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= A guerra que matou Aylan Kurdi
Em 2011, um conflito em Daraa, no sul da Síria, teve início depois que jovens picharam frases com críticas ao governo. A prisão dessas crianças levou centenas de pessoas às ruas da cidade para protestar contra as restrições à liberdade promovidas pelo governo do ditador Bashar Al-Assad.
Esse episódio é um dos que constituíram a Primavera Árabe, movimento que aconteceu em países do Oriente Médio e do norte da África, em que pessoas -- principalmente jovens -- tomaram as ruas, pedindo liberdade de expressão, democracia e justiça social. Essas revoltas resultaram em queda de ditaduras longevas, casos do Egito, da Tunísia e da Líbia, mas não na pacificação dessas nações.
Com exceção da Tunísia, onde ocorreram eleições diretas, foi aprovada a constituição mais progressista do mundo árabe e se elegeu um novo governo, nos demais países, o clima de tensão intensificou as disputas de poder entre milícias e favoreceu a expansão de grupos extremistas e de governos ainda mais autoritários.
Na Síria, grupos se formaram a fim de combater as forças governamentais e tomar o controle de cidades e vilas.
A considerar o que a mídia transmite seguidamente sobre o conflito, todos os grupos envolvidos -- governos e rebeldes -- cometeram crimes de guerra, como assassinato, tortura, estupro e desaparecimentos. Mas o fato é que a população síria vem sofrendo com bloqueios que impedem fluxo de alimentos e serviços de saúde, situação extrema que já dura sete anos e é considerada pela Organização das Nações Unidas a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial:
> Cerca de 13,5 milhões de pessoas no país precisam receber ajuda humanitária, sendo que 6,3 milhões são deslocados internos. O Acnur lembra que milhares de sírios fizeram viagens arriscadas por terra e mar em busca de segurança. Segundo a agência, quase 3 milhões de crianças sírias cresceram sem saber como é viver num local sem conflito, já que, quando nasceram, o país já estava em guerra."[^41]
Um conflito dessa proporção envolve muitos atores, dentro e fora do continente. Rússia, Estados Unidos e Europa têm atuado no sentido de dar fim ao Estado Islâmico -- grupo terrorista originário do Iraque que proclamou seu califado em 2014 --, mas Estados Unidos e Europa querem a queda do governo de Bashar Al-Assad e apoiam os rebeldes, e a Rússia apoia Assad. Três grandes potências no Oriente Médio também colaboram com os rebeldes: Turquia, Arábia Saudita e Catar.
Bashar Al-Assad é sucessor de uma família que está no poder desde 1970. O regime no país era brutal com a população, de partido único e laico -- apesar de a família Assad ser xiita. Embora não apoiem o ditador, cristãos, xiitas e parte da elite sunita preferem Assad no poder diante da possibilidade de ter um país tomado pelos extremistas.
Quanto às alianças externas, Assad conta com o apoio do Irã e do grupo libanês Hezbollah. Juntos, formam um "eixo xiita" -- ou seja, seguem essa interpretação da religião islâmica -- no Oriente Médio. O grupo se opõe a Israel e disputa a hegemonia no Oriente Médio com as monarquias sunitas, lideradas pela Arábia Saudita.
Uma das primeiras forças internas a se rebelar contra o governo sírio foi o grupo sunita, considerado rebelde moderado por não se constituir de adeptos do radicalismo islâmico. Mas há outros grupos que querem derrubar Assad. A Frente Al-Nusra, braço sírio da rede extremista Al Qaeda, foi uma das organizações que mais conquistaram terreno; a outra é o Estado Islâmico, que chegou a ocupar metade do território sírio. Há, ainda, os curdos, etnia de milhões de pessoas espalhadas por diversos países. Uma milícia formada para defender as regiões habitadas pelos curdos no norte da Síria se fortaleceu desde o início do conflito e se opõe aos rebeldes moderados e ao Estado Islâmico.[^42]
Até o final de 2017, mais de 340 mil pessoas, das quais cerca de 100 mil eram civis, morreram desde o começo da guerra na Síria, segundo balanço divulgado pelo Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH).[^43] Além disso, mais da metade da população abandonou sua casa.
