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= \... e o imaginário.
== Considerações teóricas
No livro *Campos do imaginário*, Gilbert Durand (1996, p. 231) conceitua o imaginário como "museu, reserva de museu, do conjunto de todas as imagens passadas e possíveis produzidas pelo *homo sapiens sapiens*". Nessa mesma página, Durand afirma que o imaginário não é "uma disciplina, mas um tecido conjuntivo 'entre' as disciplinas, o reflexo -- ou a 'reflexão'? -- que acrescenta ao banal significante os significados, o apelo do sentido".
Portanto, à pergunta "o que é o imaginário", cabem essas duas "respostas" que consistem, respectivamente, na definição de imaginário aqui adotada e na justificativa para a inclusão do estudo do imaginário.
Diferentemente da opção feita no capítulo 1, apenas pela imagem visual, no conceito de Aumont (2011), nos estudos do imaginário, todas as imagens possíveis produzidas e a serem produzidas são evocadas. Isso equivale a dizer que as imagens mentais -- poéticas e oníricas -- têm sua ocorrência registrada como de suma importância.
Nesse contexto, o estudo da imagem (capítulo 1) levou ao estudo do imaginário porque a compreensão das imagens, do seu estatuto no Ocidente e dos seus sentidos e funções passa necessariamente pela consideração da importância de conhecer os estudos sobre o imaginário e, mais que isso, pelo que Durand (1996, p. 232) chamou de "gigantesca inversão desses valores imaginários abandonados" -- revolução que será detalhada a seguir.
Já destacamos quão rodeados de imagens vivemos na atualidade, e a fotografia de Aylan Kurdi é uma das incontáveis produções da mídia que se expõem aos nossos olhares. A presença constante e ininterrupta dessas imagens na vida atual faz-nos pensar -- conforme defende Durand (1996; 1998) -- em como ela se difundiu e trouxe consigo a emergência "de um imaginário rico na sua pluralidade e sistémico \[que\] 'injecta-se', a pouco e pouco, em todas as disciplinas" (DURAND, 1996, p. 232).
Mas não foi sempre que imagem e imaginário foram acionados como via de acesso ao conhecimento de algum fenômeno na "galáxia de Gutenberg", isto é, na sociedade em que se observava a supremacia da imprensa e da comunicação escrita. Durand (1998, p. 7) chama a atenção para o recorrente comportamento iconoclasta das sociedades ocidentais: "O Ocidente, isto é, a civilização que nos sustenta a partir do raciocínio socrático e seu subsequente batismo cristão, além de desejar ser considerado, e com muito orgulho, o único herdeiro de uma única Verdade, quase sempre desafiou as imagens".
Durante séculos -- a partir de Aristóteles (século IV a.C.) --, conhecer a "verdade" era sinônimo de adquirir conhecimento pela experiência dos fatos. Desde então,
> \[\...\] a imagem, que não pode ser reduzida a um argumento "verdadeiro" ou "falso" formal, passa a ser desvalorizada, incerta e ambígua, tornando-se impossível extrair pela sua percepção \[\...\] uma única proposta "verdadeira" ou "falsa" formal. A imaginação, portanto, \[\...\] é suspeita de ser "a amante do erro e da falsidade". A imagem pode se desenovelar dentro de uma descrição infinita e uma contemplação inesgotável. Incapaz de permanecer bloqueada no enunciado claro de um silogismo, ela propõe uma "realidade velada" enquanto a lógica aristotélica exige "claridade e diferença". (DURAND, 1998, p. 10 -- grifos do autor)
Mais tarde, a partir do século XVII, com o advento do método científico "para descobrir *a* verdade nas ciências" (conforme propôs Descartes, em 1637, no seu famoso *Discurso do método*), reforçou-se o abandono da imagem.
E no século XVIII, o empirismo factual se configurou como mais um obstáculo para um imaginário "cada vez mais confundido com o delírio, o fantasma do sonho e o irracional" (DURAND, 1998, p. 14).
O século XIX trouxe consigo o positivismo e a desvalorização completa do imaginário, do pensamento simbólico e da metáfora.
> Qualquer "imagem" que não seja simplesmente um clichê modesto de um fato passa a ser suspeita. Neste mesmo movimento as divagações dos "poetas" (que passarão a ser considerados os "malditos"), as alucinações e os delírios dos doentes mentais, as visões dos místicos e as obras de arte serão expulsas da terra firme da ciência. (DURAND, 1998, p. 15 -- grifos do autor)
Ocorre, porém, que a rejeição tenaz dos valores e poderes do imaginário em favor da razão -- ou todo esse reforço ao conhecimento tributário do cientificismo e do historicismo dos últimos três séculos -- redundou justamente em enorme avanço técnico-científico, responsável pelas descobertas que permitiram a constelação daquilo que ficou conhecido como a civilização da imagem.
Estamos falando da química dos suportes (Niépce, Carl Zeis, Jacque Daguerre, George Eastman) e da física das comunicações (Heinrich Hertz, Edouard Branly, Guglielmo Marconi, Aleksander Popov, Paul Baran), isto é, do surgimento das imagens técnicas -- fotografia e cinema --, da radiodifusão e da comunicação digital. Mas estamos falando também de Sigmund Freud (1856-1939) e sua descoberta do inconsciente, que comprovou o papel decisivo das imagens como mensagens que afloram em forma de símbolos e promovem uma tomada de consciência por parte do indivíduo; e de Carl Gustav Jung (1875-1961) e sua teoria dos arquétipos -- imagens primordiais originadas de uma repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo.
Para Durand (1998), nisso consiste o paradoxo do imaginário no Ocidente, ou seja, por mais que imagem e imaginário tenham sido sistematicamente excluídos como via de acesso ao conhecimento, essa mesma relutância impulsionou um progresso técnico-científico que criou todas as condições para que nos tornássemos uma civilização que muito depende de ambos, mas que continuou a resistir à sua importância, relegando-os ao campo do "distrair".
Houve, porém, movimentos de resistência da imagem e do imaginário em face da iconoclastia do Ocidente. Essa resistência deve enormemente às religiões cristãs, apesar de a Reforma Protestante (século XVI) ter pregado contra a estética da imagem visual e em favor do sacrilégio do culto aos santos -- que resultaram na destruição de estátuas e quadros.
