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As novas feições do autoritarismo na era digital

2023

https://doi.org/10.1590/18094449202300680016

Resenha do livro "Batalhas Morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada" de Richard Miskolci.

cadernos pagu (68), 2023:e236816 ISSN 1809-4449 RESENHA “Olly e nós”, de Adriana Nunes Souza, 2022, desenho sobre papel. https://dx.doi.org/10.1590/18094449202300680016 cadernos pagu tem seu conteúdo sob uma Licença Creative Commons cadernos pagu (68), 2023:e236816 As novas feições do autoritarismo na era digital As novas feições do autoritarismo na era digital Fernando de Figueiredo Balieiro Sem críticas contundentes à política identitária neoliberal, ela continua a contribuir para a disseminação de uma versão distorcida, populista e autoritária de meritórias teorias, conceitos e projetos políticos de igualdade (Miskolci, 2021:79). Batalhas Morais propõe uma análise sociológica dos conflitos sobre gênero e sexualidade no Brasil contemporâneo. O livro foi publicado na sequência de diversos artigos de Richard Miskolci sobre a mobilização de oposição às políticas em prol dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil e na América Latina. Seu novo livro, no entanto, vai muito além de seus textos anteriores. Das disputas políticas em torno do gênero somos conduzidos a pensar sobre a reconfiguração da esfera pública com a recente difusão das mídias digitais na vida social e seus efeitos na política, no debate público e na produção do conhecimento nas universidades. Batalhas Morais analisa como mudanças sociais, midiáticas e tecnológicas recentes contribuíram para novas expressões do autoritarismo. Seu tema e sua perspectiva de análise permitem inseri-lo na linha de estudos da Teoria Crítica. Não é à toa que retoma a obra A personalidade autoritária (Adorno, 2019) em suas conclusões. Suas páginas reverberam a discussão clássica sobre os meios de comunicação e o autoritarismo, um temachave da Teoria Crítica desde Dialética do Esclarecimento, o qual marca a colaboração principal de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985). O diálogo é mais estreito com um dos expoentes da geração posterior da chamada Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas (2014). Miskolci compreende o presente a partir da reelaboração do conceito de “esfera pública”, desse autor, atualizado como “esfera pública técnico-midiatizada”. O livro está em sintonia com as críticas de Nancy Fraser (2018) sobre as armadilhas do que denomina de “neoliberalismo progressista”. Enquanto a teórica da New School for Social Research aponta os erros na agenda da esquerda que incorporara um programa econômico regressivo na era do neoliberalismo, o sociólogo brasileiro analisa a reprodução de uma racionalidade neoliberal nas formas hegemônicas de ação política. Segundo o autor, forjadas e incentivadas por um sistema de plataformas para usos comunicacionais. Para o sociólogo, as plataformas de rede social passaram longe de cumprir suas promessas de democratizar as vozes e demandas de grupos subalternizados. Sob imperativos econômicos nem sempre explícitos, foram palco de estratégias desagregadoras, de iniciativas que visam inibir o diálogo e, sobretudo, de uma lógica competitiva que incentiva um enquadramento moral dos problemas políticos. Os conflitos políticos forjados na lógica das plataformas digitais revelam o incentivo da nova infraestrutura comunicacional a formas de ação coletiva que se voltam contra mediadores culturais1: jornalistas profissionais, acadêmicos e partidos políticos. Miskolci atenta, sobretudo, ao impulso antiintelectual que passou a vigorar dentro das universidades. Elas se encontram crescentemente envolvidas em pressões internas e externas que ameaçam a liberdade acadêmica que, por sua vez, depende do livre exercício do pensamento crítico. *  Recebida em 18 de julho de 2023, aceita em 30 de agosto de 2023. Resenha do livro: MISKOLCI, Richard. Batalhas Morais: política identitária na esfera pública técnico-midiatizada. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.  Professor Adjunto do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil. [email protected] / https://orcid.org/0000-0003-3952-4779. 1 Em artigo recente, Leonardo Avritzer (2023) retoma o último livro de Habermas em que o teórico alemão relaciona a crise da democracia com a perda da relevância da imprensa e de jornalistas na esfera pública. 