Durante três anos, Aylan Kurdi sobreviveu às bombas e à guerra, mas morreu afogado no Mediterrâneo, antes de conseguir alcançar a Europa. Vestido com uma camisetinha vermelha e um shortinho azul, ocupa o centro semântico da fotografia que se transformou no símbolo do drama dos refugiados, mas já sem vida. O bote que a família usou para fugir do país em chamas partiu na noite de terça para quarta-feira -- 1º-2 de setembro de 2015 -- da península de Bodrum, no sudoeste da Turquia, com destino à ilha de Kos, na Grécia, mas jamais chegou ao seu destino. Junto com Aylan morreram seu irmão, Galib, de 5 anos, sua mãe, Rihan Kurdi, de 35 anos, e um jovem de 18 anos. Só duas pessoas foram resgatadas pela guarda costeira turca, uma delas o pai de Aylan, Abdulá Kurdi, que retornou à cidade natal -- Kobane, no norte da Síria -- com os corpos da mulher e dos filhos, para o funeral, ocorrido no dia 4 de setembro.
== "Deixai toda esperança, ó vós que entrais"
[^44]
> O Mediterrâneo é hoje túmulo de milhares de corpos sem nome, genericamente designados de "refugiados" ou ainda de "clandestinos", a representar um continente em movimento, independentemente do real lugar de origem. \[\...\] Nos últimos seis anos, mais de 40 mil pessoas perderam a vida tentando chegar às costas europeias: destas, mais de metade foram deixadas no fundo do mar. \[\...\] O Mediterrâneo, que condensa, no seu significado etimológico, a ideia de mediação e de contato, é hoje uma fronteira de água, carne e política, assim como de percursos migratórios inéditos, traçados pelo desespero das condições dos países de origem e pela violência da Fortaleza Europa. (PUSSETTI, 2017, p. 264)
O inferno, no imaginário popular, é muito produtivo. Até que as ideias antropocêntricas desbancassem, inicialmente na Europa, a concepção teocêntrica da vida, a morte era temida, entre outras razões, por significar a porta de entrada para o inferno, sendo este o castigo máximo aplicado àqueles que descumpriram, na Terra, os mandamentos de Deus.
Quase sempre associado às profundezas e ao fogo, o inferno, para os sumérios, era um vasto abismo. Para os gregos, um precipício tão profundo que uma alma poderia cair por mais de um ano sem que atingisse o fim. Na Bíblia, o *Livro de Jó*, no *Antigo Testamento*, descreve o Sheol (túmulo, cova ou abismo, em hebraico) -- lugar de purificação espiritual ou punição para os mortos --, e Jesus Cristo avisa seus discípulos sobre a Geena de Fogo -- depósito de lixo além dos muros de Jerusalém em que as chamas são mantidas sempre acesas com enxofre.
A publicação, em 1308, da *Divina Comédia*, de Dante Alighieri, deu forma às imagens que habitavam a imaginação medieval dos três reinos do além-túmulo -- inferno, purgatório e paraíso. Escrita em versos, a obra tem início justamente com o inferno, lugar de sofrimento eterno, antro de pecado e punições -- daí o surgimento do adjetivo "dantesco" como qualificativo daquilo que traz, evoca ou é marcado por horrores, sofrimentos, desespero, pavor. A mensagem deixada nos portões do inferno -- "Deixai toda esperança, ó vos que entrais" -- reflete a certeza de que, a partir dali, ter esperança na vida eterna como prêmio por ter enfrentado a dureza da vida na Terra -- valor de importância capital para o medievo -- já não faz qualquer sentido.