Aos excessos da Reforma, a Contrarreforma (século XVI) respondeu com a supervalorização da imagem barroca (séculos XVI-XVIII) na tentativa de reafirmar os valores cristãos:
> As imagens esculpidas ou pintadas, ou às vezes as imagens pintadas que imitam esculturas à *trompe-l'oeil*, invadem o vasto espaço desocupado das naves das novas basílicas de "estilo jesuíta" e os virtuosismos arquiteturais com os quais o Barroco beneficiará a Europa \[\...\] e que se estenderá durante quase três séculos pela Itália, Europa Central e\... América do Sul. (DURAND, 1998, p. 25 -- grifos do autor)
Em religiões como o Islamismo e o Judaísmo, se, por um lado, rejeitava-se a imagem visual, por outro, a imagem literária e a linguagem musical são muito valorizadas.
> O Islamismo compensava a proibição das imagens pintadas ou esculpidas com poetas de primeira grandeza (Attar, Hafiz, Saadi), a prática de recitais sagrados da música espiritual (*sama*) e a "recitação visionária" por meio de imagens literárias, portanto sem um suporte icônico, que consistia em uma técnica de recondução (*tawil*) à santidade inefável. Da mesma forma há no Judaísmo, ao lado das exegeses puramente legais, uma exegese "poética" das Escrituras (nas quais incluem-se os "livros" poéticos tais como o famoso e tão decantado "Cântico dos Cânticos") e, sobretudo, um investimento religioso na música do culto e mesmo na música denominada profana. (DURAND, 1998, p. 22-23 -- grifos do autor)
Quando da ruptura definitiva com a cristandade medieval, o imaginário encontrou refúgio nos movimentos artísticos pré-românticos e românticos (últimas décadas do século XVIII e grande parte do século XIX), porque "os poetas autenticam o que permanece", conforme observou Johann Christian Friedrich Hölderlin, poeta lírico alemão, depois validado pelos franceses Baudelaire e Rimbaud, este último responsável pela formulação da máxima de que "qualquer poeta tende a tornar-se um visionário" (DURAND, 1998, p. 28).
Simbolismo e surrealismo vieram, em seguida, atribuir maior significado às imagens no Ocidente, o que coincidiu com a valorização e emancipação sociais de pintores, escultores e poetas, ou "fazedores de imagens", como descreve Durand (1996, p. 233).
Daí em diante, diversos campos do conhecimento abriram-se para os estudos da imagem e do imaginário, sendo as letras e as artes, em todos os tempos, o "refúgio tolerado do imaginário", e as ciências duras as últimas a aceitá-los (DURAND, 1996, p. 232). Portanto, não como uma disciplina, mas como um "entre-saberes", o imaginário se faz presente em cada disciplina, levando consigo a possibilidade de se fazer ver por meio dos significantes, das parábolas, dos mitos, dos poemas, mas também do cinema, da fotografia, do vídeo e das imagens de síntese que nos rodeiam insistentemente.
Nesse sentido, imaginário e redes de comunicação têm estreita relação, porque estas, segundo Castells (2015, p. 98-99), "organizam a comunicação socializada", utilizando imagens de todos os tipos com as quais moldam a mente pública; e aquele, por sua vez, emerge dos materiais culturais distribuídos pelas redes de comunicação.
O paradoxo do imaginário no Ocidente (DURAND, 1998) parece evidente em tempos de redes de comunicação: não deixa de ser irônico que todo o esforço feito durante séculos para calar e desautorizar imagem e imaginário tenha produzido um efeito contrário, de supervalorização de crenças, valores e comportamentos traduzidos em imagens que circulam pelas redes de comunicação com uma liberdade sem precedentes. Mais que isso, conectam o local com o global e alcançam os recantos mais improváveis, estimulando movimentos migratórios, por exemplo, como o que levou Aylan Kurdi à morte trágica, mas também "projetos e valores alternativos propostos pelos atores sociais que têm como objetivo reprogramar a sociedade" (CASTELLS, 2015, p. 99), como a fotografia de Demir e as manifestações artísticas que deram à catástrofe a visibilidade que estatísticas, documentos oficiais e notícias não conseguiram.
== O naufrágio no imaginário coletivo
> No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram,\
> \[\...\]
>
> E durou o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e cresceram as águas e levantaram a arca, e ela se elevou sobre a terra.\
> E prevaleceram as águas e cresceram grandemente sobre a terra; e a arca andava sobre as águas.\
> \[\...\]
>
> Assim foi destruído todo o ser vivente que havia sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; e foram extintos da terra; e ficou somente Noé, e os que com ele estavam na arca.
>
> (BÍBLIA, Gênesis 7:11-23)
Segundo Annie Le Brun (2016, p. 46), "\[\...\] ainda que vista como punição divina que serve para confortar a ordem cristã, não há fim do mundo que não remeta a essa necessidade de figurar um caos, cuja emergência é, para nós, sempre esperada e temida". A catástrofe e o sentimento que desperta são, nesse sentido, "a primeira fenda do imaginário no mais profundo de nós (LE BRUN, 2016, p. 46).
> \[\...\] do caos ao Apocalipse, do Dilúvio ao fim dos tempos, da torre de Babel ao Ano mil, da desordem que engendra a ordem nos mitos fundadores à tábula rasa que conduz à "grande noite", inúmeras são as construções imaginárias que remetem à catástrofe como a uma constante em torno da qual a humanidade buscou se definir, estabelecendo sua relação com o mundo sob o signo do acidental. (LE BRUN, 2016, p. 43)
O dilúvio[^24] constitui a imagem fundadora da catástrofe ocidental. Não é, portanto, de admirar que catástrofes envolvendo naufrágios, tempestades e morte no mar tenham habitado nosso imaginário ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX e que se manifestou largamente na literatura e nas artes plásticas do Ocidente, seja na estética barroca, romântica, simbolista ou vanguardista, para então chegar às telas de cinema.
// ![][24]
// []{=_Ref497153814 .anchor}**Figura 6 -- Joseph Mallord William Turner, Naufrágio de um Cargueiro, 1810**
// Fonte: Museu Calouste Gulbenkian
Essa obra (Figura 6) faz parte de uma série de pinturas de grandes dimensões executadas pelo artista inglês na primeira década do século XIX dedicada à representação de catástrofes naturais e tempestades no mar, iniciada com *Bridgewater, Seapiece* (Coleção particular em depósito na National Gallery, Londres).
