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= O poder da comunicação em um mundo em crise
O estudo da fotografia de Aylan Kurdi obriga a compreensão de diversos aspectos que envolvem a imagem. O nosso contato com a fotografia foi, inicialmente, na rede social Facebook, mas em seguida foi vista em outros *sites* de redes sociais, nas capas dos jornais e de revistas, assim como na televisão e mesmo no rádio, que deu destaque ao fato. De maneira geral, a mídia destacou, a respeito de Aylan Kurdi, o aspecto simbólico de sua morte, muito em função da divulgação das imagens fotográficas.
Além da fotografia -- que durante muitos dias esteve entre os assuntos mais procurados nas buscas no Google[^59] --, as manifestações artísticas que se seguiram reforçaram a relevância do tema na internet e foram destaques em jornais impressos e *sites* de redes sociais. Em consequência, o interesse dos internautas pela crise migratória cresceu exponencialmente, o que transformou a morte de pessoas que tentavam atravessar o mar em busca de refúgio em outros países em um dos assuntos de maior interesse do ano de 2015 na internet.
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// []{=_Toc507740910 .anchor}**Figura 25 -- Destaques do Google em 2015 -- Principais Perguntas**
// Fonte: \< https://trends.google.com/trends/story/US_cu_QzMZM1EBAAALgM_en\>
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// []{=_Toc507740911 .anchor}**Figura 26 -- Destaques do Google em 2015 -- Principais Perguntas Globais sobre Aylan Kurdi**
// Fonte: \< https://trends.google.com/trends/story/US_cu_QzMZM1EBAAALgM_en\>
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// []{=_Toc507740912 .anchor}**Figura 27 -- Destaques do Google em 2015 -- Principais Perguntas sobre Refugiados no Brasil**
// Fonte: \< https://trends.google.com/trends/story/US_cu_QzMZM1EBAAALgM_en\>
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// []{=_Ref494896997 .anchor}**Figura 28 -- Destaques do Google em 2015 -- Interesse Global de Pesquisa por "Migrante" X "Refugiado"**
// Fonte: \< https://trends.google.com/trends/story/US_cu_QzMZM1EBAAALgM_en\>
Na Figura 28, há dois picos de interesse, ocorridos em 6 de setembro e 15 de novembro. No começo de setembro, a morte de Aylan Kurdi chamou a atenção do mundo. Em 15 de novembro, o interesse foi despertado pelas consequências do atentado assumido pelo Estado Islâmico (grupo extremista que atua em regiões do Iraque e da Síria) em Paris, entre as 21 horas e 16 minutos do dia 13 de novembro e a primeira hora da madrugada do dia 14 de novembro. Nesse atentado, morreram 129 pessoas e 350 ficaram feridas. Os ataques ocorreram de forma coordenada, em seis pontos diferentes da capital francesa: quatro restaurantes, a casa de espetáculos Bataclan (onde a tragédia foi maior) e as imediações de um estádio de futebol.
O atentado em Paris complicou o desafio político mais sensível da Europa nos últimos tempos: a acolhida de refugiados. Um passaporte sírio encontrado perto do corpo de um dos extremistas morto no atentado reforçou a rejeição de parte dos europeus pelos refugiados. A imprensa destacou esse aspecto do fato e, de novo, o tema voltou a ser destaque na internet.
Esses dados merecem atenção porque revelam comportamentos característicos da sociedade em rede (CASTELLS, 2015) e a forma de atuação de indivíduos e grupos na sociedade nesse começo de século XXI. Mais que isso, "medem" o poder da comunicação (CASTELLS, 2015) na sociedade em rede.
