder Judiciário. Com grande capilaridade e proximidade dos cidadãos, principalmente os menos 368 favorecidos, tais Serventias tornaram-se uma alternativa para acesso à justiça, pincipalmente aos mais vulneráveis. E uma dessas diversas ações do CNJ foi a publicação da Resolução nº 175/2013, que permitiu o casamento de pessoas do mesmo sexo diretamente no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN). Antes de tal Resolução só era possível tal casamento por ordem judicial. Ademais, o procedimento para o casamento é exatamente o mesmo já executado pelas Serventias de RCPN para casamentos de pessoas de sexos diferentes. Tal ação trouxe ganhos importantes para uma minoria que vem buscando por reconhecimento e dignidade. 1. A política pública de acesso à justiça O processo de redemocratização dos países em desenvolvimento trouxe uma nova esperança para as populações mais vulneráreis, visto que o constitucionalismo moderno ressaltou a importância dos direitos fundamentais. E tais direitos começaram a ser levados a sério após a Segunda Guerra Mundial, com o fenômeno mundial de reconstitucionalização dos Estados. 2 No Brasil, a chamada Constituição cidadã, promulgada em 1988 (CF/88), previu um largo espectro de direitos fundamentais, a grande maioria prevista no Art. 5º. Ademais, sendo responsável pelo adimplemento de tais Direitos, o Estado deve atuar, na maioria vezes pelo implemento de políticas públicas. Entretanto, muitas vezes há um enorme abismo entre o direito positivado na norma e a sua efetiva realização prática, o que demanda uma atuação estatal mais efetiva. Adicionalmente, ainda existe uma generalizada violação de direitos fundamentais, na maioria das vezes quando se trata de grupos menos favorecidos. Muitas vezes, o Poder Judiciário acaba sendo o caminho dessas pessoas na busca por justiça. E o Poder Judiciário passou a ser fundamental na garantia dos direitos, dado o recorrente descumprimento pelos entes estatais, principalmente em países em desenvolvimento. Segundo Felipe de Melo Fonte (2015), o Poder Judiciário não está autorizado a atuar livremente em quaisquer questões relacionadas a direitos fundamentais, ainda que constitucionalizados, porém há um espaço de discricionariedade do administrador público, em que o Judiciário tem um papel de canalizar e amplificar as demandas de grupos minoritários: no que tange aos direitos fundamentais, exatamente porque se dirigem à proteção de minorias em face de maiorias, as políticas públicas podem desconsiderar excessivamente grupos políticos de pouca expressão ou mesmo indivíduos isoladamente 2 Cfr. FONTE, F.M.. Políticas públicas e direitos fundamentais. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 97. 369 considerados. Neste passo, o controle jurisdicional de políticas públicas poderá ter importante papel para resguardar a posição destas pessoas mesmo contra maiorias adversas e ainda exigir a implementação de ações específicas.3 De difícil definição, a expressão “acesso à justiça” significa, em síntese, que deve ser possível acessar o sistema jurídico de forma igualitária, além de serem produzidos resultados justos. Entretanto, principalmente aos mais vulneráreis, ingressar em juízo significa acessar um ambiente de difícil compreensão e diversos rituais desconhecidos do senso comum. Até a vestimenta das pessoas reforça hierarquias sociais, com um ambiente nada acolhedor, o que gera muitas barreiras, principalmente aos pertencentes a minorias. Dessa forma, considerando ainda que as políticas públicas são ações estatais a fim de resolver um problema, o CNJ atuou nessa questão. No tocante às suas atividades de gestão do Poder Judiciário, o CNJ emite relatórios estatísticos, que ratificaram a dificuldade de acesso à justiça no Brasil. E uma das ações em busca da melhora dos índices da justiça brasileira, em especial a celeridade processual, foi a implementação da Resolução nº 125/2010. A Resolução nº 125/2010 definiu uma política pública de tratamento adequado dos conflitos de interesses. Alinhada à terceira onda renovatória de Cappelletti e Garth 4, tal Resolução veio trazer medidas para enfrentar as dificuldades de acesso à justiça no Brasil. E essa política pública institucionalizou as formas alternativas de solução de litígios como conciliação, mediação e a utilização das Serventias Extrajudiciais em procedimentos que antes eram exclusivamente judiciais. Durante muito tempo sendo considerados centros de ineficiência e de burocracia, na pior acepção da palavra, as Serventias Extrajudiciais tiveram um grande avanço com a CF/88. A Carta Magna ratificou o papel fundamental dos serviços extrajudiciais no art. 236, profissionalizando o serviço que hoje é um dos mais bem avaliados e confiados no Brasil5. 3 Cfr. FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 197. ondas renovatórias de acesso à justiça foram identificadas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth ainda na década de 60, por meio de estudo sobre Direito Processual – o Projeto Florença. Cfr. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, B. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie. Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002 (Reimpressão): a primeira onda teve início em 1965 e foi denominada de assistência judiciária para os pobres, enquanto a segunda onda renovatória deu-se entre 1965 e 1970 e foi chamada de representação jurídica para os interesses difusos, especialmente nas áreas de proteção ambiental e do consumidor. Já a terceira onda, chamada de um novo enfoque de acesso à justiça, focou em mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e prevenir disputas nas sociedades modernas, sem abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma. 5 Cfr. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 16/05/2023: Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do poder público. § 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. § 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.§ 4As 370 Embora as ações adotadas pela Resolução nº 125 não tenham resolvido o problema como um todo, foram fundamentais para a geração de novas ações e a consolidação de um modelo de justiça multiportas no Brasil. E as Serventias passaram a complementar a função do Poder Judiciário, movimento que se intensificou a partir dos bons resultados desde a promulgação da Lei nº 11.441/2007, em que houve redução de prazo em relação ao processo judicial de um ano para um dia e de dez anos para quinze dias, para os processos de divórcio e inventário que passaram a ser realizados integralmente no Tabelionato de Notas. Tais dados foram levantados pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG-BR), que ainda estimou uma economia de R$ 6,3 bilhões aos cofres públicos desde a promulgação de tal lei até o ano de 2020. 2. O Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais Os Serviços Notariais e de Registro são exercidos em caráter privado, por delegação a particulares6, e fiscalizados pelo Poder Judiciário. Tanto o Notário como o Registrador são profissionais do Direito e devem ser aprovados em concurso público de provas e títulos. Além da previsão constitucional do Art. 236, a competência para legislar sobre a matéria é federal (Artigo 22, XXV7), sendo tal artigo regulamentado pelo Estatuto dos Notários e Registradores (Lei nº 8.935/94). Adicionalmente, há a Lei de Emolumentos (Lei nº 10.169/00), a Lei dos Tabelionatos de Protesto (Lei 9.492/97). Já a Lei de Registros Públicos (LRP - Lei nº 6.015/73) fora recepcionada pela CF/88 e continua vigente no tocante à regulamentação dos registros públicos. 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. Cfr. Associação de notários e registradores do Brasil. Cartório em Números - 3ª Edição de 2021. Brasília: ANOREG, 2022: em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em dezembro de 2015, os Cartórios foram consideradas as instituições mais confiáveis do País, dentre todas as instituições públicas e privadas avaliadas. A pesquisa foi realizada com a população de cinco capitais brasileiras: Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte. Em nota de 0 a 10, os Cartórios receberam nota 7,6 no quesito “confiança nas instituições”, seguido pelos Correios (7,4), Forças Armadas (7,0), Instituições Religiosas (6,7). Mas o que chama muita atenção é que os Cartórios foram considerados mais confiáveis que o Ministério Público, com nota 6,5, as Polícias Civil e Militar, com nota 6,1, e o Governo em sentido amplo, com nota 4,4. 6 Esses agentes não são servidores públicos, sendo uma categoria de colaboradores do Poder Público. A Lei 8.935/94 detalha os requisitos para a delegação: Art. 14. A delegação para o exercício da atividade notarial e de registro depende dos seguintes requisitos: I - habilitação em concurso público de provas e títulos; II nacionalidade brasileira; III - capacidade civil; IV - quitação com as obrigações eleitorais e militares; V - diploma de bacharel em direito; VI - verificação de conduta condigna para o exercício da profissão. Art. 15. Os concursos serão realizados pelo Poder Judiciário, com a participação, em todas as suas fases, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público, de um notário e de um registrador. 7 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (..) XXV - registros públicos; 371 Enquanto o Registrador8 visa dar publicidade de determinados fatos e situações jurídicas de especial relevância, seja por repercutirem nas esferas jurídicas de todos, seja por serem essenciais para a segurança e o progresso do tráfico jurídico e econômico, o Notário, também conhecido como Tabelião9, atua como um consultor jurídico imparcial das partes, tendo uma função preventiva essencial, auxiliando as partes na confecção dos instrumentos jurídicos próprios e de acordo com o ordenamento jurídico. Dentre os Registradores, destaca-se o Registrador Civil de Pessoas Naturais. Tal profissional é responsável pela publicidade aos atos da pessoa natural, o que permite a qualquer interessado conhecer o estado da pessoa. Assim, o elemento central do RCPN é a pessoa natural10. No Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN) são registrados os principais eventos de onde deriva o estado das pessoas, como nascimento, casamento e morte11. E tais registros são dotados de fé pública, fazendo prova contra todos, o chamado 8 Há quatro tipos de Registradores no Brasil: além do Registrador Civil de Pessoas Naturais que será detalhado nesta seção, o Registrador de Imóveis atua na garantia do direito de propriedade, sendo que tal direito real só se aperfeiçoa com o registro do respectivo título de acordo com o Art. 1.227 do Código Civil; já o Registrador Civil das Pessoas Jurídicas atua nos atos constitutivos das sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, partidos políticos, bem como associações e fundações; e o Registrador de Títulos e Documentos realiza registros para fins de conservação, além de função residual para qualquer registro não efetuado nas demais Serventias. 9 O Tabelião de Notas atua basicamente com a escritura pública, que é o documento dotado de fé pública e faz prova plena do que nela estiver escrito (Art. 215 do Código Civil). Ademais, passou a ser um dos executores de destaque na política pública de acesso à justiça, com a execução de divórcios e inventários a partir da Lei 11.411/07; além disso, lavra também a Ata Notarial, documento incluído como meio de prova no Art. 384 Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). Já o Tabelião de Protesto atua para que haja cumprimento voluntário das obrigações assumidas, sendo inclusive utilizado no caso de certidões de dívida ativa da União, dos Estados e DF e dos Municípios, além de decisões judiciais em que o réu efetua o cumprimento voluntário no prazo estipulado; tem papel fundamental para a circulação de riquezas através dos títulos de crédito, além de ser forma eficiente de regularização de obrigações pecuniárias. 10 Segundo o Art. 2º do Código Civil, a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. E, de acordo com o Art. 6º, a personalidade se extingue com a morte. 11 O rol de atos do RCPN está previsto no Art. 29 da Lei de Registros Públicos (LRP): Art. 29. Serão registrados no registro civil de pessoas naturais: I - os nascimentos; II - os casamentos; III - os óbitos; IV - as emancipações; V - as interdições; VI - as sentenças declaratórias de ausência; VII - as opções de nacionalidade; VIII - as sentenças que deferirem a legitimação adotiva. § 1º Serão averbados: a) as sentenças que decidirem a nulidade ou anulação do casamento, o desquite e o restabelecimento da sociedade conjugal; b) as sentenças que julgarem ilegítimos os filhos concebidos na constância do casamento e as que declararem a filiação legítima; c) os casamentos de que resultar a legitimação de filhos havidos ou concebidos anteriormente; d) os atos judiciais ou extrajudiciais de reconhecimento de filhos ilegítimos; e) as escrituras de adoção e os atos que a dissolverem; f) as alterações ou abreviaturas de nomes. O Código Civi (Lei 10.406/2002), em seus Art. 9º e 10, também trouxe previsões de registro e averbações em registro público: Art. 9o Serão registrados em registro público: I - os nascimentos, casamentos e óbitos; II - a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do juiz; III - a interdição por incapacidade absoluta ou relativa; IV - a sentença declaratória de ausência e de morte presumida. Art. 10. Far-se-á averbação em registro público: I - das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal; II - dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; 372 efeito erga omnes. Ademais, possuem presunção de veracidade, sendo modos de prova préconstituída. O RCPN além de registrar, zela pela segurança dessas informações, permitindo à população buscar esclarecimentos e incorporar direitos para as práticas da vida civil. Outro ponto fundamental de tal Serventia Extrajudicial é a sua relação intrínseca com a cidadania, tanto que a Lei Federal nº 13.484/17 transformou os Cartórios de RCPN em Ofícios da Cidadania. Considerando, ainda, a concepção mais ampla de cidadania, que abrange muito mais do que exercer direitos políticos, sendo entendida como o próprio direito de possuir direitos, o que dá a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo12. Ademais, a certidão de nascimento é documento fundamental para que a pessoa possa exercer a sua cidadania, sendo o primeiro documento da pessoa natural, sem o qual não é possível obter os demais documentos. E a existência de pelo menos um RCPN em cada Município torna-se fundamental para a proteção de direitos fundamentais, principalmente dos mais vulneráveis. Previsão expressa no Estatuto dos Notários e Registradores13 , é fundamental para a capilaridade dos serviços, que atinge públicos que o Poder Judiciário ainda não alcança. Com 5.570 Municípios no ano de 2023, segundo o IBGE, há 7.743 cartórios de RCPN por todo o Brasil segundo o Portal de Transparência do Registro Civil14. 3. O Casamento de Pessoas do Mesmo Sexo O casamento entre pessoas de sexos diferentes já era realizado em Cartórios de RCPN, sem qualquer intervenção judicial. Em apertada síntese, o processo envolve três fases: a habilitação, a celebração e o registro. O processo inicia-se com a publicação dos proclamas no Cartório de RCPN de um dos nubentes, sendo a habilitação concluída nos 90 dias posteriores. O objetivo da habilitação é a verificação de possíveis impedimentos dos nubentes. Passada a habilitação sem restrições, será possível a celebração do casamento, que é gratuita no próprio Cartório de RCPN15, mas pode ser realizada com custos em outros 12 Cfr. DALLARI, D.A. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 1998, p. 1. Art. 44. Verificada a absoluta impossibilidade de se prover, através de concurso público, a titularidade de serviço notarial ou de registro, por desinteresse ou inexistência de candidatos, o juízo competente proporá à autoridade competente a extinção do serviço e a anexação de suas atribuições ao serviço da mesma natureza mais próximo ou àquele localizado na sede do respectivo Município ou de Município contíguo. § 1º (Vetado). § 2º Em cada sede municipal haverá no mínimo um registrador civil das pessoas naturais. § 3º Nos municípios de significativa extensão territorial, a juízo do respectivo Estado, cada sede distrital disporá no mínimo de um registrador civil das pessoas naturais. 14 Disponível em: <https://transparencia.registrocivil.org.br/inicio>. Acesso em: 27 Jun. 2023. 15 Cfr. Constituição Federal de 1988: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. Cfr. o Código Civil: Art. 1512. O casamento é civil e gratuita a sua celebração. 13 373 locais, como igrejas por exemplo. Por fim, é feito o registro e poderá ser obtida a respectiva certidão. Todos os acontecimentos que são levados ao RCPN são realizados por meio do registro latu sensu, o que abrange o registro strictu sensu, representado pela averbação e pela anotação. Assim, o registro strictu sensu é o ato efetuado pelo Registrador quando cria o assento, ou seja, quando lança as informações essenciais do assento no livro específico16. Já a averbação ocorre quando há alguma modificação posterior no assento como, por exemplo, a averbação do divórcio: o assento de casamento é criado com o ato do casamento, em que é feito o registro após todos os trâmites legais do procedimento; quando há o divórcio, o assento de casamento receberá uma averbação desse ato. Por fim, também há anotações, que seriam notificações não modificativas no assento como, por exemplo, na emancipação em que tal ato é anotado no assento de nascimento do emancipado. Os direitos de personalidade são direitos próprios da pessoa em si (ou originários)17, existentes por sua natureza, como ente humano, com o nascimento. Assim, tais direitos são essenciais à pessoa, tendo por base a dignidade da pessoa humana, que é fundamento básico da República Federativa do Brasil (Inciso III do Art. 1º da CF/88). Como elemento individualizador da pessoa natural, a personalidade é o conjunto de características da pessoa. Assim, os direitos de personalidade têm conteúdo extrapatrimonial, são inalienáveis, perpétuos, personalíssimos e oponíveis erga omnes. Em suma, tais direitos são prerrogativas individuais que visam promover o homem pessoal e socialmente, em sua dignidade e cidadania. E o direito geral de personalidade protege também a identidade de gênero, visto ser importante para a identidade individual e a percepção pessoal. E muitas pessoas não se identificam com o seu gênero de nascimento. Até 2018, não havia normatização da alteração do prenome em virtude de mudança de sexo no Brasil. Era necessária a ida ao Poder 16 Importante detalhar os conceitos básicos que, de alguma forma, não foram tecnicamente reproduzidos pelo legislador e podem trazer dúvidas quanto aos seus efeitos jurídicos. O assento é o próprio livro, sendo o livro o local onde são realizados os registros, que podem ser físicos e são armazenados nas Serventias, embora já haja muitos deles em formato totalmente eletrônico (Art. 33. da LRP). Já o traslado seria a primeira via do documento obtida a partir do que está registrado no livro, por exemplo, a primeira via do registro de nascimento que fora efetuado no respectivo livro (no caso, o livro A). Por fim, as certidões seriam as demais cópias das informações presentes no respectivo livro, sendo que há modalidades como a de inteiro teor, que traz a integralidade das informações presentes no assento; a de breve relatório, que traz algumas informações de forma padronizada; e a por quesito, que traz apenas alguns quesitos do assento. 17 Cfr. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 168: “sob a denominação direitos da personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e discplina, no corpo do Código Civil, como direitos absolutos. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana”. E a primeira classificação de direitos de personalidade foi pelo mesmo autor: direitos à integridade física (direito à vida e direito sobre o próprio corpo) e direitos à integridade moral (direito à honra, direito à liberdade, direito ao nome, direito moral, direito à imagem). 374 Judiciário para que o direito à identidade pessoal fosse assegurado. Porém, ao julgar a ADI nº 4.275/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito de alteração de nome e sexo no registro de nascimento, independentemente de autorização judicial, diretamente no RCPN18. Outra ação relevante na proteção da dignidade da pessoa humana e na promoção da cidadania foi a autorização do casamento de pessoas do mesmo sexo sem a necessidade de intervenção judicial. Dessa forma, retomando a política pública de acesso à justiça inaugurada pelo CNJ por meio da Resolução nº 125/2010, foi publicada também a Resolução nº 175/2013, encerrando diversos processos judiciais em andamento e evitando novas ações. Há três decisões que fundamentaram a publicação desta Resolução: os acórdãos prolatados em julgamentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132/RJ, da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº 4.277/DF do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Recurso Especial - RESP nº 1.183.378/RS do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O Ministro Relator Ayres Britto, da ADPF nº 132/RJ cita a relevância da Corte Constitucional na proteção de minorias, sendo fundamental que o acesso à justiça seja facilitado para esses grupos19. Já a Ministra Carmen Lucia, do STF, no julgamento da ADI nº 4.277/DF, ressalta a relevância da efetivação dos direitos conquistados, o que ratifica mais uma vez a questão de um acesso à justiça facilitado no que tange à realização de direitos na prática 20. E o Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ também defende que o Poder Judiciário deve agir na proteção de minorias, dada a sua isenção e comprometimento apenas com a Constituição e não com as maiorias votantes, o que fortalece a própria democracia21. Vale ressaltar um trecho do voto do voto do Ministro Celso de Mello nesta decisão: “esta decisão – que torna efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana (..) O exercício desse direito básico, que pode importar em modificação de aparência ou em alteração das funções corporais do transgênero, também legitima a possibilidade de retificação dos assentamentos registrais, com a consequente mudança do pronome e da imagem registrados em sua documentação pessoal”. (Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275/DF, Relator: Min. Marco Aurélio. Data de Julgamento: 01/03/2018) 19 “Particularmente nos casos em que se trata de direitos de minorias é que incumbe à Corte Constitucional operar como instância contramajoritária, na guarda dos direitos fundamentais plasmados na Carta Magna em face da ação da maioria ou, como no caso em testilha, para impor a ação do Poder Público na promoção desses direitos”. (STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, Relator: Min. Ayres Britto. Data de Julgamento: 05/05/2011) 20 “Bobbio afirmou, na década de oitenta do séc. XX, que a época não era de conquistar novos direitos, mas tornar efetivos os direitos conquistados”. (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF, Voto Min. Carmen Lucia. Data de Julgamento: 05/05/2011) 21 “Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos”. (STJ, Recurso Especial 1.183.378/RS, Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Data de Julgamento: 25/10/2011) 18 375 Assim, percebe-se em todos os votos a questão de proteção de minorias e a efetivação de novos direitos. E a autorização para os casamentos de pessoas do mesmo sexo ratifica a confiança nos Serviços Extrajudiciais, dada a possibilidade de execução de procedimento tão relevante para a sociedade diretamente nos Cartórios de RCPN. Desde a publicação da citada Resolução até o ano de Novembro de 2021, já foram realizados 66.514 mil casamentos homoafetivos no Brasil. Considerações Finais Novas configurações sociais demonstram a importância da evolução do Direito em conjunto com a evolução das sociedades. E o Brasil mostrou-se atuante na proteção de minorias e de novas formas familiares, sendo o papel do Poder Judiciário fundamental neste contexto. No entanto, dado e excesso de demandas judiciais e a lentidão de resposta judicial, o próprio Poder Judiciário agiu para tentar resolver esse problema, por meio do CNJ. Assim, novas configurações foram adotadas a fim de um acesso à justiça mais eficiente, com diversas ações do CNJ no sentido de melhorar o cenário judicial brasileiro, formulando políticas públicas de acesso à justiça. Nessa configuração, as Serventias Extrajudiciais passaram a atuar como executoras dessa política pública, em complemento à jurisdição estatal. E o casamento entre pessoas do mesmo sexo executado diretamente nos Cartórios de RCPN, sem qualquer intervenção judicial, ilustra a importância desse movimento em prol de um acesso à justiça mais efetivo. Assim, verifica-se que tais ações são fundamentais em contextos de grandes desigualdades, a fim de equilibrar as forças e garantir o direito dos mais fracos. Porém, ressalta-se que tal processo ainda está em evolução e, considerando os bons resultados já obtidos pela execução de procedimentos na esfera extrajudicial, novas ações devem ser tomadas no mesmo sentido, a fim de que se busque igualdade de oportunidades e inclusão social. Referências Bibliográficas ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2008. ALVIM, J.E.C. Justiça: acesso e descesso. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/4078>. Acesso em: 29 Jan. 2023. ASSOCIAÇÃO DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Cartório em Números - 3ª Edição de 2021. Brasília: ANOREG, 2022 BARROSO, L.R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2018. BITTAR, C.A. Os direitos da personalidade. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 376 BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade. 24ª Ed. 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Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005. 380 A Responsabilidade dos Estados nas Causas e na Erradicação da Apatridia no Século XXI The Responsibility of States in the Causes and Eradication of Statelessness in the 21st Century Ricardo Cotrim Chaccur1 Alice Bordignon2 Sumário: Introdução; 1. A dimensão e os impactos da Apatridia no Brasil e no Mundo; 2. A busca pela efetividade dos Direitos Humanos por meio do Direito de Nacionalidade no Sistema Jurídico Internacional e no Brasil; 3. A importância e a responsabilidade dos Estados para a erradicação da Apatridia no Mundo no século XXI; Considerações Finais; Referências Bibliográficas Resumo: Desde o surgimento dos Estados Nação e o consequente vínculo jurídico-político entre indivíduos e Estado por meio das regras da aquisição da nacionalidade, percebe-se que o Estado como modelo de organização política evoluiu no sentido de declarar e garantir direitos fundamentais aos cidadãos. Desde as revoluções inglesa e francesa que resultaram em textos legais de declaração de direitos para os indivíduos e a sua repercussão posteriori na criação daquilo que conhecemos hoje como direitos humanos, se consagrou a dignidade da pessoa humana como princípio basilar dos textos constitucionais e também dos instrumentos normativos do Sistema Jurídico Internacional, disseminando a ideia de universalização desses direitos e o acesso irrestrito e indiscriminado à eles. Contudo, o século XX permitiu observar que ao mesmo tempo em que a Sociedade Internacional propagou, a partir do período pós Segunda Guerra Mundial, os princípios e direitos humanos, cuja essência entende que o ser humano deve ser protegido de forma indiscriminada, também restou evidente de que o alcance desses direitos era limitado apenas àqueles que são reconhecidos como cidadãos de um Estado, a partir de regras produzidas pelos legisladores estatais no seio do Estado Nação. A partir dessa observação, estima-se que mais de 10 milhões de pessoas vivem nesse limbo jurídico provocada pela ausência de nacionalidade, com dificuldades de acesso a direitos básicos como saúde e educação, e suscetíveis à violações de todo gênero e abusos nas relações laborais, sem direitos políticos e sem liberdade de circular livremente entre as fronteiras dos países, tornando-se em verdadeiros reféns do atual modelo de organização política, originada na Idade Moderna. Para tratar deste problema, desde a metade do século XX, vários Tratados Internacionais reconheceram o direito de nacionalidade como direitos humanos, mas nem mesmo o vasto arcabouço jurídico produzido nesses últimos 70 anos fora capaz de erradicar um dos problemas mais sérios enfrentados no século XXI. Diante da constatação de que a questão dos apátridas se origina tanto de uma problemática jurídica, que envolve os critérios para aquisição da nacionalidade, bem como da vontade política estatal, se torna imperioso refletir sobre a responsabilidade dos Estados perante as causas e soluções para a erradicação da apatridia neste século. Palavras-chave: Apátridas; Direitos Humanos; Direito de Nacionalidade; Direito Internacional Público. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos e Fundamentais nos cursos de Relações Internacionais e de Direito do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU. Doutorando em Direito pela Universidade do Porto. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. E-mail: [email protected] 2 Aluna da Graduação em Relações Internacionais do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU. E-mail: [email protected] 1 381 Abstract: Since the emergence of Nation States and the consequent legal-political link between individuals and the State through the rules for acquiring nationality, it is clear that the State as a model of political organization has evolved in the sense of declaring and guaranteeing fundamental rights to citizens. Since the English and French revolutions, which resulted in legal texts declaring the rights of individuals and their subsequent repercussions in the creation of what we know today as human rights, the dignity of the human person has been enshrined as a basic principle of constitutional texts and also of instruments regulations of the International Legal System, disseminating the idea of universalization of these rights and unrestricted and indiscriminate access to them. However, the 20th century allowed us to observe that while the International Society propagated, from the post-World War II period, the principles and human rights, whose essence understands that the human being must be protected indiscriminately, it also remained evident that the scope of these rights was limited only to those who are recognized as citizens of a State, based on rules produced by state legislators within the Nation State. From this observation, it is estimated that more than 10 million people live in this legal limbo caused by the absence of nationality, with difficulties in accessing basic rights such as health and education, and susceptible to violations of all kinds and abuses in labor relations, without political rights and without freedom to circulate freely between the borders of countries, becoming true hostages of the current model of political organization, originated in the Modern Age. To deal with this problem, since the middle of the 20th century, several International Treaties have recognized the right to nationality as human rights, but not even the vast legal framework produced in the last 70 years has been able to eradicate one of the most serious problems faced in the 21st century. Faced with the realization that the issue of stateless persons originates both from a legal issue, which involves the criteria for acquiring nationality, as well as from the political will of the state, it becomes imperative to reflect on the responsibility of the States in the face of the causes and solutions for the eradication of statelessness in this century. Keywords: Stateless persons; Human rights; Right of Nationality; Public International Law. Introdução A história descreve que o ser humano iniciou sua trajetória neste planeta de forma autônoma e nômade, se deslocando constantemente para sobreviver aos perigos do clima e do meio ambiente. Logo este mesmo ser humano passou a se reunir em pequenos grupos, chamados de famílias. As famílias por sua vez se reuniram em tribos e, estes últimos, vinculados pela língua, pela cultura, religião e costumes, se reuniram, posteriormente, em sociedades organizadas, fixadas em um determinado território, até o surgimento do Estado como modelo de organização política predominante na Era Moderna. Desde o seu surgimento, tendo como marco inicial o Tratado de Vestfália, o Estado evoluiu e se reinventou em várias roupagens, do Estado Absolutista, caracterizado pela concentração de poderes, até os Estados Constitucionais e suas nuances liberal e social. De qualquer forma, é partir do surgimento do Estado, ou do Estado-Nação, e do consequente monopólio em produzir as regras para aquisição da nacionalidade, decorrente da soberania reconhecida por seus pares, que o local onde as pessoas nascem ou a sua linhagem sanguínea passou a ser imprescindível para determinar quem são os sujeitos de 382 direito aos olhos do Estado e, posteriormente, da Sociedade Internacional. Assim, o atual modelo de organização política que impera desde a Idade Moderna, levantou muros que separam os nacionais de um Estado do outro, sendo necessário ao indivíduo a aquisição da nacionalidade de um Estado para circular entre as fronteiras artificiais impostas pela formulação política estatal, bem como para exercer e ter acesso à direitos fundamentais. Nota-se, ainda, que o surgimento do Estado também foi essencial para a construção dos Sistemas de Proteção dos Direitos Humanos, a nível global e regionais, uma vez que a partir dos Estados se formou o Sistema Jurídico Internacional, com organismos internacionais intergovernamentais, como a ONU e a OEA, que possibilitaram a criação de um espaço de interação entre os Estados e de instituições jurisdicionais para intermediar conflitos e condenar as ações de Estados que violem Tratados Internacionais, justificada pela necessidade que surgiu no século XX de proteção dos direitos humanos. Porém, é de destacar que a vinculação aos Tratados e às instituições jurisdicionais depende do consentimento do próprio Estado, decorrente do consagrado princípio da soberania dos Estados, característica marcante do sistema jurídico internacional. Paradoxalmente, insta observar que ao mesmo tempo que o surgimento do Estado proporcionou a edificação lenta de um sistema de proteção dos direitos humanos, seu surgimento significou o monopólio discricionário de escolher quem são os indivíduos reconhecidos como sujeitos de direito dentro dos seus territórios decorrentes das regras estatais que estabelecem as formas de aquisição da nacionalidade, pois a ausência de nacionalidade condena os apátridas a um limbo jurídico, cujas consequências permitem todo tipo de violação dos direitos humanos. Desde a metade do século XX, os Sistemas Global e Regionais de Proteção dos Direitos Humanos, produziram vários instrumentos jurídicos para reconhecer o direito de nacionalidade como um direito humano e para tentar evitar e combater a apatridia no Mundo, mas apesar do vasto arcabouço jurídico internacional e regional, o século XXI evidencia o problema dos apátridas em meio ao contexto de globalização, com estimativas dos Organismos Internacionais, de que o número de pessoas apátridas no Mundo supera os 10 milhões de pessoas, dentre os quais um número significativo de mulheres e crianças, podendo este número ser ainda maior do que se estima, devido a dificuldade de obter dos Estados o reconhecimento do estado de apatridia de indivíduos que estão dentro do seu território. Diante destas constatações e dos impactos globais que a apatridia produz e pode repercutir nas futuras gerações, o presente trabalho de investigação se justifica pela relevância 383 da temática e da importância de se discutir o papel de protagonista dos Estados nesse processo de combate a apatridia no Mundo. Assim, este artigo científico teve como problemática jurídica analisar a responsabilidade dos Estados na erradicação da apatridia, consoante a sua própria essência e com fundamento no arcabouço jurídico internacional, regional e nacional, particularmente na experiência positiva do Brasil. A partir da problemática exposta e utilizando como metodologia jurídica, a revisão bibliográfica nacional e internacional sobre o assunto, com abordagem qualitativa e exploratória, este artigo pretende provocar uma reflexão sobre o papel fundamental que os Estados, enquanto modelo de organização política contemporânea, têm na solução de um problema que afeta milhões de pessoas no Mundo e que tem consequências severas para quem se encontra neste limbo jurídico decorrente da ausência de nacionalidade. Para alcançar a finalidade proposta neste trabalho, o artigo foi dividido em três partes. A primeira parte tratará de expor os dados levantados sobre o número de apátridas no Mundo e no Brasil, além das causas e efeitos que a ausência de nacionalidade tem na vida desses seres humanos, com o objetivo de demonstrar a magnitude do problema numa Era que se dissemina a importância de respeito a dignidade da pessoa humana e existência de um vasto arcabouço jurídico internacional que trata do direito de nacionalidade e dos direitos humanos. A segunda parte visa abordar os vários instrumentos jurídicos existentes sobre o assunto, nos Sistema Jurídico Internacional, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos e na legislação nacional brasileira. E por fim, a terceira parte pretende trazer reflexões e demonstrar a responsabilidade dos Estados nas causas da apatridia, bem como o importante papel deles na erradicação do problema neste século. Diante destas constatações e dos impactos globais que a apatridia produz e pode repercutir nas futuras gerações, o presente trabalho de investigação se justifica pela relevância da temática e da importância de se discutir o papel dos Estados nesse processo de combate da apatridia no Mundo. Assim, este artigo científico teve como problemática jurídica analisar a responsabilidade dos Estados na erradicação da apatridia, consoante a sua própria essência e com fundamento no arcabouço jurídico internacional, regional e nacional, particularmente na experiência positiva do Brasil. A partir da problemática exposta e utilizando como metodologia jurídica, a revisão bibliográfica nacional e internacional sobre o assunto, com abordagem qualitativa e exploratória, este artigo provocar uma reflexão sobre o papel fundamental que os Estados, enquanto modelo de organização política contemporânea, têm na solução de um problema que afeta milhões de pessoas no Mundo e que tem consequências severas para quem se encontra neste limbo jurídico decorrente da ausência de nacionalidade. 384 Para alcançar a finalidade proposta neste trabalho, o artigo foi dividido em três partes. A primeira parte tratará de expor os dados levantados sobre o número de apátridas no Mundo e no Brasil, além das causas e efeitos que a ausência de nacionalidade tem na vida desses seres humanos, com o objetivo de demonstrar a magnitude do problema numa Era que se dissemina a importância de respeito a dignidade da pessoa humana e existência de um vasto arcabouço jurídico internacional que trata do direito de nacionalidade e dos direitos humanos. A segunda parte visa abordar os vários instrumentos jurídicos existentes sobre o assunto, nos Sistema Jurídico Internacional, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos e na legislação nacional brasileira. E por fim, a terceira parte pretende trazer reflexões e demonstrar a responsabilidade dos Estados nas causas da apatridia, bem como o importante papel deles na erradicação do problema neste século. 2.A Dimensão e os Impactos da Apatridia no Brasil e no Mundo Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece, em seu artigo 15, a nacionalidade como um dos direitos fundamentais do ser humano, além de estabelecer que nenhum indivíduo deve ser privado de sua nacionalidade3. No entanto, embora pareça tratar-se de uma questão simples, o acesso a uma nacionalidade ainda não foi amplamente assegurado por todos os Estados, por razões que serão abordadas mais a fundo no decorrer deste trabalho. Dito isto, para início desse artigo, haja vista a necessidade de compreensão acerca do conceito de nacionalidade, destaca-se, primeiramente, que é por meio desta que um indivíduo tem acesso aos direitos fundamentais estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Entende-se, portanto, que a nacionalidade é a existência de um vínculo jurídico formal entre uma pessoa e o Estado 4. Ademais, em um aspecto mais subjetivo, a nacionalidade confere um profundo senso de identidade e pertencimento a um indivíduo. A apatridia, por outro lado, refere-se à ausência de nacionalidade e é caracterizada pela situação em que o indivíduo não possui elo jurídico com um Estado, resultando na sua falta de identificação como nacional de algum país 5. Tal condição pode ter início na circunstância do nascimento da pessoa ou ser adquirida posteriormente, no caso de perda da nacionalidade. Atualmente, segundo a Alto Comissariado das Nações Unidas para ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 8 jun. 2023. 4 MIRANDA, Pontes; CAVALCANTI, Francisco. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n.1 de 1969. 2ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. v.4, p. 347. 5 No Brasil, de acordo com a Lei 13.445/17, apátrida é a “pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto 4.246/2002, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro”. 3 385 Refugiados (ACNUR), estima-se que cerca de 10 milhões de pessoas vivam sob a condição de apátrida; porém, apenas 4,3 milhões foram reportados até o final de 2021 6. Além disso, a agência da ONU também considera que um terço dos apátridas são crianças7. Em relação ao Brasil, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, até 2020, 16 imigrantes foram reconhecidos como apátridas em território brasileiro, dos quais quatro foram naturalizados em 2018 e 20198. No que tange a concessão e salvaguarda do direito à nacionalidade, cabe ao Estado o cumprimento de tais responsabilidades, pois é quem detém autonomia para determinar as regras e os critérios internos a serem adotados. Quanto aos critérios possíveis para a aquisição de nacionalidade, o Direito reconhece três sistemas: o jus solis e o jus sanguinis. Através do jus solis, ou direito do solo, a nacionalidade é concedida para os nascidos dentro do território do Estado. Em contrapartida, o jus sanguinis, ou direito do sangue, atribuí a nacionalidade aos descendentes de um cidadão nacional, independentemente do seu local de nascimento910, e ainda, o misto, quando os dois critérios, territorial e sanguíneo são adotados pelo Estado para a aquisição da nacionalidade.11 Guerra, ainda, explica que o critério jus sanguinis sempre prevaleceu entre os países com tendência a emigração de seus nacionais, como forma de possibilitar o vínculo jurídico dos descendentes dos imigrantes com o Estado.12 Como exemplo, podemos mencionar o caso brasileiro, em que há a adoção de um sistema misto para a concessão de nacionalidade, incorporando à sua legislação o jus solis e o jus sanguinis, enquanto a Coreia do Sul adota exclusivamente o jus sanguinis13, assim como muitos países europeus, como Espanha, Itália e Portugal. 6 UNHCR. Addressing Statelessness through the Rule of Law. 2022. Disponível em: https://www.refworld.org/topic,50ffbce524d,50ffbce5268,638e1bba4,0,,,.html. Acesso em: 10 jun. 2023. 7 UNHCR. Statelessness around the World. Disponível em: https://www.unhcr.org/what-we-do/protecthuman-rights/ending-statelessness/statelessness-around-world. Acesso em: 10 jun. 2023. 8 Conforme os dados liberados pelo Ministério Justiça e Segurança Pública, os apátridas reconhecidos em solo brasileiro tem como origem os seguintes países: Síria (2), Egito (2), China, Polônia, Kuwait, Suriname, Alemanha, Paraguai, Palestina, Líbano (4) e Japão. Sendo nove mulheres e sete homens. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-justica-e-seguranca-publica-reconhece-16estrangeiros-como-apatridas. 9 FRAZÃO, Ana Carolina. Uma breve análise sobre o direito à nacionalidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano, v. 5, 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57/uma-breve-analise-sobre-o-direito-anacionalidade. Acesso em: 8 jun. 2023. 10 Marco, C.F. (2008). Direito à nacionalidade, direito fundamental. A apatridia e a competência atributiva da ONU. Dissertação (Doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, p. 31. 11 BONAVIDES, P. Ciência Política. São Paulo, Brasil: Malheiros Editora, 10ª edição, 9ª tiragem, p.93. 12 Gerra, Sidney (2019). Curso de direito internacional público. São Paulo, Brasil: Saraiva, p. 402-403. 13 MINISTRY OF JUSTICE. Palestra sobre Lei de Nacionalidade para coreanos no Brasil. 2018. Disponível em: https://overseas.mofa.go.kr/viewer/skin/doc.html?fn=20181001102057073.pptx&rs=/viewer/result/20230 5. Acesso em: 8 jun. 2023. 386 Por essa razão, uma das principais causas da apatridia no mundo é a divergência entre as normas internas adotadas em cada país no que se refere à lei de nacionalidade, impedindo a existência de um consenso no sistema internacional. Como resultado, muitas pessoas nascem sem uma nacionalidade, como no caso emblemático de Maha e Souad Mamo. Nascidas no Líbano, onde adota-se o critério sanguíneo, as irmãs não puderam ser registradas como libanesas e precisaram assumir a origem de seus pais sírios. Entretanto, os pais residiam no Líbano em decorrência do casamento, visto que, por lei, casamentos interreligiosos são proibidos na Síria e, por consequência, apenas crianças filhas de casais oficialmente casados podem ser registradas. Assim, as irmãs Mamo também não tiveram direito à nacionalidade síria e viveram como apátridas por três décadas. Durante esse período, devido à falta de documentação, as irmãs encontraram dificuldade em se matricular na escola e, posteriormente, na faculdade, assim como acesso à saúde. Enfim, em 2018, Maha e Souad tornarem-se as primeiras pessoas reconhecidas como apátridas no Brasil14 e, em outubro do mesmo ano, foram naturalizadas brasileiras15. Outra questão a ser destacada como causa para apatridia é a discriminação direcionada a grupos étnicos, religiosos ou com base no gênero, quando governos decidem restringir ou revogar o direito de nacionalidade de parcelas da população. De acordo com dados da ACNUR, mais de 75% das populações apátridas pertencem a grupos minoritários 16. Essa é, por exemplo, a situação dos Rohingyas, minoria muçulmana apátrida, que não tem sua nacionalidade reconhecida pelo governo de Myanmar e, desde o século passado, foge do país em razão da perseguição estatal em direção à Bangladesh, grande parte dos que buscam refúgio são mulheres e crianças17. Hannah Arendt explica que a perda da nacionalidade imposta pelo Estado também foi método de punição para certos grupos minoritários em regimes autoritários18. Contudo, mesmo em regimes democráticos, observa-se a discricionariedade do Estado na questão da aquisição e perda da nacionalidade, como no caso das mais de 250 mil pessoas que apesar de terem nascido na República Dominicana, 14 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Ministro da Justiça assina o primeiro reconhecimento de apatridia do país. 2018. Disponível em: https://www.gov.br/mj/ptbr/assuntos/noticias/collective-nitf-content-67. Acesso em: 10 jun. 2023. 15 MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Concessão da nacionalidade brasileira às irmãs Maha Mamo e Souad Mamo. 2018. Disponível em: https://www.gov.br/mre/ptbr/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/concessao-da-nacionalidade-brasileira-as-irmas-mahamamo-e-souad-mamo. Acesso em: 10 jun. 2023. 16 UNHCR. Statelessness around the World. Disponível em: https://www.unhcr.org/what-we-do/protecthuman-rights/ending-statelessness/statelessness-around-world. Acesso em: 10 jun. 2023. 17 ACNUR. Rohingya. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/rohingya/. Acesso em: 10 jun. 2023. 18 HANNAH, Arendt (1958). The origins of totalitarism. Cleveland, Estados Unidos da América: Meridian Books, P. 237. 387 entre os anos de 1929 e 2010, perderam a nacionalidade devido a uma decisão de 2013, aplicada retroativamente aos filhos de haitianos.19 No que se refere à discriminação de gênero, 24 países ao redor do mundo ainda possuem legislações que impedem mulheres de transmitirem a sua nacionalidade para seus descendentes e até mesmo de registrá-los legalmente, resultando em uma maior suscetibilidade de crianças à condição de apátrida20. Segundo recente relatório da ACNUR21, entre esses 24 países, 21 são signatários da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979 22, a qual estabelece, em seu artigo 9, o dever dos Estados de garantirem às mulheres direitos iguais aos dos homens no tocante à nacionalidade dos filhos. No entanto, destaca-se que, apesar de países como Barbados, Burundi, Iraque, Líbia, Essuatíni, Quiribati, Nepal e Mauritânia serem signatários, e não possuírem nenhuma ressalva ao artigo mencionado, ainda não foram implementadas nenhuma modificação em suas leis de nacionalidade. Outrossim, a secessão ou dissolução de Estados também está entre as causas possíveis para a apatridia, visto que após uma mudança territorial ou declaração de independência, um país pode decidir não reconhecer todos os seus residentes como nacionais. Por fim, em algumas legislações internas, há a possibilidade de perda ou privação dos direitos de nacionalidade caso o indivíduo resida em um país estrangeiro por um longo período23. A dimensão do problema para as pessoas que se encontram sem nacionalidade é traduzido pelo famoso e impactante depoimento de uma ex-apátrida chamada de Lara: “Quando me dizem “Não” no país onde eu moro; quando me dizem “Não” no país onde eu nasci; quando me dizem “Não” no país dos meus pais; escutar continuamente “A senhora não é dos nossos”! Sinto que sou ninguém e nem sequer sei porque estou a viver. Como apátrida, estás sempre rodeada por um sentimento de desprezo”.24 19 ACNUR. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2013/12/05/acnur-solicita-que-republicadominicana-restitua-nacionalidade-a-descendentes-de-haitianos-no-pais/. Acesso em: 10.06.2023. 20 ONU Brasil. Mulheres enfrentam discriminação para registrar seus filhos, que correm risco de se tornar apátridas. 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/135654-mulheres-enfrentamdiscrimina%C3%A7%C3%A3o-para-registrar-seus-filhos-que-correm-risco-de-se-tornar. Acesso em: 10 jun. 2023. 21 UNHCR. Background Note on Gender Equality, Nationality Laws and Statelessness 2023. 2023. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/640751284.html. Acesso em: 10 jun. 2023. 22 ONU. Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. 1979. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw1.pdf. Acesso em: 10 jun. 2023. 23 ACNUR. Campanhas e Advocacy - #IBelong. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/ campanhas-e-advocacy/ibelong/. Acesso em: 9 jun. 2023. 24 IPU – INTER PARLIAMENTARY UNION. Manual para parlamentares nº 11 – 2005. Nacionalidade e apatridia: Manual para parlamentares. Disponível em: . Acesso em: 24 ago. 2015, p. 06. 388 Desse modo, a condição da apatridia é uma questão de caráter humanitário, uma vez que envolve pessoas em situação de incerteza jurídica, política e social. A ausência de registro e documentação impede que esses indivíduos exerçam direitos políticos e tenham acesso à direitos fundamentais como saúde, educação e moradia, além de ficarem mais vulneráveis às relações laborais abusivas e confinadas ao território que se encontram, uma vez que não possuem documento válido para transitar entre os Estados. Por conseguinte, os apátridas vivem em uma situação de exclusão e vulnerabilidade social, marginalizadas pelo sentimento de desprezo daqueles que possuem uma nacionalidade e a ausência de pertencimento à comunidade em que nasceu ou que vive, ressaltando a urgência no debate e busca por medidas que possam erradicar esse cenário no século atual. 3. A Busca pela Efetividade dos Direitos Humanos por meIo do Direito de Nacionalidade no Sistema Jurídico Internacional e no Brasil Após as graves violações aos direitos humanos durante o período da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional buscava meios urgentes que pudessem impedir futuras catástrofes. Nesse contexto, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada, com o objetivo de definir os direitos inerentes a todas as pessoas, estabeleceu, no artigo 15, o direito à nacionalidade a todos os indivíduos e que nenhuma pessoa deveria ser privada de tal direito. Em 1954, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas25 criou internacionalmente a condição jurídica da apatridia e tornou-se o principal instrumento para a proteção das pessoas que vivem nessa condição, conferindo aos apátridas direitos como assistência administrativa e à carteira de identidade e documentos de viagem. Além disso, o artigo 31 solicita aos Estados-partes que facilitem a naturalização e integração dos apátridas. Posteriormente, em 1961, na Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia26, estabeleceu salvaguardas para evitar os seguintes casos de apatridia: entre as crianças; devido à perda ou à renúncia da nacionalidade; devido à privação da nacionalidade; e no contexto da sucessão de Estados. Em seu artigo primeiro, fica determinado que os Estados-partes deverão conceder a nacionalidade para aqueles nascidos em seu território e que de outra forma seriam apátridas. ONU. Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas. 1958. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_sobre_o_Estatuto_dos_Apatr idas_de_1954.pdf. Acesso em: 10 jun. 2023. 26 ACNUR. Prevenção e Redução da Apatridia - Convenção da ONU de 1961 para Reduzir os Casos de Apatridia. 2010. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/ 2018/02/Preven%C3%A7%C3%A3o-e-Redu%C3%A7%C3%A3o-daApatridia_Conven%C3%A7%C3%A3o-da-ONU-de-1961-para-Reduzir-os-Casos-de-Apatridia.pdf. Acesso em: 10 jun. 2023. 25 389 Ainda no que se refere ao sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos, cabe mencionar o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, 27 e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 28, que estabelecem, nos artigos 24 e 7, respectivamente, o direito da criança de ser registrada imediatamente após o seu nascimento, bem como o seu direito à aquisição de uma nacionalidade. Ademais, em âmbito regional 29, foi elaborada entre os países da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Convenção Americana de Direitos Humanos em 196930, na qual dispõe no artigo 20 sobre o direito de todas as pessoas a uma nacionalidade e o direito à nacionalidade do Estado em que nasceu, caso não possua direito a nenhuma outra, além de impedir que indivíduos sejam arbitrariamente privados de sua nacionalidade ou impedidos de alterá-la, caso assim deseje. Igualmente importantes, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, no artigo 5º, alínea “d” III, obriga os Estados membros a garantir o direito à nacionalidade, sem distinção de raça, cor ou origem nacional ou étnica, enquanto a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979, no artigo 9º, trata de reivindicar a igualdade entre homens e mulheres em respeito à aquisição da nacionalidade e à transmissão da nacionalidade às crianças. No caso do Brasil, a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 foi aprovado pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 274, de 4 de outubro de 2007 e ratificado pela Presidente da República pelo Decreto nº 8.501, de 18 de agosto de 2015, selando um compromisso do Estado Brasileiro no combate a erradicação da apatridia. Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, na Constituição Federal de 1988, encontra-se disposto no artigo 12 os critérios para a aquisição da nacionalidade brasileira 31. Adicionalmente, é previsto na Constituição brasileira a possibilidade de naturalização de estrangeiros. Nesse caso, os requisitos para a aquisição da nacionalidade são estabelecidos com base no tempo de residência no Brasil e na constatação de idoneidade moral e ausência de condenação penal. Por fim, é de suma importância mencionar a Lei de Migração, nº 13.445, de 2017, que dispõe sobre os direitos e deveres do migrante. Essa lei ganha destaque devido à criação de mecanismos inovadores para a proteção daqueles que se deslocam por BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de Julho de 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 10 jun. 2023. 28 UNICEF. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca. Acesso em: 10 jun. 2023. 29 Ainda nos Sistemas Regionais, destacam-se, também, o artigo 6 da Carta Africana sobre os Direitos e Bemestar da Criança; o Artigo 7 da Convenção sobre os Direitos da Criança no Islã; além de Diversas provisões na Convenção Européia sobre Nacionalidade. 30 CIDH. Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos. 1969 31 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 8 jun. 2023. 27 390 motivos forçados, dos quais destacam-se o reconhecimento da condição de apátrida e a ampliação do visto humanitário, que passa a ser aplicável também para os apátridas e pessoas deslocadas por razões ambientais32. Dessa forma, o Brasil tem sido um exemplo de Estado no combate a erradicação da apatridia, tendo em vista que além de ser signatário e ter ratificado os Tratados Internacionais que tratam do tema, o país adota os dois critérios de aquisição da nacionalidade e tem tido uma produção legislativa em prol do combate a apatridia, eliminando lacunas ou criando instrumentos jurídicos como o visto humanitário, a fim de garantir a proteção a esse contingente de pessoas sem pátria. 4. A Importância e a Responsabilidade dos Estados para a Erradicação da Apatridia no Mundo no Século XXI Não obstante o vasto arcabouço jurídico internacional que trata da questão dos apátridas e do direito de nacionalidade, as violações aos direitos humanos decorrentes da questão da apatridia somam números elevados que sobressaltam aos olhos da Sociedade Internacional, mas que ao mesmo tempo parece distante de ser resolvido em razão dos obstáculos criados pelos próprios Estados, cuja titularidade de legislar sobre as regras de aquisição e perda da nacionalidade é um monopólio jurídico intransponível perante o próprio Sistema Jurídico Internacional que consagra o Princípio da Soberania como elemento dificilmente relativizado, na prática, mesmo em questões que envolvem a violação de direitos humanos, como no caso dos apátridas. Nesse sentido, o caso das crianças Yean e Bosico vs. República dominicana33, submetido pela Comissão Interamericana à Corte Interamericana de Direitos Humanos, evidencia a arbitrariedade do Estado dominicano e a dificuldade de puni-lo por provocar a apatridia de duas crianças descendentes de haitianos que nasceram em seu território, cerceando o exercício dos direitos fundamentais à educação e saúde delas. No caso em questão, o Estado Dominicano negou às crianças uma certidão de nascimento, apesar do estado, na época, adotar o critério territorial para a aquisição da nacionalidade. Na oportunidade, ainda, após ser notificado pela Comissão, o Estado criou diversos obstáculos burocráticos e processuais, na qual questionou a jurisdição da Comissão e depois da Corte, alegando que o caso das duas crianças ainda não havia se esgotado na justiça interna do país. BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de Maio de 2017.Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm. Acesso em: 10 jun. 2023. 33 CORTEIDH. Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos / Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tradução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília : Ministério da Justiça, 2014, p. 181-246. 32 391 Assim, cumpre ressaltar a responsabilidade dos Estados na causa direta da existência de pessoas sem nacionalidade, uma vez que desde o surgimento do Estado, por meio do Tratado de Vestfália, o monopólio legislativo que trata das regras de aquisição e perda da nacionalidade pertence aos Estados34, que gozam de absoluta discricionariedade para escolher quem pode e quem não pode ter ou manter um vínculo jurídico com Ele. Nesse sentido, Gianturco explica que “o Estado é soberano absoluto e monopolista do ponto de vista doméstico e reconhecido internacionalmente entre os pares, garantindo-se reciprocamente a não interferência nos assuntos internos.”35 Diante desta situação fática e jurídica, resta então observar a importância deste ente abstrato que se tornou modelo das organizações políticas modernas e que, apesar de ter evoluído desde o seu surgimento no sentido de ampliar e proteger os direitos fundamentais, ao mesmo tempo se tornou o maior violador de direitos humanos sempre que nega à um indivíduo o direito de ter uma nacionalidade. Nesse sentido, verifica-se que os países que não são partes das Convenções de 1954 e de 1961 condenam os apátridas que vivem dentro de seus territórios a uma vida de exclusão jurídica, política e social, marginalizados e sem proteção estatal, confinados à um território sem direito a liberdade de se locomover, isto é, de entrar e sair sem ter problemas, e reduzidos a uma condição de objetos por não serem considerados destinatários de direitos fundamentais. Ao resgatar a história do surgimento dos direitos humanos e a sua relação íntima com o surgimento dos Estados-Nação, importa recordar que os Sistemas Global e Regionais de Proteção dos Direitos Humanos apenas se formaram após a constituição das organizações políticas em formas de Estados. A partir desses e do reconhecimento de seus pares, juntamente com os consagrados elementos constitutivos, povo, território e soberania, iniciou-se uma conjuntura para a criação de sistemas de reconhecimento e proteção dos direitos humanos, tendo os Estados o papel fundamental de por meio de organizações formadas por Eles, estabelecer tratados internacionais para garantir a universalidade dos direitos, até então, “simplesmente” naturais. Assim, é imprescindível destacar o papel do Estado na efetivação dos direitos naturais que, posteriormente a positivação em tratados internacionais, foram reconhecidos como direitos humanos e positivados em textos constitucionais como direitos fundamentais, a partir do Bill of Rights de 1689 e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Estes REZEK, J.F. Direito internacional público: curso elementar / Francisco Rezek. – 15. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 115. 35 GIANTURCO, A. A ciência da política uma introdução / Adriano Gianturco. - 2. ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2018, P. 118-119. 34 392 dois diplomas legais foram os percursores para fixar as balizas do papel do Estado como garantidor dos direitos fundamentais. Contudo, a trajetória desses direitos difundidos pelas Revoluções na Inglaterra e na França e que distanciam este século dos séculos XVII e XVIII, demonstraram que a premissa de garantir direitos aos cidadãos se restringiam apenas aos indivíduos considerados como nacionais pelos seus respectivos Estados. Essa evidência, restou clara a partir do século XX, quando as primeiras crises humanitárias decorrentes da apatridia começaram aparecer. No caso de Maha Mamo e sua irmã, a importância do Estado brasileiro de reconhecer a condição de apátrida e de conceder a nacionalidade brasileira a elas demonstra a importância que o Estado tem na solução do problema na questão da apatridia. É de se destacar que a justificativa para a evolução das sociedades organizadas num modelo estatal teve como grande teórico e idealizador, Thomas Hobbes, cuja obra “O Leviatã” trata do Estado como uma entidade cuja função precípua era promover a paz e a segurança dos indivíduos em troca de suas liberdades naturais.36 Desde essa época, a fundação de uma sociedade civil pautada por leis estatais, tornou o Estado detentor do monopólio coercitivo e, também, jurídico quando se trata na garantia dos direitos fundamentais, como no caso do direito de nacionalidade. Nota-se, ainda, que o caráter absoluto da soberania do Estados, em teoria, superada no final do século XX decorrente dos direitos humanos, não foi suficiente para criar uma imperatividade aos Estados de cumprirem certos compromissos internacionais, uma vez que a escolha de se submeter à um Tratado Internacional, ainda compete aos Estados, que como se depreende, dentro de seus respectivos territórios gozam de absoluto poder legislativo para reconhecer ou não o status de nacionalidade à um indivíduo. Dessa forma, destaca-se que o Estado tem papel crucial na erradicação da apatridia no Mundo, uma vez que juridicamente cabe a Ele conceder a naturalização de um indivíduo apátrida que se encontra sob a sua custódia, retirando o indivíduo dessa situação marginal a partir da garantia de um dos direitos mais elementares para o exercício da cidadania e dos demais direitos fundamentais, uma vez que sem cidadania, o indivíduo não existe perante o Mundo jurídico constituído pelos Estados-Nacionais a partir da Idade Moderna. Nesse sentido, Bonavides explica que “da cidadania, que é uma esfera de capacidade, derivam direitos”, e complementa a ideia sobre a importância da cidadania ao explanar que “é um status que define o vínculo nacional da HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de Estado eclesiástico e civil. Tradução João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Marlins Fontes, 2003, p. 141. 36 393 pessoa, os seus direitos e deveres em presença do Estado e que normalmente acompanha cada indivíduo por toda a vida.”37 Considerações Finais A ausência de nacionalidade afeta milhões de pessoas em todo o mundo, gerando uma série de violações aos direitos humanos e fundamentais dos chamados apátridas. Dentre as causas para a existência da apatridia, destacam-se o conflito entre as regras dos Estados para aquisição de nacionalidade; as lacunas deixadas pelas legislações nacionais sobre direito à cidadania por local de nascimento e ascendência; os conflitos étnicos que levam certos grupos a não serem reconhecidos como cidadãos nos Estados em que nasceram; a cassação de nacionalidade de filhos de estrangeiros; e ainda, a cassação de nacionalidade por perseguição política. Desde a segunda metade do século XX, o sistema jurídico internacional e os sistemas regionais criaram instrumentos jurídicos para combater a apatridia no mundo, e reconhecer a necessidade de cada indivíduo ter o direito a uma nacionalidade, contudo, muitos países ainda adotam apenas um dos critérios para a aquisição da nacionalidade, dificultando a apatridia, principalmente nos países que adotam somente o critério do jus sanguinis. Uma das soluções mais efetivas para minimizar o número de apátridas seria a uniformização das regras para aquisição da nacionalidade com a adoção do critério jus soli. É evidente que o problema se divide em um viés político e outro jurídico. Na esfera política, a ausência dos Estados de fazer parte das Convenções de 1954 e de 1961 possui contornos de interesses políticos de manter a discricionariedade no processo de reconhecimento dos apátridas e das regras de aquisição e perda da nacionalidade, uma vez que não vinculados aos Tratados, não se obrigam a realizar o esforço necessário para a solução do problema dentro de seus territórios. Na esfera jurídica, nota-se a existência de vasto arcabouço jurídico internacional, contudo dada as características do Sistema Jurídico Internacional, como a soberania dos Estados e o sistema de sanção precária, além da pouca aderência dos países membros da ONU, a resposta aos problemas decorrentes da apatridia continuam a depender do protagonismo dos Estados em resolver a situação dos apátridas que chegam até os seus territórios, evidenciando o importante papel dos Estados no combate a apatridia e a sua responsabilidade perante um dos problemas que resulta numa das maiores violações aos direito humanos do nosso tempo. Assim, apesar do problema envolver a esfera jurídica, nota-se que a solução para a erradicação da apatridia encontra-se limitada à vontade 37 BONAVIDES, P. Ciência Política. São Paulo, Brasil: Malheiros Editora, 10ª edição, 9ª tiragem, p.93. 394 política dos Estados, cujo princípio da soberania e da não intervenção, consagrados nos instrumentos normativos internacionais, permitem aos Estados a discricionariedade de estabelecer as regras que entenderem ser dos seus interesses para conceder a nacionalidade aos indivíduos. Referências Bibliográficas BONAVIDES, P. Ciência Política. São Paulo, Brasil: Malheiros Editora, 10ª edição, 9ª tiragem. CORTEIDH. Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos / Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tradução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Brasília : Ministério da Justiça, 2014. FRAZÃO, A.C.. Uma breve análise sobre o direito à nacionalidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano, v. 5, 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57/uma-breve-analisesobre-o-direito-a-nacionalidade. Acesso em: 8 jun. 2023. GIANTURCO, A. 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Direito internacional público: curso elementar / Francisco Rezek. – 15. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014. UNHCR. Addressing Statelessness through the Rule of Law. 2022. Disponível em: https://www.refworld.org/topic,50ffbce524d,50ffbce5268,638e1bba4,0,,,.html. Acesso em: 10 jun. 2023. UNHCR. Statelessness Around the World. Disponível em: https://www.unhcr.org/whatwe-do/protect-human-rights/ending-statelessness/statelessness-around-world. Acesso em: 10 jun. 2023. UNHCR. Background Note on Gender Equality, Nationality Laws and Statelessness 2023. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/640751284.html. Acesso em: 10 jun. 2023. 395 A Teoria Geral dos Precedentes à Luz dos Sistemas Regionais de Direitos Humanos The General Theory of Precedents in the Light of Regional Human Rights Systems Sérgio Assunção Rodrigues Júnior1 Lucas Ramos Krause dos Santos Rocha2 Sumário Introdução; 1. Os Precedentes no Sistema Processual Civil Brasileiro pela ótica do Código de Processo Civil de 2015; 2. Descontrole de Convencionalidade; Considerações finais. Resumo Neste trabalho é realizado um estudo sobre a temática da teoria geral dos precedentes à luz dos procedimentos dos julgados dos sistemas regionais de direitos humanos. Para tanto, foi escolhida a revisão de literatura como metodologia de pesquisa, tendo sido efetuada análise da bibliografia disponível e aplicável in concreto, principalmente representada por livros acadêmicos, artigos científicos e decisões dos tribunais e cortes, bem como o estudo comparado do modus operandi dos diversos sistemas regionais selecionados. Diante disso, tem-se o problema de pesquisa a ser enfrentado: como as decisões dos sistemas regionais de direitos humanos podem vir a ser aplicadas no ordenamento jurídico brasileiro? Para tanto, se analisará a questão do controle de convencionalidade, que aborda a aplicação de uma decisão e/ou dos seus parâmetros em casos concretos que ocorram no ordenamento jurídico nacional. Assim, pretende-se trazer neste artigo científico o modo pelo qual o controle de convencionalidade se relaciona com a aplicação de um precedente, sob a ótica da teoria geral dos precedentes, no âmbito de sua utilização, de modo que devem ser respeitados e delimitados alguns parâmetros para que também não ocorra o descontrole de convencionalidade. Ao analisar o controle de convencionalidade, pode-se perceber que este é o processo de verificação da compatibilidade de uma norma ou prática interna em face do direito internacional dos direitos humanos, compreendidas neste trabalho as suas principais fontes, mas em especial os tratados internacionais e a jurisprudência internacional, consultiva e contenciosa. Palavras-chave Precedentes; Sistemas Regionais de Direitos Humanos; Controle de Convencionalidade; Descontrole de Convencionalidade. Summary In this work, a study is carried out on the theme of the general theory of precedents in the light of the procedures of the judgments of the regional systems of human rights. For this purpose, a literature review was chosen as the research methodology, with an analysis of the bibliography available and applicable in concrete, mainly represented by academic books, scientific articles and decisions of courts and courts, as well as a comparative study of the 1 Doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Mestre em Direito pela Universidade Portucalense (UPT/Porto), Especialista em Direito Público (UNESA), Direito Civil e Processual Civil (UNESA), Direito Desportivo (UCAM), Direitos Humanos (FACICA), Direitos Difusos e Coletivos (CERS). E-mail: [email protected] 2 Pesquisador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio. Doutorando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes (2021). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2020). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017). E-mail: [email protected] 396 modus operandi of the selected regional systems. Given this, there is the research problem to be faced: how can the decisions of regional human rights systems be applied in the Brazilian legal system? To this end, the issue of conventionality control will be analyzed, which addresses the application of a decision and/or its parameters in concrete cases that occur in the national legal system. Thus, it is intended to present in this paper the way in which the control of conventionality is related to the application of a precedent, from the perspective of the general theory of precedents, within the scope of its use, so that there is also no lack of conventionality control. When analyzing the conventionality control, it can be seen that this is the process of verifying the compatibility of a norm or internal practice in the face of international human rights law, comprising in this work its main sources, but in particular international treaties and international jurisprudence, advisory and contentious. Keywords Precedent; Regional Human Rights Systems; Conventionality Control; Uncontrolled Conventionality. Introdução A Teoria Geral dos Precedentes é uma temática de extrema relevância no âmbito do Direito Processual Civil, de modo que com o advento do Código de Processo Civil de 2015, tal assunto se tornou mais necessário e evidente de ser debatido, razão pela qual se optou por abordar a teoria geral, com os conceitos, características e nuances. Diante disso, surge a questão da necessidade de se analisar como se dá a aplicação das decisões (e/ou dos seus parâmetros) dos Tribunais que estão vinculados aos Sistemas Regionais de Direitos Humanos, razão pela qual será exposto neste trabalho, os Sistemas Interamericano, Europeu, Africano, Árabe e Asiático, explicitando como se dá o procedimento de cada decisão. Diante disso, tem-se a questão de como tais decisões, podem vir a ser aplicadas no nosso ordenamento jurídico? Para tanto, se analisará a questão do Controle de Convencionalidade, que aborda a aplicação de uma decisão e/ou dos seus parâmetros de tais Tribunais Internacionais em casos concretos que ocorram no ordenamento nacional, que é a aplicação de um precedente. Assim, pretende-se trazer nesta pesquisa, o modo ao qual o Controle de Convencionalidade tem relação com a aplicação de um precedente (sob a ótica da Teoria Geral dos Precedentes), no âmbito de sua utilização, de modo que devem ser respeitados e delimitados alguns parâmetros para que também não ocorra o Descontrole de Convencionalidade. 1. OS Precedentes no Sistema Processual Civil Brasileiro pela Ótica do Código de Processo Civil de 2015 397 O sistema processual civil brasileiro segundo Marcelo Ribeiro3, hoje trabalha com dois sistemas distintos que se completam pelo diálogo das fontes: o sistema de formação concentrada de precedentes, aqui compreendidos como padrões decisórios, forjados pelos tribunais estaduais, tribunais regionais federais e tribunais superiores; e um sistema mais restrito, previsto para julgar demandas repetitivas. Alega que por qualquer dessas duas vias terão pronunciamentos vinculantes, o que significa dizer que se pode estabelecer uma resposta institucional pela resolução de demandas repetitivas ou pelo julgamento de um caso individual, desde que para isso observemos as garantias constitucionais e os ritos processuais. Afirma que é importante destacar individualmente cada um desses sistemas, seus procedimentos e especificidades, pois a ideia de microssistema nos permite buscar na legislação informações complementares entre esses institutos para um exercício adequado e democrático da jurisdição. No primeiro sistema temos: IRDR, IAC, recursos repetitivos, súmula vinculante e o incidente de declaração de inconstitucionalidade, suscitado em tribunais pelo controle difuso. O segundo sistema, mais restrito, é previsto para julgar demandas repetitivas e conta com duas vias: IRDR e recursos repetitivos. O IRDR foi inicialmente reservado para os tribunais estaduais e tribunais regionais federais, mas recentemente, por entendimento jurisprudencial, mesmo sem previsão legal, foi admitido no Superior Tribunal de Justiça, que também admitiu a possibilidade do incidente de assunção de competência. Já os recursos repetitivos, que incluem o recurso especial repetitivo, para o STJ, e o recurso extraordinário, para o STF, somente podem ser admitidos nessas respectivas Cortes. O regime de formação dos precedentes se pauta pelo art. 927, III, do CPC/15. Dentre as regras gerais que organizam o sistema, deve-se destacar: a possibilidade de improcedência liminar, pelo art. 332 do CPC/15, nas hipóteses em que a demandante busque contrariar os padrões estabelecidos; a possibilidade de obter tutela de evidência, se estiver advogando a favor do padrão decisório, pelo art. 311, II, do CPC/15. Quanto à formação concentrada de precedentes, nos termos do art. 926 do CPC/15 4, esta atende três diretrizes constitucionais: coerência, integridade e estabilidade. A coerência é atrelada à isonomia material, o que resgata a identidade da demanda como fator elementar na construção da decisão judicial; a integridade se associa aos princípios, que traduzem um padrão ético, consagrado no espaço público; e, por fim, a estabilidade, que se torna, no 3 4 RIBEIRO, M. Processo Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 858-859. Art. 926 CPC/15. “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. 398 Estado de Direito, uma condição de possibilidade para a segurança jurídica, já que com ela o jurisdicionado pode livremente conduzir seu ideal de vida, pelas regras da democracia5. Quanto à sistemática do conteúdo, alcance e os objetivos dos artigos 926 e 927 do CPC/15, Cássio Scarpinella Bueno6, opta por denominar de Direito Jurisprudencial, sem precisar retomar, a toda hora, a discussão, as questões, as distinções, as dúvidas e as críticas. O caput do art. 926 quer evidenciar qual é o papel que o CPC de 2015 quer emprestar à jurisprudência dos Tribunais a título de racionalização e uniformização dos entendimentos obteníveis como resultado da prestação jurisdicional. Jurisprudência parece, aí, ter sido empregada como palavra genérica para albergar as súmulas e também os precedentes. Quanto ao art. 927 do CPC/15, Marcus Vinicius Rios Gonçalves7, dita que este traz uma perplexidade, posto que ele determina a juízes e tribunais que observem: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados de súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados, de modo que a perplexidade é que diante da determinação peremptória do caput do art. 927, chega-se à conclusão de que a lei criou hipóteses de precedente vinculante, que não estão previstas na Constituição Federal. Em relação aos dois primeiros incisos, a eficácia vinculante está prevista na Constituição (arts. 102, § 2º, e 103-A). No entanto, nos demais casos não há previsão constitucional, e, segundo este autor, não é possível a criação de novos casos por legislação ordinária. Alerta ainda que há inclusive a previsão de reclamação, para a hipótese de descumprimento do art. 927, III (art. 988, IV), embora inexista previsão constitucional de que as decisões proferidas em incidente de assunção de competência e de incidente de resolução de demandas repetitivas tenha eficácia vinculante. Assim, leva à inconstitucionalidade do disposto no art. 927, III, IV e V, do CPC, já que lei ordinária não pode criar novas situações de jurisprudência vinculante e essa inconstitucionalidade pode ser reconhecida em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade. 5 RIBEIRO, M. Processo Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 863. BUENO, C.S. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 1380. 7 GONÇALVES, M.V.R. Execução, processos nos tribunais e meios de impugnação das decisões. 13ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 284-285. 6 399 Ainda sobre o art. 927 do CPC/15, cumpre dizer que nem todo precedente é vinculante, mas apenas aqueles enumerados neste artigo do Código de Processo Civil. A vinculação alcança não apenas o tribunal de que se originou o precedente, mas todos os demais, a ele subordinados. Quando houver precedente vinculante, o órgão julgador deve sobre ele se pronunciar, ainda que não tenha sido suscitado pelas partes. Diante de todo esse contexto, cumpre alertar que a tarefa desempenhada pelo CPC/2015 foi no sentido de estabelecer um rol não só de enunciados, mas também de decisões e orientações a serem seguidos pelos juízes e Tribunais de todo o país, em busca da uniformização8. Cumpre assim dizer conforme os parâmetros abordados por Luiz Fux9, que o sistema de precedentes produz um nível de eficiência socialmente desejável não só dentro dos Tribunais, ao conferir maior racionalidade na atuação dos órgãos jurisdicionais hierarquicamente inferiores, como também influencia o comportamento extraprocessual dos litigantes. Ao menos no plano ideal, o sistema de precedentes possui efeito desejável de redução no número de litígios, uma vez que as partes envolvidas em controvérsias cuja solução já foi pacificada pela jurisprudência são estimuladas a não litigar ante à baixa probabilidade de sucesso na demanda. Consequentemente, o sistema de Justiça reduz sua sobrecarga, ocupando-se somente com as partes cujos direitos não estão bem delineados e seguros ante à jurisprudência pacificada no Tribunal. Quando bem administrado, esse estoque de capital tende a resultar em maior eficiência para o sistema processual como um todo. Primeiro, porque minimiza o tempo gasto pelos demais magistrados na resolução dos casos, uma vez vinculados a entendimento já sedimentado, a exemplo de técnicas adotadas no nosso ordenamento (julgamento liminar de improcedência, afastamento da remessa necessária, julgamentos monocráticos e da tutela de evidência). Segundo, porque tende a resultar na proposição de menos demandas judiciais. Sendo possível que as partes realizem prognósticos prévios sobre suas chances em juízo, a demanda judicial somente será proposta caso a pretensão esteja em consonância com o entendimento sedimentado pelo Tribunal. Caso contrário, racionalmente, tratar-se-á de perda de tempo e de recursos financeiros. 8 PINHO, H.D.B. Manual de Direito Processual Civil Contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 1531. 9 FUX, L. Curso de direito processual civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 1982. 400 2. DESCONTROLE DE CONVENCIONALIDADE O controle de convencionalidade consiste no processo de verificação da compatibilidade de uma norma ou prática interna em face do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), aqui compreendidas todas as suas fontes, mas em especial os tratados e a jurisprudência internacional, consultiva e contenciosa. Trata-se de um tema, portanto, inserido no contexto da relação entre o Direito interno e o DIDH, viabilizando um exercício hermenêutico para tornar compatíveis as obrigações assumidas internacionalmente com as normas e práticas internas. Quanto ao fundamento normativo, a Convenção Americana tem o art. 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), art. 2 (dever de adotar disposições de direito interno), art. 29 (mais amplo possível exercício dos direitos estabelecidos na Convenção ou em outros instrumentos nacionais ou internacionais). Por sua vez, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados tem o art. 26 (pacta sunt servanda) e o art. 27 (direito interno e observância dos tratados). Os principais objetivos segundo Eduardo Ferrer Mac-Gregor são: a) prevenir a aplicação de normas nacionais que sejam manifestamente incompatíveis com os tratados e sua respectiva interpretação pelos tribunais internacionais de direitos humanos; b) servir como uma instituição que permita a todas as autoridades do Estado cumprir adequadamente com sua obrigação de respeito e garantia dos direitos humanos; c) servir como um meio ou uma ponte para permitir o diálogo, especialmente o diálogo jurisprudencial em matéria de direitos humanos, entre os tribunais nacionais e os tribunais internacionais de direitos humanos, constituindo um elemento essencial na formação e integração de um Direito Constitucional comum. Quanto às modalidades, o controle de convencionalidade pode ser exercido tanto internacionalmente quanto nacionalmente. O controle de convencionalidade internacional é exercido por órgãos e tribunais internacionais de direitos humanos. O controle de convencionalidade nacional é exercido por órgãos e tribunais nacionais. André de Carvalho Ramos e Sergio García Ramírez10 chamam o controle internacional de autêntico/original e definitivo, enquanto que o controle nacional seria provisório ou preliminar. Caio Paiva alega que a expressão autêntico/original não é a mais precisa, pois isso não se compatibiliza com a própria jurisprudência da Corte IDH, que desenvolveu a doutrina ou teoria do controle de convencionalidade também a partir do princípio da subsidiariedade e complementaridade 10 RAMÍREZ, S.G... El control judicial de convencionalidad. [consukt. 11 de junho de 2023]. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/ r27771.pdf 401 dos sistemas internacionais. A Corte IDH compreende o controle nacional como primário e o controle internacional como secundário ou complementar: Isso significa que tem sido instaurado um controle dinâmico e complementar das obrigações convencionais dos Estados de respeitar e garantir direitos humanos, conjuntamente entre as autoridades internas (primariamente obrigadas) e as instâncias internacionais (de forma complementar), de modo que os critérios de decisão possam ser conformados e adequados entre si.11 O controle de convencionalidade interno se divide em controle concentrado e controle difuso. A literatura internacional (Pedro Sagües 12 e Mac-Gregor) indica que todos os juízes e tribunais nacionais – sem distinguir, portanto, as Cortes Constitucionais – exercem o controle interno difuso, ao passo que a Corte IDH e outros tribunais internacionais seriam quem exercem o controle concentrado. Sobre o controle difuso de convencionalidade, tem-se o trecho do voto do juiz MacGregor no julgamento do Caso Cabrera Garcia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos "(...) O Controle difuso de convencionalidade converte o juiz nacional em juiz interamericano: num primeiro e autêntico guardião da CADH (...) se convertem nos primeiros intérpretes da normatividade internacional’’13. O controle de convencionalidade interno/difuso pode ser exercido em distintos graus. Assim, quando a Corte estabelece que os órgãos estatais devem realizar o controle de convencionalidade, isso não significa uma limitação absoluta ao controle difuso, mas sim uma maneira de graduar a intensidade dele. Para Mac-Gregor, o controle de convencionalidade difuso pode ser exercido em três graus de intensidade: Grau baixo: o intérprete da norma realiza uma interpretação dos atos normativos internos que seja conforme as normas internacionais. No caso de incompatibilidade absoluta, onde não exista interpretação convencional possível, se o juiz não tem competência para deixar de aplicar a norma, deve pelo menos indicar a sua inconvencionalidade e, se for o caso, também suscitar a dúvida de inconvencionalidade perante outros órgãos competentes dentro do sistema jurídico nacional que possam exercer o controle de convencionalidade com maior intensidade. Grau intermediário: o intérprete considera que não há forma de compatibilizar, por meio do princípio da interpretação conforme, a aplicação da norma interna com a norma internacional. Portanto, deixa de aplicar a norma interna inconvencional. 11 Caso Massacre de Santo Domingo vs. Colômbia. Exceções Preliminares, mérito e reparações. Sentença de 30.11.2012, Corte Interamericana de Direitos Humanos. 12 SAGUÉS, Néstor Pedro. El “control de convencionalidad” como instrumento para la elaboración de un ius commune interamericano. [consult. 11 de junho de 2023]. Disponível em: https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/6/2895/15.pdf 13 Caso Cabrera Garcia vs. México. Corte Interamericana de Direitos Humanos. [Consult. 15 de agosto de 2023]. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_220_ing.pdf. 402 Grau máximo: realizado pelas altas jurisdições constitucionais, consiste na declaração de inconvencionalidade com efeitos erga omnes, expulsando a norma inconvencional do ordenamento jurídico interno14. Quanto ao parâmetro do controle de convencionalidade, é o bloco de convencionalidade, que inclui não apenas os tratados, mas também outras fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos, como o costume internacional e principalmente a jurisprudência tanto contenciosa quanto consultiva dos tribunais internacionais de direitos humanos. A Corte IDH afirmou em sua Opinião Consultiva nº 22/2016 que a sua competência consultiva cumpre a função própria de um controle de convencionalidade preventivo. Conforme anotou Mac-Gregor em seu voto no Caso Cabrera García, em algumas ocasiões o bloco de convencionalidade é incluído no bloco de constitucionalidade, de modo que ao realizar o controle de constitucionalidade também se efetua o controle de convencionalidade. A jurisprudência contenciosa da Corte IDH também vincula os Estados que não foram partes materiais no precedente, servindo, portanto, como parâmetro para o controle de convencionalidade? A Corte tratou desta questão em sua decisão de supervisão da sentença no Caso Gelman vs. Uruguai (2013)15. Em resumo, a sentença da Corte, ao adquirir a autoridade de coisa julgada internacional, proteja seus efeitos em suas dimensões: a) uma dimensão subjetiva e direta para as partes na controvérsia internacional; b) uma dimensão objetiva e indireta para todos os Estados partes na CADH. No primeiro caso, produz-se uma eficácia inter partes, que consiste na obrigação do Estado de cumprir com todo o estabelecido na sentença interamericana de forma rápida, íntegra e efetiva, de modo que existe aqui uma vinculação total e absoluta do conteúdo e efeito do julgamento. No segundo caso, produz-se uma eficácia erga omnes para todos os Estados partes na CADH, estando todas as autoridades e agentes públicos nacionais vinculados à efetividade convencional e assim, ao critério interpretativo estabelecido pela Corte IDH como padrão mínimo de efetividade da norma convencional. Daí a lógica de que a sentença seja notificada não apenas às partes no caso, mas também aos Estados partes na CADH (art. 69). Com isso temos o seguinte, a res judicata para as partes que participaram do processo e a res interpretata para todos os Estados partes da CADH. Em ambos os casos se produz 14 MEDEIROS, R.R.. O controle de convencionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. [consult. 15 de agosto de 2023]. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/59163/o-controle-deconvencionalidade-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. 15 Caso Gelman vs. Uruguai. Corte Interamericana de Direitos Humanos [consult. 11 de junho de 2023]. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/ gelman_20_03_13.pdf 403 eficácia vinculante, mas de forma distinta. No primeiro caso, temos uma eficácia vinculante direta, completa e absoluta por parte das autoridades nacionais de cumprir com os termos do julgamento, inclusive as razões de decidir. O Estado demandado não possui liberdade interpretativa. No segundo caso, temos uma eficácia vinculante indireta e relativa, na medida em que incide apenas quando não exista uma interpretação que confira maior efetividade à norma convencional no âmbito nacional. Os Estados possuem, aqui, uma margem de interpretação. Além disso, devem ser consideradas as reservas, declarações interpretativas e denúncias em cada caso. Quanto ao objeto, o objeto do controle de convencionalidade é toda prática ou normativa interna. A Corte IDH afirmou no julgamento do Caso Boyce vs. Barbados (2007) que o controle de convencionalidade deve ser realizado sobre todas as normas do sistema jurídico, incluídas as normas constitucionais. Quanto às autoridades obrigadas a exercer o controle de convencionalidade, tem-se que primeiro a Corte IDH fez menção apenas aos juízes. Depois ampliou para todos os órgãos vinculados à administração da justiça em todos os seus níveis, o que abrange as Cortes Constitucionais. Finalmente, a partir do Caso Gelman vs. Uruguai, a Corte ampliou e afirmou que todos os órgãos do Estado – incluindo seus juízes – devem exercer o controle de convencionalidade. O juiz quando exerce o controle de convencionalidade quando realiza interpretação conforme o DIDH ou quando deixa de aplicar a norma inconvencional. O Ministério Público exerce o controle de convencionalidade quando deixa de denunciar e arquiva investigação de crime inconvencional ou quando desconsidera a lei de anistia e apresenta denúncia por crime cometido durante a ditadura. Os membros da Defensoria Pública exercem o controle de convencionalidade quando deixam de cobrar honorários pela atuação de favor de réu não hipossuficiente no processo penal (seguindo, assim, o decidido pela Corte IDH no Caso Ruano Torres vs. El Salvador). O delegado exerce o controle de convencionalidade quando promove investigação de crime atingido pela lei de anistia, quando introduz parâmetros internacionais nas investigações etc. Quanto ao modelo, a Corte IDH (Caso Liakat Ali Alibux vs. Suriname), a CADH não impõe um modelo determinado de controle de convencionalidade. A discussão residia no fato de a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e os representantes da vítima terem defendido a violação do direito à proteção judicial decorrente da ausência de um tribunal constitucional. A Corte, embora reconhecendo a importância destes órgãos como protetores dos direitos fundamentais, ressaltou que a CADH não impõe um modelo específico para realizar o controle de convencionalidade, o qual compete a todos os órgãos 404 do Estado. Além disso, tem-se o princípio da atipicidade dos meios de controle de convencionalidade. Quantos aos efeitos, concluindo pela inconvencionalidade da normativa nacional, o intérprete – seja nacional ou internacional – deve proceder com a sua invalidação obrigatoriamente ex tunc ou pode adotar o efeito ex nunc e modular os efeitos do controle de convencionalidade? Este tema ainda está pendente de definição pela Corte IDH (e também pela doutrina). No Brasil, a modulação dos efeitos do controle concentrado de constitucionalidade é permitida nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99. O tema ainda precisa ser melhor enfrentado pela Corte IDH, principalmente fora do contexto dos casos de leis de anistia. Parece que, a depender do caso concreto, seria, sim, possível a modulação dos efeitos da declaração de inconvencionalidade, podendo-se aplicar por analogia o dispositivo acima indicado. Quanto ao histórico, a doutrina do controle de convencionalidade foi e continua sendo desenvolvida pela Corte IDH ao longo de anos e dezenas de manifestações em casos contenciosos e em opiniões consultivas. Por que esta doutrina foi e continua sendo desenvolvida pela Corte IDH e não por outro órgão ou tribunal internacional de direitos humanos, como a Corte Europeia de Direitos Humanos por exemplo? A doutrina de Alexandra Hunneus, aponta três distinções centrais entre os sistemas europeu e interamericano para explicar isso: 1) Contexto e tipo de intervenção: O SEDH inicia seus trabalhos lidando com um conjunto de países majoritariamente democráticos e com uma tradição de maior aderência ao estado de direito. Por outro lado, o contexto de criação SIDH, e mais ainda da Corte IDH, é antagônico: boa parte do continente vivia sob a égide de regimes autoritários, e grande parte dos países possuía longo histórico de rupturas da ordem legal. Isso explica historicamente o papel mais protagonista da Corte IDH no desenvolvimento de diversas doutrinas legais de limitação da soberania estatal, como aquelas relacionadas à vedação de anistias, à prática de desaparecimento forçados e à obrigação de investigar e punir graves violações contra os direitos humanos. 2) Prática ‘’ativista’’ da Corte IDH no remédio às violações que identifica: A prática europeia é a de indicar ao Estado membro a verificação de uma violação à CEDH, deixando a seu critério a solução para o caso, geralmente em termos individuais e com compensações pecuniárias. Não é acaso ser a prática europeia o berço da doutrina da ‘’margem de apreciação’’ nacional. Paralelamente, a prática da Corte IDH vem sendo a de emitir longos elencos de medidas concretas a serem implementadas pelos Estados, demandando aos três poderes constituídos, incluindo a positivação de delitos, revisão de políticas públicas e a reabertura de ações judiciais concretas, muitas vezes, dotando as decisões de efeito erga omnes. 405 3) Acompanhamento do caso: O TEDH encerra sua atuação no caso após a emissão da decisão, transferindo o monitoramento dos casos para o Comitê de Ministros (um órgão de natureza política). Alternativamente, no SIDH a supervisão das decisões cabe à própria Corte. Objetivando ampliar a efetividade de suas decisões, a Corte IDH inovou, estabelecendo sua competência para monitorar a implementação de suas decisões pelos Estados membros. Enquanto no SEDH, a decisão encerra o caso na esfera judicial, devolvendo-o às autoridades políticas, no SIDH a Corte segue como protagonista de longo prazo sem que ocorra, a qualquer tempo, uma devolução do caso à esfera política da OEA. Daí a afirmação de que a Corte IDH criou um regime dual único de administração de recursos legais e supervisão contínua de cumprimento16. Essas três características demonstram a capacidade adaptativa e criativa da Corte IDH, mas também a sua tendência expansiva e mais intervencionista. Quanto ao Controle de Convencionalidade no Brasil, no concentrado, o paradigma será apenas os tratados de direitos humanos aprovados conforme o procedimento do art. 5 §3° da CRFB/88, que lhes conferem equivalência às emendas constitucionais. Há também quem recuse a gramática do DIDH para nomear esta atividade simplesmente de controle concentrado de constitucionalidade. O melhor é chamar de controle concentrado de convencionalidade, pois a lei impugnada pode ser compatível com a CF, que é omissa no ponto, mas incompatível com o tratado incorporado. No caso do controle difuso de convencionalidade, o paradigma será tanto os tratados incorporados com equivalência de EC quanto os tratados de direitos humanos aprovados por maioria simples no Congresso Nacional. O recurso cabível para ativar o controle de convencionalidade nos tribunais superiores segundo o art. 102, III CRFB/88, compete ao STF julgar mediante RE, as causas decididas em única ou última instância, quanto à decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; já para o art. 105, III CRFB/88 compete ao STJ julgar, em RESP as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal ou negar-lhes vigência. Tratados que desafiam RESP são os que possuem hierarquia de lei ordinária ou de supralegalidade; tratados que desafiam RE são aqueles aprovados conforme o art. 5 §3° da CRFB/88. O Controle difuso por sua vez, entende-se que não se aplica a cláusula de reserva de plenário, havendo neste sentido, pronunciamento do STJ, no HC 1.640.084, da 5ª Turma, voto do Min. Ribeiro Dantas, de 16/12/2016. 16 TORELLY, M. Controle de convencionalidade: constitucionalismo regional dos direitos humanos. [Consult. 15 de agosto de 2023]. Disponível: https://www.scielo.br/j/rdp/a/HGcj998sWN6Y xPfPrWsszfp/?lang=pt#. 406 Quando se realizar uma compatibilidade das normas internacionais de direitos humanos ou até mesmo trazer os parâmetros dos casos desses tribunais para o âmbito interno de cada Estado, deve-se evitar um Descontrole de Convencionalidade, que seria a vontade de se usar a todo o custo esses parâmetros internacionais de direitos humanos, mas sem o cuidado que deveria ser inerente, ou até mesmo quando não haveria razão para ser. Tais abordagens devem ser feitas à luz de um litígio estratégico, e não de modo desordenado, pois o intuito dela é proteger os direitos humanos e para tanto, essa defesa deve ser eficaz, atenta e cuidadosa. Considerações Finais A pesquisa perpassou pela análise do que viria a ser a Teoria Geral dos Precedentes, para traçar todas as questões relativas a esse tema. Após isso mencionou todos os Sistemas Internacionais de Direitos Humanos e por fim, detalhou a temática do Controle de Convencionalidade e do Descontrole de Convencionalidade. Pode-se perceber que precedente é aquele que é oriundo a partir do ato de um órgão jurisdicional se valer de uma decisão previamente proferida para fundamentar sua decisão, empregando-a como base de tal julgamento. Por sua vez, tem-se a jurisprudência quando se fala de um grande número de decisões judiciais, que estabelecem uma linha constante de decisões a respeito de certa matéria, permitindo que se compreenda o modo como os tribunais interpretam e aplicam determinada norma jurídica. Ao analisar o Controle de Convencionalidade, pode-se perceber que este é o processo de verificação da compatibilidade de uma norma ou prática interna em face do Direito Internacional dos Direitos Humanos, aqui compreendidas todas as suas fontes, mas em especial os tratados e a jurisprudência internacional, consultiva e contenciosa. Assim, quando se tenta utilizar parâmetros de uma decisão proferida por um Tribunal Internacional de Direitos Humanos, em um caso dentro do ordenamento jurídico nacional, ao realizar esse procedimento, tem-se o Controle de Convencionalidade. No entanto, deve-se constatar que tal realização do Controle, não pode se dar de modo desenfreado e sem critérios finalísticos, de modo que deve-se ter uma litigância estratégica através desta realização de modo a não se tentar inserir tal processo de verificação de compatibilidade a qualquer custo, o que poderia gerar o Descontrole de Convencionalidade. Por fim, seguindo por base a Teoria Geral dos Precedentes, pode-se vislumbrar que as decisões dos Sistemas Regionais de Direitos Humanos, quando são aplicadas no âmbito do interno brasileiro, podem sim ser consideradas precedentes. 407 Referências Bibliográficas BUENO, C.S. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. Caso Cabrera Garcia vs. México. Corte Interamericana de Direitos Humanos. [Consult. 15 de agosto de 2023]. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/ casos/articulos/seriec_220_ing.pdf. Caso Gelman vs. Uruguai. Corte Interamericana de Direitos Humanos, [consult. 11 de junho de 2023]. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/supervisiones/ gelman_20_03_13.pdf Caso Massacre de Santo Domingo vs. Colômbia. Exceções Preliminares, mérito e reparações. Sentença de 30.11.2012, Corte Interamericana de Direitos Humanos. FUX, L. Curso de direito processual civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. GONÇALVES, M.V.R. 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[consult. 15 de agosto de 2023]. Disponível: https://www.scielo.br/j/rdp/a/HGcj998sWN6YxPfPrWsszfp/?lang=pt#. 408 Pessoas Transgêneras e a Materialidade de Direitos Formalmente Conquistados: O Papel das Empresas no Brasil Transgender People and the Materiality of Formally Conquered Rights: the Role of Companies in Brasil Silvia Turra Grechinski1 Sumário: 1. Introdução: algumas inquietações; 2. O problema da noção colonial de sujeito de direitos; 3. Uma resposta na decolonialidade; 4. O papel das empresas; Considerações Finais. Resumo: Os problemas dos quais partem a presente investigação são se há diretrizes, em sede de direitos humanos, para garantir dignidade e direitos a pessoas transgêneras como funcionárias e consumidoras? Se há dados no Brasil, o que apontam? O objetivo é mostrar uma teoria incompleta sobre quem são sujeitos de Direito no ordenamento jurídico brasileiro eurocentrado. Metodologicamente, realiza-se uma pesquisa bibliográfica, de método dedutivo de abordagem e analítico-descritivo de análise. O processo perene de constitucionalização dos direitos, com o enaltecimento dos princípios constitucionais e uma nova postura inclusiva e antidiscriminatória do Poder Judiciário, possibilita e requer uma teoria de sujeito que seja mais abrangente e capaz de promover a total efetividade de garantias constitucionais, com foco primordial na dignidade da pessoa humana. É sabido que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo e, de modo paradoxal, não são produzidos no país dados oficiais sobre esse tipo de violência. Nesse sentido, um novo fazer científico é necessário: a ciência do direito e a ciência do gênero, apresentadas em uma abordagem interseccional, que considera os estudos antirracistas e da branquitude desenvolvidos no chamado Sul global, importam para se entender as realidades trans e queer no Brasil. Demonstrando e concluindo, assim, que o Direito não inclui e que compromete a democracia. A proposta é por uma teoria jurídica da subjetividade transgênera, com base em autores/as do Direito, utilizando a perspectiva teórica de igualdade proposta pelos estudos antirracistas. Palavras-chave: direitos humanos; empresas; decolonialidade; teoria do direito. Abstract: The problems from which this investigation departs are whether there are guidelines, based on human rights, to guarantee dignity and rights to transgender people as employees and consumers? If there are data in Brazil, what do they indicate? The objective is to show an incomplete theory about who are subjects of Law in the Eurocentric Brazilian legal system. Methodologically, a bibliographical research is carried out, with a deductive method of approach and analytical-descriptive analysis. The perennial process of constitutionalization of rights, with the enhancement of constitutional principles and a new inclusive and anti-discriminatory stance of the Judiciary, enables and requires a theory of the subject that is more comprehensive and capable of promoting the total effectiveness of constitutional guarantees, with a primary focus on in the dignity of the human person. It is known that Brazil is the country that most kills trans people in the world and, paradoxically, official data on this type of violence are not produced in the country. In this sense, a new scientific practice is needed: the science of law and the science of gender, presented in an intersectional approach, which considers anti-racist and whiteness studies developed in the so-called global South, matter to understand trans and queer realities in the Brazil. Demonstrating and concluding, therefore, that the Law does not include and that it compromises democracy. The proposal is for a legal theory of transgender subjectivity, based Doutoranda no Centro Universitário Autônomo do Brasil UniBrasil, professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR. Email [email protected] 1 409 on authors of law, using the theoretical perspective of equality proposed by anti-racist studies. Keywords: human rights; companies; decoloniality; theory of law. 1. Introdução: Algumas Inquietações Como o Direito não emancipa e não iguala, paulatinamente reproduzindo a desigualdade das pessoas trans na legislação brasileira? Ora, não existe democracia onde haja desigualdade, democracia e igualdade – aqui, de gênero – requerem uma à outra. Igualdade de gênero faz parte de uma estrutura democrática que não atinge à pessoas transgêneras. Por que ainda a invisibilidade em pleno seculo XXI? No Direito? Na legislação trabalhista/ penal, nas Constituições...? Será que o problema é essas pessoas não serem entendidas na lógica de sujeitas de direito? Como corpos desconformes ao padrão podem ser inseridos na ideia de assujeitamento, se a base de sujeito é conforme? Como mostrar para a teoria do Direito que ela não é inclusiva ou democrática? 2. O Problema da Noção Colonial de Sujeito de Direitos As discussões sobre transgeneridade tratam de questões institucionalizadas de enormes preconceitos fortemente enraizados na sociedade e na cultura brasileiras. Buscando consertar as exclusões do passado, mudanças relacionadas às especificidades de garantias de direitos vêm sendo introduzidas no Direito brasileiro nos últimos anos. A promulgação da Constituição Federal da República em 1988, cujo objetivo precípuo era instituir um Estado Democrático de Direito no Brasil, permite-nos observar que os direitos das pessoas e mulheres trans, ainda hoje, não são conquistas legislativas, mas sim nas poucas vezes conquistados junto ao Judiciário2. Segundo o autor Caio Pedra3, a relação da população trans com o Poder Judiciário no Brasil é antiga. Citando o emblemático caso da década de 1970, do cirurgião plástico que realizou o primeiro procedimento de transgenitalização em uma mulher trans no Brasil, e que teve ação movida contra si pelo Ministério Público por lesão corporal gravíssima, demonstra a ideia de que o "Judiciário não cumpre seu papel" no Brasil. E a trans cirurgiada teve negado seu pedido de mudança de nome. Em mais um dos fartos exemplos da colonialidade do poder no Brasil, o acesso à Justiça por aqui ainda é um privilégio restrito à pequena parte da população. A maioria desconhece seus direitos ou não tem condições de os exigir por uma série de fatores PEDRA, C.B.. Os direitos das pessoas trans e o Poder Judiciário brasileiro. Conjur, abril de 2021. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-25/caio-pedra-direitos-pessoas-trans-poder-judiciario. Acesso em 20 abril. 2022. 3 Idem 2 410 estruturalmente excludentes, como os altos custos do serviço de advogadas e advogados, a insuficiência de defensoras e defensores públicos e a tão sabida sobrecarga dos tribunais. Além disso, a própria estrutura do Poder Judiciário cria uma casta social de juízas e juízes com altíssimos salários absolutamente distanciadas e distanciados da realidade de diversos grupos, que elas e eles passam a conhecer somente pela “letra fria” dos processos. Apesar disso, no Brasil é o Poder Judiciário o menos retrógrado no sentido do reconhecimento das variações de identidades, orientações, e no avanço lento mas significativo na evolução da mentalidade jurídica brasileira. Sempre bom lembrar que as decisões de hoje são resultados de movimentações muito antigas dos grupos organizados, porque a morosidade ainda é regra na Justiça brasileira4. O reconhecimento de direitos pode vir juridicamente por diversas frentes normativas (lei, decreto, portaria, decisão judicial), e todos os esforços devem ser empenhados no combate às exclusões vivenciadas por pessoas transgêneras. Para ficarmos em dois recentes exemplos, em 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão máximo de decisões jurídicas no Brasil, decide pela maioria de seus ministros que a alteração do nome social – aquela negada na década de 1970 para a primeira mulher trans cirurgiada no Brasil – pode ser feita diretamente no cartório, sem necessidade de processo judicial ou cirurgia de redesignação sexual. E em 2019, o mesmo STF equipara a homotransfobia ao crime de racismo. Esses dois julgamentos demonstram o que o legislativo não consegue materializar na seara aqui abordada: direitos. 3. Uma Resposta na Decolonialidade Conjugando os dados das violências perpetradas contra pessoas transgêneras com essa dificuldade de acesso a direitos, a partir de uma visão teórica pós-colonial da subalternidade de gênero, propomos pensar neste artigo a libertação, a emancipação das violências que se perpetuam no Brasil tendo em vista a colonialidade dos saberes que aqui impera, em visões religiosas/ jesuíta/ colonial5. A defesa que justifica este texto é da saúde e do direito aos próprios corpos, identificando as pessoas trans à margem da sociedade e do Direito, demonstrando como o Direito não emancipa e não iguala, paulatinamente reproduzindo a desigualdade das trans na 4 5 Idem WOLKMER, A.C. (org.). Fundamentos de História do Direito. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007 411 legislação brasileira. Ora, não existe democracia onde haja desigualdade, democracia e igualdade – aqui, de gênero – requerem uma à outra. Igualdade de gênero faz parte de uma estrutura democrática que não atinge à pessoas trans. A partir de se pensar a heteronormatividade que as tira de cena, por uma perspectiva de colonialidade do pensamento, arrisca este trabalho desde logo a hipótese de que a igualdade de gênero é uma falácia e continuará sendo especialmente porque as trans não acessam materialmente os pouquíssimos direitos a duras penas formalmente conquistados. O discurso da igualdade disso não passa, de discurso, de uma quimera, de fragilidade democrática. A hipótese é de que é a construção de uma teoria jurídica da subjetividade transgênera que garantirá a essas pessoas o acesso ao Direito. 4. O Papel das Empresas Em 2002, a HRC (Human Rights Capaign) fez um índice de políticas, práticas e benefícios. Apenas 5% das empresas tinham proteções contra discriminação – de maneira geral. Atualmente, em 2023, 97% das empresas que participam do índice têm essas proteções6. No Brasil, também há uma busca pela integração de pessoas trans no mundo corporativo. A plataforma Transempregos, criada para incluir pessoas trans no mercado de trabalho, tinha em 2014 doze companhias usando seu serviço e, em 2017, houve um crescimento de quase 300% com 46 empresas cadastradas. Em 2023, são 2.409 empresas parceiras7. Existem maneiras de uma companhia apoiar no trabalho as pessoas que estão em transição de gênero, facilitando a mudança de nome nos documentos da empresa ou permitindo que expressem seu gênero de acordo com o código de vestimenta que fizer sentido para elas. Além disso, uma política de recursos humanos poderia ser uma pessoa trans acessando a terapia de hormônios pelo plano de saúde da empresa - caso contrário, essas pessoas não terão os mesmos benefícios que suas/seus colegas cisgêneros. A mesma lógica se dá em relação a clientes trans. Empresárias/os e empregadoras/es de multinacionais no mundo inteiro não só entendem que diversidade e inclusão são bons para os negócios, para atrair e manter a melhor força de trabalho, como também sabem que 6 7 Fonte: https://www.hrc.org/. Acesso em 12 de junho de 2023 16h. Fonte: https://www.transempregos.com.br/. Acesso em 12 de junho de 2023 17h 412 há pessoas que não fazem parte da comunidade trans, mas veem esse tipo de política como indicador do compromisso da empresa de ser um lugar acolhedor para se trabalhar 8. Considerações Finais A partir da teoria da decolonialidade, vê-se que o método científico utilizado para os conceitos de fato social, direitos humanos, direitos fundamentais e direito constitucional não se aplica para garantia e acesso à direitos de gêneros. É preciso uma nova epistemologia para as gerações de direitos humanos: o feminismo e o transfeminismo. A resposta pode estar em uma ciência não localizada, mas que permita localizações; uma ciência que considere, por óbvio, a interseccionalidade com estudos de gêneros e teorias feministas; uma ciência de gênero, eminentemente decolonial e transfeminista – afinal, é da compreensão da construção de uma latinidade emancipadora que a presente pesquisa parte. Uma vez melhor compreendida, dará oportunidades para a inclusão de novos sujeitos e sujeitas no ordenamento jurídico brasileiro, considerando-se as pessoas trans a partir de uma nova hermenêutica, como vem se dando em relação aos estudos antirracistas. Será necessário, deste modo, subverter a moral, os modelos e os costumes, a partir de uma (des)construção decolonial, para possibilitar que as diversas vozes trans reverberem pelo Poder Público, sendo o seu prelúdio a garantia do acesso à justiça. A dificuldade é a construção de um modelo de desenvolvimento e inclusão de sujeitos e sujeitas na teoria do direito que possibilite o rompimento do fazer pensar do norte global, impulsionando e dando praticidade (realização) a um direito que seja para todos, todas e todes, que respeite e enxergue as pessoas como diversas e de acordo com a sua singularidade e dignidade. Referências Bibliográficas AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro, 2019. ANTRA. Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018. Disponível em https://antrabrasil.org/mapadosassassinatos/. Acesso em 11 abril de 2022. ANTRA. Dossiê assassinato e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. Disponível em https://antrabrasil.files.wordpress.com/. Acesso em: 11 abril de 2022. ANZALDÚA, G. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo. Tradução de Édina de Marco. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. 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Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 415 Uma Resposta Decolonial à Crise dos Direitos Humanos A Decolonial Response to the Human Rights Crisis Silvia Turra Grechinski1 Ramon Gabriel Conti2 Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. As tensões no Estado de Direito: Perspectiva crítica e sociedade plural; 3. Uma resposta decolonial – O mundo Ch’ixi de Silvia Cusicanqui; 4. Por uma perspectiva decolonial e latino-americana: Uma contribuição ao constitucionalismo; Considerações Finais. Resumo: O presente trabalho visa apresentar reflexões acerca das ideias e práticas da episteme indígena da intelectual latino-americana Silvia Rivera Cusicanqui, principalmente no que tange ao seu trabalho sobre o mundo Ch’ixi. Algumas noções da intelectual servirão de bússola para promover uma nova resposta, sob a perspectiva decolonial, à crise dos direitos humanos e do constitucionalismo no sul global. Isto porque, há uma tensão entre as diversas expressões do direito, em suas mais distintas adequações multiculturais, com a epistemologia constitucionalista vencedora do século XXI - após a Segunda Guerra Mundial - oriunda, sobremaneira, do direito europeu. Neste paralelo, ostentar uma forma diversa de análise às complexas relações humanas, cujo olhar se volta para dentro, é meio capaz de promover um fortalecimento das relações humanas, principalmente no manuseio e defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Um olhar epistemológico decolonial possibilita, por meio de um direito emancipador que tenha como base o pluralismo jurídico e promovedor de um direito diverso daquele capitaneado pelos saberes eurocentrados, a aceitação e o diálogo com a complexa estrutura estatal da produção do próprio direito. Metodologicamente, realizar-se-á uma pesquisa bibliográfica, de método dedutivo de abordagem e analítico-descritivo de análise. Explorando, na primeira parte, a tensão no Estado Constitucional, na segunda parte as ideias de Silvia Cusicanqui e, por fim, a corroboração destas ideias para uma epistemologia decolonial de fortalecimento dos direitos humanos. A investigação concluirá a possibilidade de ser a o constitucionalismo latinoamericano uma resposta às tensões existentes entre direitos humanos e constitucionalismo. Palavras-chave: Direitos humanos; Direitos fundamentais; Decolonialidade; Constitucionalismo latino-americano. Abstract: The present work aims to present reflections about the ideas and practices of the indigenous episteme of the Latin American intellectual Silvia Rivera Cusicanqui, mainly with regard to her work on the Ch'ixi’s world. The aforementioned work by the intellectual will serve as a compass to promote a new response, from a decolonial perspective, to the crisis of human rights and constitutionalism in the global south. This is because there is a tension between the various expressions of law, in their most distinct multicultural adaptations, with the winning constitutionalist epistemology of the 21st century - after the Second World War - largely derived from European law. In this parallel, showing a different way of analyzing complex human relationships, whose gaze turns inward, is capable of promoting a Doutoranda bolsista PROSUP/CAPES no Programa de Pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil e professora na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Email: [email protected] 2 Mestrando bolsista PROSUP/CAPES do Programa de Pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil e advogado. E-mail: [email protected] 1 416 strengthening of human relationships, especially in the handling and defense of human rights and fundamental rights. A decolonial epistemological perspective allows, through an emancipatory law that is based on legal pluralism and promoter of a different law from that commanded by Eurocentric knowledge, acceptance and dialogue with the complex state structure of the production of law itself. Methodologically, a bibliographical research will be carried out, with a deductive method of approach and analytical-descriptive analysis. Exploring, in the first part, the tension in the Constitutional State, in the second part the ideas of Silvia Cusicanqui and, finally, the corroboration of these ideas for a decolonial epistemology of strengthening human rights. The investigation will conclude the possibility that decoloniality is a response to existing tensions between human rights and constitutionalism. Keywords: Human rights; fundamental rights; decoloniality; Latin American constitutionalism. 1. Considerações Iniciais As dimensões da política, do social, da economia, do meio ambiente e da cultura, por meio da sua diversidade de expressões, caracterizam o emergente Constitucionalismo no século XXI. Tais dimensões impõem um desafio ao Estado, o de atentar e convergir os processos decisórios com a máxima necessidade da sociedade, inclusive no que tange o próprio Direito. A passagem epistemológica do Estado de Direito, pautado na Lei, para um Estado Constitucional de Direito, pautado na força vinculativa da Constituição 3, abre caminho para que o direito se emancipe e permita que novos arranjos hermenêuticos e dogmáticos possam exercer protagonismo no ordenamento jurídico. Com esses novos arranjos dogmáticos, o direito se abre à diversidade e para o pluralismo jurídico, permitindo que novas formas de entender a relação fato, sociedade e legislação se demonstrem como vias possíveis na salvaguarda dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. Nesse contexto, de um pluralismo jurídico emancipador e possível de racionalidade4, que a presente investigação se propõe adentrar, trazendo um conceito decolonial de uma autora sul americana, Silvia Rivera Cusicanqui, na tentativa de solucionar a crise que se abate no constitucionalismo do sul global. Crise que permeia tanto na prevalência da doutrina eurocentrada e no embate entre diversidade jurídica e fontes estáticas de produção do direito. Uma perspectiva decolonial, que permita reabrir caminhos para uma ótica de reposição de um contexto cultural e político dos países do sul global 5, favorece a produção e reprodução de um pensamento e conhecimento voltado às características particulares de cada HESSE. K. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. 4 MALISKA, M.A. Pluralismo Jurídico e Direito Moderno. Notas para pensar a racionalidade jurídica. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2022, p. 11 5 SANTOS, B.S.; MENESES, M.P.. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009 3 417 lugar em específico6. Essa necessária relação entre multiculturalismo e pluralismo jurídico, permite pensar e interpretar direitos humanos e direitos fundamentais de uma maneira mais ampla e com a presença cada vez maior da população local, fomentando e aprimorando a cidadania e o reconhecimento de povos e pessoas. O objetivo, em síntese, é apresentar as ideias e práticas da episteme indígena de Silvia Rivera Cusicanqui em contrapartida às crises que emergem do estado constitucional. Ao final, concluirá pela importância de saberes outros diferentes dos eurocentrados, só assim se promoverá respostas juridicamente viáveis às contradições enfrentadas nas lógicas da inclusão dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. 2. As Tensões no Estado de Direito: Perspectiva Crítica em Direitos Humanos e Sociedade Plural O constitucionalismo democrático, que é exercido pelas democracias ocidentais do século XXI, não é uma criação espontânea, mas sim uma construção epistemológica que se traduz no fortalecimento de valores principiológicos que vão sendo aperfeiçoados ao longo dos anos. O constitucionalismo, com relação marcante com o Estado de Direito, promove a aquiescência da sociedade e do poder público para a constituição e viabiliza a garantia da pessoa humana como um fim em si mesma7. Segundo a doutrina, a premissa de Estado de Direito está relacionada tanto com os direitos subjetivos como com a contenção de um poder arbitrário 8. Em resumo, o Estado de Direito é um Estado moderno, em que o ordenamento jurídico tem a principal funcionalidade de permitir que haja a garantia de direitos individuais, da mesma forma que desloca e estabelece ingerências sobre o poder político, não permitindo que este exerça qualquer ação de maneira arbitrária9. Para o autor Luigi Ferrajoli, o Estado de Direito possui dois grandes significados. O primeiro, em sentido mais amplo, estaria atrelado aos poderes políticos e às ritualisticas procedimentais que a lei conferiria. Já o segundo sentido, mais estrito e de teor material, CUSICANQUI, S.R.. Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015 7 KANT, I. A fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2011. 8 ZOLO, D. Teoria e crítica do estado de direito. In: COSTA, Pietro, Danilo (ORGS). O estado de Direito – história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11 9 ZOLO, D. Teoria e crítica do estado de direito. In: COSTA, Pietro, Danilo (ORGS). O estado de Direito – história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11 6 418 vincularia o Estado de Direito não somente à lei, mas sim em relação ao conteúdo que a própria lei poderia e passaria a produzir10. Em síntese, o Estado de Direito se firma diante de algumas características, dentre elas pode-se citar a aplicação e a supremacia do Direito e a limitação do poder estatal, estando todo o ordenamento político e social vinculado ao primado da lei, ao princípio da legalidade e, consequentemente, o da reserva da legislação e, outra característica, a autonomia do Poder Judiciário11. Se o Estado de Direito tinha como pressuposto a legalidade, visando restringir o poder político e garantir direitos, o Estado Constitucional, que surge por meio do império da lei, projeta a Constituição como o norte de todo o ordenamento jurídico. Frisa que no Estado Constitucional, cuja soberania é a Constituição, os excessos do poder político continuam sendo limitados, mas desta vez, pela força da normativa constitucional. Isto é, todo o poder político deve subordinar-se aos princípios e valores substanciais que se expressam pela Carta Maior12. É a partir do Estado Constitucional que o processo de constitucionalização do direito começa a se tornar cada vez mais uma realidade, porquanto que está atrelado ao efeito expansivo que as normas constitucionais tem de se irradiarem por todo o sistema jurídico. Como mesmo expõe Luís Roberto Barroso, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia –, mas também um modo de olhar e interpreta todos os ramos do Direito13. Com o protagonismo da Constituição e com a constitucionalização dos direitos sendo um processo latente, o constitucionalismo inaugura uma nova fase epistemológica, conhecido e difundido como neoconstitucionalismo14. Para Luís Prieto Sanchís, quatro são as acepções principais do termo neoconstitucionalismo. A primeira estaria vinculada a um certo tipo de Estado de Direito, a segunda seria a proximidade do termo com uma nova toeoria do Direito, a terceira definição seria entender o termo como uma ideologia ou filosofia política e o quarto e último seria a vinculação do termo para a filosofia jurídica 15. FERRAJOLI, L.P. y futuro del Estado de Derecho. In: CARBONELL, Miguel (Org). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 13 11 ZOLO, D. Teoria e crítica do estado de direito. In: COSTA, Pietro, Danilo (ORGS). O estado de Direito – história, teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 45-47 12 ZAGREBELSKY, G. El derecho dúctil. Trotta: Madrid, 2007, p. 29-31 13 BARROSO, L.R.. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 424 14 SCHIER, P.R.. A constitucionalização do direito no contexto da constituição de 1988. In: Clève, Clémerson Merlin (org). Direito constitucional brasileiro – teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, Volume 1, 2014, p. 49-50 15 SANCHÍS, L.P.. Justicia constitucional y derechos fundamenales. Madrid: Trotta, 2003, p. 101-102. 10 419 Em linhas suscintas, neoconstitucionalismo visa garantir os direitos fundamentais da Constituição, manter e dar efetividade ao regime democrático e estabelecer a existência de uma jurisdição constitucional. Desse contexto, pode-se afirmar que o neoconstitucionalismo, da mesma maneira que dá efetividade e protagonismos aos princípios e garantias constitucionais fundamentais, também estabelece um maior protagonismo ao Poder Judiciário, ante a sua ingerencia sobre os outros poderes visando a tutela jurisdicional constitucional16. Destaca-se que o neoconstitucionalismo tem forte influência europeia, principalmente em face aos eventos históricos da segunda guerra mundial, sendo evidenciado como um movimento jurídico-político-filosófico que promoveu mudanças na concepção e interpretação do Direito17. Todavia, sua aplicabilidade em outras regiões do globo, afastadas da cultura eurocentrada, comporta críticas. Isto porque não há apenas um conceito de neoconstitucionalismo, sendo necessário que a doutrina, e seus doutrinadores, aceite uma aplicação terminológica que se vincule com maior precisão aos fenômenos constitucionais observados na América Latina18. A crise que perpassa o constitucionalismo é esta: permitir um neoconstitucionalismo capaz de se vincular à uma realidade histórico-social que possa expressar as mais diversas formas de adequação da pluralidade da vida, proporcionando aos cidadãos de cada país uma aproximação com a sua própria indentidade. Nesse foco, o “constitucionalismo latinoamericano”, “constitucionalismo emancipatório”, ou “constitucionalismo do bem viver”, ganha contornos próprios e diferentes daquele surgido na Europa19. Por ser um constitucionalismo compatível com as particularidades locais e vinculado ao desenvolvimento regional de suas potencialidades, o “constitucionalismo latinoamericano” se torna meio viável de rompimento com as práticas eurocentradas e colonizadas que o Direito impõe aos seus subordinados. Um Direito emancipatório, capaz de expressar as mais diversas e plurais formas de expressão do fenômeno jurídico, pode produzir uma BARROSO, L.R. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 424-425 ALVES, M.V.. Neoconstitucionalismo e novo constitucionalismo latinoamericano: características e distinções. SJRJ. Rio de Janeiro, v.19, n.34, p.113-145, ago 2012. P 138-9 18 SOUZA FILHO, C.F.M El nuevo constitucionalismo en América Latina y los derechos de los pueblos indígenas. In: SANCHEZ, Enrique (org.). Derecho de los pueblos indígenas en las constituciones de América Latina: Bolívia, Brasil, Colombia, Ecuador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguay, Peru y Venezuela. Santafé de Bogotá: Disloque, 1996 19 SOUZA FILHO, C.F.M.. El nuevo constitucionalismo en América Latina y los derechos de los pueblos indígenas. In: SANCHEZ, Enrique (org.). Derecho de los pueblos indígenas en las constituciones de América Latina: Bolívia, Brasil, Colombia, Ecuador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguay, Peru y Venezuela. Santafé de Bogotá: Disloque, 1996 16 17 420 saída para crise que se verifica diante da ausência de uma identidade cultural ao direito eurocentrado. 3. Uma Resposta Decolonial: O Mundo Ch’ixi de Silvia Cusicanqui Silvia Rivera Cusicanqui é uma ativista e pesquisadora boliviana. Partindo da sua identidade mestiça aymara, suas reflexões são orientadas por esta própria condição, a qual teoriza como uma contradição marcada pela fricção produtiva – o ch’ixi. Durante boa parte dos seus mais de setenta anos de vida, Silvia Cusicanqui dedicou-se à elaboração do que denomina uma sociologia da imagem, para investigar “movimentos apagados da história oficial” 20, em especial as lutas campesinas bolivianas dos anos 1920. Adotando uma investigação especialmente documental e oral, Cusicanqui 21 dedicouse ao mapeamento de comunidades originárias de liderança katarista 22 como forma de reconstruir uma memória coletiva não assimilada, a partir da qual propunha recuperar as conexões entre a episteme indígena e os movimentos anarquistas do início do século XX na Bolívia, recuperando experiências comunitárias a partir das quais elabora suas teorizações sobre resistência e micropolítica23. Um afiado criticismo destaca-se como elemento crucial da sua sociologia, que alcança tanto a esquerda quanto o discurso estatal plurinacional boliviano. Quanto aos setores de esquerda, Cusicanqui24 é crítica dos intelectuais e políticos marxistas e de suas formas de enquadrar os povos indígenas como comunidades míticas e minoritárias, ao mesmo tempo em que rejeita o discurso desenvolvimentista de erradicação da pobreza. A crítica de Cusicanqui 25, ademais, não se limita aos discursos estatais, mas alcança também a academia e a economia política do conhecimento engendrada pelas relações de CUSICANQUI, S.R... Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015. 21 Ibidem. 22 O katarismo é uma tendência política da Bolívia inspirada no nome de Túpac Katari, importante liderança indígena da virada do século XVIII ao XIX. Sua proposta funcionou como base organizativa e ideológica de processos de emergência indígena ocorridos desde a década de 1970. Esta tendência fomentou mobilizações contra as políticas neoliberais dos anos 2000 ao 2005, na Bolívia, que culminaram na eleição do dirigente cocalero Evo Morales à presidência. Ideais kataristas têm sido parcialmente incorporados na nova Constituição política do Estado boliviano de 2009 e no discurso oficial do Governo de Morales, apesar de não completa e efetivamente realizados. Tais ideais expressam-se especialmente nas noções de "bem-viver" e "Estado plurinacional" – HASHIZUME, Mauricio. Tensões e combinações entre classe e cultura na Bolívia contemporânea. Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina ISSN: 2177-9503 Imperialismo, nacionalismo e militarismo no Século XXI 14 a 17 de setembro de 2010, Londrina, UEL GT 1. Lutas camponesas e indígenas na América Latina 23 CUSICANQUI, S.R...Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015. 24 Idem 25 CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. 1ª ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010. 20 421 favorecimento de centros universitários do norte global a alguns intelectuais latinoamericanos. A autora denuncia que essa intelectualidade, ainda que adotando "posições pósmodernas e até pós-coloniais” e utilizando um aparato conceitual aparentemente compromissado com as forças insurgentes, alinha-se com as elites estatais em seu “discurso retórico y esencialista” sobre a colonialidade26. O resultado, para Cusicanqui, é a criação de “un nuevo canon académico”27 pós-colonial, que serve de sustento ao “multiculturalismo teórico, racializado y exotizante de las academias y de lo estado plurinacional boliviano” 28, ao mesmo tempo em que “visibiliza ciertos temas y fuentes, pero deja en la sombra a otros.”29 Em resposta ao cânone pós-colonial, Cusicanqui considera que a produção do conhecimento descolonizado deve acontecer por meio da formação de coletivos de pensamento e ação, nos quais seja possível corazonar – um neologismo que combina as palavras corazón (coração) y razonar (raciocinar) em castelhano. É um exercício semelhante ao que identifica na produção de Gayatri Spivak, denominado teorizar com as entranhas 30. E é a partir desta experiência da vida comum - nos termos da autora, de la gente a pie - que Cusicanqui propõe uma epistemologia ch’ixi. Retomando o conceito de sociedade abigarrada de René Zavaleta31, o qual relaciona aos “sectores fronterizos y mezclados” 32, Cusicanqui propõe o ch’ixi como: “La noción de ch’ixi, por el contrario, equivale a la de “sociedad abigarrada” de Zavaleta, y plantea la coexistencia en paralelo de múltiples diferencias culturales que no se funden, sino que antagonizan o se complementan.” 33. Assim, é a partir da experiência das formações abigarradas indígenas e populares que sugere que o pensamento descolonizador poderá emergir: El pensamiento descolonizador que nos permitirá construir esta Bolivia renovada, genuinamente multicultural y descolonizada, parte de la afirmación de ese nosotros bilingue, abigarrado y ch’ixi, que se proyecta como cultura, teoría, epistemología, política de estado y también como definición nueva del bienestar y el “desarrollo”34 Associada à crítica dos discursos estatais oficiais, a descolonização da mestiçagem é outro eixo central da teoria de Silvia Cusicanqui 35. Em oposição à noção de mestiçagem como CUSICANQUI, S.R... Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. 1ª ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010. P 58 27 Ibidem. P 65 28 Idem 29 Ibidem P 68 30 SPIVAK. G.C.. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2020 31 ZAVALETA, Rene. Lo Nacional-Popular en Bolivia. Ciudad de México: Siglo XXI Editores, 1986 32 CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. 1ª ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010. P 73 33 Ibidem P 70 34 Ibidem. P 73 35 CUSICANQUI, S.R.. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018 26 422 ideologia do Estado boliviano, inclinada ao apagamento do elemento indígena, Cusicanqui recupera sua própria identidade mestiça para propor uma indeterminação de caráter produtivo, em vez de aniquilante, composta de opostos que reverberam em lugar de neutralizarem-se, sem nunca atingirem uma mistura completa. Com isso, propõe o chi’ixi como prática de descolonização pela habitação da indeterminação, contradição e tensionamento, sem gerar uma resposta redutível dessas divergências36. A noção de ch’ixi traduz, assim, “(...) un mestizaje explosivo y reverberante, energizado por la fricción, que nos impulse a sacudir y subvertir los mandatos coloniales de la parodia, la sumisión y el silencio”37. Enquanto contradição e indeterminação habitada, o ch’ixi contrasta com a ideia de que toda justaposição é redutível; é, “como una epistemología capaz de nutrirse de las aporías de la historia en lugar de fagocitarlas o negarlas”38. Assim, serve como metáfora de “(...) un proceso autoconsciente de descolonización que, sin (re)negar o evadirse de la fisura colonial, sea capaz de articular pasados y presentes indios, femeninos y comunitarios en un tejido ch’ixi”39 O ch’ixi, porém, não se resume a uma metáfora de autoconsciência individual, mas compreende uma sociabilidade e um ethos que, em conjunto, formam as bases de modos de vida e de uma micropolítica40. A partir da recuperação das práticas mercantis andinas e dos valores simbólicos e comunitários das organizações sociais indígenas na região, construindo uma teoria ch’ixi do valor, Cusicanqui identifica uma sociabilidade ch’ixi baseada em “(...) una trama social duradera: redes de parentesco y vecindad, comunidades rituales y laborales, desperdigadas en espacios verticales que les daban acceso a pisos ecológicos de diferente altura”41. Neste mesmo sentido, o ethos ch’ixi sugere uma prática e reflexão comunitária e orientada ao público comum, que se opõe às práticas totalizantes adotadas tanto pelas elites coloniais como pelas elites burguesas latino-americanas. O ethos ch’ixi, portanto, opõe-se ao ethos colonialista. Enquanto o primeiro é orientado para a produção do comum, o segundo CUSICANQUI, S.R... Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018 37 Ibidem P 87 38 Ibidem P 25 39 CUSICANQUI, S.R... Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018 P 86-87 40 Idem 41 Ibidem P 46 36 423 é fundado, entre outros elementos, em “negar las modernidades indígenas y las formas comunitarias de la vida social.”42. A micropolítica, por sua vez, é o nível em que a resistência articulada com formas de sociabilidade ch’ixi acontece. Ela pressupõe “(...) construir espacios por fuera del estado, mantener en ellos un modo de vida alternativo, en acción, sin proyecciones teleológicas ni aspiraciones al “cambio de estructuras” 43. Ao mesmo tempo, impõe o desafio de encontrar lacunas desde dentro do Estado e do capital e, a partir das suas próprias contradições, criar práticas que enfraqueçam suas estruturas centrais. Silvia Cusicanqui identifica a presença do ethos ch’ixi e da micropolítica por ele orientada tanto nas estratégias comunais indígenas como nas estratégias populares urbanas. São elementos presentes nas ações orientadas pela organização comunitária de base e pela busca do bem-estar comum, que configuram cenários de resistência e luta pela sobrevivência. 44 Assim, o ch’ixi alimenta uma micropolítica na qual desenvolvem modos de vida “a la vez comunitarios y universalistas (ch’ixis) de concebir sus derechos y rememorar sus luchas.” 45 São nessas experiências de la gente a pie que Cusicanqui celebra o potencial de espaços de “(...) la desobediencia organizada, la resistencia comunitaria, las formas comunales de autogestión, la privatización de facto de servicios y espacios públicos, las formas alternativas (…) de hacer política desde lo cotidiano”46, baseadas na horizontalidade e comunalidade, e que se opõem à destruição dos tecidos comunitários ch’ixi. É também a partir dessas noções de sociabilidade e ethos ch’ixi e de micropolítica que estamos propondo, neste artigo, explorar o potencial de perspectiva chi’xi sobre o constitucionalismo latino americano como uma resposta à crise do Estado de Direito. 4. Por uma Perspectiva Decolonial e Latino-Americana: Uma Contribuição ao Constitucionalismo Como bem disse Leonardo Boff, “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam” 47. A frase do escritor brasileiro remete à ideia central desta pesquisa, uma vez que permite afirmar que apenas um direito produzido por aqueles que o vivenciam é capaz de promover CUSICANQUI, S.R.. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018 P 38 43 Ibidem P 142 44 Exemplos destes cenários de ação coletiva autogestionada trazidos pela autora são o gasolinazo e o impuestazo organizados nas comunidades bolivianas de El Alto e La Paz nos anos 2000, os cinturões hortícolas urbanos, as cozinhas e comedores populares, bem como as organizações comunitárias como o Coletivo Abya Yala, o Coletivo Situaciones e o Coletivo Simbiosis. Essas experiências compartilham uma lógica ch’ixi de sociabilidade nas quais a resistência cotidiana às contradições do capital e do Estado brotam das suas próprias contradições. São também formadas por múltiplas microcomunidades autogestionadas cujas relações entre os participantes se estabelecem no dia a dia, sem liderança unificada, mas rearranjadas em um ethos articulado (CUSICANQUI, Silvia Rivera. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018, p. 140). 45 CUSICANQUI, S.R. Un mundo ch’ixi es posible. Ensayos desde un presente en crisis. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Tinta Limón, 2018 P 136 46 Ibidem P 72 47 BOFF, L.. A águia e a galinha. São Paulo: Editora Vozes: 30ª edição, 2004, p. 8 42 424 mudanças à nível de cidadania, assim como garantir com maior eficácia os direitos fundamentais e humanos. Nessa mesma toada, como restou demonstrado por meio do conceito de ch’ixi na doutrina de Silvia Rivera Cusicanqui, à ideia de consciência do local, das relações à nossa volta, pensando um direito a partir da biorregião do que das artificiais fronteiras geopolíticas gera uma emancipação do pensamento jurídico, o que faz romper com a ótica erudita dos países colonizadores. Esse modo de vislumbrar a dogmática jurídica é um meio de enobrecer a relação direito, direitos humanos e constitucionalismo por um viés decolonial. Por conseguinte, um entendimento mais preciso de um olhar (ou mirada) ch’ixi deve ter em vista os processos coloniais que marcam a história da Bolívia, como de outros países da América. Esses movimentos de colonização continuaram inclusive após a independência da coroa espanhola, agora sob a forma de projetos sucessivos de modernização e de construção da Bolívia como um Estado nacional, moderno, ocidental. Desses processos, restam desde monumentos até ruínas. As contradições desses processos colonizadores, que envolveram, no caso boliviano, modos de solucionar a presença de populações indígenas de culturas milenares, resultam tanto em sua continuidade (mesmo como ideal) quanto em realidades culturais desiguais e heterogêneas. Um traço forte desses processos coloniais, segundo a pensadora boliviana, está em “una profunda e internalizada práctica de autodesprecio, la cual se ha reproducido por siglos en la personalidad colonizada y atraviesa todos los estratos de la sociedad”48. Ela ilustra essas contradições: Comparaba a muchos q’aras y mestizos de élite que vi en el tren subterráneo de Paris o de Nueva York, con esos migrantes de la provincia Camacho o del norte de Potosí, que sacan a relucir su alteridad con el fin de convocar la filantropía del extraño o la atención de aquél que consideran superior en cualquier orden de jerarquías (civilizatoria, estamental, de clase o de etnia o en relación con el acceso al poder). En esos momentos me acometía un confuso sentimiento, vergüenza ajena, pero también una profunda rabia. Rabia porque esos mismos barbudos vendrían después acá a manipular la retórica de la identidad con el fin de seguir mandando, autoritaria o paternalistamente, sobre ‘este país de indios’; vergüenza porque mostraban la hilacha como inconscientes colonizados, pues tenía que ser viajando al exterior como descubrirían que no eran del todo “occidentales”, aunque nunca llegasen a asumir las consecuencias prácticas de dicho descubrimiento49 Essa imagem textualizada por Rivera Cusicanqui cabe, com todos os seus muitos problemas, ao Brasil. Ao mesmo tempo somos e não somos ocidentais; somos colonizados CUSICANQUI, S.R. Sociología de la imagen: miradas ch’ixi desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015. P 93 49 Ibidem. P 93-94 48 425 e colonizadores. Nossas contradições não se esgotam e constituem parte incontornável de nossa existência. Atenta às contradições e temporalidades diversas, ao que se visibiliza (ainda que de modo periférico, como resistência) e também ao que escapa aos esforços de controle da visualidade, Rivera Cusicanqui e seu olhar ch’ixi, encarnado e múltiplo, faz emergir também imaginários que passam ao largo de qualquer lógica conjuntista-identitária. Em busca de uma voz própria, a noção ch’ixi assume a contradição e as imagens como lugar de pensamento e de ação política, capaz de relacionar o passado com a urgência do presente. Não se trata aqui de um olhar nem impreciso nem abstrato. É na coexistência agonística, historicamente situada, que se olha, que existimos, pensamos e atuamos. Então, na tentativa de responder a diversas questões que se colocam em torno do problema da multiplicidade de categorias que emergem na atualidade buscando igualdades de direitos, buscando vivenciar vidas dignas, a proposta do presente trabalho é de pensar como o ambiente jurídico é responsável pela inclusão. Para isso, inicia-se mostrando de maneira muito breve o contexto de crise jurídica no qual nos encontramos, que parte do pressuposto da crise do Estado e do constitucionalismo. Por que eles não respondem? Por que não temos mais segurança jurídica? Arriscando a hipótese de que a resposta estaria no constitucionalismo latinoamericano, apresentamos as principais ideias de uma vasta obra, de Silvia Rivera Cusicanqui, intelectual boliviana de origem indígena, referência mundial no campo do pensamento decolonial, que pesquisa a história das rebeliões anticoloniais indígenas desde o século 18 até suas renovações contemporâneas. Utilizando metodologia bibliográfica, de método dedutivo de abordagem e analíticodescritivo de análise, vai-se concluir pela importância da disseminação de uma nova episteme para os estudos jurídicos, que inclua contradições no fazer multicultural do pluralismo jurídico, principalmente voltada mais para o campo das epistemologias do sul do que para o pensamento eurocentrado. É a partir dessa lógica que foi proposto neste trabalho, repensar a estrutura normativa das constituições por um pensar deslocado da modernidade e das esferas de poder epistêmico do norte global. Como os fazeres e os saberes aglutinados e apagados de diversas culturas contribuem para a inclusão na ideia de democracia e direitos humanos de uma nova episteme sobre os direitos fundamentais? Como colaboram para a resolução da crise dos Estados de Direito que se pretendam democráticos e inclusivos na ordem da globalização? 426 Considerações Finais As diversas dimensões que caracterizam o emergente Constitucionalismo do século XXI – política, social, econômica, ambiental e cultural – transformam em desafio as ações do Estado, que implicam os processos decisórios coletivos da sociedade contemporânea. É nesse ambiente que o presente texto tem por objetivo levantar e discutir apontamentos interdisciplinares ao estudo da Democracia e do Constitucionalismo Latino-americano, prestigiando o pensamento crítico de Silvia Rivera Cusicanqui e sua teoria do mundo ch’ixi como uma necessária relação entre multiculturalismo, pluralismo jurídico e para se pensar os (novos?) direitos humanos e fundamentais. Para que isso seja possível, foram apenas mostradas, inicialmente, as noções de Estado de Direito e constitucionalismo, de neoconstitucionalismo, as tensões no Estado Constitucional diante de sociedades plurais que são (re)tencionadas exigindo um espaço como exercício de soberania popular. Como resposta a estas condições, é proposto que, é diante do ambiente latino-americano que se pode compreender os (novos) direitos como mecanismos de enfrentamento de tensões entre democracia e constitucionalismo emergente. E mais: é preciso saber como canalizar as instituições para a promoção de mecanismos de inclusão social e construção da cidadania. A proposta apresentada parte da teoria de Silvia Cusicanqui como exemplo de teoria de inclusão, considerando as epistemologias do sul subalternizadas que justificam a necessidade de novas epistemes e novos pensares do conhecimento científico no ambiente de estudo jurídico como forma de tutela estatal diante do multiculturalismo latino-americano. 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Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. KANT, I. A fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2011. MALISKA, M.A.. Pluralismo Jurídico e Direito Moderno. Notas para pensar a racionalidade jurídica. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2022, p. 11 SANCHÍS, L.P. Justicia constitucional y derechos fundamenales. Madrid: Trotta, 2003 SANTOS, B.A.; MENESES, M.P.. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009 SCHIER, P.R.. A constitucionalização do direito no contexto da constituição de 1988. In: Clève, Clémerson Merlin (org). Direito constitucional brasileiro – teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, Volume 1, 2014 SOUZA FILHO, C.F.M. El nuevo constitucionalismo en América Latina y los derechos de los pueblos indígenas. In: SANCHEZ, Enrique (org.). Derecho de los pueblos indígenas en las constituciones de América Latina: Bolívia, Brasil, Colombia, Ecuador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguay, Peru y Venezuela. 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Assim, caracteriza-se como um estudo legislativo, doutrinário e de caso que estuda a aplicação de medidas fiscais que promovem a sustentabilidade no ordenamento jurídico portugues. Após o estudo, conclui-se que o legislador português tem tido um papel fundamental, em matéria de promoção de um ambiente saudável, através da fiscalidade das empresas. Palavras-chave: Fiscalidade Verde, Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Portugal, Sustentabilidade. Abstract: This paper aims to present initial reflections on corporate taxation in Portugal and the right to a healthy and sustainable environment. Thus, it is characterized as a legislative, doctrinal and case study that studies the application of tax measures that promote sustainability in the Portuguese legal system. After the study, it is concluded that the Portuguese legislator has had a fundamental role, regarding the promotion of a healthy environment, through corporate taxation. Keywords: Green Taxation, Corporate Income Tax, Portugal, Sustainability. 1. A Reforma da Fiscalidade Verde em Portugal As jurisdições têm sentido a necessidade de apostar no crescimento verde, avançando com as chamadas reformas fiscais verdes com reconhecido valor internacional. Portugal não foi exceção e, através da Lei 82-D/2014 de Dezembro, designada por Reforma da Fiscalidade Verde Portuguesa introduziu medidas fiscais que procuram promover a sustentabilidade. De acordo com o documento do Governo de Portugal, é necessário melhorar a eficiência da utilização dos recursos, reduzir a eficiência energética com o exterior e induzir padrões de consumo mais sustentáveis. Assim, a fiscalidade verde tem um triplo objetivo, em particular: proteger o ambiente e reduzir a dependência energética do exterior, estimular o crescimento e o emprego e, finalmente, contribuir para a responsabilidade fiscal e diminuir os desequilíbrios externos. O legislador português procurou atingir estes objetivos através das regras fiscais estabelecidas pela Lei n.º 82-D/2014, de 31 de Dezembro - Lei da Professora Doutora de Direito Fiscal e Fiscalidade da Universidade Portucalense e Instituto Politecnico da Maia, Portugal. Doutora em Principios y Categorías Básicas de la Fiscalidad Interna e Internacional. Los Procedimientos Tributarios (Ordenación Jurídica do Mercado), com especialização no âmbito de Tributário pela Universidade de Vigo. E-mail: [email protected]. 