Para os *boat people*[^45] atuais, o Mediterrâneo é ambíguo, já que representa esperança e desespero, possibilidade de sobrevivência e de morte iminente, caminho possível para a "salvação" e trajeto que conduz à morte. Mais que isso, para requerentes de asilo, refugiados, migrantes clandestinos, enfim, para os protagonistas de diásporas contemporâneas, o Mediterrâneo é o inferno -- a grande poça herdada do dilúvio bíblico e que não nos deixa esquecer que o inferno é o destino dos pecadores.[^46] É nas suas profundezas que se encontram milhares de corpos de pessoas que, como Aylan Kurdi, saíram de seu país de origem para fugir de guerras, perseguições, violência; enfrentaram todos os perigos do mar; e morreram anonimamente, sem alcançar seu objetivo. Desconsideraram o aviso "Deixai toda esperança, ó vos que entrais" e encontraram a morte.
Não é fenômeno novo na história da humanidade a movimentação de pessoas através de fronteiras, muito embora, em tempos primitivos, não houvesse delimitações de Estados e nações, tal como hoje. O nomadismo caracterizou o modo de vida das comunidades primitivas, que não tinham habitação fixa e se constituíam de pessoas que viviam da caça, da pesca e da coleta de alimentos. Bastava surgir a necessidade para elas partirem em busca de melhores condições de vida. Essa forma de organização, regulada por hábitos particulares de sobrevivência, só foi abandonada há cerca de 10 mil anos, quando o ser humano aprendeu a plantar. A agricultura alterou profundamente a forma de vida dos povos, uma vez que não era mais uma questão de sobrevivência ir em busca de outros lugares quando os recursos de uma área acabavam.
Mas a mobilidade espacial de pessoas nunca deixou de existir.
A migração marca toda a história da humanidade, determinada pelas mais diversas razões e implicações sociais, políticas e econômicas ao longo do tempo.
Entre os séculos XIV e XV, ocorreram alguns dos principais fluxos migratórios, derivados do contexto colonialista da Europa: de um lado, europeus deixavam [voluntariamente]{.underline} sua terra natal, movidos pelo desejo de expansão e exploração territorial, em busca de matérias-primas e novos mercados consumidores para seus produtos; em sentido contrário, africanos migravam [involuntariamente]{.underline} para o continente americano, o Novo Mundo colonizado por nações europeias, como mão de obra escrava. Todos enfrentavam o mar.
Após a Revolução Industrial, movimentos migratórios motivados pelo desemprego em massa foram responsáveis por deslocamentos internacionais, sobretudo, em direção aos Estados Unidos e entre países europeus. Mas foi com a Segunda Guerra Mundial que essa movimentação se intensificou, dando origem a um número crescente de refugiados, em razão de perseguições que muitos grupos sofreram à época. O mar ainda era a esperança de muitos. O desenvolvimento tecnológico, porém, deu asas a alguns.
> A porcentagem de migrantes internacionais -- pessoas que vivem em um país diferente do que nasceram -- se mantém relativamente constante nos últimos anos, em cerca de 3% da população mundial. As estatísticas da ONU revelam que, em 2015, o número de migrantes internacionais chegou a 244 milhões de pessoas, dos quais 20 milhões eram refugiados. Desses migrantes internacionais, 2/3 encontram-se na Ásia e Europa, e quase metade dos migrantes internacionais são originários da Ásia. Grande parte dessas migrações ocorrem por motivos econômicos, mas [os conflitos atuais], especialmente no [Oriente Médio], colaboram para o aumento no número de pedidos de refúgio e [asilo].[^47]
Migrar é, portanto, uma ação humana que pode ou não ser empreendida como resposta à vontade do indivíduo, à sua liberdade de escolher onde quer viver. É importante destacar esse aspecto porque dele derivam, em termos jurídicos, os conceitos de imigrantes e refugiados, que não são sinônimos, mas tampouco têm fronteiras semânticas suficientemente claras, assunto discutido na seção a seguir.