Estamos tratando de objetos interligados que só podem ser compreendidos na sua relação: a guerra, a crise de refugiados, a morte, a fotografia, a internet, as redes sociais, a mídia tradicional, as artes, o século XXI e seu contexto social, político, econômico, cultural e tecnológico, bem como os indivíduos, os grupos, os movimentos sociais, a comunicação. Daí por que é importante não olhar separadamente para esses objetos, mas procurar as suas conexões: por que há refugiados? Por que a foto de Aylan Kurdi alcançou tanto destaque? Como as artes e os artistas participaram desse acontecimento? A internet desempenha que papel nesse contexto? E a mídia tradicional? Quem são e como se relacionam indivíduos e grupos na sociedade em rede? Quais são e como se organizam os movimentos sociais na era digital? Que poder realmente tem a comunicação nesse momento histórico?
Certamente, essas questões compõem um quadro complexo cuja apreensão é tarefa que extrapola os objetivos estabelecidos para este trabalho. Portanto, o que se pretende a seguir é compreender alguns desses objetos em relação uns com os outros, destacando aqueles mais relacionados à comunicação, sem que a ordem em que aparecem assuma qualquer sentido valorativo.
== A internet
> *\[\...\] é o tecido de comunicação de nossas vidas, para o trabalho, para a conexão pessoal, para a formação de redes sociais, para informação, para diversão, para serviços públicos, para a política e até para a religião.*
(CASTELLS, 2015, p. 111)
Ao contrário do que se pode pensar, a internet não é uma tecnologia nova: existe desde 1969. Mas foi só a partir dos anos 1990 que seu uso se popularizou e recentemente esse uso foi impulsionado pela difusão de novas gerações de comunicação sem fio, sobretudo *smartphones*.
Segundo Castells (2015, p. 37), a rápida difusão da internet a partir de meados dos anos 1990 "resultou da interação entre o novo paradigma tecnológico, centrado nas tecnologias da informação e comunicação, e algumas outras grandes mudanças socioculturais. Uma primeira dimensão dessa mudança é a que passou a ser classificada como a ascensão da sociedade Eu-centrada \[\...\]".
Por sociedade Eu-centrada -- ou individuação --, o autor compreende o declínio das formas tradicionais de comunidade em termos de espaço, trabalho, família etc. e a construção de relações sociais que originaram uma forma de comunidade fundada em interesses, valores e projetos individuais. Esse processo é baseado na transformação do espaço (o surgimento das grandes cidades), do tempo (a compressão do tempo), do trabalho (a ascensão dos empreendimentos em rede), da cultura (a mudança da comunicação de massa baseada em mídia de massa para a intercomunicação individual baseada na internet), na crise da família patriarcal e na globalização. Esse conjunto de mudanças inclui, ainda, o desenvolvimento tecnológico: as tecnologias de rede são o suporte para essa nova estrutura social e para essa nova cultura.
De início, a internet disponibilizava conteúdos em páginas que quase não interagiam com os internautas: eles acessavam, liam e viam o que era de interesse e, no máximo, se manifestavam via e-mail. Esse estágio foi logo substituído pela chamada Web 2.0, mais aberta à colaboração dos usuários, que se tornaram protagonistas de compartilhamento de conteúdos. Foi então que surgiram serviços de relacionamentos sociais, páginas de vídeos, wikis, blogs e outros serviços com um traço em comum: a participação efetiva do usuário nos dois sentidos do tráfego de informação. Já adentramos a era da Web 3.0, focada em tecnologias que permitem personalizar a experiência do usuário e nos aproximarmos do mundo da inteligência artificial, onde a máquina passará a aprender com as ações do usuário.
Hoje, conforme Castells (2015),
> \[\...\] a atividade mais importante na internet ocorre através das redes sociais \[\...\] para todos os tipos de atividades, não só para relações de amizade ou bate-papo, mas para distribuição de marketing, e-commerce, educação, criatividade cultural, mídia e entretenimento, aplicativos de saúde e ativismo sociopolítico. (CASTELLS, 2015, p. 40)
Daí por que foi possível que artistas do mundo inteiro, em poucas horas, fizessem circular mais de cem ilustrações que reproduziam a imagem de Aylan Kurdi, num esforço claro de demonstrar sua indignação com a tragédia que abatia milhões de pessoas que fugiam de conflitos em seu país de origem e, ao mesmo tempo, de não deixar que o mundo se esquecesse muito rapidamente da imagem que se tornou símbolo dessa tragédia.