2 cadernos pagu (68), 2023:e236816 Fernando de Figueiredo Balieiro Richard Miskolci é reconhecido por suas contribuições ao campo dos estudos de gênero e sexualidade. O sociólogo contribuiu teórica e pedagogicamente para a formação de professores/as e pesquisadores/as como uma referência nos estudos queer brasileiros. Suas publicações variam de textos sobre os estudos queer a obras empíricas de uma sociologia do desejo que ajudou a consolidar no Brasil. Destacam-se, entre suas obras, O Desejo da Nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins de XIX (2012) e Desejos Digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line (2017). Por que a mudança de tema em um momento que coincide com a sua consolidação como Professor Titular de Sociologia? Miskolci foi compelido a enfrentar questões prementes do presente. Sua obra se volta a um campo de tensões que se impôs na seara dos estudos de gênero e sexualidade. Em um contexto em que tais estudos passam a ser descritos de forma desqualificadora como “ideologia de gênero”, não é difícil compreender a proliferação de publicações que visam identificar os atores de extrema-direita e suas estratégias discursivas. Miskolci se propôs a ir além, impondo a si mesmo um exercício de distanciamento crítico em relação ao campo no qual se fez um pesquisador reconhecido. O livro ainda recente já atraiu críticas. Revelou-se incompreendido por alguns de seus críticos prematuros justamente por um de seus méritos: prover uma perspectiva relacional atenta ao compartilhamento de repertórios entre grupos de posições políticas antagônicas. O sociólogo se recusa a reproduzir uma idealização de um dos polos da disputa política, reconhecendo como as formas de ação coletiva de ambos os lados se influenciam reciprocamente em sua disputa na esfera pública. Em uma análise cuidadosa, vai além da constatação do lastro do conservadorismo moral que se projetou no debate público em sua campanha contra o que se denominou de “ideologia de gênero”. Miskolci demonstra empiricamente como as lógicas sociotécnicas e midiáticas passaram a dar o tom das formas de atuação política hodiernas, seja entre os detratores das políticas de gênero ou a segmentos de ativistas identitários. Sua abordagem se ancora em uma linha analítica que se opõe a perspectivas normativas que pressupõem que as formas de ação coletiva organizadas e voltadas à transformação social são necessariamente democráticas e de esquerda. Em sua visão, mesmo os movimentos sociais progressistas devem ser analisados em relação a outros movimentos, à direita, com os quais disputam projetos de sociedade para a nação. As disputas não apenas os distinguem, mas podem revelar lógicas e repertórios comuns, sendo todos os segmentos passíveis de serem influenciados por formas autoritárias de ação política. * Miskolci começa seu livro retomando as origens dos conflitos em torno dos direitos sexuais e reprodutivos nas eleições de 2010, quando duas mulheres concorriam à Presidência da República, e o tema do aborto foi trazido ao centro das discussões eleitorais. Dilma Rousseff se elegeu e, logo no primeiro ano de seu governo, deparou-se com uma oposição que se organizou a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Viu-se, em seguida, envolvida em um episódio de pânico moral. Reagia-se a um material elaborado a pedido do Ministério da Educação para combater a discriminação nas escolas que passou a ser difundido por seus detratores como “kit gay”, uma suposta ameaça de conversão de crianças à homossexualidade. Na esteira dessa polêmica, o primeiro mandato de Rousseff foi marcado pela organização de uma plataforma moral encampada pela Frente Parlamentar Evangélica (FPE), revelando aspectos que passariam a definir as clivagens políticas nacionais nas próximas eleições. O analista, entretanto, recusa a compreensão de que as disputas morais travadas seriam entre religiosos, sobretudo evangélicos, e atores laicos. Em vez de “fundamentalistas religiosos”, Miskolci observa a projeção midiática de atores com projetos heterogêneos que captaram demandas de segmentos sociais reativos a políticas sociais desenvolvidas no governo de Rousseff e nos precedentes. 