== Aylan Kurdi -- um sujeito pós-moderno
No final do século XX, Stuart Hall[^48] (2001, p. 12) observou que "o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas". Esse fenômeno, segundo o autor, surgiu como resultado de mudanças estruturais e institucionais e trouxe como consequência identidades culturais provisórias, variáveis e problemáticas, ou seja, produziu o sujeito pós-moderno, que é aquele que assume identidades diferentes em diferentes momentos.
> \[\...\] à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar -- ao menos temporariamente. (HALL, 2001, p. 13)
Aylan Kurdi era sírio, curdo, muçulmano, sunita. Os quatro termos já seriam suficientes para tornar complexa a tarefa de delimitar sua identidade. De fato, é preciso considerar [suas identidades]{.underline}. Como sírio, temos a informação de que ele nasceu na Síria, país do Oriente Médio. Porém, como curdo, Aylan pertencia a um grupo étnico que não tem país próprio, por isso está espalhado em regiões vizinhas de Iraque, Irã, Turquia, Síria e parte da extinta União Soviética. A maioria dos curdos é bilíngue ou poliglota e fala as línguas dos povos vizinhos, como o árabe, o turco e o persa, como segunda língua -- Aylan certamente já falava aos 3 anos de idade, provavelmente a língua curda como primeira língua e o árabe sírio ou o árabe iraniano como segunda língua. Como membro de família muçulmana, Aylan nasceu destinado a ser um seguidor do islamismo -- que não consiste apenas em uma religião, mas estrutura-se em uma proposta de civilização que articula princípios religiosos e políticos --, assim como a maioria dos curdos hoje em dia, e provavelmente sunita, maior ramo do Islã (cerca de 90% do total de muçulmanos são sunitas).[^49] Qualquer imprecisão nessa tentativa de identificar o indivíduo Aylan Kurdi seria suficiente para deslocá-lo desastrosamente no quebra-cabeça da multiplicidade de suas identidades. Seria problemático confundir um muçulmano sunita com um muçulmano xiita, por exemplo, já que algumas doutrinas extremistas sunitas cultivam o ódio aos xiitas.
Aylan não teve tempo para tomar consciência de sua nacionalidade, origem étnica, religião e vertente muçulmana. E sua morte agregou às suas identidades de origem outra também de difícil delimitação: Aylan tornou-se o símbolo da crise atual de refugiados, mas não é simples nem seguro afirmar que ele fosse, de fato, um refugiado.
Segundo a Agência das Nações Unidas para Refugiados,
> De acordo com a Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados (de 1951), são refugiados as pessoas que se encontram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possa (ou não queira) voltar para casa. Posteriormente, definições mais amplas passaram a considerar como refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos.[^50]
O problema que o termo "refugiado" apresenta consiste no fato de que, aparentemente, seria simples classificar os migrantes nas categorias reconhecidas pelo direito internacional: imigrantes e refugiados. O critério de fundo dessa classificação é o aspecto volitivo presente -- ou ausente -- na decisão de deixar a nação de origem, isto é, o migrante decidiu livremente deixar seu país em busca de melhores condições de vida ou foi forçado a deixá-lo em razão de perseguição, guerra, violência e violação massiva dos direitos humanos?
Aylan não pode ser classificado como imigrante. Deixar a Síria não foi, com certeza, uma decisão pautada simplesmente na vontade de viver em outro país, o que envolve a busca de melhores condições de vida e a possibilidade de retorno ao país de origem a qualquer momento. Os Kurdi foram forçados a fugir de um país em guerra. A decisão de fugir não comporta o desejo, mas a urgência. Logo, deveriam ser classificados como refugiados. Porém, o *status* de refugiado depende do reconhecimento e da aceitação de pelo menos um governo. Há, então, uma etapa a ser cumprida antes de um migrante ser classificado como refugiado: é preciso requerer e obter asilo do país ao qual o indivíduo submeteu seu pedido. Sendo assim, "Os requerentes de asilo não são reconhecidos como refugiados, mas todo refugiado começa como um requerente de asilo".[^51] A família de Aylan cumpriu essa etapa, mas não obteve um sim como resposta ao pedido de asilo. Mesmo assim, os Kurdi fugiram da Síria, porém totalmente descobertos por qualquer tipo de apoio internacional -- suas identidades não comportavam o *status* de imigrantes nem de refugiados. A vulnerabilidade era total. A ilegalidade também. Eram indivíduos suspensos entre fronteiras, duplamente ausentes[^52] e, portanto, duplamente culpados.