> A composição inscreve-se num universo de extrema sensibilidade face à natureza, dentro da melhor tradição inglesa de pintura do género, à qual o tema dos naufrágios, num país marítimo por excelência, foi especialmente grato. Turner não só absorve o legado da lição holandesa -- de Willem van de Velde, o Jovem, em particular -- como associa à sua expressão pictórica o peso do imaginário coletivo da época, vivido pelos seus contemporâneos de forma verdadeiramente emotiva e obsessiva.[^25]
Os relatos de viagens são antigos e sempre despertaram muito interesse, assim como estimularam o imaginário coletivo. Esses relatos se tornaram populares na Europa dos séculos XVI e XVII em virtude do comércio marítimo com o Oriente, fonte de curiosidade e de narrativas do gênero "maravilhoso", aqui compreendido como o registro em que o sobrenatural se une de forma harmoniosa à realidade para encantar o leitor.[^26]
Em consequência dessa popularização, os relatos de naufrágios surgiram em todos os países envolvidos no comércio marítimo e também conquistaram o público. Essa literatura tinha por objetivo exaltar e constituir a identidade dos países navegadores -- dentre os quais Portugal tem especial destaque -- e foi impulsionado pela disseminação do texto impresso -- também ocorrido entre a segunda metade do século XVI e início do século XVII -- a partir do surgimento de numerosas tipografias que se estabeleceram bem cedo em Portugal e trataram de publicar os relatos em forma de libretos baratos, acessíveis, portanto, a grande número de leitores.
Segundo Madeira (2005, p. 28), a mais plausível explicação para o sucesso e o interesse que essas narrativas despertavam é "o gosto por histórias trágicas, profundamente arraigado no imaginário coletivo, que, em contato com os acontecimentos reais, se potencializa em uma percepção catastrófica do tempo".
As narrativas se confirmaram como gênero literário no século XVIII e, para Madeira (2005),
> \[\...\] prenunciam, de muitas maneiras, uma matriz estética barroca, com estratégias próprias de ficcionalização e estilização do real. Plasmada por meio de figuras incongruentes e formas descontínuas, a arte barroca atualiza as novas concepções espaciais que modelaram a sensibilidade moderna. O regime de imagens prevalecente nos relatos de naufrágios -- reiteradas e marcantes alegorias -- pode ser uma via de acesso privilegiada ao imaginário social da época que permita a compreensão de como uma sociedade delira, como metaforiza suas obsessões e seus medos. (MADEIRA, 2005, p. 36-37)
"Um grau excepcional de universalidade", conforme afirma Madeira (2005, p. 37), explica o enorme fascínio que esse tipo de narrativa exerce sobre indivíduos de qualquer época -- antes ou depois das grandes navegações. E as imagens de naufrágios são sempre muito carregadas de emoção. Assim descreveu Camões, no final do Canto I, de *Os Lusíadas*:
> *No mar tanta tormenta e tanto dano,*
>
> *Tantas vezes a morte apercebida!*
>
> *Na terra tanta guerra, tanto engano,*
>
> *Tanta necessidade avorrecida!*
>
> *Onde pode acolher-se um fraco humano,*
>
> *Onde terá segura a curta vida,*
>
> *Que não se arme e se indigne o Céu sereno*
>
> *Contra um bicho da terra tão pequeno*?
Já se vão 115 anos desde o naufrágio do Titanic:
> No momento em que o Titanic terminou de naufragar, às 2h20 do dia 15 de abril de 1912, teve início uma onda de fascínio que se espalharia pelo mundo e continuaria com impressionante força mesmo cem anos após a colisão com o iceberg. Houve desastres marítimos maiores, mais mortais, mais antigos e mais recentes, mas nenhum ocupou o mesmo lugar no imaginário popular como símbolo da incapacidade humana de controlar o universo, ainda que em posse da mais avançada tecnologia.[^27]
Segundo Pécora (2012), uma produção cultural diversificada e numerosa sobre o naufrágio do Titanic está à disposição dos fãs. Destacam-se o lançamento, em 1955, do romance *A Night to Remember*, de Walter Lord, que reconstrói a tragédia a partir de depoimentos de sobreviventes; a descoberta dos destroços do navio pelo oceanógrafo Robert Ballard, em 1985, tema de uma série de documentários; e o sucesso do filme *Titanic*, de James Cameron, que bateu recordes de bilheteria em 1997 e deu ao seu produtor e diretor 11 Oscars em 1998.
Outras tantas tragédias no mar sobrevieram ao longo dos mais de cem anos que separam a fictícia Rose DeWitt Bukater, ou Rose Dawson Calvert (sobrevivente do Titanic), de Aylan Kurdi, personagens cujos destinos passaram por enfrentar os perigos do mar, com desfechos opostos. Rose sobreviveu e tornou-se famosa e mundialmente conhecida, enquanto Aylan sucumbiu.
Ficção e realidade, em Rose e Aylan, se entrecruzam, alterando nossa percepção. Rose nasceu da imaginação de James Cameron para personalizar a tragédia do Titanic, viver uma curta e emocionante história de amor e sobreviver para dividir com espectadores do mundo inteiro suas recordações de cada detalhe do luxuoso, grande e veloz navio e o desespero de estar a bordo de um transatlântico com cerca de 2.200 pessoas, das quais aproximadamente 1.500 morreram. "Viveu" 101 anos e "morreu" serenamente, reescrevendo a tragédia de forma a permitir um *The End* de possibilidades. Diferentemente de Rose, Aylan não nasceu fruto da imaginação de um artista, viveu 3 anos em meio a uma guerra que já matou cerca de 500 mil sírios[^28] e morreu afogado no Mar Mediterrâneo. Do anonimato para a fama, houve o tempo do clique da câmera fotográfica. A imagem sobreviveu para contar sua história.
Uma criança que atravessa o mar e morre na travessia é uma imagem que choca. E de novo aproxima ficção e realidade, cujas fronteiras, pelo menos no imaginário coletivo, são bastante incertas. A fotografia de Aylan parece flutuar nessas fronteiras. Não se assemelha a uma foto rotineira de guerra, tampouco de catástrofe natural. Não nos parece típica do fotojornalismo, mas é jornalística. Aylan parece dormir, mas já não respira. Tudo aparenta calma em volta dele. Mas o mar continua trazendo mais e mais embarcações com fugitivos de guerra e outras catástrofes.
Um dos mais emblemáticos episódios medievais, datado de 1212, conhecido como a cruzada das crianças, tem também como desfecho o naufrágio de barcos cheios de crianças. A morte de Aylan Kurdi evoca a cruzada das crianças, dadas as coincidências que se observam entre ambas, mas também à inversão que Aylan Kurdi representa, considerando o imaginário ocidental: morto nas areias de Bodrum, na Turquia, Aylan se lançou ao mar em direção ao Ocidente, enquanto aquelas crianças iam em sentido contrário; ele era um curdo que professava (ou professaria) a religião islâmica, enquanto aquelas eram cristãs que tentavam chegar a Jerusalém para expulsar os muçulmanos da Terra Sagrada.