3 cadernos pagu (68), 2023:e236816 As novas feições do autoritarismo na era digital Destacam-se o Escola sem Partido (ESP) e o Movimento Brasil Livre (MBL)2, grupos de interesse que se projetaram pelas mídias digitais durante a mobilização pelo impeachment de Dilma Rousseff. O contexto se caracterizava pela convergência das acusações de corrupção do governo petista na mídia profissional com a cruzada pela exclusão do termo “gênero” nos planos nacional e estaduais de educação. Os grupos políticos emergentes contribuíram para associar ambas as pautas em um mesmo enquadramento moral (Cf. Miskolci; Balieiro, 2023). Nos anos seguintes, em companhia de outros representantes da extrema-direita, participaram de episódios de perseguições a professores, artistas e intelectuais. O quadro recuperado pelo autor revela um tempo de intolerância que, para ele, exige uma compreensão aprofundada que vá além da identificação de tais grupos. O sociólogo nos provoca a pensar como as estratégias do ativismo identitário acabaram por contribuir com o caráter moral das disputas que tomaram a esfera pública. Para Miskolci, a política das diferenças passou a ser moldada por lógicas de visibilidade e reconhecimento midiáticas calcadas na identidade. A busca por popularidade e o empreendedorismo de si em um mercado de atenção é incentivado pelo sistema oligopolizado de plataformas on-line que passou a dominar as interações digitais na última década. A distribuição de conteúdo por meio de métricas de atenção reforça o engajamento emocional e uma perspectiva moral sobre as questões públicas. O novo ambiente midiático contribuiu para ofuscar estratégias alternativas, como as disputas argumentativas ou a busca por construção de convergências na esfera pública. Na análise de Miskolci, a arquitetura das plataformas provê condições potencialmente horizontais para a participação comunicativa nas redes ao mesmo tempo que a submete a uma lógica concorrencial em um mercado de atenção. A competição por visibilidade nas redes cria um ambiente de disputa no qual se sobressai a recusa às mediações, sejam elas desempenhadas por partidos políticos, órgãos da imprensa ou pela universidade. Acrescenta-se também a justiça, na medida em que tal lógica incentiva a punição pela execração pública nas redes, ignorando a presunção da inocência no Estado de Direito. Seus efeitos visíveis são a valorização das políticas de ação direta, a emergência dos ativismos centrados na experiência individual e a pulverização de fontes informativas não confiáveis. A “esfera pública técnico-midiatizada” seria o avesso da concepção habermasiana de um espaço comunicacional aberto à argumentação e ao convencimento. Uma conjunção de questões econômicas e midiáticas criaram o ambiente perfeito para que empreendedores políticos de extrema-direita se projetassem como alternativa a “contra tudo o que está aí”. O contexto serviu para uma plataforma eleitoral poderosa que resultou na ascensão da extrema-direita no processo de impeachment de Dilma Rousseff, consolidada na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2018. Para tanto, o enquadramento moral da política foi central ao imbricar a denúncia de escândalos de desvio de dinheiro público com a acusação de que o governo pretendia corromper as famílias com a chamada “ideologia de gênero”. A perspectiva identitária que se projetava nas mídias digitais revelou-se frágil e fragmentária, incapaz de mobilizar uma oposição consistente ao avanço do extremismo de direita. Ao contrário, suas estratégias de mobilização centradas no empreendedorismo de si foram combustível para a aliança conservadora que se formara. Miskolci associa segmentos da política identitária a uma gramática individualista voltada à disputa pela autoridade sobre determinada pauta. Transforma-se assim o “[...] antigo slogan feminista de que o pessoal é político na versão neoliberal de que o político pode ser usado com fins individuais” (Miskolci, 2021:70). O autor destaca dois aspectos de um modus operandi ativista que se generalizou: a recusa de políticas do reconhecimento das diferenças em favor da afirmação de identidades essencializadas e a adoção de um repertório caracterizado pelo escracho/cancelamento, ou seja, julgamento e condenação públicos em redes sociais. A desqualificação ou a vigilância comportamental, traduzida como “politicamente correto” na gramática da extrema-direita, revelouse uma escolha trágica para as pautas progressistas. A vitimização seria uma de suas estratégias comunicacionais. Nela, o denunciante arroga a si uma superioridade moral de vítima e projeta em seus supostos adversários o papel de opressores. Nesta chave, as desigualdades sociais passam a ser compreendidas de forma a personalizar e individualizar questões que são sociais e históricas. 