1 429 Fiscalidade Verde. Esta reforma fiscal teve reconhecimento internacional, tendo sido considerada um exemplo pelas Nações Unidas e pelo Banco Mundial (Governo de Portugal, 2016). Neste sentido, tem-se verificado a adoção de várias medidas fiscais que ajudam a promover a sustentatibilide. No domínio do IRC, é possível identificar quatro disposições legais que incentivam decisões das empresas nesta matéria através da tributação, em particular, as depreciações, a tributação autónoma, as provisões e o direito local das sociedades. 2. Medidas no IRC que Promovem a Sustentabilidade 2.1. Depreciações A depreciação e amortização reflecte a perda de valor dos activos sujeitos a depreciação. Estes tipos de activos podem ser, por exemplo, os activos fixos tangíveis, os activos intangíveis, os activos biológicos não consumíveis e as propriedades de investimento reconhecidas ao custo de aquisição. De acordo com as normas contabilísticas, a depreciação é a imputação sistemática da quantia depreciada de um activo tangível ao longo da sua vida útil (NCRF 7)2. A depreciação inclui apenas os activos que perdem sistematicamente valor devido ao seu uso ou ao decurso do tempo. Para efeitos fiscais, a aceitação das depreciações como gasto fiscal está dependente não só do seu reconhecimento contabilístico nos termos do período de tributação ou de períodos anteriores, mas também deve observar as condições do IRC para a sua aceitação3. Nestes termos, a fiscalidade portuguesa apresenta algumas excepções à sua consideração de custo fiscal e limitações de valor4. É o caso do artigo 34º do CIRC que exclui ou limita o reconhecimento das amortizações contabilísticas como gasto fiscal em diversos casos, tais como os bens não sujeitos a depreciação, as amortizações de terrenos e as viaturas ligeiras de passageiros ou mistas5. A lei estabelece que, no caso das viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, a depreciação é encargo fiscal quando o custo de aquisição ou o valor reavaliado for igual ou inferior aos valores previstos na Portaria n.º 468/2010 de 7 de Julho. Para efeitos de determinação da matéria colectável, a consideração do excesso do valor não é válida como custo fiscal 6. A portaria estabelece limites tendo em Cfr. Norma Contabilística e de Relato Financeiro 7 - Ativos Fixos Tangíveis, Aviso n.º 8256/2015, de 29 de julho. 3 Cfr. DGI. (2008). Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (Manual do IRC). Ministério das Finanças e da Administração Pública 4 Cfr. Costa, A. P. d. (2011). Depreciações e amortizações no SNC: alterações contabilísticas e impacto fiscal 5 Cfr. Vasconcelos, A. A., & Pinto, C. (2011). Regime fiscal das depreciações e amortizações. Areal Editores. 6 Cfr. Martins, H. P. (2017). Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas. In Lições de Fiscalidade. Princípios gerais e fiscalidade interna (5ª ed., Vol. I). Almedina. 2 430 conta o período de tributação da aquisição do veículo e o combustível que o veículo utiliza para se deslocar. A Tabela 1 apresenta os referidos limites. Período de aquisição do veículo Até 2010 2010 2011 Tipo de energia Todos Todos Gasóleo/Gasolina Elétrica 2012 a 2014 Gasóleo/Gasolina Elétrica 2015 e exercícios Gasóleo/Gasolina seguintes Elétrica Veículos híbridos plug in GPL / GNV Tabela 1: Limites do artigo 34º do CIRC Fonte: Portaria 467/2010 de 7 de julho Limite do artigo 34º do CIRC 29,927.87 € 40,000.00 € 30,000.00 € 45,000.00 € 25,000.00 € 50,000.00 € 25,000.00 € 62,500.00 € 50,000.00 € 37,500.00 € Atualmente os carros eléctricos apresentam o valor mais elevado para efeitos fiscais, seguidos dos híbridos plug-in e do GPL ou GNV. Por fim, o valor mais baixo refere-se à viatura movida por outro tipo de combustível, que não os anteriormente considerados, como a gasolina e o gasóleo, considerados os mais poluentes para o ambiente. Exemplificando: uma viatura movida a gasóleo cujo custo de aquisição ascende a 50 000 euros e uma vida útil de 4 anos, representa uma depreciação contabilistica de 12 500 euros. Contudo a depreciação aceite fiscalmente ascende a 6 250 euros, que resulta do produto entre o limite que consta na tabela da portaria 467/2010 (25 000 euros) e a taxa de 25%. O diferencial entre 12 500 euros (depreciação contabilística) e 6 250 euros (depreciação fiscal), constitui um gasto não aceite fiscalmente que deve ser desreconhecido para efeitos de apuramento do lucro tributável. Da mesma forma que uma viatura eletrica nas mesmas condições que o exemplo anterior teria uma depreciação contabilistica que seria aceite fiscalmente na integra, não implicando qualquer correção fiscal. Com esta medida, o legislador desincentiva a aquisição de viaturas mais poluentes e promove incentivos para decisões mais sustentáveis. De acordo com o preâmbulo da Portaria 467/2010, a fixação destes limites tem em conta o Plano Nacional de Acção para a Eficiência Energética, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 80/2008, de 20 de Maio. Este plano tem como objectivo o posicionamento estratégico do país como pioneiro na adopção de novos modelos de mobilidade ambientalmente sustentáveis. Neste contexto, Portugal criou o Programa para a Mobilidade Eléctrica através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 20/2009, de 20 de 431 Fevereiro. Com este programa espera-se cumprir os objectivos nacionais de combate às alterações climáticas e de redução da dependência energética. Promove a substituição de combustíveis fósseis e a redução de emissões no sector dos transportes para atingir os objectivos estabelecidos pela Directiva 2006/32/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Abril, relativa à eficiência na utilização final de energia e aos serviços energéticos. 2.2. Tributação Autónoma (TA) O artigo 4º do Decreto-Lei 192/90, de 9 de Junho, introduziu a tributação autónoma. Posteriormente, o CIRC integrou-o no capítulo IV, através da Lei 30-G/2000 de 29 de Dezembro, artigo 88º da mesma disposição legal. Esta integração ocorreu por questões de simplificação, uma vez que este imposto tem como matéria colectável os encargos considerados para efeitos de IRC7. A tributação autónoma observa o conceito de imposto porque não dá qualquer contrapartida ao contribuinte, sendo um imposto pontual (TC n.º 617/2012)8. Em 1990, a TA passou a tributar as despesas confidenciais ou não documentadas a uma taxa de 10 por cento. Com o tempo, e ao abrigo de várias alterações legislativas, a TA passou a constituir uma fonte significativa de receitas fiscais para o Estado português. A TA, juntamente com o IRC permite a Portugal aumentar a cobrança de receitas fiscais ao longo do tempo. O alargamento da tributação autónoma a novas categorias de despesas implica a tributação de várias categorias de despesas das empresas9. São as despesas relativas a veículos ligeiros, comerciais e motociclos; as despesas de representação; e as despesas não documentadas. De acordo com o artigo 88.º do CIRC, são também tributados em sede de TA os pagamentos efectuados a entidades residentes em jurisdições de baixa tributação; as ajudas de custo e as despesas de deslocação incorridas pelos trabalhadores com a utilização das suas viaturas, não debitadas a clientes; e as despesas com indemnizações por danos resultantes da cessação de contratos de gerentes ou administradores. A literatura, a doutrina e os tribunais têm considerado como principais funções das tributações autónomas das despesas (i) evitar a erosão fiscal e (ii) uma "penalização financeira" à consideração de determinados tipos de despesas pelas empresas. No entanto, é relevante reconhecer a função não fiscal como uma medida para influenciar o gestor na tomada de decisão. A Lei da Fiscalidade Verde introduziu diversas alterações no direito fiscal português, nomeadamente Cfr. Sanches, J. L. S. (2007). Manual de direito fiscal [Manual of tax law] (3ª ed.). Coimbra Editora. Cfr. TC n.º 617/2012 - Tributação autónoma (19 de dezembro). https://dre.pt/pesquisa//search/2016743/details/maximized. 9 Cfr. Sarmento, J. M., Nunes, R., & Pinto, M. M. (2019). Manual Teórico-Prático de IRC [IRC Theoretical and Practical Manual] (2ª ed.). Almedina 7 8 432 no artigo 88, prevê a introdução de diferentes taxas de tributação autónoma para as despesas empresariais com viaturas, porque a ideia é tributar mais o que polui e degrada mais. Este diploma introduziu incentivos aos veículos eléctricos, híbridos plug-in, a GPL e a GNV, através do aumento do montante máximo de amortizações aceite como gasto fiscal e da redução das taxas de tributação autónoma em sede de IRS e IRC. Assim, o artigo 88.º do CIRC apresenta três números que regulam a tributação autónoma dos veículos. Nestes termos, o n.º 3 do artigo 88 determina as taxas de tributação para os veiculos movidos a gasóleo e a gasolina. A taxa de imposto varia consoante o preço de aquisição do ativo. Assim, o n.º 18 determina as regras de tributação dos veículos híbridos plug-in e as taxas de imposto para os veículos movidos a Gás de Petróleo Liquefeito (GPL) ou a Gás Natural Veicular (GNV). Custo de aquisição Taxas Híbridas plug in <27500€ 2.50% 27500€-35000€ 7.50% Igual ou superior a 35000€ 15% Tabela 2: Taxas de tributação autónoma Fonte: Artigo 88 do CIRC GNV 2.50% 7.50% 15% Outras 10% 27.50% 35% Neste domínio a TA tributa os encargos relacionados com veículos. O legislador faz uma enumeração não exaustiva, por conseguinte, esta norma fiscal abrange todas as despesas relacionadas com veículos, entre elas, combustíveis, reparações, rendas, amortizações e impostos. Recorrendo ainda ao exemplo anterior, a viatura movida a gasoleo está sujeita a uma taxa de tributação autónoma de 35%, uma vez que o custo de aquisição é superior a 35 000 euros. Considerando que esta viatura teve gastos no valor de 16 000 euros, a empresa está sujeita a tributação autónoma no valor de 5 600 euros. No caso da viatura eletrica não estaria sujeita a TA porque o valor de aquisição não execede 62 500 euros. A lei exclui duas situações, entre elas, as viaturas ligeiras de passageiros dos serviços públicos de transporte, e as viaturas relativamente às quais a empresa tenha celebrado um acordo de IRS com o trabalhador. 2.3. Provisões e derrama municipal Outra medida prevista na norma são as provisões. Recentemente, o regime fiscal tem adaptado os mecanismos de tributação das empresas às indústrias extractivas ou de tratamento e eliminação de resíduos. Considera que o respetivo ciclo económico e as ações de prospeção e reposição ambiental no final da exploração justificam a definição de regras 433 particulares. Assim, a Lei n.º 82-D/2014, de 31 de Dezembro, introduziu outras alterações no artigo 39.º do CIRC, tendo introduzido a alínea d) do n.º 1. Antes da Lei n.º 82-D/2014, de 31 de Dezembro, o artigo 38.º do CIRC previa uma disposição relativa à recuperação paisagística. A relevância fiscal da constituição desta disposição estava limitada aos sujeitos passivos pertencentes ao sector das indústrias extractivas ou ao sector do tratamento e eliminação de resíduos. A disposição legal introduzida pela Lei da Fiscalidade Verde considera como gasto dedutível a provisão constituída para reparar danos ambientais de locais relacionados com actividades de exploração, caso seja legalmente exigível. A lei exige que a determinação da provisão anual resulte no total dos gastos estimados com a reparação dos danos dividido pelo número expectável de anos de exploração (artigo 40.º do CIRC). A constituição da provisão depende da verificação de duas condições: 1) apresentação de um plano previsional de encerramento da exploração, indicando os custos estimados e o número de anos, 2) constituição de um fundo, representado por investimentos financeiros, de montante equivalente ao saldo acumulado da provisão no final 10. A derrama municipal é outro imposto incorporado no IRC11 Está determinado a aplicar uma taxa mais baixa ao lucro tributável das empresas (Morais, 2009). A cobrança desta receita fiscal reverte para o município da localização dos estabelecimentos (Matias, 2009). No caso de mais de 50% do volume de negócios de uma empresa resultar da exploração de recursos naturais (como a extracção mineira e a produção de energia) num único município, a receita da derrama deve ser atribuída a esse município e não àquele onde a empresa tem as suas instalações oficiais (Governo de Portugal, 2016). 3. O Direito a um Meio Ambiente Saudável e a Justiça Fiscal Um dos principais problemas que se colocam no desenvolvimento da sociedade moderna é a questão ambiental. A ação incorreta dos diferentes intervenientes da sociedade é a causa de fenómenos como a poluição e a desflorestação. Estas ações têm vindo a causar graves problemas naturais, prejudicando a vida animal e a constituição social. Assim, nas últimas décadas, os problemas ambientais tornaram-se inevitáveis. Por isso, todos os agentes económicos devem assumir um comportamento mais amigo do ambiente, reformulando hábitos de consumo e ações diretas de preservação da atmosfera. Do mesmo modo, esperase que as empresas tomem decisões económicas que respeitem o ambiente através de uma 10 11 Cfr. Carlos, A. B., Abreu, I. A., Durão, J. R., & Pimenta, M. E. (2019). Guia dos impostos em Portugal. Quid Juris. Cfr. Vasques, S. (2009). O sistema de tributação local e a derrama. Fiscalidade, 38, 117-124. 434 utilização eficiente e consciente dos recursos12. O Estado tem a função de controlar o cumprimento das regras ambientais por parte dos cidadãos, das empresas e dos organismos estatais, e o legislador pode influenciar a conduta através da função não fiscal dos impostos. Adicionalmente, as jurisdições têm sentido a necessidade de apostar no crescimento verde, avançando com as chamadas reformas fiscais verdes com reconhecido valor internacional 13. Neste sentido também a sociedade tem demonstrado a relevância de um meio ambiente limpo e sustentável. Este reconhecimento foi feito recentemente, através da aprovação pelo órgão das Nações Unidas, no passado dia 08 de outubro de 2021, de uma resolução em que reconhece como direito universal o acesso a um meio ambiente saudável e sustentável. Esta Instituição tem como missão a promoção e proteção dos direitos humanos pelo mundo. Em particular, o documento reclama por um trabalho conjunto no sentido de um mundo mais sustentável e preocupado com as gerações futuras. Considerações Finais A questão da sustentabilidade configura um tópico de interesse global. Todas as áreas podem e devem contribuir para um meio ambiente mais limpo e saudável. O legislador tributário também tem um papel fundamental neste domínio, pois com recurso aos impostos pode e deve influenciar condutas. O caso do IRC em Portugal é um exemplo, várias figuras contabilísticas e fiscais são usadas para atingir o objectivo. Referências Bibliogáficas CARLOS, A. B., ABREU, I. A., DURÃO, J. R., & PIMENTA, M. E. (2019). Guia Dos Impostos Em Portugal. Quid Juris. CARRENO, M., Ge, Y.-E., & BORTHWICK, S. (2014, 2014-09-01). Could Green Taxation Measures Help Incentivise Future Chinese Car Drivers To Purchase Low Emission Vehicles? Transport (16484142), 29(3), 260-260-268. Https:https://Doi.Org/10.3846/16484142.2014. 913261 Dgi. (2008). Imposto Sobre O Rendimento Das Pessoas Colectivas (Manual Do Irc). Ministério Das Finanças E Da Administração Pública. MARTINS, H. P. (2017). Imposto Sobre O Rendimento Das Pessoas Coletivas. In Lições De Fiscalidade. Princípios Gerais E Fiscalidade Interna (5ª Ed., Vol. I). Almedina. Norma Contabilística E De Relato Financeiro 7 - Ativos Fixos Tangíveis, Aviso N.º 8256/2015, De 29 De Julho. Cfr. Priyagus. (2018, 2018-10-22). Impact of Foreign Investment and Natural Resources Sharing Funds Against Environmental Degradation in Indonesia. KnE Social Sciences & Humanities, 2018, 12 435 Priyagus. (2018, 2018-10-22). Impact Of Foreign Investment And Natural Resources Sharing Funds Against Environmental Degradation In Indonesia. Kne Social Sciences & Humanities, 2018, 347-347-358. Https:https://Doi.Org/10.18502/Kss.V3i10.3140 Sanches, J. L. S. (2007). Manual De Direito Fiscal [Manual Of Tax Law] (3ª Ed.). Coimbra EDITORA. SARMENTO, J. M., NUNES, R., & Pinto, M. M. (2019). Manual Teórico-Prático De Irc [Irc Theoretical And Practical Manual] (2ª Ed.). Almedina Https:https://Www.Wook.Pt/Livro/ManualTeorico-Pratico-De-Irc-Joaquim-Miranda-Sarmento/22787087 Tributação Autónoma (19 De /Search/2016743/Details/Maximized Dezembro). Https:https://Dre.Pt/Pesquisa/- VASQUES, S. (2009). O Sistema De Tributação Local E A Derrama. Fiscalidade, 38, 117124. 436 Envelhecer no Constitucionalismo Digital: Facilitação dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas ou Condicionamento da Garantia de Direitos? Ageing in Digital Constitutionalism: Facilitation of Older People’s Rights or Conditioning their Guarantee? Tatiana Tomie Onuma1 Resumo: O presente artigo analisa a intersecção entre o envelhecimento, as tecnologias e o constitucionalismo digital, isto é, entre o processo biopsicossocial de envelhecer e o conjunto de pressupostos e direitos fundamentais necessários para governança das tecnologias em respeito à dignidade das pessoas mais velhas. Com a verificação da existência de benefício e direitos facilitados pelas tecnologias - como é o caso da telemedicina, serviços públicos, comércios e serviços financeiros disponibilizados online, otimizando atividades diárias criando maiores oportunidades de independência e autonomia à pessoa idosa, também se verifica a falta da democratização do acesso e disponibilidade dessas tecnologias e seu uso desigual e marcado pela permanência de práticas e noções ageístas - o ageísmo digital. A coexistência desses dois cenários confere o caráter dual de facilitador e condicionante das tecnologias aos direitos humanos da pessoa idosa e necessidade de políticas públicas, ações e projetos de conscientização institucional, social e individual para superar os efeitos negativos que podem decorrer dessa interação de envelhecimento e tecnologias, potencializando as oportunidades da pessoa idosa como usuário digital e transformador e ator político e social. Por meio da metodologia documental e bibliográfica e da pesquisa qualitativa foram identificados os parâmetros e ideias iniciais para conferir às tecnologias o caráter de facilitadora dos direitos humanos das pessoas idosas. Palavras-chave: Direitos humanos; Envelhecimento; Tecnologia. Introdução O direito ao envelhecimento perpassa por cenários que superam a mera efetivação dos direitos na velhice, mas adentra ao comportamento ativo de combate à discriminação e exclusão das pessoas mais velhas. Ao mesmo tempo, as sociedades contemporâneas experimentam uma transição das relações sociais, políticas e institucionais ao contexto digital, intermediado por tecnologias que atuam desde tarefas básicas do dia a dia (acesso a notícias, leitura, compras, locomoção, consulta de dados) até questões mais complexas de participação política, de espaços de garantia de direitos, como autonomia, liberdade, privacidade. O envelhecimento e o constitucionalismo digital, portanto, se interseccionam ao configurarem questões que adquiriram maior evidência nos debates acadêmicos, seja pelas preocupações com o exponencial aumento da população idosa no mundo, como pela força que as TICs adquiriram e continuam a adquirir nos últimos anos. 1 Mestre em Direito pela Universidade [email protected]. Federal de Mato Grosso. Advogada. E-mail: 437 A partir da concepção desse envelhecer em uma sociedade digital, percebe-se que direitos passam a ser garantidos, intermediados ou até mesmo efetivados por meio de recursos tecnológicos e, com isso, questiona-se a capacidade facilitadora ou condicionadora da garantia dos direitos humanos das pessoas idosas pelo envelhecimento em um contexto constitucional digital. Para analisar o cenário identificado será utilizada a pesquisa documental e bibliográfica, com a intersecção de referências jurídicas, sociológicas e da área da ciência de informação e comunicação, criando um espaço aberto para um estudo qualitativo que abranja as diferentes dimensões dos direitos humanos da pessoa idosa inseridos em uma lógica democrática-constitucional intermediada por tecnologias. Em um primeiro momento serão analisados aspectos sociojurídicos dos direitos humanos das pessoas mais velhas, sobretudo acerca da existência de um direito humano ao envelhecimento. Em seguida serão abordadas as questões relativas ao ageísmo em sua forma digital e os riscos criados pela exclusão das pessoas idosas da esfera pública virtualizada pelas TICs, bem como analisados os pontos positivos e negativos referentes às tecnologias no desenvolvimento das atividades diárias de pessoas idosas. Por fim, serão contrapostos os benefícios e malefícios das tecnologias e analisada a garantia dos direitos humanos a partir do avanço tecnológico digital. O ageísmo digital dentro de uma esfera pública tecnologizada faz com que políticas públicas, planejamento urbano e direitos construídos digitalmente possam assumir uma condição ambígua de facilitador ou condicionante para a proteção das pessoas idosas. Isso porque, se por um lado ampliam e facilitam a promoção a algumas pessoas mais velhas de tratamentos modernos de saúde, casas inteligentes e ferramentas digitais que facilitam a comunicação, por outro lado, também se cria uma esfera de privatização da velhice, na qual o próprio indivíduo idoso se torna responsável a custear e aprender a utilizar as ferramentas tecnológicas, sendo essa responsabilidade afetada pela exclusão digital da pessoa idosa e na desigualdade de acesso e de educação para o uso das tecnologias. A idade não pode compor mais um marco de exclusão da pessoa idosa em uma esfera social digital que se revela moldadora e construtora da realidade social contemporânea, reforçando padrões e estereotipização e ampliando espaços de exclusão social. 1. Envelhecimento, Direitos Humanos e o Constitucionalismo Digital 438 Envelhecer, mais do que um processo biológico, é também um processo psicossocial, com influências diretas na forma como as pessoas irão se relacionar tendo a idade como um fator de organização social. Os direitos humanos, por sua vez, podem ser compreendidos como processos institucionais e sociais na luta pela dignidade da pessoa humana, com implicações normativas e operacionais2. No que se refere ao constitucionalismo digital, este pode ser compreendido como um projeto para repensar como o exercício dos poderes deve ser limitado e legitimado nessa era das redes3. Em outras palavras, representa uma consciência da intermediação das relações sociais pelas tecnologias, sobretudo as de comunicação de informação, e a necessidade de se avaliar como os direitos e liberdades constitucionais poderão ser exercidos, interpretados e construídos diante da intensa virtualização da sociedade. Para Giovanni de Gregorio4, o constitucionalismo tem duas principais funções na era da governança pela Internet: (i) garantir a proteção dos direitos fundamentais e (ii) limitar os poderes emergentes fora do controle constitucional. Nesse sentido, a legitimidade dos poderes exercidos dentro e fora das redes ainda deve ser equilibrada com a defesa e garantia dos direitos fundamentais, pela participação política de cidadãos ativos e críticos e não apenas regulada por um novo conjunto de interesses e valores atrelados unicamente ao desenvolvimento tecnológico desenfreado e não regulado. A proteção dos direitos, incluindo aqueles relativos às pessoas mais velhas, perpassa, portanto, por limites de um “ecossistema digital crescentemente fragmentado, polarizado e sujeito a poderes híbridos”5, o que significa que indivíduos se encontram fragmentados em bolhas de comunicação, assim como limites geográficos passam a ser superados e a soberania do Estado também se transforma. Além disso, representa a polarização entre discursos e opiniões antagônicas que negam o diálogo construtivo e, ainda, são intermediadas por poderes públicos e privados cada vez mais confusos entre si, com a aquisição de poderes transacionais e não regulados. 2 HUENCHUAN, S. ROVIRA, A. (eds.), Medidas clave sobre vejez y envejecimiento para la implementación y seguimiento de los Objetivos de Desarrollo Sostenible en América Latina y el Caribe (LC/MEX/SEM.250/1), Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2019. p. 33. 3 DE GREGORIO, G. RADU, R. Digital constitutionalism in the new era of Internet governance, International Journal of Law and Information Technology, Volume 30, Issue 1, 2022, pp. 68–87, https://doi.org/10.1093/ijlit/eaac004. Acesso em 20.06.2023, p. 80. 4 Idem. 5 Idem. 439 Conforme alertado por Guita Debert6, a idade cronológica ainda constitui um elemento importante na organização social e na definição do status de um indivíduo. Além disso, defende a autora que há contemporaneamente uma flexibilização dos comportamentos esperados e dos direitos e deveres atribuídos a cada faixa etária, o que implica em uma reconfiguração da idade como definidor de atores políticos e peça chave na redefinição de mercados de consumo. A mercantilização dos cuidados com a velhice e a contraditória e discriminatória prática antienvelhecimento de tratamentos médicos, cosméticos e demais produtos revelam a fragilidade da relação da sociedade com a idade e, sobretudo, com a idade avançada, voltando-se a uma postura ainda discriminatória que nega a própria condição humana do ser que envelhece naturalmente. Essa má compreensão sobre o envelhecimento remonta pressuposições e ideias construídas e mantidas socialmente há tempos, como denunciado por Simone de Beauvoir 7 desde 1970, quando pontuou que sempre se mostra o velho como um outro, de modo que a sociedade se recusa a se reconhecer na pessoa mais velha que será no futuro. A superação da ideia objetificada da pessoa idosa é fundamental para uma sociedade que se organiza a partir de instituições cada vez mais digitalizadas e inseridas em um contexto de gestão precária da velhice, na qual a garantia de um envelhecimento com dignidade passa à esfera privada, onde a pessoa idosa se torna responsável pelo “sucesso” da própria velhice, homogeneizada pelas representações assumidas pela sociedade de uma pessoa mais velha inábil para o uso de tecnologias ou impossibilitadas para aquisição de competências digitais. Uma nova esfera de exclusão - agora digital - da pessoa idosa é constituída em uma sociedade que pretende ser democrática, inclusiva e plural, contrariando o ideal social almejado e ainda reforçando padrões sociais patológicos pelo uso indevido e não regulado das tecnologias. A importância do constitucionalismo digital como um dos parâmetros para se analisar adequadamente o envelhecer em uma sociedade em rede desponta quando se percebe que a falta de acessibilidade e de democratização do seu uso se dá em grande parte pela “fragmentação de direitos fundamentais e valores constitucionais, dos limites constitucionais da soberania digital e da prevalência de poderes híbridos no ambiente digital”8. 6 DEBERT, G. A dissolução da juventude. Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34, p. 49-70, jul./dez. 2010. p. 61. 7 BEAUVOIR, S. A velhice. 1970. Biblioteca Áurea. 2018, p. 9. 8 DE GREGORIO, G. RADU, R. Op.cit. p. 69. 440 Isso significa que a proteção dos direitos humanos nem sempre estará alinhada com os interesses do desenvolvimento tecnológico, provocando rupturas e desequilíbrios na interação dos interesses públicos e dos interesses privados que se autorregulam na sociedade digital fragmentada em bolhas comunicativas e de poder. A Internet e a aplicação das tecnologias no dia a dia fazem com que a estrutura constitucional-tecnológica passe a moldar o espaço onde os direitos e liberdades de cada pessoa mais velha e de todas as pessoas idosas no geral sejam exercidos, protegidos ou violados, de forma que a interação de plataformas digitais com governos e com a sociedade passa a ditar o funcionamento da democracia. Para além da influência e do impacto no funcionamento democrático e equilíbrio constitucional, a exclusão das pessoas idosas das esferas de comunicação e informação digitais agrava o preexistente cenário de falta de dados desse grupo social o que é apontado pela Especialista Independente sobre os Direitos Humanos por Pessoas Idosas como um obstáculo à elaboração de políticas e leis, sobretudo na realidade digital.9 A obtenção e coleta de mais dados sobre as pessoas mais velhas pode ser auxiliada pelas ferramentas tecnológicas caso sejam bem utilizadas, coordenadas e aplicadas, com um design e uso sensível a eventuais dificuldades no uso pelas pessoas mais velhas e para criação de um espaço aberto a acolher, escutar e dialogar com os mais velhos. Caso bem utilizadas, as tecnologias podem servir como fornecedoras de dados e informações das pessoas idosas, possibilitando também a comunicação e interação social com esse grupo de pessoas, incluindo-os nas esferas de comunicação virtualizadas. Além disso, podem atuar na otimização e facilitação de atividades diárias, gerando uma maior autonomia, independência e liberdade à pessoa idosa para gerir seu cotidiano. Por outro lado, caso não sejam pensadas para incluir e ouvir as pessoas mais velhas, essas tecnologias farão surgir novos espaços de exclusão, de subnotificação ou completa ausência de informações sobre as pessoas mais velhas, silenciando e as inviabilizando, tornando a sociedade ainda mais conformada e submissa às práticas de discriminação e desrespeito ao envelhecer que deveria ser resguardado como direito humano, sobretudo na era digital. A intersecção entre os aspectos jurídico-políticos e sociais do envelhecimento, das tecnologias e do constitucionalismo digital faz com que se valide a ideia previamente exposta por Habermas ao dizer que “o direito não se esgota simplesmente em normas de 9 MAHLER, C. UN. Human Rights Council. Independent Expert on the Enjoyment of All Human Rights by Older Persons. A/HRC/45/1 3 Promotion and protection of all human rights, civil, political, economic, social and cultural rights, including the right to development. Geneva : UN, 9 July 2020. p. 6. 441 comportamento, pois serve à organização e à orientação do poder do Estado” 10, isto é, os direitos humanos das pessoas idosas ultrapassam a mera positivação - a qual ainda ocorreu de forma tardia e regional apenas com a convenção interamericana - mas também deve se atentar a forma como a sociedade se organiza e é orientada em relação à velhice e às tecnologias. Reconhecer a problemática existente acerca da discriminação contra a pessoa idosa e a sua exclusão revela-se, portanto, indispensável para se analisar a natureza benéfica ou limitante da relação do envelhecimento e tecnologias. 