== Movimentos sociais na sociedade em rede
> *O legado dos movimentos sociais em rede terá sido afirmar a possibilidade de reaprender a conviver. Na verdadeira democracia.*
(CASTELLS, 2013, p. 177)
A *hashtag* =kiyiyavuraninsanlik parece ter nascido na Turquia, considerando o título que recebeu, e certamente não foi por acaso, uma vez que Aylan foi encontrado morto naquele país. Nem por isso constitui-se como movimento local, apenas. Em poucas horas, tornou-se um movimento global, graças à conexão que hoje permite a relação entre indivíduos e grupos que não se conhecem, falam diferentes línguas, usam o inglês como língua franca na rede, mas se inspiram uns nos outros e se comprometem com um debate global na internet. Esses indivíduos e grupos demonstram consciência sobre problemas humanitários e exibem cultura cosmopolita.
Em seu livro *Redes de indignação e esperança -- Movimentos sociais na era da internet*, Castells (2013) analisa vários movimentos que eclodiram no mundo, como a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha, os movimentos Occupy nos Estados Unidos, Islândia, Tunísia e Egito. Embora em contextos diferentes, esses movimentos apresentaram características comuns que também estiveram presentes na *hashtag* =kiyiyavuraninsanlik. São elas: conexão e comunicação horizontais; ocupação do espaço público urbano; criação de tempo e de espaço próprios; ausência de lideranças e de programas; caráter ao mesmo tempo local e global. E tudo isso propiciado pelo modelo da internet.
Esses movimentos são espontâneos em sua origem, em geral desencadeados por uma faísca de indignação relacionada a um evento específico ou pela reprovação às ações dos governantes. Em todos os casos, mostra Castells (2013; 2015), se originaram de um "chamado" à ação, cuja origem é irrelevante, porque o que importa é a disseminação de uma mensagem que desafia o poder de autoridades políticas e da mídia.
Não é novo que indivíduos e grupos atendam a despersonificados "chamados". Já evocamos aqui a cruzada das crianças, relato do século XIII em que crianças de várias regiões da Europa, também atendendo a um "chamado", partem em direção a Jerusalém com o propósito de libertar a Terra Santa. Uma cruzada contemporânea, digital, parece ter sido empreendida por artistas que reproduziram a cena da morte de Aylan que chocou o mundo. A Figura 29 e a Figura 30 são exemplos da ação que a foto de Demir propôs tão logo foi publicada. São também parte do movimento artístico que nasceu nas redes sociais e que guardam muitos pontos em comum com os movimentos sociais de que Castells se ocupa.
// ![][57]
// []{=_Ref504841480 .anchor}**Figura 29 -- Aylan Kurdi em Mural na China**
// Fonte: \<http:https://www.scmp.com/news/world/middle-east/article/2061484/photo-dead-boy-beach-aylan-kurdi-boosted-donations-syrian\>
// ![][58]
// []{=_Ref504841489 .anchor}**Figura 30 -- Manifestantes Prestam Homenagem a Aylan em Marrocos**
// Fonte: \<http:https://www.express.co.uk/news/world/603682/beach-Aylan-Kurdi-Morocco-tribute-Syria-refugee-crisis-Turkey-David-Cameron-migrants\>
Em acordo com a lógica das redes de internet, esses movimentos são virais, não só pela rapidez da difusão da mensagem, mas também pelo efeito imitador, que resulta em movimentos brotando em toda parte. A escultura de areia da Figura 31 cumpre muito bem o papel de algo viral não só porque foi feita em menos de 3 dias, mas também por ter sido obra de um conhecido artista indiano, conectado, que se apressou a criar e a divulgar o resultado do seu trabalho, atendendo ao chamado das redes*.*
// ![][59]
// []{=_Ref504841773 .anchor}**Figura 31 -- Escultura de Areia na Praia de Puri, na Índia, Obra do Artista Sudarsan Pattnaik**
// Fonte: \<http:https://www.mirror.co.uk/news/world-news/drowned-syrian-boy-aylan-kurdi-6385962\>
Os movimentos sociais em rede são autorreflexivos, não são violentos, pelo menos inicialmente, mas frequentemente se envolvem em desobediência civil. Visam modificar os valores da sociedade e são políticos em um sentido fundamental. "O que esses movimentos sociais em rede estão propondo em sua prática é a nova utopia no coração da cultura da sociedade em rede: a utopia da autonomia do sujeito em face das instituições da sociedade" (CASTELLS, 2015, p. 52).