Um sujeito pós-moderno -- certamente essa classificação se adapta bem a Aylan. Um herói trágico -- outra classificação adequada para esse personagem-símbolo. E o que há de seguro é que, enfim, não é relevante que do ponto de vista jurídico ele seja isso ou aquilo. Ele assumiu o papel de símbolo de uma gravíssima crise humanitária que envolve milhões de pessoas como ele, independentemente de qualquer rótulo que se desejasse atribuir-lhe, e suas imagens suscitaram em algumas pessoas um sentimento hoje muito discutido -- a empatia --, dado o suposto poder transformador de certas fotografias icônicas, conforme já discutido, mas também expuseram comportamentos que transitam do compadecimento à indiferença, como veremos a seguir. De perspectivas distintas e até discordantes, os autores que passaremos a citar são, porém, exemplos da inquietação causada não apenas pela crise atual de refugiados, mas também pelas imagens dessa crise, notadamente a imagem de Aylan Kurdi.
== Da crise migratória à empatia -- como a fotografia de Aylan inquieta a contemporaneidade
> Em *Exames de empatia* (2016), Leslie Jamison reflete:
>
> Empatia não é apenas lembrar-se de dizer *deve ser realmente difícil --* é imaginar como trazer a dificuldade à luz para que possa ser percebida. Empatia não é apenas escutar, é fazer as perguntas cujas respostas precisam ser escutadas. Empatia requer investigação tanto quanto imaginação. Empatia requer saber que você não sabe nada. Empatia significa reconhecer um horizonte de contexto que se estende perpetuamente além do que você pode ver \[\...\]. (JAMISON, 2016, p. 18)
Com Slovic et al. (2017), entendemos, do ponto de vista de teorias psicológicas, por que fotos icônicas, como a de Aylan, agitam nossas emoções e transformam nossas perspectivas sobre a vida e o mundo em face da incapacidade de estatísticas para transmitir o significado de atrocidades em massa e políticas de impacto.
Durante 5 anos, a mídia divulgou amplamente estatísticas sobre o número de mortos e refugiados produzidos pela guerra síria -- algumas aqui reproduzidas. Mas bastou uma fotografia icônica para que pessoas impassíveis diante de números se importassem e demonstrassem empatia com a causa. É verdade que essa empatia diminuiu rapidamente, mas mobilizou indivíduos e grupos em ações concretas:
> Esta fotografia trouxe a atenção necessária para a guerra da Síria e a situação dos seus refugiados, o que resultou em aumentos de curto prazo, mas importantes, na mudança de políticas de ajuda individual e de refugiados em muitos países (6). No entanto, a crise síria estava em curso havia mais de 4 anos antes da morte de Aylan. Durante esse período, fontes como o Observatório Sírio para os Direitos Humanos publicaram regularmente atualizações sobre o número crescente de mortes, estimado em 250.000 no momento da publicação da foto de Aylan. (SLOVIC et al., 2017, p. 640 -- tradução nossa)[^53]
O estudo de Slovic et al. (2017) examinou dados de pesquisas no Google para avaliar o efeito da fotografia de Aylan Kurdi, publicada em 2 de setembro de 2015, sobre o interesse e a preocupação do público sobre a crise dos refugiados sírios. Um desses efeitos refere-se a doações em dinheiro para a Cruz Vermelha para um fundo especificamente designado para ajudar os refugiados sírios. Segundo Slovic et al. (2017), essa campanha começou em 4 de agosto de 2015 e continuou até 30 de novembro de 2015. As doações aumentaram significativamente após a publicação da foto de Aylan. O número médio de doações diárias durante a semana após a publicação da foto foi mais de 100 vezes superior ao arrecadado na semana anterior. Esse efeito foi sustentado até 5 semanas depois do surgimento da foto. Da mesma forma, a quantidade média doada diariamente durante a semana após a publicação da foto foi 55 vezes maior em comparação com a semana anterior (Figura 24).