Nos dois casos, porém, partindo de regiões da Alemanha e da França ou da então desconhecida Kobane, na Síria, essas crianças nunca retornaram para seus lares. Morreram pelo caminho de fome ou de frio, ou afogadas, como Aylan.
Conta Marcel Schwob, em 1896, que no século XII, na Europa, milhares de crianças cristãs, de cabelos ruivos e olhos verdes, vestidas de branco e com cruzes costuradas nas roupas, atenderam a um chamado e empreenderam uma travessia de milhares de quilômetros, peregrinando nas mais adversas condições climáticas, acreditando-se com o poder divino de libertar Jerusalém do domínio muçulmano, uma vez que quatro cruzadas já haviam falhado nessa missão -- e outras falhariam depois. Elas atravessaram o Mar Mediterrâneo em sete naves, das quais cinco soçobraram nas águas do Recife de Recluso. Sob diferentes visões -- um clérigo cristão, um leproso, o Papa Inocêncio III e o Papa Gregório IX, um escrevente, um monge maometano e as próprias crianças --, foram assim descritas por um goliardo:[^29]
> Aquelas crianças todas me pareceram sem nome. E é certo que Nosso Senhor Jesus tem preferência por elas. Ocupavam a estrada qual enxame de abelhas brancas. Não sei de onde vinham. Eram peregrinos bem pequenos. Traziam cajados de aveleira e bétula. Traziam a cruz ao ombro \[\...\]. São crianças selvagens e ignorantes. Erram rumo a não sei quê. Têm fé em Jerusalém. \[\...\] Elas não alcançarão Jerusalém. Mas Jerusalém as alcançará. (SCHWOB, 2011, p. 24)
Inspiradas em Schwob (1896), outras versões da cruzada das crianças surgiram, dentre as quais *O barco das crianças*, de Mario Vargas Llosa (2016), em linguagem destinada ao público jovem. O personagem Fonchito, já conhecido dos leitores de outra obra de Llosa, em contato com um senhor já velho, ouve a narrativa apaixonada que esse senhor faz da cruzada das crianças. À medida que a história contada a Fonchito se desenvolve, o limite que separa o real da ficção se torna mais e mais impreciso:
> -- Não estou vendo nenhum barco, moço -- atreveu-se a dizer.
>
> -- Não vê porque não apareceu esta manhã, mas se aparecesse provavelmente também não o veria. (p. 11)
>
> -- O senhor fala como se houvesse estado lá, moço, no meio dessas crianças -- disse Fonchito, estranhando. -- Como se tivesse vivido as coisas que conta.
>
> -- De certa maneira pode-se dizer que estive lá, que vivi -- reconheceu o velho, misteriosamente. -- Mas, que importância isso tem, meu jovem amigo? (p. 21)
>
> -- Mas então o senhor estava lá, entre as crianças que partiram nesse barco -- interrompeu Fonchito, maravilhado, com os olhos arregalados. -- Como pode ser, moço? Nesse caso, o senhor seria uma pessoa muito velha, teria centenas de anos de idade. E isso não é possível, ninguém vive tanto tempo.
>
> \[\...\]
>
> -- Desculpe, moço, mas ainda não respondeu à minha pergunta -- insistiu Fonchito, desconcertado. -- O senhor estava lá? Era uma dessas crianças que embarcaram para Jerusalém nesse primeiro barco?
>
> \[\...\]
>
> -- É que, é que\... -- hesitou Fonchito --, desculpe a minha insistência, mas se o senhor estava lá, naquele barco, agora já seria um fantasma, não é mesmo? (p. 27-29)
>
> -- E aquele primeiro barco, no qual o senhor estava? -- perguntou Fonchito, um pouco confuso. -- Porque o senhor foi uma das crianças sorteadas para viajar nele, não é verdade? Pelo menos foi isso que eu entendi. Ou será que estou enganado?
>
> -- Era e não era eu -- disse o velho \[\...\]. (p. 36)
>
> -- Estamos chegando mesmo ao final da história, moço? -- perguntou Fonchito na manhã seguinte.
>
> -- Pois é, estamos, sim -- respondeu. -- Mas não se preocupe. A vida e, principalmente, os livros estão cheios de histórias maravilhosas. Você pode lê-las e, se forem bem contadas, é exatamente como se as vivesse. (p. 83)
Uma história tão antiga, transformada em relato atual, inquieta porque dissolve as fronteiras do real. "Como se" nunca é o real, mas a sua representação, a imagem que construímos, e será mais ou menos impactante, se tornará um apelo mais ou menos irresistível, a depender da forma que lhe será dada de modo a conferir-lhe poder de convencimento ou de persuasão, conforme afirmam o velho senhor de *O barco das crianças* e o próprio Llosa, em outra obra -- não ficcional --, discutida na próxima seção.
== O náufrago Aylan segundo os fazedores de imagem
A tragédia da família Kurdi foi registrada e circulou apoiada nas bases da tecnologia que permite fotografar, mas também no fato de que a imagem, em si, só é terrível porque o horror que ela causa "provém do fato de *nós a olharmos* do seio da nossa liberdade" (BARTHES, 2013, p. 106). Vejamos em que consiste o apelo irresistível dessa fotografia.
Em *Cartas a um jovem escritor*, Llosa (2008, p. 33) se ocupa da forma do romance, "que, por mais paradoxal que pareça, é o atributo mais concreto que ele \[o romance\] possui, já que é através de sua forma que um romance ganha corpo, natureza tangível". Mas Llosa alerta (2008, p. 33): "a separação entre forma e conteúdo \[\...\] é artificial, admissível apenas quando objeto de explanação ou análise, já que o que o romance conta é inseparável da forma como é contado". A relação estreita entre forma e conteúdo é o que determina, para Llosa, se o que o romance conta é crível ou não. Quanto maior o poder de persuasão de um romance, melhor é o romance, conclui o prêmio Nobel de Literatura.