2 Para uma análise da construção estratégica de uma campanha midiática do MBL que resultou no fechamento da Mostra QueerMuseu em 2017, conferir Balieiro (2022). 4 cadernos pagu (68), 2023:e236816 Fernando de Figueiredo Balieiro O espírito do tempo, materializado na identidade-perfil das plataformas digitais, incentiva esse tipo de política identitária. Seu resultado é a adesão a posições conflitivas e desagregadoras em vez de políticas de coalizão que visem a mudanças social e cultural de forma negociada. Um de seus efeitos é a construção de uma oposição cerrada entre ativismo e universidade no lugar de um ambiente de diálogo. Na lógica identitária, professores e pesquisadores passam a ser vistos como oponentes com os quais se deve lutar pelo monopólio do direito à fala. Seu reconhecimento profissional e seus direitos passam a ser vistos como expressão de privilégio a ser combatido. A ampla aceitação dessas estratégias entre segmentos progressistas da comunidade acadêmica seria compreensível por duas características que compartilham: 1. a busca por um novo sujeito histórico por justiça social em um contexto de declínio das teorias marxistas, e 2. as raízes socialistas-cristãs de parte dos intelectuais que sacralizam os movimentos sociais progressistas em vez de compreendê-los como legítimos grupos de interesse. Ao final do livro, o autor se volta a uma reflexão a respeito das implicações teóricas e epistemológicas do novo contexto sobre o campo de estudos de gênero e sexualidade. Miskolci defende que a atividade intelectual não é substituível pela experiência dos subalternos que, por sua vez, não pode ser compreendida como via de acesso transparente às complexas relações de poder em termos culturais, políticos e sociais. A partir do diálogo com Joan Scott e Gayatri Spivak, critica noções espraiadas no ativismo contemporâneo: “local de fala”, “experiência” e “cisgeneridade”. Para o sociólogo, elas revelam uma estratégia de monopolizar a autoridade sobre determinada pauta e criar uma oposição entre ativismo e trabalho intelectual. Elas se assentam em uma compreensão identitária que negligencia as complexas regulações de gênero, partindo de identidades fixas e essencializadas, o que traz implicações não apenas teóricas, mas também políticas. Em síntese, esses segmentos do ativismo e do campo de estudos de gênero têm formulado noções com o objetivo de criar monopólio epistemológicos ao invés de agregar, ampliar e acolher as diferenças. * Batalhas Morais é uma aposta na capacidade crítica para repensar o presente e as formas de agência em tempos de uma esfera pública técnico-midiatizada. O livro nos brinda com um exercício corajoso de crítica a um segmento do ativismo que flerta com o autoritarismo que reconhece apenas em seus adversários no campo conservador. A obra mostra que a necessária busca pela construção de alianças e consensos para o reconhecimento das diferenças cedeu espaço para uma gramática política conflitiva e avessa a tais objetivos. Gramática baseada na lógica das redes sociais de contínuo questionamento dos mediadores sociais, o que nos levou a uma série de derrotas políticas. O novo repertório político gestado em uma esfera pública técnico-midiatizada, calcada na afirmação essencialista das identidades e em práticas políticas conflitivas, melhor serviu aos grupos conservadores e contribuiu para fortalecer a extrema-direita em nosso país. Sobretudo, Batalhas Morais nos instiga a pensar na importância da ação política de caráter agregador e democrático em prol do reconhecimento das diferenças. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo, Editora Unesp, 2019. ADORNO, Theodor, HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. AVRITZER, Leonardo. esfera pública sem mediação? Habermas, anti-iluminismo e democracia. Lua Nova (Impresso), v. 118, 2023, pp.13-40. BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Uma sociologia do escândalo da Mostra Queermuseu: disputas de enquadramento midiático entre o jornalismo profissional e o Movimento Brasil Livre. 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