// ![][48]
// ![][49]
// []{=_Ref496535363 .anchor}**Figura 24 -- Campanha da Cruz Vermelha para Refugiados Sírios**
Se, por um lado, esses dados ilustram o icônico efeito da foto, por outro, mostram que essa forma de empatia rapidamente arrefeceu e as doações diminuíram. Os autores descobriram que esse "desvanecimento da compaixão" pode começar quando um incidente envolvendo uma única pessoa se expande para duas pessoas. Em um estudo,[^54] os participantes foram convidados a fazer doações e a relatar como se sentiram sobre doar para uma única criança carente ou duas, ambas identificadas com fotografia, nome e idade. Sentimentos positivos sobre doar diminuíram quando o tamanho do grupo era de dois, e o declínio no sentimento foi preditivo de níveis mais baixos de doação. Daí a conclusão de que, se começamos a perder sentimento e resposta diante de duas pessoas, não é de admirar que experimentemos "entorpecimento psíquico" quando os números alcançam os milhares. Segundo os autores, pode ser natural e relativamente fácil simpatizar e sentir compaixão com um único indivíduo identificado, mas é difícil "expandir" essa emoção quando precisamos considerar mais de um indivíduo. Se alguém se sentir fortemente mal sobre uma pessoa em perigo, a aparência de um segundo indivíduo carente não levará ao dobro do nível de emoção.
Há, portanto, um foco maior de atenção e mais fortes sentimentos sobre indivíduos do que sobre grupos. Essa tendência, conforme os autores, são falhas na "aritmética de compaixão". A forte reação à imagem de Aylan, juntamente com a indiferença em relação às estatísticas de milhares de vidas perdidas na Síria, ilustra essa problemática aritmética, que, no entanto, não é suficiente para diminuir o peso da empatia, pois esta cria forte motivação para agir. As doações à Cruz Vermelha para o fundo dos refugiados sírios é um exemplo da importância da empatia, sem a qual provavelmente teriam sido pequenas. Ainda que transitória, dificilmente essa campanha poderia ser considerada inócua ou sem importância. Mas é preciso destacar, a esse propósito, que aqui a discussão ainda se limita ao suposto poder transformador daquela fotografia, sobretudo, para despertar empatia. Veremos que a empatia, a despeito de sua enorme relevância no curto prazo, não altera o entendimento social do drama dos refugiados nem no médio nem no longo prazo.
Nessa linha de pesquisa a partir de dados colhidos no Google e em redes sociais, o estudo de Bozdağe e Smets (2017) aponta para conclusão que diverge do estudo de Slovic et al. (2017): as fotografias de Aylan Kurdi não demonstraram real poder transformador da representação que alguns países têm dos refugiados e imigrantes, apesar do alcance que tiveram nas redes sociais.