Por fim, carregam as marcas de seu tempo e de seu espaço: são amplamente realizados por jovens adultos que lidam com tranquilidade com as tecnologias digitais e não poderiam existir sem a internet e as redes horizontais de comunicação.
== O poder na sociedade em rede
> *Envolvendo-se na produção cultural da mídia de massa e desenvolvendo redes autônomas de comunicação horizontal, os cidadãos da Era da Informação se tornarão capazes de inventar novos programas para suas vidas com os materiais de seu sofrimento, medos, sonhos e* esperanças.
(CASTELLS, 2015, p. 485)
O controle da comunicação e da informação confere poder. Assim, o poder depende do controle da comunicação tanto quanto o contrapoder depende do rompimento desse controle. Nessa afirmação se resume a teoria de Castells (2015) de que o processo de formação e exercício das relações de poder se transforma no contexto organizacional e tecnológico que se origina com o surgimento de redes digitais globais de comunicação.
Isto é: nos últimos 40 anos, a autonomia dos sujeitos comunicantes em relação às corporações de comunicação -- os usuários passaram a ser emissores e receptores de mensagens -- resultou em um deslocamento do poder político, antes detido pelo Estado (poder macro) e por organizações da sociedade (poder micro), em benefício dos indivíduos que hoje se comunicam de maneira muito mais livre, seja na produção, seja na transmissão de mensagens, não sem dificuldade e não sem censura, mas com um grau muito maior de liberdade se consideradas mensagens submetidas ao controle da mídia tradicional e de censores de governo, que legitimam as formas existentes de relações de poder.
Isso porque, para o autor (2015, p. 21), "\[\...\] a forma mais fundamental de poder está na capacidade de moldar a mente humana. A maneira como sentimos e pensamos determina a maneira como agimos, tanto individual quanto coletivamente". Portanto, compreender a forma como produzimos e compartilhamos símbolos na nossa era pode significar compreender as relações de poder na sociedade em rede.
Até recentemente, a comunicação de massa se caracterizava por uma relação de um para muitos, ou seja, um sistema vertical, unidirecional e centralizado no emissor -- a televisão é o melhor exemplo desse modelo e continua a ser o principal meio de comunicação de massa nesse começo de século (CASTELLS, 2015). Nesse modelo, as possibilidades de ação (e reação) do receptor são pequenas, apesar de já se terem expandido em consequência das TIC.
O advento da autocomunicação de massa transformou esse modelo em um sistema em que todos, potencialmente, são emissores e receptores, as redes de comunicação são horizontais e interativas e têm como base a internet e a comunicação sem fio. Definitivamente, esse modelo ampliou a possibilidade de ação dos usuários.
Se concordarmos com o autor que o poder depende da capacidade de produzir símbolos e moldar a mente humana -- mais até do que a subordinação de grupos por intimidação ou violência --, reconheceremos que, quanto maior for a autonomia dada aos usuários pelas tecnologias de comunicação, maiores serão as chances de que novos valores e novos interesses circulem e atinjam a mente pública.