> Para dotar um romance de 'poder de persuasão', é preciso contar a sua história de modo a tirar o máximo de proveito das vivências implícitas na trama e nos personagens, conseguindo transmitir ao leitor uma ilusão de sua autonomia com relação ao mundo real em que reside quem o lê. \[\...\] Os bons romances -- os de peso -- não parecem contar uma história, mas nos fazer vivê-la, compartilhá-la, graças à persuasão de que se acham dotados. (LLOSA, 2008, p. 35-36)
Essa é uma discussão bastante técnica sobre o texto ficcional, obra de alguém que reveste a ficção de uma soberania que é sempre figurada, porque é sempre ficção, o que é o mesmo que dizer que o que existe é "uma ilusão de soberania", "uma impressão de independência, de emancipação do real". Esse alguém é responsável por ligar os romances ao mundo "por um cordão umbilical" (LLOSA, 2008, p. 38).
Vamos aqui retomar a ideia central de Llosa expressa na fala do velho senhor de *O barco das crianças* e na terceira carta de seu livro de 2008 e adaptá-la à leitura da fotografia de Demir para sustentar uma primeira suposição sobre o porquê da enorme repercussão dessa fotografia. Essa ideia é o poder de persuasão. Antes, porém, é preciso lembrar que uma fotografia não é uma cópia do real, mas uma representação (e assim voltamos a *Ceci n\`est pas une pipe*). E, como tal, traz consigo "o elogio da forma, a afirmação da individualidade do fotógrafo e o dialogismo com os modelos" (ROUILLÉ, 2009, p. 161). Com isso, queremos destacar o mito da transparência documental da fotografia para aproximar a imagem fotográfica em discussão, em alguma medida, da ficção que caracteriza o romance. Para tal empreitada, vamos nos apoiar em de-Andrés et al. (2016):
> A imagem de Aylan é dotada de considerável polissemia em termos de significado. O ícone abrange o conceito de imigração, refugiado, políticas de imigração, tragédia, vulnerabilidade e infância e contém os três tratamentos que uma imagem pode fornecer: documento, arte e sentimento. Apresenta uma visão diferente no universo da tragédia dos filhos de imigrantes e refugiados que atravessam o mar Egeu ou o Mediterrâneo. (DE-ANDRÉS et al., 2016, p. 33 -- tradução nossa)[^30]
Também vamos evocar Charaudeau (2012), quando o autor discute o tratamento da informação num ato de comunicação mediada:
> O tratamento é a maneira de fazer, o modo pelo qual o sujeito informador decide transpor em linguagem (e também iconicamente, caso possa recorrer à imagem) os fatos selecionados, em função do alvo predeterminado, com o efeito que escolheu produzir. Nesse processo, está em jogo a inteligibilidade da informação transmitida, e como não há inteligibilidade em si, esta depende de escolhas discursivas efetuadas pelo sujeito informador. Ora, toda escolha se caracteriza por aquilo que retém ou despreza; a escolha põe em evidência certos fatos deixando outros à sombra. (CHARAUDEAU, 2012, p. 39).
Tanto quanto o romance, a imagem fotográfica se compõe, tecnicamente, de forma e conteúdo, também inseparáveis. E, igualmente, o poder de persuasão da imagem fotográfica -- e aqui estamos tratando da fotografia de Demir -- foi decisivo para conferir a essa fotografia o estatuto de símbolo, e apenas a essa foto, a despeito da quantidade de imagens produzidas sobre o tema e que não lograram alcançar tamanho destaque. Se para Llosa esse poder de persuasão é o que determina quão "bom" é o romance, parece plausível aplicar o mesmo juízo de valor à fotografia de Demir para explicar por que a sua fotografia -- "aquela" -- foi eleita digna de se tornar capa de grandes jornais impressos ao redor do mundo e mote para tantas manifestações artísticas que circularam pela rede mundial de computadores logo após a distribuição da fotografia.
> Não estamos acostumados a ver imagens de crianças mortas, crianças afogadas, nos nossos jornais ou nas notícias da televisão. Como diz Sánchez, o que se destaca é que "o corpo está inteiro" quando normalmente a guerra e a catástrofe natural trazem-nos imagens de corpos mutilados, amputados ou quebrados. Os corpos dos afogados que normalmente são trazidos estão gravemente deteriorados, mas não nesta imagem. É um menino que pode ser claramente identificado por qualquer pessoa no Ocidente como "um de nós" \[\...\]. (DE-ANDRÉS et al., 2016, p. 34 -- tradução nossa)[^31]
A fotografia de Demir, aqui considerada "eleita" (= "boa") dentre tantas, não só nos conta uma história trágica, mas também nos faz "viver" essa história, na medida de seu enorme poder de persuasão, que encurta a distância que separa a longínqua história de Aylan Kurdi da nossa realidade, uma vez que nos coloca diante da relação complicada que há entre adultos e crianças em muitos pontos do planeta. Muito frequentemente, essa relação é paradoxal, pois oscila entre a responsabilidade do mundo adulto de garantir a proteção das crianças[^32] e a precaríssima condição de vida de milhões de crianças que têm seus direitos negados e são privadas de tudo de que precisam para crescer saudáveis e fortes, devido ao seu lugar de nascimento, sua origem familiar, sua raça, sua etnia, seu gênero ou porque vivem na pobreza ou têm alguma deficiência.[^33] Só em 2016, cerca de 535 milhões de crianças, ou seja, um quarto da população infantil do mundo, foram afetadas por desastres naturais, conflitos armados, violência e crise migratória.[^34]
Para Llosa (2008, p. 37), "o mau romance, que carece de poder de persuasão ou que muito pouco o tem, não nos convence da mentira que nos conta \[\...\]". Talvez esse seja o aspecto que diferencia a fotografia de Demir de outras que mostram crianças migrantes mortas durante a fuga, mas que pecam pelo excesso de realismo e pelo pouco poder de persuasão que encerram.
A esse respeito, Barthes (2013) nos alerta, a propósito de uma exposição de fotos-choque na Galeria D'Orsay, em Paris:
> A maior parte das fotografias aqui reunidas para chocar o público não produzem \[sic\] o menor efeito sobre nós, precisamente porque o fotógrafo substitui-se-nos larga e excessivamente na formação do seu tema: quase sempre trabalhou de forma exagerada o horror que nos propõe, acrescentando ao fato, por meio de contrastes ou aproximações, a linguagem tradicional do horror \[\...\]. Ora, nenhuma dessas fotografias, excessivamente hábeis, atinge-nos. É que perante elas ficamos despossuídos da nossa capacidade de julgamento: alguém tremeu por nós, refletiu por nós, julgou por nós; o fotógrafo não nos deixou nada -- a não ser um simples direito de uma aprovação intelectual \[\...\]. (BARTHES, 2013, p. 106-107)
A segunda suposição sobre o porquê da enorme repercussão da fotografia de Demir consiste na ambivalência entre dormir e morrer: eis que consiste no paradoxo da imagem da vida, apesar de ser da morte. Para defender essa ideia, vamos acompanhar os passos de John Berger, em seu ensaio "Imagem do imperialismo" (2017, p. 21-35). Segundo Geoff Dyer (2017, p. 16), John Berger escreveu ensaios sobre fotografias que são "jornadas epistemológicas que nos levam além dos momentos representados, frequentemente além da fotografia". Portanto, observaremos a fotografia, mas com os olhos alcançando mais que o instante que ela mostra, porque acreditamos que essa fotografia não congelou um instante: o tempo já se estancara com a morte.
