Abstract
Se vivemos juntos apenas porque temos direitos e para termos mais direitos, então não
temos nenhum motivo para imaginar uma salvação comum: a salvação não está no comum, mas
no próprio.
Por oposição ao Direito (em inglês, Law) que, impondo-se a todos de cima para baixo,
normatiza objetivamente as relações entre cidadãos, há agora o império crescente dos direitos
subjetivos (em inglês, rights) reivindicações particulares que tentam impor-se a todos de baixo
para cima. Esses direitos costumam ser descritos como sendo de dois tipos ou duas gerações.
De um lado, há, ou houve em um primeiro momento depois da Revolução Francesa, o
reconhecimento dos direitos-liberdades (direitos de fazer alguma coisa: ir e vir, associar-se,
reunir-se, manifestar opiniões, praticar uma religião etc.); de outro lado, há, ou houve em um
segundo momento depois da Segunda Guerra Mundial, os direitos sociais, os chamados
direitos-créditos, os direitos ao beneficio de certa prestação da parte de um poder público
(direitos a alguma coisa: educação, saúde, trabalho etc.). Eles se fundamentam em dois sentidos
opostos da ideia de direitos. Os direitos-liberdades definem um território de igual independência
de todos e cada um com relação às ingerências do poder público; os direitos-créditos definem
um horizonte de expectativa de todos e cada um com relação às ações desse mesmo poder
público. De um lado, impedem o Estado de agir em certas esferas de ação dos indivíduos; de
outro, obrigam o Estado a agir em certas esferas a favor dos indivíduos. No entanto, do ponto de vista da perda do ideal de uma salvação comum, estes e aqueles vão no mesmo sentido.
Tornamo-nos duplamente liberais. Liberais porque apreciamos viver em uma sociedade de
liberdade igual, assegurando por direitos negativos a esfera de autonomia de cada um de nós.
Liberais porque, gostando ou não, vivemos em uma sociedade de mercado e esperamos ações
do Estado que corrijam os efeitos das desigualdades econômica e social gerados por esse
sistema. Queremos um Estado que nos faça menos desiguais e ao mesmo tempo garanta nossa
independência dele e dos outros. A demanda preocupada de menos injustiça substituiu mais
uma vez a vontade do Bem. Em todos os lugares do mundo onde essas duas condições da
autonomia individual (liberdades fundamentais e prestações sociais) não são satisfeitas, os
povos aspiram a elas. Em muitos casos, a Cidade ideal desses povos é semelhante à nossa pobre
Cidade real, que, no entanto, não nos satisfaz. Não tentamos mais nos realizar por e na
comunidade política e não aspiramos mais a nos fundir nela. O que esperamos do Estado é que
nos permita viver sem ele.
É pelo fato de não acreditarmos mais no político que nossos sonhos tomam a forma
lúcida e prosaica de demanda sem fim de novos direitos individuais. E pelo fato de não
acreditarmos mais na Cidade justa, na Cidade e na Justiça, que multiplicamos os focos de
reivindicação. Queremos não só mais direitos de (fazer) e mais direitos a (serviços), como
queremos esses direitos a outros seres além de nós. Assim, há dois movimentos paralelos: de
um lado, uma multiplicação de tipos de direitos (liberdades, mas sobretudo créditos); de outro,
uma proliferação de detentores de direitos; em última instância, todo grupo de interesses real
ou supostamente real é considerado um detentor de direitos. Em vez de ser outro nome para a
igualdade de todos — o que eram originalmente —, os direitos se tornaram sinônimo de
interesses particulares. Contra as desigualdades entre homens e mulheres, reivindicamos
paradoxalmente os "direitos das mulheres"; contra os maus-tratos e a carência de educação,
apelamos aos "direitos da criança"; contra as discriminações, defendemos os "direitos dos
homossexuais"; contra a medicina invasiva, exigimos respeito aos "direitos dos doentes"; contra
as falhas dos transportes públicos, reivindicamos o reconhecimento dos "direitos dos usuários"
etc. O "direito ao trabalho" é invocado tanto pelo desempregado que exige do poder público
que lhe dê emprego quanto pelo não grevista que exige acesso ao seu posto de trabalho,
contrapondo-se aos piquetes. Exigimos do Estado que reconheça o direito dos fumantes de
fumar e o dos não fumantes de não ser expostos à fumaça, o dos não crentes de blasfemar e o
dos crentes de não ser ofendidos; queremos que o Estado conceda aos solteiros o direito aos
filhos, e às crianças, o direito "a um papai e a uma mamãe". E, finalmente, onde antes se
impunham deveres morais ou normas jurídicas, hoje surgem inesperados beneficiários putativos
de novos direitos: as culturas autóctones, os animais, os robôs, a Natureza, a biosfera, a Terra-
mãe etc. — de tal forma a palavra "direito" se tornou mobilizadora e coligadora de energias em
torno de uma causa, graças à sua extraordinária ambiguidade (Vantagem? Habilitação?
Permissão? Privilégio? Não ingerência? Poder? Reivindicação? Imunidade?).
Tudo isso, no fundo, é prazeroso e marca a vitória (para nossa infelicidade,
geograficamente parcial e socialmente frágil) da autonomia individual sobre a onipotência dos
Estados, as sociedades fechadas, as culturas fusionais ou os integrismos religiosos. Mas incita
muito pouco a utopia e, menos ainda, a revolução.
Cópia de: FRANCIS WOLFF. Três Utopias Contemporâneas. São Paulo: Unesp, 2018.