O movimento veiculado via redes sociais -- *hashtag* =kiyiyavuraninsanlik --, analisado sob a perspectiva da teoria do poder da comunicação de Castells, é um exemplo de como os usuários das redes sociais e da comunicação sem fio exerceram um contrapoder diante das políticas da União Europeia para refugiados.
Em julho de 2014, a Anistia Internacional publicou um relatório -- *O custo humano da "Fortaleza Europa": violações de direitos humanos de migrantes e refugiados nas fronteiras europeias*[^60] -- em que denunciava o fechamento das fronteiras da União Europeia, numa atitude clara de violação de direitos humanos de migrantes e refugiados por meio de práticas de controle de fronteiras. Segundo o relatório, a União Europeia gastou quase dois bilhões de euros na proteção de suas fronteiras externas entre 2007 e 2013. Além disso, financiou países vizinhos, como Turquia, Marrocos e Líbia, na criação de zonas-tampão em volta da Europa, num esforço para parar migrantes e refugiados antes de estes chegarem às fronteiras europeias. Aqueles que, mesmo assim, chegavam à Europa, se arriscavam a ser devolvidos imediatamente aos seus países de origem, o que constitui prática ilegal porque nega às pessoas o direito de requerer asilo.
Diante dos obstáculos cada vez maiores para chegar à Europa por terra, refugiados e migrantes se lançam por vias marítimas e todos os anos milhares de pessoas morrem tentando chegar à costa europeia.
Foi assim que Aylan Kurdi entrou para as estatísticas de refugiados mortos durante a tentativa de chegar à Europa, fugindo da guerra na Síria. E teria permanecido apenas como mais um, sem nome ou identificação, como certamente a maioria dos que têm o mesmo destino, se dependesse de estudos, relatórios, declarações, protocolos, assembleias, conselhos, organizações. Aylan continuaria no anonimato não fossem as fotografias de Demir e suas reproduções, as capas dos jornais, a internet, as redes sociais, mas, sobretudo, os usuários que se sentiram indignados e, num exercício de liberdade, se manifestaram, desafiando autoridades e fazendo ver ao mundo o que estava se passando.
Questionada sobre problemas éticos que envolveriam a distribuição de fotografia tão chocante, a fotógrafa informou, em entrevista à imprensa:
> Naquele momento, quando vi Aylan Kurdi, eu fiquei petrificada \[\...\]. A única coisa que eu poderia fazer era tornar seu clamor ouvido. \[\...\] eu pensei que poderia fazer isso ao acionar minha câmera e fazer sua foto \[\...\]. Eu testemunhei muitos incidentes com imigrantes nesta região, suas mortes, seus dramas. Espero que isso agora mude. Fiquei chocada, me senti mal por eles. A melhor coisa a fazer era tornar sua tragédia conhecida.[^61]
Revoltados com o descaso das autoridades diante da situação dramática de migrantes e refugiados, os artistas reproduziram a fotografia de Demir, destacando aspectos da política da União Europeia para refugiados ou o constrangimento imposto às Nações Unidas diante de uma situação que já se prolongava, sem que medidas emergenciais de proteção aos direitos dos migrantes e refugiados fossem tomadas.
// ![][60]
// []{=_Toc507740917 .anchor}**Figura 32 -- Rafat Alkhateeb -- o cartunista jordaniano**
// Fonte: \<https://www.counterpunch.org/2015/09/04/regime-change-refugees-on-the-shores-of-europe/\>
// ![][66]
// []{=_Toc507740918 .anchor}**Figura 33 -- Nações Unidas**
// Fonte: \<http:https://www.independent.com.mt/articles/2015-09-04/world-news/21-cartoons-about-dead-child-on-beach-who-is-haunting-and-frustrating-the-world-6736141577\>
Em 24 horas, o mundo inteiro conhecia a tragédia de Aylan Kurdi. A mídia tradicional e, principalmente, a internet fizeram circular o acontecimento, e as autoridades políticas responderam às críticas.