Há uma semelhança entre a criança que dorme e Aylan morto na praia. Destaque-se que as roupas de Aylan estão intactas e os sapatos não estão de acordo com o estereótipo de um menino refugiado que costumamos ver nos jornais ou na TV. Daí por que reconhecemos nele "o nosso filho", cuja morte nos é intolerável, mas cujo sono nos emociona. Dessa semelhança se serviram alguns artistas integrantes da *hashtag* \#kiyiyavuraninsanlik, criada para circular no Twitter.
// ![][29]
// []{#_Toc507740892 .anchor}**Figura 7 -- Travesseiro e cobertor**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740893 .anchor}**Figura 8 -- Quarto de criança**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740894 .anchor}**Figura 9 -- Sob as ondas do mar**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740895 .anchor}**Figura 10 -- Do abraço da Síria**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740896 .anchor}**Figura 11 -- Vamos mudar o mundo!!**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740897 .anchor}**Figura 12 -- Outra vida**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740898 .anchor}**Figura 13 -- Em um lugar melhor**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740899 .anchor}**Figura 14 -- Por um mundo com humanidade**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
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// []{#_Toc507740900 .anchor}**Figura 15 -- O Espelho da Europa**
// Fonte: #kiyiyavuraninsanlik
Essa semelhança não deveria ser surpreendente, mas a sugerida ambivalência entre vida e morte, mais que surpreender, choca e horroriza. Em ambas as situações -- a criança que dorme e a criança sem vida --, ela está completamente exposta à observação atenta, desperta sentimentos e expõe nossos intemporais medos: a morte e o morrer.
Quem vela o sono de uma criança teme a síndrome da morte súbita, ainda um mistério para a medicina. A maioria dessas mortes acontece durante o sono. Não há muito o que fazer para impedi-la. Ensinam-nos apenas a pôr o bebê para dormir de barriga para cima ou de lado, medida que se torna rapidamente inútil, porque a criança logo aprende a se virar e a dormir de bruços, exatamente na posição em que Aylan foi fotografado.
Essa mesma posição para dormir -- de bruços -- pode ser observada em algumas das fotografias do fotógrafo sueco Magnus Wennman, vencedor de dois prêmios World Press Photo Awards. Em 2015, Wennman fez uma parceria com a Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e viajou por sete países no Oriente Médio e na Europa, onde conheceu crianças refugiadas que lhe mostraram onde dormiam. Seu objetivo era aumentar a conscientização sobre crianças refugiadas. Suas fotografias resultaram na exposição *Where the children sleep*, que mostra rostos, nomes e histórias de milhões de crianças refugiadas que passam a noite em ambientes insalubres ou totalmente inseguros, depois que sua vida foi violentamente transformada. A exposição fotográfica retrata o impacto devastador do conflito que já dura mais de seis anos, depois de essas crianças terem escapado do seu país devastado pela guerra.[^35]
Evocamos, aqui, esse fotojornalista e seu ensaio premiado, com o fim de demonstrar que a criança que dorme -- ainda mais a criança refugiada -- já estava presente na mídia e já havia sido explorada pelo fotojornalismo. Entretanto, de um ponto de vista oposto ao que trouxe a fotografia de Demir.
Além dessa semelhança, destacaremos as disparidades observadas entre Wennman e Demir. O primeiro vai em busca de fotografar crianças refugiadas dormindo. Havia em seu objetivo a ideia de produção. Ele sabia de antemão o que desejava fazer, como fazer, por que fazer. Ele tinha um projeto de trabalho desenhado, executou-o e deu um destino ao produto do seu trabalho que lhe rendeu prêmios. Esse percurso é diferente daquele que notabilizou Demir. Não foi objetivo da fotojornalista buscar uma criança refugiada morta/dormindo na praia para então levar tal imagem ao mundo. Antes, foi a imagem com que a fotojornalista se deparou que solicitou uma decisão imediata de Demir.
Wennman desfrutou de sucesso e foi laureado com seu ensaio fotográfico, atingindo um público específico, que acompanha a World Press Photo, organização independente sem fins lucrativos fundada em 1955 em Amsterdã, na Holanda, e conhecida por realizar anualmente a maior e mais prestigiada distinção de fotojornalismo do mundo. Todos os anos, as fotografias vencedoras são reunidas em uma exposição itinerante visitada por milhões de pessoas em 40 países e um livro com todos os registros premiados é publicado em seis idiomas diferentes.
Demir tornou-se conhecida por fotografar Aylan e entregar ao mundo uma fotografia cuja contemplação desencadeou ações. Pessoas comuns manifestaram sua indignação nas redes sociais e artistas responderam à provocação da foto com outras imagens. Sites de pesquisa registraram números recordes de buscas sobre refugiados, Aylan Kurdi, mortes no Mediterrâneo, movidos pelo incômodo absoluto que a imagem provocou. A imprensa mundial exibiu a foto na primeira página e desde então estudiosos de variadas áreas do conhecimento vêm publicando estudos e artigos sobre a foto de Aylan.
Tais disparidades não tornam ambos os fotojornalistas mais ou menos importantes, um em relação ao outro. Tanto nas fotografias de Wennman quanto na de Demir, está presente a criança que dorme -- ou que parece dormir. E isso nos leva a concluir que há, no sono da criança, qualquer coisa que emociona e desespera -- daí por que o projeto de Wennman era justamente fotografar crianças durante o sono -- porque a criança que dorme torna-se ainda mais adorável, mas também mais frágil, indefesa e exposta a todo tipo de ameaça. O senso de responsabilidade que a visão da criança que dorme nos desperta é tal que ver Aylan Kurdi morto -- à semelhança de um bebê que dorme -- se torna insuportável, porque nos dá a certeza de que falhamos espetacularmente. O tempo das fotos de Demir é de outra ordem do tempo das fotos de Wennman. Em Demir, é passado: "Isto foi", conclui Barthes (1990, p. 135-151). Em Wennman, é a prolongação do presente. O passado só se recupera recriando-o, sonhando-o, imaginando-o, ficcionalizando-o. O presente que se prolonga é uma prova do realismo.