> As imagens, feitas e lançadas em 2 de setembro, 2015, produziram manchetes globais, circulando massivamente em plataformas de mídia. Segundo um relatório do Visual Social Media Lab, com base em um estudo realizado nos dias que se seguiram ao lançamento das fotografias, as imagens circularam para as telas de quase 20 milhões de pessoas ao redor do mundo em 12 horas, atingindo mais de 30 mil tweets (VIS; GORIUNOVA, 2015, p. 10). As análises revelam que as imagens geraram aumento maciço de tweets sobre migração e refugiados, espalhando-se pelo globo a partir do Oriente Médio (D\'ORAZIO, 2015). Com base nos dados de pesquisa do Google, Rodgers (2015) demonstra que, à medida que as imagens se tornaram virais, atraíram o interesse popular para o tema da imigração e dos refugiados, levando a uma agenda de mudança. (BOZDAĞ; SMETS, 2017, p. 4047)[^55]
Bozdağ e Smets (2017) observaram que, embora as fotos de Aylan tenham gerado grande debate em torno da crise dos refugiados, há significados subjacentes e contraditórios para "refugiados", observáveis em manifestações de internautas no Twitter que revelam diferentes representações que grupos sociais diversos têm dos refugiados. O enquadramento de padrões, tendências e estereótipos relativos a refugiados nos locais pesquisados (Turquia e Flandres, na Bélgica)[^56] tende a ser negativo, pois eles são vistos como ameaça ou como vítimas e, mais raramente, como possibilidades de enriquecimento econômico e cultural dos países que os recebem, o que produz discursos estereotipados e nem sempre divergentes daqueles dos meios de comunicação tradicionais. Assim, Bozdağ e Smets (2017) concluíram que
> \[\...\] apesar de suas qualidades icônicas, as imagens de Kurdi não causaram mudança de discursos sobre refugiados; em vez disso, foram incorporados em discursos preexistentes. O estudo também expõe contextos nacionais, sociais e políticos que desmistificam ainda mais o impacto global de imagens icônicas. (BOZDAĞ; SMETS, 2017, p. 4048)[^57]
De fato, a realidade significa algo diferente para cada um. Se as pessoas são permeáveis à dor de outras e movidas pela empatia ou pela compaixão[^58] agem em favor de quem sofre, como foi o caso quando da campanha da Cruz Vermelha para refugiados sírios, o mesmo não se pode dizer de tomadores de decisão, pautados por outros estímulos.
Pusseti (2017) relata que, no dia 3 de outubro de 2013, uma tragédia no Mediterrâneo, ao largo da costa da ilha italiana de Lampedusa, vitimou mais de 400 pessoas, entre eritreus e somalis:
> *A fila interminável de cadáveres alinhados na praia tornou-se uma imagem viral, gerando comoção coletiva*. O Primeiro Ministro Italiano Enrico Letta decidiu honrar as vítimas com pomposos funerais de Estado e concedeu, aos defuntos, a glória da cidadania italiana honorária, segundo o *ius soli post mortem*. Os sobreviventes tiveram, porém, outro destino: foram recolhidos em campos de acolhimento, e, logo depois, acusados de imigração ilegal, crime que pode ser punido pelo Estado italiano com a detenção de até cinco anos ou com uma multa de até 10 mil euros, seguida da expulsão imediata do país. Os que sobreviveram a esta terrível odisseia ficaram fechados nos campos, segregados em asilos, limbos entre prisão e hospital nos confins do estado-nação, à espera de serem expulsos do país. A lei italiana concedeu direitos aos corpos, mas não aos sujeitos destes corpos. A extrema condição de vida nua, a morte, foi, neste caso paradoxal, caraterística indispensável para a obtenção dos direitos de cidadania. (PUSSETI, 2017, p. 266 -- grifos nossos)
O paradoxo parece ser a constante nas histórias pessoais e coletivas de pessoas indistintamente chamadas de refugiados. E nesse sentido, compreende-se a visão de Pusseti (2017, 264) quando relata que os resultados das pesquisas etnográficas que ela vem desenvolvendo há cerca de dez anos na área de antropologia médica apontam para o fato de que refugiados são hoje protagonistas do *marketing* internacional do sofrimento. As imagens insistentemente publicadas na imprensa oferecem "detalhes escabrosos" dos corpos dos náufragos "ao voyeurismo voraz do público". No entanto, "ninguém reconhece responsabilidades face às diásporas da contemporaneidade". Nos bastidores, os sobreviventes insistem nos pedidos de asilo e, segundo a pesquisadora portuguesa, "só os que podem demonstrar serem traumatizados conseguem o direito de asilo. O acesso ao asilo político depende da demonstração do estado de 'vítima' por meio de uma reevocação performativa das memórias da violência e da tortura" (PUSSETI, 2017, p. 269).