> "Nenhuma pessoa decente, sobretudo se é pai, pode deixar de se mexer com essas imagens", diz o ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros, José Manuel García-Margallo. "No que não podemos cair", acrescenta, parafraseando o Papa, "é na globalização da indiferença". Margallo, porém, não é um espectador, mas um líder político e, como tal, reconhece que a dureza do drama o obriga a "procurar as soluções mais imediatas e contundentes possível".[^62]
>
> A socialista Elena Valenciano, presidente da subcomissão de direitos humanos do Parlamento Europeu, foi mais enfática. "É a imagem do fracasso da Europa, do mundo desenvolvido", concluiu. "A imagem é a ponta do iceberg e, à medida que se aproxima da Europa, tomamos consciência do problema, mas na Turquia ou na Líbia enfrentam essa situação há anos", disse Valenciano, para quem a Europa não responde ao "primeiro êxodo do século XXI".[^63] [^64]
As imagens de Aylan são a síntese do drama dos refugiados e isso só foi possível porque o modelo de comunicação dos tempos atuais assim o permite. Somos uma sociedade que depende fundamentalmente da comunicação mediada para interagir com ambientes sociais e naturais. E é essa comunicação que veicula as mensagens que vão moldar a mente dos indivíduos. Nesse sentido, afirma Castells (2015, p. 2): "Se a batalha fundamental pela definição das normas da sociedade e a aplicação dessas normas no cotidiano gira em torno da formação da mente humana, a comunicação é essencial para essa batalha."
Mas não a comunicação de massa tradicional. O autor está se referindo a um universo caracterizado pela prevalência das redes horizontais de comunicação, de onde emergem múltiplas mensagens e múltiplos sentidos, construídos por atores que podem concordar sobre o sentido e discordar sobre a construção desse sentido, mas que são independentes em relação à estratégia de estabelecimento de agendas institucionais.
Já nos aproximando do momento de concluir este estudo, parece oportuno contrapor as opiniões dos autores citados no capítulo 3 -- Slovic et al. (2017), Bozdağ e Smets (2017) e Pusseti (2017) -- à visão já tão consolidada do sociólogo espanhol Manuel Castells sobre a sociedade em rede. A crescente desconfiança no poder da imagem, bem como na nossa capacidade de responder pelos graves problemas humanitários da atualidade, observada na sequência dos autores estudados no capítulo anterior, certamente não se harmoniza com a teoria do poder da comunicação desenvolvida por Castells e, neste capítulo, sintetizada. E é Castells, em entrevista ao jornal *Correio da Bahia*, em 11 de maio de 2015, que vai indicar o porquê dessa desarmonia, ao mesmo tempo em que aponta possibilidades de um mundo mais justo:
> O essencial é que agora todo o planeta está conectado. Existem sete bilhões de números de telefones celulares no mundo e 50% da população adulta do planeta tem um smartphone. O percentual será de 75% em 2020. Consequentemente, a rede é uma realidade generalizada para a vida cotidiana, as empresas, o trabalho, a cultura, a política e os meios de comunicação. Entramos plenamente numa sociedade digital (não o futuro, mas o presente) e teremos que reexaminar tudo o que sabíamos sobre a sociedade industrial, porque estamos em outro contexto.[^65]
É possível que ainda estejamos muito voltados ao passado recente para enxergar no atual contexto características e tendências capazes de produzir melhores resultados para a humanidade. Temas como direitos humanos, meio ambiente, igualdade entre minorias têm ganhado mais espaço nos últimos tempos. Segundo Castells, ainda nessa entrevista, "\[\...\] a comunicação em rede oferece enormes possibilidade de incrementar a participação cidadã \[\...\]". É certo que isso não garante o despontar de um mundo mais justo, mais em paz, assim como a tecnologia não trará essa transformação por si só. Estão dadas, contudo, as ferramentas para a mudança.