Abstract
A hipótese que procuro defender neste ensaio é a seguinte: a famosa expressão " Am Leitfaden des Leibes", que surge nos póstumos de 1884 e desaparece um ano depois, contabilizando pouco mais de dez ocorrências no conjunto dos fragmentos póstumos e nenhuma na obra publicada, é uma expressão cujo sentido e intenção devem ser desvendados tendo como pano de fundo o crescente interesse de Nietzsche, na virada da primeira para a segunda metade dos anos oitenta, na reabilitação da atividade especulativa. Minha segunda hipótese é que, ao cunhar esta expressão, Nietzsche se inspira na reivindicação metodológica de Schopenhauer, segundo a qual o corpo é o único fio condutor que nos resta se queremos nos mover com alguma segurança pelo labirinto da especulação. Por "corpo próprio‘" (Leib), Schopenhauer designa um tipo específico de experiência intuitiva que teria sido negligenciada por Kant: a experiência do conjunto de nossa vida afetiva. Segundo a minha hipótese, a partir da segunda metade dos anos oitenta Nietzsche estaria disposto a reconhecer que a intuição metodológica de Schopenhauer estava correta. O erro de Schopenhauer teria consistido simplesmente em partir de uma concepção equivocada do corpo e do tipo de acesso que temos a ele. A divergência, portanto, não incidiria sobre o método próprio à especulação, mas sobre o conteúdo ao qual o método se aplicaria, ou seja, sobre a representação do corpo próprio e dos traços que lhe seriam essenciais. Persistem as divergências quanto ao que implica seguir este preceito metódico (por exemplo, sobre o que deve e o que não deve ser evitado no antropomorfismo subjacente ao método de projeção analógica), ou quanto ao meio mais apropriado de se obter uma representação do corpo próprio. Segundo Schopenhauer, nós teríamos uma intuição do que é essencial no corpo mediante a experiência imediata do querer. Segundo Nietzsche, somente após um longo e penoso processo que envolve tanto a investigação empírica quanto a reflexão conceitual chegamos a alguns resultados tímidos. Portanto, mesmo a especulação que se serve do corpo como fio condutor representa uma extrapolação em relação ao que estaríamos autorizados a inferir em um ambiente epistemicamente mais rigoroso. E isso não apenas pela razão de que a inferência analógica é por si mesma uma inferência logicamente abusiva (mas tolerável, na ausência de outro recurso), mas também pelo fato de que aquilo que serve de base para a inferência analógica é uma imagem seletiva e arbitrariamente construída, cuja legitimidade epistêmica, mesmo quando restrita ao domínio da fisiologia humana, é apenas relativa. Estas considerações fornecem parte das razões (as de ordem epistêmica) de porque Nietzsche nunca conseguiu se persuadir inteiramente de que o seu projeto de reabilitação da filosofia especulativa era legítimo. Esta indecisão o levou a postergar e, segundo alguns intérpretes, a finalmente abandonar a sua execução, ou pelo menos a sua tradução em uma obra literária sistemática.