Pusseti (2017) reconhece um poder da fotografia e das narrativas imagéticas contemporâneas do sofrimento:
> As calamidades, as guerras, os corpos mortificados pelas feridas da história são submetidos a processos de midiatização e híper-visibilidade. É a representação vívida da violência e das suas vítimas que impulsiona o espectador a se tornar ator, isto é, a tentar se aproximar e agir na vida do infeliz distante, criando uma relação -- complexa e ambígua -- entre piedade, curiosidade e indiferença. (PUSSETI, 2017, p. 269)
Seu ponto de vista, bem alinhado com as ideias de Sontag (presentes em seu famoso ensaio dos anos 1970, mais tarde revistas, conforme já discutido), é o da anestesia geral ou do "desvanecimento da compaixão", conforme Slovic et al. (2017). E sua retórica nos leva de volta à necessidade humana de "não morrer demais", já discutida no capítulo 2, porém revestida de certo sentido acusatório: "A impossibilidade de tolerar o confronto contínuo com a dor dos outros está na base da produção social da indiferença" (PUSSETI, 2017, p. 269). Como se vê, a autora não economiza na crítica:
> As narrativas imagéticas que nutrem o discurso das políticas públicas contemporâneas acabam, todavia, por esconder um aspeto importante: a representação estereotipada das vítimas afasta, das nossas consciências, as vozes das pessoas que reivindicam o direito a uma existência digna e que nos confrontam com a obrigação de esclarecer as responsabilidades, de desmascarar e acusar os carnífices. As causas políticas, económicas, históricas e sociais do sofrimento ficam confinadas às margens da imagem: esquecemos, assim, que somos cúmplices do sofrimento que observamos com incómodo ou comoção, e que os nossos privilégios se colocam no mesmo mapa geográfico da dor dos outros e que podem -- em maneiras que preferiríamos nem imaginar -- ser conectados a estes mesmos sofrimentos, sendo que a riqueza de alguns pode implicar a indigência dos outros. A solidariedade -- relação de poder assimétrica que se expressa por meio do sentimento da compaixão contemporânea, pietas humanitária de herança católica -- não só cria consentimento, desarma as críticas e não tem inimigos, mas, especialmente, afirma enfim Susan Sontag, tem o poder de nos desresponsabilizar, e de nos proclamar inocentes, além do que impotentes. (PUSSETI, 2017, p. 270)
A perspectiva de Pusseti (2017) -- tão claramente exposta na conclusão do seu artigo --, de forma intencional, se distancia do tema "empatia" -- esse substantivo sequer é usado ao longo do texto e o adjetivo "empática" aparece em ocorrência única -- e resvala para sentimentos humanos paradoxais, ao mesmo tempo de abalo/aceitação, estarrecimento/culpa, pena/paralisia, piedade/preconceito, comoção/rejeição, compaixão/conformismo etc. E se distancia ainda da perspectiva do poder transformador da imagem, dado que, do seu ponto de vista, essas imagens não servem para mais do que agravar o quadro caótico da crise dos refugiados.
De Slovic et al. (2017), passando por Bozdağ e Smets (2017), até Pusseti (2017), observa-se uma espécie de gradação decrescente da importância atribuída às imagens de Aylan Kurdi e, consequentemente, do poder transformador da fotografia icônica, e uma gradação crescente na descrença na capacidade humana de se responsabilizar pelos problemas que afetam "os outros".
Paul Slovic é professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. Cigdem Bozdağ é professora do Departamento de Novas Mídias da Universidade Kadir Has, em Istambul, na Turquia, e Kevin Smets é professor do Departamento de Estudos em Comunicação da Universidade Vrije de Bruxelas, na Bélgica. Chiara Pusseti é professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em Portugal. É possível que suas perspectivas sofram influência de suas localizações geopolíticas, assim como dos distintos campos de pesquisa. O que têm em comum é que todos responderam à inquietação que a divulgação dessas imagens causou.