Por isso, as imagens fotográficas de Aylan deslizam de um *analogon* -- perfeição analógica do real ou denotação -- para uma conotação (BARTHES, 1990). Sem dúvida, a ideia de *analogon* se aplica perfeitamente às fotos de Wennman, denotativas em toda a sua estrutura e trajetória. Mas às fotos de Demir, é forçoso ultrapassar a denotação e atribuir-lhe uma conotação:
> Ora, esse estatuto puramente \"denotante\" da fotografia, a perfeição e a plenitude de sua analogia, numa palavra sua \"objetividade\", tudo isso se arrisca a ser mítico (são os caracteres que o sentido comum atribui à fotografia): pois, de fato, há uma forte probabilidade (e isso será uma hipótese de trabalho) para que a mensagem fotográfica (ao menos a mensagem de imprensa) seja também ela conotada. A conotação não se deixa forçosamente apreender imediatamente ao nível da própria mensagem (ela é, se quisermos, simultaneamente visível e ativa, clara e implícita), mas pode-se já induzi-la de certos fenômenos que se passam ao nível da produção e da recepção da mensagem: de um lado, uma fotografia de imprensa é um objeto trabalhado, escolhido, composto, construído, tratado segundo normas profissionais, estéticas ou ideológicas, que são outros tantos fatores de conotação; e, de outro, essa mesma fotografia não é apenas percebida, recebida, ela é lida, ligada mais ou menos conscientemente pelo público que a consome a uma reserva tradicional de signos. (BARTHES, 1990, p. 14)
// ![][39]
// []{#_Toc507740901 .anchor}**Figura 16 -- Na grama**
// Fonte: Magnus Wennman -- Where the children sleep
// ![][40]
// []{#_Toc507740902 .anchor}**Figura 17 -- Entre as árvores**
// Fonte: Magnus Wennman -- Where the children sleep
// ![][44]
// []{#_Toc507740903 .anchor}**Figura 18 -- No asfalto**
// Fonte: Magnus Wennman -- Where the children sleep
// ![][45]
// []{#_Toc507740904 .anchor}**Figura 19 -- Na rua**
// Fonte: Magnus Wennman -- Where the children sleep
// As imagens de Aylan contam sua história de diferentes maneiras. Em março de 2016, o artista plástico finlandês Pekka Jylhä estreou a exposição *Nós herdamos a esperança -- o dom do esquecimento*, na Galeria Helsinki Contemporary, cuja principal atração era uma escultura em tamanho natural, colorida, de Aylan Kurdi, reproduzindo a fotografia de Demir.
// ![ view over Pekka Jylhä\'s exhibition \"We Have Inherited Hope - the Gift of Forgetting\" at Helsinki Contemporary. Picture: Ilpo Vainionpää]
// []{#_Toc507740905 .anchor}**Figura 20 -- Nós herdamos a esperança -- o dom do esquecimento**
// Foto: Ilpo Vainionpää
// Fonte: \<http:https://finlandtoday.fi/the-drowned-refugee-aylan-and-other-horrors-on-display-at-helsinki-contemporary/\>
// ![][47]
// []{#_Toc507740906 .anchor}**Figura 21 -- Até que o mar o liberte**
// Foto: Ilpo Vainionpää
// Fonte: \<http:https://finlandtoday.fi/the-drowned-refugee-aylan-and-other-horrors-on-display-at-helsinki-contemporary/\>
Em texto publicado no site *Finland Today*, Donna Roberts conta que, em Helsinki, em geral, as galerias são vazias, por isso foi surpreendente que a exposição atraísse público numeroso, colocado mais uma vez diante de uma imagem de tirar o fôlego. A mídia local divulgou as informações sobre a escultura, e os visitantes lotaram a galeria até o dia 3 de abril de 2016. Para Roberts, o sucesso da exposição decorreu do foco da mídia sobre a escultura, intitulada *Until the Sea Shall Him Free.* Assim, os visitantes foram conferir as dez obras da mostra, sabendo que se defrontariam com o horror em forma de escultura, antecipando um choque que já era esperado.
Embora possa inquietar ao extremo e suscitar discussões éticas, a interferência do artista, nesse caso, tem uma relevância decisiva: só ele é capaz de captar aspectos como a nossa capacidade de esquecer rapidamente os desastres que presenciamos em tempo real, mediados pelas tecnologias da comunicação, bem como a nossa necessidade de dilatar a sensação de comoção, ao mesmo tempo em que estende a duração do tema entre os assuntos mais vistos e discutidos, *on-line* e *off-line*.
É preciso repetir que a exposição do artista finlandês foi intitulada *Nós herdamos a esperança -- o dom do esquecimento*. Essa frase é um verso da poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012), vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 1996, que revela o quanto somos capazes de esquecer, mas também o quanto essa capacidade é vital para a sobrevivência humana. Jylhä explorou exatamente esse ponto. Ao fazer a escultura de Aylan, ele disse ao mundo "Não esqueça", mas, com isso, revelou a nossa pouca disposição de manter a atenção nos eventos narrados pela mídia, inerentemente efêmeros. A necessidade de manter viva a memória da dor surge exatamente da nossa capacidade de esquecer.
Essa espécie de resiliência, tão bem representada pelo título da exposição, mostra a sensibilidade do artista finlandês para compreender a sociedade consumista, individualista e hedonista que somos, mas também sua capacidade de perceber que não se pode "morrer demais" a cada novo choque distribuído pela mídia. Isso explica a influência da poesia de Wislawa Szymborska sobre o trabalho de Jylhä:
> Autotomia[^36]\
> \
> Diante do perigo, a holotúria*[^37] *se divide em duas:\
> deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,\
> salvando-se com a outra metade.\
> \
> Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,\
> em resgate e promessa, no que foi e no que será.\
> \
> No centro do seu corpo irrompe um precipício\
> de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.\
> \
> Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.\
> Aqui o desespero, ali a coragem.\
> \
> Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.\
> Se há justiça, ei-la aqui.\
> \
> Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.\
> Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.\
> \
> Nós também sabemos nos dividir, é verdade.\
> Mas apenas em corpo e sussurros partidos.\
> Em corpo e poesia.\
> \
> Aqui a garganta, do outro lado, o riso,\
> leve, logo abafado.\
> \
> Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,\
> três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.\
> \
> O abismo não nos divide.\
> O abismo nos cerca.*[^38]*\
>
É assim que o artista acrescenta um ponto de vista privilegiado e sensível, atento à forma que deve ser atribuída a um conteúdo destinado a persuadir a audiência, fazendo-a se sentir "como se" estivesse vivendo aquela experiência. E é nesse sentido que entendemos a ficcionalização da história de Aylan Kurdi e o estatuto estético -- ou transestético[^39] (LIPOVETSKY; SERROY, 2015) -- das imagens de Aylan, desde a fotografia de Demir até a escultura de Jylhä.
