Abstract
Embora não o desenvolva na exposição que se segue, o argumento subjacente à minha contribuição para este volume é bastante simples: há duas vias pelas quais a filosofia de Nietzsche pode contribuir positivamente para uma revisão do modo como os seres humanos no ocidente definiram sua relação com o não humano: (1) a primeira via é a agonística – a tese agonística pode ser mobilizada para combater o viés especista que caracteriza boa parte da reflexão normativa do ocidente sem que isso nos comprometa com a suposição de que é possível abandonar o perspectivismo em sua versão forte (a tese segundo a qual nossos esquemas conceituais e perceptuais, ou o fato de pertencermos a uma mesma história natural, nos aprisionam na perspectiva da espécie humana). O agonismo é uma posição filosófica que recusa a supremacia absoluta de uma formação de domínio como um arranjo prejudicial à própria formação de domínio; (2) a segunda via é a da filosofia da afirmação incondicional do acaso ou da necessidade, como Nietzsche se expressa alternativamente. Esta via comporta uma dimensão religiosa, por mais chocante que isso possa parecer a ouvidos nietzschianos. Nesta perspectiva da afirmação incondicional, todas as forças atuantes são igualmente afirmadas e a perspectiva normativa preservada minimamente na abordagem agonística é como que suprimida e toda tensão dissolvida.
Segundo minha interpretação, a filosofia afirmativa defendida por Nietzsche exige uma política da reconciliação que vai além da perspectiva agonística. Ela representa a superação da visão moral de mundo na sua forma mais drástica: com um dizer sim até mesmo à perspectiva do último homem. Mas é justamente aí que as coisas começam a assumir ares dramáticos, pois Nietzsche reconhece que esta perspectiva não pode ser facilmente aceita em suas diversas implicações. Embora as duas vias que acabamos de mencionar possam inspirar legitimamente o projeto de uma revisão do antropocentrismo que caracterizou a reflexão normativa no ocidente, é necessário reconhecer que alguns traços do pensamento nietzschiano tornam esta tarefa de revisão altamente improvável. Uma vez assumida, a segunda via exigiria, por exemplo, a supressão de um dos traços centrais da personalidade filosófica de Nietzsche. Refiro-me a seu incansável ativismo em prol da autossuperação dos tipos mais elevados da humanidade. Esta dificuldade revela uma das facetas mais importantes da filosofia de Nietzsche, que consiste em seu compromisso com uma forma depurada de humanismo; um compromisso radical, que não pode ser ignorado por seus leitores. Esta forma depurada de humanismo fornece a autorização teórica para o lado sombrio da utopia nietzschiana: seu flerte com a noção de uma história planificada e de uma administração global da terra, como forma de promover o cultivo dos homens de exceção. Este lado sombrio da utopia nietzschiana pode ser descrito como um desdobramento consequencialista de sua ética perfeccionista, e está na origem das derivações políticas que o filósofo alemão extrai deste compromisso ético. Penso que isso justifique a expressão hiperbólica utilizada no título de minha contribuição: “A catástrofe do humanismo”. Sempre que esta modalidade de humanismo depurado prevalece na reflexão de Nietzsche, a única voz perceptível nesta que é a mais polifônica das escritas filosóficas é a voz do ativista militando em prol dos homens de exceção. Quando esse tipo de engajamento prevalece, não é possível discernir nenhuma contribuição especificamente nietzschiana ao tema em torno do qual nos propusemos a refletir nesta coletânea: nestas ocasiões Nietzsche permanece indubitavelmente no interior de uma tradição que confere exclusividade ao humano em sua reflexão normativa.