2. Ageísmo, Exclusão Digital e Tecnologias para Pessoas Mais Velhas A partir do reconhecimento da existência de pontos comuns e interseccionados que devem ser observados em conjunto na análise dos direitos humanos das pessoas idosas inseridas em contextos digitais, despontam duas problemáticas de maior relevância ao contexto constitucional-democrático e inclusivo almejado: o ageísmo digital e a exclusão das pessoas idosas. Para melhor compreender os desafios e os problemas originados pela exclusão social e pela discriminação da pessoa idosa, inicia-se pela percepção psicossocial da identidade humana. Na esfera da teoria do reconhecimento, a exclusão de um indivíduo da sociedade provoca prejuízos ao desenvolvimento humano e à própria relação do indivíduo consigo mesmo, isso porque “a experiência social de reconhecimento representa a condição na qual o desenvolvimento da identidade humana depende”11. Em outras palavras, a construção da identidade de um indivíduo perpassa pelo reconhecimento de sua subjetividade pela sociedade na qual se insere, o que pode ser traduzido na importância de se incluir e reconhecer o valor e papel social da pessoa idosa no processo individual de envelhecimento. As pessoas idosas necessitam e se beneficiam da interação social, assim como a sociedade e as demais gerações também são beneficiadas pelo contato intergeracional, sendo a reciprocidade nas relações e o reconhecimento mútuo entre os indivíduos uma das principais tarefas democráticas a serem resolvidas e incentivadas. Isso porque, quando se discute a discriminação da pessoa idosa, chamada de ageísmo, deve-se considerar que as atitudes dos membros de uma sociedade irão modelas as políticas 10 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade, vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 183. 11 Honneth, 1999, p. 329-330 suffering from exclusion 442 existentes, fundadas em preconceitos, discriminações e estereótipos, como defendido por Robert Butler12, podendo transpassar uma perspectiva coletiva de discriminação, atingindo à uma postura discriminatória institucionalizada, a qual refletirá, por fim, na percepção prejudicada da pessoa idosa sobre ela mesma. Para Butler13, o ageísmo é similar a uma doença social, que possui como “tratamento” respectivo a análise sistemática dos variados estereótipos e distorções historicamente perpetradas contra o envelhecimento e a velhice. A isso, remete-se à ideia de reconhecimento previamente abordada, sendo fundamental compreender a importância da consciência sobre a existência, valor e necessidades da pessoa idosa para o seu reconhecimento como parte integrante da sociedade e como efetivo sujeito de direitos. Contextualizado ao cenário constitucional digital, o relatório das Nações Unidas sobre o envelhecimento na era digital14 destacou a forma como o desenvolvimento tecnológico contínuo e rápido transforma a sociedade e força as pessoas idosas a adotarem as tecnologias como parte do cotidiano e a constantemente se adaptarem e integrarem às tecnologias. O desafio, portanto, aparece nessa necessidade forçada de adaptação e aceitação das tecnologias sem que um suporte e uma educação digital sejam proporcionados, ocasionando, por muitas vezes, a exclusão, afastamento e não adaptação das pessoas mais velhas às tecnologias, dificultando, assim que atividades do cotidiano sejam realizadas, já que exclusivamente intermediadas por tecnologias. As tecnologias adquirem, frente às pessoas idosas, uma natureza dual. Ao mesmo tempo em que podem ajudar na aquisição de novas habilidades, facilitar o contato com familiares e outros círculos sociais, facilitar uma vivência autônoma e mais independente com o auxílio de tecnologias para monitoramento das atividades diárias, remédios, saúde e outras tarefas do cotidiano, esses benefícios não são distribuídos e acessíveis a todas as pessoas mais velhas e, ainda, podem ser restritos pela falta de conhecimento no uso dessas ferramentas, culpabilizando as pessoas idosas pelo seu próprio “sucesso” na integração da vida digital. Segundo as Nações Unidas, a exclusão digital reduz as oportunidades de um envelhecimento ativo e saudável, além de criar entraves à participação social e econômica da pessoa idosa. A exclusão digital não pode ser corrigida apenas com a disponibilização de ferramentas e aparelhos eletrônicos à sociedade como um todo, mas pela adoção de um 12 BUTLER, R.N. Ageism: A Foreword. Journal of Social Issues. vol. 36, n. 2, 1980, p.8-11. p. 8 BUTLER, R.N. A disease called ageism. Journal American Geriatrics Society. p. 178-180, 1980 14 UNITED NATIONS. UNECE Policy Brief on Ageing No 26 on Ageing in the Digital Era. 2021. Available in: https://unece.org/sites/default/files/2021-07/PB26-ECE-WG.1-38_0.pdf. Date of access: 07.06.2023 13 443 design sensível às pessoas idosas, conscientes da imprescindibilidade do combate ao ageísmo e dotadas de parâmetros éticos e de segurança para abarcar a pluralidade de perfis de idosos 15. A sensibilidade necessária para se programar, criar e implementar novas tecnologias acessíveis às pessoas idosas deve considerar, ainda, a pluralidade de formas de envelhecimento mencionadas. Isso porque, como um processo social e não meramente biológico, o envelhecimento perpassa por questões de gênero, socioeconômicas, educacionais, profissionais, geográficas e uma série de outras variantes sociais que irão impactar a forma como cada pessoa irá envelhecer. O ageísmo pode funcionar como uma barreira na adoção das tecnologias, uma vez que os estereótipos negativos que existem sobre as pessoas mais velhas são reproduzidos no contexto digital e se relacionam com as crenças acerca das habilidades das pessoas mais velhas para utilizarem as tecnologias. O ageísmo digital faz com que sejam difundidos estereótipos sobre o uso das tecnologias, qualificando-os indevidamente como tecnofóbicos, inacapazes ou desinteressados nos avanços das tecnologias, o que se verifica em filmes, na mídia, anúncios e nas falas reproduzidas socialmente, fazendo com que muitas pessoas idosas internalizem a ideia de que são incapazes de manusear essas ferramentas, impactando o uso das tecnologias pelas pessoas idosas16. O ageísmo digital, segundo Köttl e Mannheim17, pode acontecer em diferentes níveis que interagem entre si sendo eles (i) macro, quando a discriminação interfere no desenho das tecnologias e nas políticas que regulam a vida diária, (ii) meso, relacionado ao ambiente social e organizacional, isto é, cmo família, amigos, prestadores de serviços e profissionais podem influenciar no uso de tecnologias pelas pessoas idosas e (iii) micro, relacionado ao próprio indivíduo e a sua percepção internalizada sobre suas habilidades e possibilidades de uso frente às tecnologias. Em outras palavras, a idade em si não deve ser tida como um impeditivo ou uma barreira ao uso das tecnologias, pelo contrário é o ageísmo digital que afasta as pessoas idosas e as fazem consideram impossível o uso das ferramentas digitais18. A reprodução de padrões sociais discriminatórios acompanha os avanços tecnológicos e deve ser combatido por meio de políticas de inclusão e acessibilidade, além da tomada de consciência por parte da população, das grandes empresas de tecnologias e da 15 Idem. UNITED NATIONS. UNECE Op. cit., p. 10 17 Köttl, H., & Mannheim, I. (2021). Ageism & digital technology: Policy measures to address ageism as a barrier to adoption and use of digital technology. EuroAgeism. p. 4. 18 Ibid., p. 2. 16 444 sociedade em geral acerca da necessidade da criação, desenho e elaboração de tecnologias que sejam sensíveis, acessíveis e atentas às pessoas idosas e suas necessidades. Caso contrário, há risco de que a transição para os serviços digitais possa causa a exclusão de várias pessoas idosas e amplificar a desigualdade existente, como defendido por Manor e Herscovici19. Isso se deve à assunção de preconceitos em relação à pessoa idosa que são estendidas à esfera digital em um sentido institucionalizado e que se insere na própria forma de pensar e de se organizar a sociedade. Como exemplo, os autores mencionam que ao invés de se presumir que toda pessoa idosa terá uma pessoa mais jovem para ajudá-la a usar algum recurso tecnológico, os desenvolvedores das tecnologias deveriam tornar os produtos e serviços digitais mais acessíveis às pessoas idosas20. Toda a análise realizada faz com que se perceba que eventuais dificuldades no uso das tecnologias não serão resolvidas apenas com ajustes técnicos nas ferramentas ou plataformas digitais. Há também a imperiosa necessidade de que os desenvolvedores das tecnologias, os responsáveis pela sua regulação e aqueles ligados ao desenvolvimento de políticas públicas que conectem os serviços com as tecnologias estejam livres de concepções ageístas institucionalizadas, coletivas ou individuais. É preciso que se esteja ciente de que o acesso e inclusão não são meros problemas estruturais da era das redes, mas se trata de uma extensão das discriminações sofridas fora do ambiente virtual, como indicado por James, Hynes e Whelan 21 e que devem lançar um olhar questionador e atento ao papel das tecnologias nos direitos das pessoas idosas. 3. Tecnologias, Idade e Direitos: Facilitação ou Condicionamento? A partir da compreensão acerca da intersecção entre envelhecimento, tecnologias e direitos das pessoas idosas, percebe-se que, ao lado dos benefícios e possibilidades de otimização e facilitação das tarefas e atividades cotidianas, há também, uma série de problemáticas atreladas à falta de acessibilidade e de democratização do uso das tecnologias, causando a exclusão digital e o ageísmo digital. Os problemas evidenciados acabam funcionando como condicionantes para a realização e materialização dos benefícios e facilidades previamente identificados. É dizer, 19 Manor, S., & Herscovici, A. (2021). Digital ageism: A new kind of discrimination. Human Behavior and Emerging Technologies, 3( 5), 1084– 1093. https://doi.org/10.1002/hbe2.299, p. 1084. 20 Ibid., p. 1091. 21 James, A. & Hynes, D. & Whelan, A. & Dreher, T. & Humphry, J. (2023). From access and transparency to refusal: Three responses to algorithmic governance. Internet Policy Review, 12(2). https://doi.org/10.14763/2023.2.1691, p. 6. 445 ainda que não se negue as vantagens e as facilidades que as tecnologias imprimem no cotidiano das pessoas, também se verifica que esses benefícios e a facilitação de direitos não acontece para todos. Ao acontecer de forma desigual e não democrática, as tecnologias podem passar a se tornar condicionantes às realizações dos direitos que por ela são facilitados, criando óbices e uma etapa a ser adquirida, superada ou aprendida para fins de validação dos benefícios esperados. Isso acontece, por exemplo, quando as tecnologias facilitam serviços de saúde, permitindo diagnósticos mais apurados e rápidos, além de tecnologias de precisão para procedimentos cirúrgicos ou, ainda, a facilitação de atendimento por teleconsultas. Todas as facilidades mencionadas são válidas e importantes, mas também fazem com que a pessoa deva dispor de dispositivos que acessem consultas remotas, além de recursos ou meios para custear e ter acesso às tecnologias sofisticadas e diagnósticos por elas realizados. Com isso, vê-se a ocorrência de uma privatização dos direitos digitais na velhice, no qual a pessoa mais velha se torna a responsável por garantir seu acesso aos serviços e recursos necessários, devendo dispor por muitas vezes do seu patrimônio para acessar aquilo que irá garantir a facilitação dos seus direitos. Retira-se da mão do Estado e da sociedade em geral - também responsável pela garantia de um envelhecimento com dignidade - os deveres relacionados às pessoas idosas, relegando aos próprios idosos encontrarem meios para garantir o seu próprio envelhecimento, com acesso às tecnologias e todos as facilidades que elas proporcionam. Com o aparecimento de novos estereótipos acerca das pessoas mais velhas em relação às tecnologias, os problemas ligados à velhice e à qualquer dificuldade que a pessoa idosa enfrente no que se refere aos recursos digitais passam a ser concebidos como um problema do próprio idoso, reforçando todas as discriminações presentes em pensamentos ageístas digitais, assemelhando-se ao processo de reprivatização da velhice formulado pela antropóloga Guita Debert, que já havia alertado sobre o processo de negociação público e privado entre gerações22. O caráter dual de facilitador e condicionante das tecnologias no que tange aos direitos das pessoas mais velhas reflete a cultura ageísta e o ageísmo digital que opera nas relações sociais intermediadas pelas redes, assim como pela inconsciência e despreocupação com os riscos democráticos da exclusão digital de qualquer grupo social, com o agravamento de 22 DEBERT, G.G. A reinvenção da Velhice: Socialização e Processos de Reprivatização do Envelhecimento. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2020, p. 249. 446 discriminações e desigualdades crônicas e a reprodução de padrões sociais patológicos que contaminam o funcionamento do constitucionalismo digital. A falta de acessibilidade e a exclusão digital das pessoas idosas pelo desuso das tecnologias é verificada em estudo realizado pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias de Informação e Comunicação em 2014 23, apontando um percentual de apenas 14% (quatorze por cento) de usuários de computador no Brasil na faixa etária a partir de 60 anos de idade. O baixo percentual identificado é somado à necessidade do estímulo às competências essenciais para inclusão digital, algo pouco discutido na realidade brasileira, sobretudo no que se refere às pessoas idosas e que poderia aperfeiçoar o caráter facilitador e não condicionante das tecnologias. A promoção das competências para inclusão digital envolve a alfabetização digital, o letramento digital e a fluência digital, definidas por Machado e Behar 24como as etapas de (i) dominação funcional das tecnologias para acesso ao conhecimento digital e virtual; (ii) a reflexão, criticidade, pesquisa e avaliação das informações da internet e (iii) uso crítico e combinação de diferentes ferramentas digitais para além de ler, escrever, salvar e enviar informações e documentos online. Essas habilidades digitais servem como um antídoto e elemento específico de combate ao ageísmo digital, que presume que o aprendizado termina com o avançar da idade e concebe a pessoa idosa como incapaz de aprender a usar novas tecnologias digitais. A aquisição de habilidades para interpretação, uso e conexão com outros usuários e com as informações presentes na internet conferem uma nova forma de autonomia e independência, servindo para empoderar pessoas idosas e fomentar a participação social 25. Ademais, além do acesso e das estratégias e competências para o uso das tecnologias pelas pessoas idosas, a etapa prévia de elaboração de tecnologias que atendam à população mais velha é imprescindível para facilitar inclusive a acessibilidade e as habilidades necessárias para o seu uso. A inclusão de dados e das pessoas idosas no planejamento urbano e na criação de softwares, dispositivos e aplicativos digitais pode, nas palavras de Tupasela, Clavijo, Salokannel e Fink26, refletir um interesse em respeitar os direitos humanos e uma tomada de 23MACHADO, L. R.; GRANDE, T. P. F.; BEHAR, P. A.; ROCHA LUNA, F. de M. Mapeamento de competências digitais: a inclusão social dos idosos. ETD - Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 18, n. 4, p. 903–921, 2016. DOI: 10.20396/etd.v18i4.8644207. Acesso em: 13 ago. 2023. 24 Idem. 25 UNITED NATIONS. UNECE Op. cit., p. 18. 26 Tupasela, A. & Devis Clavijo, J. & Salokannel, M. & Fink, C. (2023). Older people and the smart city – Developing inclusive practices to protect and serve a vulnerable population. Internet Policy Review, 12(1). https://doi.org/10.14763/2023.1.1700, p. 3. 447 decisões mais inclusiva, por meio de uma governança digital recíproca e atenta aos direitos humanos das pessoas mais velhas. O constitucionalismo digital deve perpassar por uma abordagem de direitos humanos que direciona e governança da Internet e das tecnologias de forma a privilegiar a defesa dos direitos básicos de todos os seres humanos, incluindo as pessoas idosas. O planejamento de cidades e de políticas públicas a partir do entrelaçamento entre a proteção do envelhecimento, dos direitos humanos das pessoas mais velhas e do desenvolvimento tecnológico requer que o direito, o governo e a ação política 27 estejam voltadas e alinhadas aos direitos humanos dentro de uma perspectiva do constitucionalismo digital. O relatório das Nações Unidas sobre o envelhecimento na era digital elenca algumas ações políticas para o empoderamento das pessoas idosas e sua inclusão digital sendo elas (i) a garantia de acessibilidade pela participação no design das tecnologias e iniciativas políticas online como serviços do governo, de bancos, comércio, telemedicina e educação à distância de forma disponível e acessível; (ii) a promoção de literacia digital; (iii) utilização das tecnologias para promover um envelhecimento ativo e saudável, reduzindo a solidão e isolamento social e fomentando oportunidades de maior independência em idades avançadas e (iv) garantia da proteção dos direitos humanos pela criação de ambientes digitais éticos, transparentes e seguros por meio de serviços e políticas que protegem a dignidade autonomia, privacidade, liberdade e uso informado e consentido das tecnologias digitais28. As diretrizes elencadas reúnem a um só tempo recomendações de acessibilidade, literacia digital, inclusão digital e uma abordagem de direitos humanos, de forma a coincidir com todos os tópicos aqui explorados. Entretanto, pondera-se que se trata de recomendações que interagem e dependem uma das outras para se realizarem completamente. Em outras palavras, a acessibilidade e a literacia digital se complementam, não sendo crível uma acessibilidade integral com a mera disponibilização de aparelhos e ferramentas às pessoas idosas, necessitando da respectiva promoção da literacia digital para aquisição das competências necessárias para o seu uso. De igual forma, o uso das tecnologias para maior independência e inclusão dependem da acessibilidade e da literacia digital previamente garantidas, sendo que, por fim, a garantia 27 Sobre isso cf. Wernick, A. & Artyushina, A. (2023). Future proofing the city: A human rights-based approach to governing algorithmic, biometric and smart city technologies. Internet Policy Review, 12(1). https://doi.org/10.14763/2023.1.1695, p. 13. 28 UNITED NATIONS. UNECE Policy Brief on Ageing No 26 on Ageing in the Digital Era. 2021. 448 da proteção dos direitos humanos das pessoas mais velhas em ambientes digitais éticos e seguros só irá ocorrer quando todas as outras recomendações tenham sido seguidas. Em sentido recíproco, apenas em um ambiente digital que privilegie os direitos humanos, será possível desenvolver políticas de acessibilidade, inclusão e literacia digital, revelando-se a natureza complementar entre todas as diretrizes elencadas. Para se tornarem ferramentas facilitadoras de direitos e não condicionantes é necessário que as recomendações mencionadas se encontrem em equilíbrio de realização e ainda devem se atentar para preocupações emergentes resultantes da relação entre as tecnologias e envelhecimento, como é o caso da privacidade, autonomia e consentimento no uso das tecnologias digitais, por se tratarem de conceitos que são reformulados dentro do contexto virtual e requerem uma maior sensibilidade na velhice, com as seguintes recomendações: To ensure the protection of the human rights of older persons in the digital age, it is important to involve them and their representatives in decision-making and to gather information on the impact of digitalisation on older persons, including the most vulnerable. (...) To ensure personal safety, cybersecurity, data protection and privacy, a rights-based approach is a must. The right to free and informed consent as well as the right to dignity and privacy need to be respected at all times.29 Também é necessário sempre estar atento ao caráter dual que as tecnologias podem adquirir no cotidiano da pessoa idosa, podendo atuar de forma positiva e como suporte às atividades diárias, como é o caso dos sensores de movimento e sistemas de segurança que garantem uma vida mais independente à pessoa idosa. Ao mesmo tempo, a automatização e robotização de serviços como esses podem mecanizar e homogeneizar as formas de envelhecimento, criando padrões de vida automaticamente implementados pelas tecnologias, sem espaço para o exercício da verdadeira autonomia da pessoa idosa e reforçando uma cultura de dependência. Por isso, para garantir a acessibilidade e a inclusão das pessoas idosas por meio de orientação para os direitos humanos é também importante que todas as políticas voltadas para esses fins estejam atentas aos diferentes níveis onde o ageísmo digital pode aparecer. Segundo Köttl e Mannheim30, medidas gerais compreendem políticas, pesquisas e design de tecnologias, que podem se beneficiar da inclusão das pessoas idosas desde a etapa de design e desenvolvimento do recurso digital, com feedbacks de protótipos e versões-teste até o lançamento final das novas tecnologias desenvolvidas. 29 30 UNITED NATIONS. UNECE Op. cit., p. 23 e 25. KÖTTL, H., & MANNHEIM, I. Op. cit,, p. 5. 449 Já as medidas do ambiente social se dão pelo contato intergeracional, assim como pela inclusão da pessoa idosa nas esferas de debate, avaliação e legitimação dos produtos, sobrepondo-se ao ageísmo digital. Por fim, a combinação das medidas gerais e do ambiente social devem ser reforçadas e irão contribuir para as medidas a nível individual, no qual a construção de uma cultura não ageísta fará com que as pessoas idosas se sintam mais capazes e confortáveis no uso das tecnologias, minimizando a visão negativa da sua própria velhice. Verifica-se que as medidas necessárias para potencializar os efeitos benefícios das tecnologias além de perpassar pela democratização do acesso, literacia digital, inclusão e orientação pelos direitos humanos também adentra as dimensões e níveis do ageísmo digital, tratando-se de um conjunto de ações e conscientização que são necessárias para o bom funcionamento do constitucionalismo digital na defesa dos direitos durante o envelhecimento. Conclusões A análise conjunta dos aspectos sociojurídicos e políticos do envelhecimento, das tecnologias e do constitucionalismo digital permitiu a compreensão dinâmica acerca da presença de problemáticas jurídico-constitucionais relativas ao ageísmo digital e à exclusão das pessoas idosas dos ambientes digitais, desequilibrando o ideal constitucional de proteção dos direitos de todos dentro do contexto tecnológico, respeitando os limites individuais e de dignidade no desenvolvimento desses recursos. A partir da compreensão da problemática envolvida, tem-se que o ageísmo digital, dentro de uma esfera pública tecnologizada faz com que políticas públicas, planejamento urbano e direitos construídos digitalmente possam assumir uma condição ambígua de facilitador ou condicionante para a proteção das pessoas idosas. Isso porque, se por um lado ampliam e facilitam a promoção a algumas pessoas mais velhas de tratamentos modernos de saúde, casas inteligentes e ferramentas digitais que facilitam a comunicação, por outro lado, também se cria uma esfera de privatização da velhice, na qual o próprio indivíduo mais velho se torna responsável por custear e aprender a utilizar as ferramentas tecnológicas, sendo essa responsabilidade afetada pela exclusão digital da pessoa idosa e pela desigualdade de acesso e de educação para o uso das tecnologias. A rápida digitalização da sociedade que marca o funcionamento das relações sociais contemporâneas, faz com que essas tecnologias digitais apresentem um caráter dual, podendo ajudar no aprendizado de novas habilidades, facilitar interações sociais, fomentar 450 um estilo de vida mais independente e autônomo na velhice, sem depender sempre de terceiros e pode também melhorar a organização e entrega de serviços sociais e de saúde, ao mesmo tempo em que nem todas as pessoas idosas se beneficiam dessas melhorias, recaindo em novo espaço de exclusão, marginalização e invisibilidade social. O cuidado com a exclusão digital das pessoas mais velhas é tarefa indispensável para a construção de uma cultura constitucional digital, uma vez que isso afeta diretamente a forma como as pessoas idosas irão envelhecer, como irão se integrar e participar social e economicamente da sociedade. A inclusão digital não significa apenas ter pessoas idosas usando ferramentas tecnológicas, mas fazer com que o design dessas tecnologias, os serviços prestados por vias digitais, sejam realizados por um ambiente amigo da pessoa idosa, que seja seguro e também pensado para atender essa população. Conforme observado, as políticas, medidas e ações necessárias para interseccionar adequadamente envelhecimento e tecnologias perpassa pela promoção de (i) acessibilidade, (ii) literacia digital, (iii) inclusão digital e (iv) orientação pelos direitos humanos na construção de um ambiente seguro e amigo às pessoas idosas. Todas as medidas, por sua vez, devem se atentar e ativamente combater o ageísmo em sua forma digital, adentrando-se à evitação dos seus três níveis identificados, (i) o nível institucional, na formulação de políticas, criação e desenvolvimento de novas tecnologias; (ii) nível social, pela difusão do combate aos estereótipos ageístas e (iii) o nível individual, no fomento de uma cultura antiageísta que estimule as pessoas idosas a reconhecerem suas próprias capacidades e valores. A idade não pode compor mais um marco de exclusão da pessoa idosa em uma esfera social digital que se revela moldadora e construtora da realidade social contemporânea, reforçando padrões e estereotipização e ampliando espaços de exclusão social. Referências Bibliográficas BEAUVOIR, S. A velhice. 1970. Biblioteca Áurea. 2018, p. 9. BUTLER, R.N. Ageism: A Foreword. Journal of Social Issues. vol. 36, n. 2, 1980, p.8-11. _______. A disease called ageism. 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Através do método dedutivo, a presente pesquisa busca, a partir dos parâmetros de proteção dos vulneráveis estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, analisar os aspectos do direito real de habitação e, principalmente, considerar novos meios legítimos e razoáveis de sua aplicação, uma vez que houve significativas mudanças sociais e jurídicas desde sua concepção até os dias atuais. O atual papel desempenhado pela mulher no núcleo familiar, a possibilidade de o cônjuge sobrevivente estabelecer nova união estável ou novo laço marital, bem como a hipótese de possuir bens imóveis particulares e auferir renda suficiente para se manter na ausência do outro, são hipóteses passíveis de análise que devem ser consideradas para uma aplicação justa do direito real de habitação. Considera-se o aspecto ex lege do direito, fato que condiciona a habitação do cônjuge sobrevivente aos requisitos previstos em lei, não sendo possível que outros herdeiros em situação de vulnerabilidade usufruam plenamente do bem enquanto o direito real de habitação sobreviver. Nesse sentido, defende-se, como resultado alcançado pela pesquisa, uma mudança legislativa, para que o texto do artigo 1.831 do Código Civil sofra alterações, a fim de que sejam definidos novos parâmetros para o deferimento e para o fim da fruição do direito real da habitação. Palavras-chave: Direito real de habitação; vulnerabilidade; relativização. Abstract: The real right of housing, provided for in art. 1.831 of the Civil Code, guarantees the surviving spouse the right to inhabit the family´s residential property, provided that it is the only asset of this nature to be inventoried. A relevant aspect of this right is the lifetime and its application to the stable union, in relation to the surviving partner. Through the deductive method, the present research seeks, from the parameters of protection of the vulnerable established by the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, to 1 Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professora adjunta de Direito Civil do Departamento de Direito, Humanidades e Letras do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Graduanda no curso de Direito no Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Endereço eletrônico: [email protected]. 453 analyze the aspects of the real right of housing and mainly. To consider the new legitimate and reasonable means of its application, since there have been significant social and legal changes since its inception to the present day. The current role played by women in the family nucleus, the possibility of the surviving spouse establishing a new stable union or new marital bond, as well as the possibility of owning private real estate. The earning enough income to support themselves in the absence of the other are hypotheses that can be analysed and must be considered for a fair application of the real right of housing. The ex lege aspect of the right is considered, a fact that conditions the housing of the surviving spouse to the requirements provided by law, making it impossible for other heirs in a vulnerable situation to fully enjoy the property while the real right of housing survives. In this sense, it is defended, as a result achieved by the research, a legislative change, so that the text of article 1.831 of the Civil Code undergoes changes, so that new parameters are defined for the approval and for the end of the enjoyment of the right in rem of housing. Keywords: Real right to housing; vulnerability; relativization. 1. Introdução A Constituição brasileira de 1988 traz, como aspecto geral, a tutela dos vulneráveis, uma vez que evidencia a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III, CRFB/88) e define a erradicação da pobreza e a não discriminação como seus objetivos fundamentais (art. 3º, III, IV, CRFB/88). Com o advento desses novos valores constitucionais, as leis e códigos anteriores à sua promulgação precisaram sofrer uma releitura em sua interpretação e aplicação, assim como as legislações posteriores a 1988 devem ser guiadas pelos princípios constitucionais, garantido a unidade do ordenamento. A perda de proeminência da legislação codificada enquanto único documento normativo hábil para regular as relações civil se deu com o aparecimento de novas formas de legislar, principalmente aquelas destinadas a tratar de assuntos específicos de maneira mais ampla, mediante a criação de programas valorativos a serem cumpridos e organização mais ampla da matéria, muitas vezes a unir sua análise civil, criminal e administrativa. A era dos microssistemas3, leis e estatutos que desempenham função central sobre determinado assunto devem se ajustar à necessidade de unidade do sistema jurídico. Dessa maneira, após a Constituição de 1988, o texto constitucional passou a ser o norteador de todo o sistema jurídico e o Direito Civil, que sempre teve seu foco voltado para a esfera patrimonial, necessitou reinterpretar suas normas, para que essas fossem aplicadas de forma a atender os preceitos constitucionais. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, alguns aspectos retrógrados e não compatíveis com os princípios constitucionais não foram reproduzidos, representando grande avanço para a esfera cível. Entretanto, na análise das normas que direcionam o direito 3 MORAES, M.C.B. A caminho de um direito constitucional. Revista Estado, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro. vol. I, 1991. 454 sucessório, tem-se que ainda existem normas que não estão adequadas ao aspecto geral de tutela dos vulneráveis, tal qual o direito real de habitação, direito que será tema da presente pesquisa. Com a morte, a sucessão é aberta e os bens deixados pelo falecido são passados, desde logo, aos herdeiros necessários ou testamentários (art. 1.784, CC), caso exista ato de disposição de última vontade. Considerando que a sucessão decorre da lei ou do testamento (art. 1.786, CC), é importante que sejam definidos quais herdeiros terão direito à parte da herança deixada pelo de cujus, merecendo atenção, principalmente, as relações estabelecidas em decorrência do casamento ou da união estável, ou seja, o estado civil do falecido no momento da morte e se há ou não cônjuge ou companheiro sobrevivente. A análise da informação acima referida faz-se necessária para que sejam determinados quais direitos cabem a cada herdeiro, além de suas respectivas quotas-partes sobre a herança ou sobre o legado. Isso porque, nos exatos termos do art. 1.831 do Código Civil, o cônjuge sobrevivente possui o direito real de habitação, influenciando diretamente na forma que os demais herdeiros poderão usufruir daquele bem específico. Nesses termos, cabe o questionamento se o direito real de habitação acompanhou as mudanças trazidas pela Constituição, no sentido de proteger os indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidade em todas as esferas do direito, principalmente quando o direito envolvido tange a propriedade privada ou, no caso do direito real de habitação, quando há a colisão de dois ou mais direitos: o direito à herança e o direito de moradia. 1. O Cônjuge e o Companheiro no Direito Sucessório Para que seja possível compreender o histórico do direito real de habitação e como sua aplicação tem se dado atualmente, faz-se necessária a análise de como o direito sucessório aplicou-se ao cônjuge e ao companheiro ao longo dos anos, fazendo uma comparação com os aspectos do antigo Código Civil de 1916 e o atual Código Civil de 2002. A codificação de 1916 tratava o cônjuge como herdeiro legítimo, mas não como herdeiro necessário e não permitia que houvesse concorrência desse com os ascendentes e descendentes. Desse modo, o cônjuge só era chamado a participar da sucessão na ausência dos demais herdeiros, ou seja, na ausência de ascendentes e descendentes. Em outras palavras, o cônjuge, a depender do regime de bens escolhido para reger o casamento, poderia ficar desamparado, em relação aos bens, na hipótese do fim da união. Além disso, aspecto importante a ser considerado em relação ao Código Civil de 1916, é que, quando esse entrou em vigor, o regime legal de bens era o da comunhão 455 universal, que garantia aos cônjuges, em caso de viuvez ou divórcio, a meação de todos os bens adquiridos anterior ou posteriormente ao casamento. Com a entrada em vigor da Lei nº 6.615 de 1977, o regime legal de bens foi modificado, passando a ser o da comunhão parcial, em que a meação se concentra apenas nos bens adquiridos onerosamente após a constância do casamento, fazendo-se questionar qual seria a posição do cônjuge em relação aos bens particulares do de cujus. Fato é que a escolha do regime de bens era de extrema importância, pois definia se, em caso de morte de um dos cônjuges, o sobrevivente teria a fruição do direito real de habitação, conforme estabelecido no art. 1.611, §2º do Código Civil de 1916: “Art. 1.611 - A falta de descendentes ou ascendentes será deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal. §1º O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho dêste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do "de cujus". §2º Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habilitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar. §3º Na falta do pai ou da mãe, estende-se o benefício previsto no §2º ao filho portador de deficiência que o impossibilite para o trabalho.” 4 Observa-se que legislador se preocupou em estabelecer limites objetivos para o deferimento do direito real de habitação, tais como: o regime da comunhão universal de bens, a necessidade de permanecer em estado de viuvez e que o imóvel, sobre o qual o direito recai, tenha destinação a ser residência da família e que seja o único desta natureza a inventariar. O referido artigo ainda faz um valioso apontamento em seu §3º, que considera a existência de prole com deficiência incapacitante para o trabalho que, na ausência de seus genitores, pode ser beneficiário do direito real de habitação. No caso de o casamento ter sido celebrado sob o regime diverso da comunhão universal de bens, foi garantido aos cônjuges o usufruto vidual, nos termos do §1º do referido art. 1.611 do CC/16. Nesse instituto, também, é estabelecido o limite para gozar desse direito, qual seja: a permanência no estado civil de viúvo. No mais, as diferenças de fruição de tal direito serão delimitadas pela existência ou não de filhos do falecido, que influenciará na quota parte que será atingida pelo direito. Deve-se salientar que a diferença entre o direito real de habitação e o usufruto vidual está intimamente ligada sobre quais bens irão recair tais 4 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1916. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. 456 direitos, uma vez que naquele o objeto do direito recai sobre um bem específico - o imóvel residência da família- e nesse recai sobre uma quota parte, que pode ser representada por um ou mais bens. Já na codificação civil em vigor, algumas mudanças importantes ocorreram em relação à sucessão do cônjuge. O Código Civil de 2002, sancionado após a Constituição de 1988, tinha o dever de trazer aspectos menos patrimoniais, característicos do direito privado, e mais aspectos que considerassem o bem-estar da família e que tutelassem os interesses dos mais vulneráveis, a fim de dar azo os preceitos constitucionais. Esperava-se grande evolução, principalmente nas normas relacionadas ao casamento e união estável, que influenciam diretamente o direito sucessório, entretanto a nova codificação ainda preservou fortes características patrimoniais e alguns outros aspectos que não acompanharam a evolução da sociedade. Em relação à sucessão do cônjuge, tem-se que uma das mais significativas mudanças foi que esse passou a ser considerado herdeiro necessário, concorrendo diretamente com ascendentes e descendentes, a depender do regime de bens. Em outros termos, a nova lei busca amparar o cônjuge em situações em que não teria direitos, como no caso dos bens particulares do falecido. Com relação ao regime sucessório do companheiro, em um primeiro momento o Código o diferencia do regime aplicado ao casamento, como será explorado mais a frente. O direito real de habitação continuou presente na nova codificação, entretanto o artigo 1.831, que prevê tal instituto, inovou ao retirar os limites anteriormente impostos, passando a ter a seguinte redação: “Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”5 Percebe-se que tal direito adquire proporções mais amplas para sua aplicação, uma vez que passa a ser aplicado independente do regime de bens escolhido para reger aquele casamento e inexiste vedação à constituição de novo laço marital ou a constituição de união estável. Em outros termos, o legislador agiu na contramão do que dispõe a Constituição, principalmente porque não considerou que a inexistência de limitadores para a aplicação de tal direito poderia impedir que outros herdeiros em situação de vulnerabilidade acessassem o usufruto do bem. 5 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. 457 Além disso, é preciso considerar o contexto de evolução da sociedade de cada época. Em 1916, as mulheres eram responsáveis quase que exclusivamente pelo cuidado com a residência familiar e com os filhos, sendo o homem responsável por ser o provedor do lar e, consequentemente, adquirir bens para aquela família. Por esse motivo, era razoável que o direito real de habitação e usufruto vidual beneficiassem o cônjuge, pois, na ausência do marido, provedor da família, a esposa e os filhos não ficariam desamparados. Tal situação diverge, em muito, da sociedade atual e daquela que existia em 2002, uma vez que, com o decorrer do tempo, tem-se como modelo uma comunhão familiar, em que todos os entes que dela participam - homens e mulheres - devem contribuir para o cuidado e crescimento da família, não estando essas funções restritas aos cuidados femininos. Atualmente, as mulheres conquistaram espaço no ambiente de trabalho e possuem autonomia para construir seu próprio patrimônio, não estando obrigatoriamente subordinadas às condições financeiras de seu companheiro. Considerando, assim, a adequação necessária de todo o ordenamento aos preceitos constitucionais, tem-se que o direito real de habitação, ao limitar sua fruição ao cônjuge sobrevivente e não estabelecer limites objetivos e mais específicos para sua aplicação, bem como para o seu fim, está longe de atingir o proposto pela Constituição, no que tange a proteção dos vulneráveis. 2. O Direito Real de Habitação e sua Aplicação à União Estável Outro aspecto relevante que deve ser considerado no momento da abertura da sucessão diz respeito a quais são os direitos sucessórios aplicados ao companheiro sobrevivente, caso o de cujus tenha estabelecido união estável durante sua vida. A união estável é reconhecida como entidade familiar, sendo necessário que os companheiros tenham uma união contínua, duradora e pública, com objetivo de constituir família (art. 1.723, CC/02), para que esse instituto seja caracterizado. Apesar de o legislador estabelecer tais requisitos e, ainda, definir que os companheiros devem obedecer aos deveres de lealdade e respeito (art. 1.724, CC/02), por exemplo, na prática, ainda há certa dificuldade em identificar os critérios objetivos, no caso concreto, para que determinada relação seja caracterizada ou não como união estável. Por essa razão, muitos conflitos que envolvem a relação de companheiros se direcionam ao judiciário, principalmente quando há o fim da relação, seja pela morte ou pela dissolução da união estável, para o reconhecimento dos direitos que cabem a cada companheiro. 458 Considerando esses fatores, tem-se que o Código Civil vigente, em seu texto, diferenciou o regime sucessório do cônjuge e do companheiro, principalmente ao não incluir a figura do companheiro como herdeiro necessário, na ordem de vocação hereditária, prevista no art. 1.829, bem como pela redação do art. 1.790, que apresenta os seguintes termos: “Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”6 Nota-se, a partir da leitura do artigo acima, que o regime sucessório aplicado ao companheiro o deixava em clara desvantagem, quando comparado ao regime aplicado ao cônjuge, contrariando o previsto na Constituição sobre o reconhecimento das diversas entidades familiares. A distinção entre esses regimes sucessórios criava uma hierarquização entre os institutos do casamento e da união estável, incompatibilizando o direito sucessório com os preceitos constitucionais. Após anos de debates, em 2017, o tema sobre a constitucionalidade da distinção entre o regime sucessório do cônjuge e do companheiro finalmente chegou ao Supremo Tribunal Federal através do Recurso Extraordinário nº 878.694/MG, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, nos seguintes termos: “Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do 6 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. 459 recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002.”.7 Nas razões de seu voto, o Ministro relator explorou as características inerentes aos conceitos de comunhão familiar e da dignidade da pessoa humana, para construir o pensamento de que normas que criam hierarquia entre tipos diferentes de entidades familiares não são compatíveis com a sistemática constitucional. Nesse sentido, o Ministro evidencia que, apesar de adotar o referido posicionamento, entende que as particularidades de cada família devem ser consideradas, mas que a necessidade de tratamento diferenciado nesses casos não viola a Constituição, pois seriam situações específicas de cada caso concreto. Os votos vencidos e contrários a esse posicionamento evidenciaram que o regime sucessório diferente, aplicado à união estável, tratava-se apenas de característica de uma entidade familiar diversa do casamento, não estando em desacordo com a proteção conferida às famílias pela Constituição (art. 226, CRFB/88). Ao final, procedeu-se a edição da tese de repercussão geral em que, no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios aplicados ao casamento e à união estável, sendo declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Nesse sentido, em relação ao regime sucessório, os companheiros passaram a ser agraciados pelo disposto no art. 1.829 do Código Civil. Destaca-se que, apesar de o Supremo Tribunal Federal não ter expressamente declarado que os companheiros são herdeiros necessários, grande parte da doutrina entende que, pela aproximação dos regimes sucessórios, o companheiro deve ser tratado como herdeiro necessário. Diante desses fatos, superada a distinção de regimes sucessórios, é questionado se o direito real de habitação deve ser aplicado ao companheiro, considerando o caráter ex lege do direito e o fato de que o Código Civil nada dispôs sobre os companheiros, conferindo o direito apenas ao cônjuge sobrevivente. Tem-se que, antes mesmo da pronunciação do Supremo Tribunal Federal sobre a aproximação dos regimes sucessórios, o Superior Tribunal de Justiça já tinha se manifestado sobre o tema e firmado entendimento no sentido de que o direito real de habitação também deve ser um direito dos companheiros. A decisão do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a aplicabilidade do direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, mesmo com a omissão legislativa sobre o tema 7 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, 10 de maio de 2017. Disponível em www.stf.gov.br. Acesso em 10 ago. 2023. 460 no atual Código Civil, em decorrência do previsto na Lei nº 9.278 de 1996, ainda em vigor (a matéria é controvertida!), que prevê, no parágrafo único de seu art. 7º, o direito real de habitação ao companheiro supérstite, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento8. No mesmo sentido, o Enunciado 117 da I Jornada de Direito Civil dispõe que: “O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88.”9 Apesar de terem sido conferidos grandes avanços aos companheiros no ramo sucessório, a fim de que não fiquem desamparados em caso de morte de um dos parceiros, ainda subsiste a questão sobre qual deve ser a posição adotada no caso de existirem herdeiros vulneráveis, que necessitem do bem objeto do direito real de habitação, e a fruição de tal direito pelo cônjuge ou companheiro sobrevivente. 3. A Necessidade de Novos Parâmetros para a Aplicação do Direito Real de Habitação A aplicação do direito na contemporaneidade não se ajusta a interpretações estanques e absolutas, de forma que a análise dos casos em suas especificidades deve ser realizada pelo julgador partindo-se do pressuposto da necessidade de se criar uma norma adequada para a discussão posta sub judice. Nessa medida, “O conteúdo não se forma no momento da produção do texto por parte do legislador: a produção é uma fase à qual é preciso flanquear outra, ou seja, a recepção do texto por parte do destinatário, o intérprete.” 10 Dessa maneira, cabe ao operador do direito realizar, em cada caso, a releitura de todo o sistema para que os valores se ajustem à melhor solução, afastando a regra de que “in claris non fit interpretatio”, pois a clareza da norma resulta justamente da interpretação, e não de preceitos impostos pela lógica. O direito real de habitação, portanto, deve se adequar aos interesses tutelados pelo sistema, de modo a atender a sua ratio, em contexto no qual devem ser avaliadas as condições dos vários sucessores. Até que modificação legislativa seja realizada, a distribuição do patrimônio post mortem busca amparar de forma ampla os herdeiros, sobretudo os necessários, mediante a manutenção de institutos que restringem a autonomia patrimonial, 8 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no REsp. nº 1.436.350 - RS (2014/0039549-5), 3ª Turma, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília, 16 de abril de 2016. Disponível em www.stj.gov.br. Acesso em 10 ago.2023. 9 CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado 117. I Jornada de Direito Civil. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/758. 10 PERLINGIERI, P. O direito civil na legalidade constitucional. Renovar: Rio de Janeiro, 2008, p. 601. 461 como pode ser exemplificado com a imposição da cota legitimária. Partindo dessa opção legislativa, verifica-se que o direito real de habitação foi conferido ao cônjuge para fins de ofertar-lhe moradia e concretizar, também dessa forma, a solidariedade familiar. Estabelecido sob certas condições legais, torna-se necessário identificar a destinação do imóvel à residência familiar, assim como a inexistência de outros bens de mesma natureza. No entanto, decisões do Superior Tribunal de Justiça já relativizaram essa última exigência ao reconhecer o direito de habitação mesmo diante de vários imóveis residenciais, concretizando a mens legis de proteção ao cônjuge11. Mudanças sociais devem ser, entretanto, levadas em consideração no momento de decidir, pois não se deve considerar de maneira absoluta a necessidade do cônjuge em detrimento de outros herdeiros. Na atualidade, nos casamentos mais longos entretidos por pessoas já idosas, nas uniões estabelecidas com dinâmicas em que só um dos cônjuges assumiu a condição de provedor (exemplo do casal em que um dos integrantes opta pelos cuidados com a família enquanto o outro fica com o encargo de suprir as despesas ordinárias), ainda é impositivo estabelecer um olhar protetivo ao cônjuge – normalmente o do gênero feminino –, já que incontestável a necessidade de se garantir a sua moradia quando do falecimento do outro. Por conta desse dever específico de proteção, são encontradas diversas interpretações judiciais que primam pelo equilíbrio patrimonial no direito de família, o que pode ser identificado, por exemplo, na hermenêutica que impõe efeitos ex nunc à mudança de regime de bens, ou determina o pagamento de alimentos compensatórios ao cônjuge descasado como forma de gerar uma simetria financeira12, nos casos de inexistência de meação. Essas situações, contudo, afiguram-se cada vez mais excepcionais, eis que o acesso ao mercado de trabalho como fruto da emancipação feminina, torna, cada dia menos necessária uma proteção diferenciada ao cônjuge, fato que pode ser confirmado também pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao estabelecer que a prestação de alimentos legítimos, com fundamento no binômio necessidade-possibilidade, deve ser estabelecida de 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.220.038, 3ª turma, Rel. Sidnei Beneti. Brasília, 27 de junho de 2012; Recurso Especial 1.249.227/SC, 4ª Turma, Relator Luis Felipe Salomão. Brasília, 25 de março de 2014; Recurso Especial 1.329.993/RS, 4ª Turma, Luis Felipe Salomão. Brasília, 18 de março de 2014. Disponível em www.stj.gov.br. 12 Sobre a eficácia ex nunc para a mudança de regime de bens, vide BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.533. 179/RS, 3ª turma, Rel. Marco Aurélio Bellizze. Brasília, 08 de setembro de 2015. A recente decisão proferida no Recurso Especial 1.671.422, 4ª Turma, que estabeleceu efeito ex tunc à mudança de regime confirma o entendimento de proteção, na medida em que se encontravam os decisores diante de pedido realizado por casal com base na consolidação da relação anteriormente estabelecida na separação de bens para a comunhão. Sobre os alimentos compensatórios para o cônjuge em situação de desequilíbrio financeiro: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.954.452/SP, 3ª turma, Rel. Marco Aurélio Bellizze. Brasília, 13 de junho de 2023. Disponível em www.stj.gov.br. 462 forma transitória, e não vitalícia, como comumente se dava no passado 13. Em suma, em diversos aspectos, a proteção ao cônjuge tem sido relativizada pela atividade do intérprete na seara do direito de família. Ao mesmo tempo, outra classe de herdeiros necessários, os ascendentes, foi reconfigurada, na medida em que aumentada a expectativa de vida da população. Assim, se no passado dificilmente os pais se apresentariam como herdeiros, hoje a longevidade permite muitos casos de concorrência do cônjuge com os ascendentes do falecido. No Brasil, em 1950, a expectativa de vida era de 48,1 anos, tendo subido para 75,3 anos, em 2019, diminuído temporariamente – por efeito da pandemia de Covid-19 – para 72,8 anos em 2021, e alcançado, em 2023, os 76,2 anos. Até 2100, estima-se um aumento para 88, 2 anos14. Assim, será muito mais fácil identificar uma necessidade de moradia para os pais idosos, sobretudo as mulheres, que pela idade, serão justamente aquelas que sofreram mais fortemente os impactos da formação estrutural brasileira marcada pela submissão feminina e dependência econômica. Partindo para a classe dos descendentes, identifica-se a vulnerabilidade ínsita à condição de crianças e adolescentes, assim como de possíveis herdeiros com deficiência. A lei 8.069/90 estabelece, com base na disposição constitucional do caput do art. 227, a prioridade de seus interesses, ao prever que: “Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, 13 PROCESSUAL CIVIL E ALIMENTOS TRANSITÓRIOS. AGRAVO INTERNO. INOVAÇÃO, EM SEDE DE AGRAVO INTERNO. IMPOSSIBILIDADE. DECISÃO RESTABELECENDO O DECIDIDO NA SENTENÇA. NÃO SIGNIFICA RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA, PARA SUBSTITUIÇÃO DA DECISÃO DESTA CORTE, PELA SENTENÇA. 1. No tocante à tese de que a exoneração da obrigação alimentar deve retroagir à data citação, não comporta nem mesmo exame, pois é bem de ver que cuida-se de patente inovação, visto que, no recurso especial é requerido, expressamente, tão somente o restabelecimento da decisão de primeira instância - que não previu a exoneração da obrigação, conforme o ora postulado. 2. Entre ex-cônjuges ou ex-companheiros, desfeitos os laços afetivos e familiares, a obrigação de pagar alimentos é excepcional, de modo que, quando devidos, ostentam, ordinariamente, caráter assistencial e transitório, persistindo apenas pelo prazo necessário e suficiente a propiciar o soerguimento do alimentado, para sua reinserção no mercado de trabalho ou, de outra forma, com seu autossustento e autonomia financeira. (REsp 1454263/CE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJe 08/05/2015) 3. A afirmação de restabelecimento da sentença - que exonerou o ora recorrente da obrigação alimentar -, evidentemente, não significa a substituição da decisão desta Corte pela sentença. 4. Agravo interno não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp n. 833.448/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma. Brasília, 27 de setembro de 2016. Disponível em www.stj.gov.br. 14 ALVES, José Eustáquio Diniz. Os países com maior expectativa de vida ao nascer em 2023. Disponível em https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/os-paises-com-maior-expectativa-de-vida-ao-nascer-em2023/#:~:text=O%20Brasil%2C%20com%20214%20milh%C3%B5es,88%2C2%20anos%20em%202100. Acesso em 13 ago. 2023. 463 à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”15 Da mesma forma, a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, de natureza constitucional, impõe como obrigação geral, em seu art. 4, 1ª: “Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção;”. Nesse ponto, é importante ressalvar que a deficiência pode acometer não só os filhos, mas também os ascendentes do de cujus. Assim, em termos de planejamento sucessório – estratégia que organiza os institutos jurídicos com base na autonomia do interessado, para o fim de deixar estabelecida a divisão patrimonial post mortem, sempre de maneira mais célere e adequada – já se identifica alguma relativização ao direito de habitação, defendendo Anelize Pantaleão e Simone Tassinari, a possibilidade de seu estabelecimento em benefício de pessoa com deficiência que passaria, a depender da situação e por vontade do titular do bens, a dividi-lo com o cônjuge beneficiário da previsão legal. Segundo as autoras: “Portanto, mediante ato entre vivos, ou mesmo testamento, o autor da herança poderá instituir o direito real de habitação sobre imóvel. Se for o imóvel destinado à residência familiar, há de se observar a existência do direito real de habitação legal. Neste sentido, verifica-se que na hipótese de cônjuge/companheiro supérstite, caso haja apenas um imóvel, deverá ser instituído para ambos. O procedimento deve ser realizado por escritura pública ou pelas espécies de testamento admitidas na legislação civil vigente.”16 Indo além da proteção dos vulneráveis de habitação, defende abalizada doutrina a possibilidade de afastamento do benefício quando como fato a justificar a necessidade de um temperamento na aplicação das regras do direito real as condições subjetivas do sobrevivo revelem que a proteção legal oriunda do direito real de habitação é excessiva e desnecessária17. Da mesma maneira, entendeu Pablo Malheiros, ao trabalhar com caso concreto no qual uma viúva concorria com dois descendentes do de cujus, tendo sido escolhida também como herdeira testamentária, o que lhe conferia grande porcentagem sobre o patrimônio deixado. Considerando que a residência do casal alcançava milhões de reais, e que a venda do referido bem, sem a presença do direito real de habitação, possibilitaria que a viúva comprasse bem de alto valor, e os dois filhos recebessem quantia suficiente para resolver seus problemas de moradia, defendeu a possibilidade de interpretação relativizada 15 BRASIL. Lei 8069, de 13 de julho de 1990. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em 13 de agosto de 2023. 16 CAMINHA, A.P.P.; FLEISCHMANN, S.T.C. A proteção do herdeiro com deficiência por meio do planejamento sucessório. Revista jurídica luso brasileira, ano 6, n. 6, 2020. Disponível em hromeextension:https://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/ 2020/6/2020_06_0063_ 0086.pdf. Acesso em 10 ago. 2023. 17 TEPEDINO, G et al. Fundamentos do direito civil. Vol. 7. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 106. 464 do direito real de habitação como forma de atender o maior número de interesses sem ferir – pelo contrário – a solidariedade familiar e prover o direito à moradia18. A possibilidade de renúncia ao direito real de habitação por seu beneficiário, tal como disposta no Enunciado 271 do Conselho da Justiça Federal, pode resolver muitas situações semelhantes, mas, a liberdade judicial para a interpretação das normas, no contexto da legalidade constitucional, permite atuação que legitime a utilização do direito real de habitação como instrumento para o cumprimento do maior número possível de interesses, sendo, sem dúvida, salutar que houvesse modificação legislativa nesse sentido, de modo a nortear o julgador na proteção das vulnerabilidades em conflito. Dessa maneira, Luiz Paulo Vieira de Carvalho indica a possibilidade de mudança do parágrafo único do art. 1831, para a seguinte redação: “Poderá não ser reconhecido o direito real de habitação sucessório, quando se verificar ter o cônjuge ou companheiro sobrevivente imóvel residencial próprio, ou plenas condições de, com seus próprios bens ou às suas expensas, garantir a sua moradia.”19 Trata-se de proposta bem interessante, por permitir ao juiz a liberdade de afastar o direito real de habitação ao mesmo tempo em que confere ampla liberdade para a proteção de descendentes ou ascendentes, de acordo com a justificação necessária a todas as decisões judiciais, de acordo com todas as exigências constitucionais. 4. Considerações finais O direito real de habitação, benefício legal conferido ao cônjuge e ao companheiro pelo Código Civil, assumiu feição bastante ampla, já que vitalício, tornando a utilidade do bem bastante restritiva. Isso acontece porque a instituição daquele direito praticamente impede a venda do imóvel, já que o comprador teria a obrigação de respeitá-lo, não sendo esse o interesse de quem adquire onerosamente um bem de raiz. Dessa maneira, para fins de proteger o direito de moradia do cônjuge/companheiro, os outros herdeiros (descendentes ou ascendentes) podem restar afastados tanto da utilidade do próprio bem quanto de seu valor. Necessário, no entanto, dadas as mudanças sociais ocorridas, que o juiz analise o caso concreto para verificar a legitimidade do cumprimento do direito real de habitação, eis que o viúvo pode ter situação financeira confortável, sendo inclusive dono de outros imóveis 18 FROTA, P.M.C. O direito real de habitação e a sua possível relativização no direito sucessório brasileiro: primeiras reflexões. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 8, jul-set, 2016. Disponível em chrome-extension:https://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.mpsp.mp.br/portal/ page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_ 2006/RDCivCont_n.8.12.PDF. Acesso em 12 ago. 2023. No mesmo sentido: CARVALHO, Luiz Paulo Vieira de. Direito das sucessões. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2017, p. 454. 19 CARVALHO, L.P.V. Direito das sucessões. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2017, p. 455. 465 residenciais, ao passo que os outros herdeiros podem ter realmente necessidade de maior amparo, sobretudo quanto a moradia. A existência de vulnerabilidade na pessoa dos idosos, crianças e adolescentes ou pessoas com deficiência agrava ainda mais o quadro, impondo que o julgador resolva o conflito de interesses à luz do maior benefício para o maior número de pessoas ou para aqueles que mais precisam no momento da partilha, afinal, o intento da norma é cumprir a solidariedade e garantir o direito à moradia. Ainda que haja liberdade judicial para essa tomada de decisão de maneira justificada, sobretudo à luz de interpretação sistemática e axiológica, uma mudança legislativa nesse sentido tornaria a atuação judicial mais segura e adequada à contemporaneidade. Referências Bibliográficas BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ l10406compilada.htm. Acesso em: 20 jul. de 2023. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em: 20 jul. de 2023. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.220.038, 3ª turma, Rel. Sidnei Beneti. Brasília, 27 de junho de 2012; Recurso Especial 1.249.227/SC, 4ª Turma, Relator Luis Felipe Salomão. Brasília, 25 de março de 2014. Disponível em www.stj.gov.br. 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