== Têm mesmo poder as fotografias icônicas?
Quando da publicação das fotos de Demir, novamente veio à tona a discussão sobre o poder transformador das fotografias icônicas.[^40] Existe um conjunto dessas fotografias, largamente conhecidas no mundo inteiro, que entraram para a história devido ao seu poder transformador. A foto de Aylan seria a mais recente dessa lista.
Essa categoria de imagens, por sua capacidade denotativa de apresentar fatos presentes, serviram como um acionador para críticas. Em ensaio original dos anos 1970, Sontag (2004, p. 22) reconhece que a fotografia se tornou um dos principais meios para experimentar de forma indireta a realidade do mundo, mas adverte: "fotografar é, em essência, um ato de não intervenção". Segundo a autora, há situações em que o fotógrafo deve escolher entre uma fotografia e uma vida, e ele opta pela foto: "A pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode interferir" (SONTAG, 2004, p. 22).
Nesse ensaio, Sontag (2004, p. 27-28) admite que usar a câmera é uma forma de participação: "As imagens que mobilizam a consciência estão sempre ligadas a determinada situação histórica. \[\...\] Fotos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la -- e podem ajudar a desenvolver uma posição moral ainda embrionária". É o caso da fotografia que ocupou a primeira página de jornais do mundo inteiro em um dia de 1972 -- menina do napalm --, contribuindo mais "\[\...\] para aumentar o repúdio público contra a guerra do que cem horas de barbaridades exibidas pela televisão" (SONTAG, 2004, p. 28). Trata-se da fotografia de Nick Ut responsável por ter colocado a opinião pública contra a Guerra do Vietnã. Destaque-se que Sontag (2004) reitera a limitação do poder transformador da fotografia, dado que
> O que determina a possibilidade de ser moralmente afetado por fotos é a existência de uma consciência política apropriada. Sem uma visão política, as fotos do matadouro da história serão, muito provavelmente, experimentadas apenas como irreais ou como um choque emocional desorientador. (SONTAG, 2004, p. 29)
// ![Kim Phuc e outras crianças correm depois de ser atacado com napalm. Foto: AP / Nick Ut]
// []{#_Toc507740907 .anchor}**Figura 22 -- A menina do napalm**
// Nick Ut / Associated Press / 1972
Outro episódio histórico que gerou fotografias que abalaram o mundo foi por ocasião da invasão norte-americana ao Iraque, durante o governo Bush, no começo dos anos 2000. Detidos na prisão de Bagdá -- Abu Ghraib --, prisioneiros iraquianos foram mortos, torturados, abusados e tiveram suas imagens divulgadas pelos próprios reservistas do exército norte-americano.
// ![Um detido em Abu Ghraib. Foto: AP]
// []{#_Toc507740908 .anchor}**Figura 23 -- Um detido em Abu Ghraib**
// Fonte: Associated Press, 2004
Cerca de 200 fotografias feitas em Abu Ghraib nessas condições foram, em 2016, divulgadas pelo Pentágono, que foi forçado a publicá-las depois de perder uma batalha judicial para a União Americana das Liberdades Civis (ACLU). Ao todo, são 2.000 as fotos que a ACLU quer que o Departamento de Defesa norte-americano divulgue. Portanto, a história ainda não chegou ao fim: há 1.800 fotos a serem conhecidas pelo mundo.
Sontag (2008, p. 141) se manifestou novamente sobre "o poder insuperável \[das fotografias\] para determinar o que recordamos dos fatos". Diante da desmoralização em que o governo Bush se viu envolvido, "a reação inicial do governo foi dizer que o presidente estava chocado e indignado *com as fotos* -- como se o erro ou o horror estivesse nas imagens, não no que elas retratam" (SONTAG, 2008, p. 141 -- grifei). A indignação de Sontag diante de tais fotos levou-a a fazer uma crítica duríssima aos Estados Unidos, seu país, e ao povo americano, acusando-os de torturadores que se divertiram com a humilhação do inimigo: "E essas fotos que os americanos distribuíram anunciam ao mundo choque e terrível estupefação: um padrão de comportamento criminoso em franco desacato às convenções humanitárias internacionais (SONTAG, 2008, p. 149-150).
Esse episódio é significativo para o nosso estudo porque foi num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 (poucos meses antes de morrer), no jornal *The New York Times*, que Sontag afirmou que a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias dos soldados americanos na prisão de [Abu Ghraib][]:
> As fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza do mundo digital em que vivemos. De fato, parece que elas eram necessárias para levar os nossos líderes a reconhecer que tinham um problema nas mãos. \[\...\] Ao que parece, foi preciso que as fotos surgissem para que a atenção deles despertasse, quando ficou claro que elas não poderiam ser apagadas; foram as fotos que tornaram tudo isso "real" para o presidente e seus associados. Até então, só havia palavras, que são mais fáceis de encobrir, em nossa era de auto-reprodução e autodisseminação digitais infinitas, e, portanto, muito mais fáceis de esquecer. (SONTAG, 2008, p. 152)
Foi também nesse mesmo ensaio que Sontag (2008, p. 155) admitiu: "Sim, parece que uma foto vale mil palavras". Essas palavras são praticamente as últimas do ensaio de 2004 e sinalizam que Sontag estava revendo sua posição diante da fotografia -- desenvolvida no ensaio dos anos 1970 e hoje disponível no livro *Sobre fotografia* (2004) --, o que já se nota em seu livro *Diante da dor dos outros* (2003). Se, naquele momento, ela defendia a dormência da consciência que fotografias não seriam capazes de neutralizar, no final da vida, ela escreve: "Bem\... Não" (SONTAG, 2002, p. 263-264). Sontag confessa não se sentir mais tão certa de suas antigas teses e expressa uma perspectiva mais positiva quanto à força das imagens de sofrimento como base para a ação.
Bem, sim, concordamos com Susan Sontag. Mas não é qualquer imagem que vale por mil palavras. Algumas apenas -- aquelas que nos mobilizam, que nos tocam, que nos inquietam. A de Aylan Kurdi, por exemplo.